Discurso durante a 118ª Sessão Especial, no Senado Federal

Homenagem a Salvador Allende, ex-Presidente da República do Chile, falecido em 11 de setembro de 1973.

Autor
Arthur Virgílio (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/AM)
Nome completo: Arthur Virgílio do Carmo Ribeiro Neto
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem a Salvador Allende, ex-Presidente da República do Chile, falecido em 11 de setembro de 1973.
Publicação
Publicação no DSF de 12/09/2003 - Página 26770
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, SALVADOR ALLENDE, EX PRESIDENTE, PAIS ESTRANGEIRO, CHILE, ELOGIO, VIDA PUBLICA, DEFESA, DEMOCRACIA.

O SR. ARTHUR VIRGÍLIO (PSDB - AM. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Sr. Embaixador, demais membros do Corpo Diplomático, cidadãs e cidadãos chilenos aqui presentes, senhoras e senhores.

Tenho a convicção de que sempre se deve buscar o lado positivo, mesmo quando analisamos as tragédias. Não vou discutir aqui o Governo João Goulart, porque a análise fria e técnica poderia condená-lo. Vou discutir e tentar estatuir que João Goulart caiu menos por ter sido competente ou incompetente em seu governo e mais porque havia clima para golpe de Estado no Brasil. Havia grupos organizados capazes de eclodir movimento que levasse a uma ditadura.

O que Allende realizou, ou não, de seu programa, ou o que houvesse de equívoco administrativo, ou equívoco em relação à possibilidade ou não de articular a maioria política, não me cumpre situar agora. O importante e o trágico é sabermos que, no Chile de 1973, no Chile dos anos 70, havia grupos organizados e capazes, envoltos em clima que encarava como lógico o pronunciamento militar, natural o golpe de Estado.

E assim os bastiões da democracia foram caindo no Cone Sul, em datas e em épocas alternadas, praticamente em todos os países da nossa América do Sul.

A grande luta de tantas gerações tentava consolidar períodos seguidos de democracia. O Brasil amargou seus momentos, suas instabilidades.

O Chile parecia uma ilha de liberdade, um país de democracia formal consolidada. O ano de 1973 jogou por terra essa ilusão.

Quando falo do lado positivo das coisas, é de se lembrar, Senador João Capiberibe, de que hoje já não há clima para golpe de Estado em nenhum país da América do Sul. No Mercosul, que é uma grande expectativa para o povo brasileiro, sem dúvida alguma com a participação do Chile, com a participação dos países ao norte da América do Sul, consta uma cláusula democrática, certa vez acionada, quando da tentativa de golpe de Oviedo, no Paraguai. Esse movimento foi rechaçado de forma fulminante pelo Brasil, Argentina e Uruguai, deixando bem claro os três países que iriam até às últimas conseqüências para impedir que se consumasse esse atentado à democracia que o Paraguai, com o seu nível civilizatório, em seu estágio de cultura histórica e com o denodo de seu povo, tenta construir. Cada povo tem o seu momento, esse é o grande dado.

Hoje dá para divergir de maneira acalorada de companheiros que pensam sobre Allende o mesmo que eu, até porque temos uma democracia funcionando no Brasil, e de forma consolidada, felizmente. Dá para discutir, portanto, tudo que não seja questão democrática; dá para divergir de tudo aquilo que não signifique termos que retomar algo que, para nós, é cláusula pétrea, é princípio fundamental e que não pode ser posto em discussão, que é o direito do povo brasileiro se autodeterminar, escolher os seus governantes - seus governantes com direito a aceitar ou a errar, a fazerem bons ou maus governos, mas todos com a destinação, a não ser em casos excepcionais, marcados por corrupção, por infringência à lei constitucional brasileira, todos destinados a completar os seus períodos governamentais.

Só uma entidade deste País pode - e assim é no Chile também, o Chile pós-Pinochet -, na verdade, decidir sobre o destino dos dirigentes brasileiros - o povo brasileiro, organizado em nossas eleições, com suas precariedades e dificuldades, com seus equívocos, com suas deficiências, mas as nossas eleições que correspondem ao nosso patamar de passo e de alcance civilizatório.

Quero homenagear o Chile, que é, de certa forma, a segunda pátria para tantos de nós. O Brasil, durante tantos anos, foi um País de exilados. Os que tiveram de se exilar no exterior e aqueles que ficaram confinados pela ditadura no Brasil. Já citaram alguns, mas recorri ao ex-Deputado Flávio Bierrembach, Ministro do Superior Tribunal Militar, querido companheiro, para que me avivasse a memória. Almino Affonso*, grande tribuno brasileiro, Maria da Conceição Tavares*, economista de cujos fundamentos discordo, mas cuja biografia respeito profundamente, acima de tantas biografias. O Líder Aloizio Mercadante dizia há pouco que, se a presença de Maria da Conceição Tavares em seu gabinete criar problema, ele virá para a Oposição. Eu receberei S. Exª de braços abertos; já está feito o convite, não preciso consultar a Bancada, ninguém. Eu receberei S. Exª e Maria da Conceição Tavares; podem vir os dois, há clima para o debate e para a divergência entre nós.

Plínio de Arruda Sampaio*, Paulo de Tarso Santos*, que foi Ministro da Educação, João Batista dos Mares Guia*, Lauro de Toledo Ferraz, Francisco Weffort, Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Paulo Renato, Tiago de Melo*, que era adido cultural do Governo João Goulart no Chile, o Senador João Capiberibe, aliás, o grande arquiteto desta sessão, desta homenagem.

E, entre as opções que lhe restaram, havia duas: uma, bajular e tentar aderir ao regime militar que se implantava no Brasil; a outra, ficar no Chile e decretar que sua solidariedade era com a democracia, que morria, e não com o autoritarismo que nascia.

            Gostaria de tirar lições daquele momento trágico - uma delas serviu para o Governo Fernando Henrique Cardoso, do qual fui Líder neste Congresso, e serve para o Governo Lula, do qual o Senador Mercadante é Líder neste Senado. Recorro ao legendário Secretário-Geral do Partido Comunista Italiano*, Enrico Berlinquer - político com a responsabilidade de dirigir aquele partido de peso na Itália -, que, quando se sucederam os eventos do Palacio de La Moneda* - todos que vi lamentando o assassinato de Allende o fizeram num tom emocional, aliás, percebo que esse é o tom desta sessão -, sufocou seus sentimentos, foi frio e objetivo, fazendo, naquele momento, a primeira análise crítica da abordagem que as esquerdas de então equivocadamente faziam, ao chegarem ao poder. Enquanto todos afirmavam “perdemos um grande homem, um democrata”, “o mundo perdeu uma democracia que florescia”, “a América Latina aprofunda a ditadura”, Berlinquer disse: “acabei de descobrir que a maioria escassa, de dois, três ou quatro, não vale; para governar é preciso maioria ampla, é necessário cercar o programa que vai ser colocado em prática de apoio denso de partidos, de parlamentares.

O caso de Allende era tão grave, que três ou quatro parlamentares governistas que viajassem colocavam em minoria o governo do Presidente Salvador Allende. Portanto, a oposição também não podia deixar ninguém viajar. Havia um quadro de cabo-de-guerra, que levou à greve patronal ao nocaute, ao desabastecimento, a todo o boicote visto, que minou, aos poucos, a governabilidade de Allende. Mas Berlinquer disse que tudo começara na falta de articulação da maioria para garantir a governabilidade ao Chile - talvez até não pudesse ser feita uma articulação maior e mais ampla. São lições que temos que recolher.

Punha-me aqui, ouvindo os oradores anteriores, o belíssimo discurso do Senador Pedro Simon e dava-me conta de como mudanças se processaram na minha cabeça, no meu País, no Chile, no mundo. Dava-me conta de que temos esse compromisso inarredável com a democracia; de que essas mudanças não são suficientes para apagarmos a perspectiva de olharmos o Chile, o mundo e o Brasil pelo ângulo com que os olharíamos, se voltássemos a 64 ou a 73. Fora disso, não deixaríamos pedra sobre pedra de supostos equívocos. Nós os detectaríamos - como também os acertos -, pela ótica de quem teve todo o tempo de analisá-los para dizer “erraram nisso e naquilo”.

No entanto, temos que olhar, procurando viver aquele momento. Eu procurei mergulhar de volta naquele momento. Temos como marca o fato de que o clima era o de pró-estabelecimento de ditaduras. Evoluímos, com sofrimento, para o fato de que o ditador Augusto Pinochet* perdeu seu direito de transitar pelo mundo, pelos crimes contra a humanidade que cometeu no Chile. Isso significou, ainda mais, a consolidação da idéia da democracia, até porque nenhum tirano pode imaginar que estará a salvo após o fim da sua tirania, a partir do exemplo que determinado juiz espanhol deu a respeito de Augusto Pinochet.

Algumas pessoas alegam que se trata de alguém de idade. Revanche não faz parte do meu caráter - tampouco do caráter de V. Sªs, tenho certeza -, por outro lado, não podemos deixar de estabelecer penas e cobrar seu cumprimento àqueles que delinqüem. Não há delinqüência maior do que aquela praticada contra a humanidade. E nada maior e mais grave, em matéria de delinqüência contra a humanidade, do que a tortura, que é a expressão de diálogo mais brutal que pode ocorrer entre as pessoas.

Alguém, em algum momento, encerra o diálogo com o seu interlocutor. Esse alguém continua dialogando pelo silêncio. Naquele momento, a fase do diálogo é negativa e obscura. Ele fala: não converso mais com você. Ainda assim, está sendo civilizado, pois tem o direito de não dialogar com seu interlocutor. No momento em que amarro alguém a algemas, penduro-o em um pau-de-arara, submeto-o a uma câmara de tortura, ainda assim estou dialogando com ele - o diálogo mais violento, mais boçal e mais descabido.

Relaciono Allende a mais fatos brasileiros. Por exemplo, em algum momento, um parlamentar brasileiro fez uma crítica ao Presidente Pinochet, e a ditadura brasileira, solidária com a ditadura de Pinochet, tanto quanto as democracias têm que ser solidárias entre si, processou-o, com base na Lei de Segurança Nacional.

O Deputado Francisco Pinto se portou de maneira conveniente em relação ao governo chileno? Não sei. São firulas da diplomacia. Álvaro Lins, Embaixador de Getúlio junto à ditadura de Salazar, que foi, do ponto de vista das regras da diplomacia, inconveniente em relação ao governo de Salazar, merece a condenação? Não sei. Poderia ser feito um seminário para discutir as firulas da diplomacia.

Só sei que, naquele momento, a soberania do Congresso brasileiro era ferida. Chico Pinto era impedido de exercer o seu mandato. Foi preso no entardecer do dia em que declarou o que pensava sobre Augusto Pinochet e sobre a sua presença na posse de um Presidente brasileiro.

Nada mais coerente do que Pinochet vir à posse do ditador que entrava em plantão no Brasil. Nada mais coerente do que a sua punição. Nada mais injusto do que o estabelecimento de duas ditaduras, uma no Chile e outra no Brasil. Não vou discutir se era coerente a presença de um democrata na posse de outro democrata, nem de um ditador na posse de outro ditador. Vou discutir que injusta e descabida era a presença de duas ditaduras no território sul-americano, ou seja, a coisa era de raiz, como agora a democracia tem que ser algo a nos fazer unidos nas nossas nações, por ela, a despeito das nossas divergências internas.

Está aqui presente o Diretor do Diário de Petrópolis, Paulo Antonio Carneiro Dias, que foi processado porque se solidarizou com Chico Pinto. O seu crime foi enorme, ou seja, entendeu que não era justa a punição dada a Chico Pinto e foi processado com base na Lei de Segurança Nacional. E viveu um tormentoso período de mais de dez anos até que a luz se fez, do ponto de vista da sua liberdade pessoal. Eu poderia lembrar tantos outros episódios, tantas violências; algumas pessoalmente sofridas por mim, outras sofridas por pessoas tão próximas.

E vejo que não envelheceu a mensagem de Allende. Não envelheceu! Allende, hoje, pensando, como ele pensava, não sei se eu não seria oposição ao governo dele. Se eu mudei, Allende poderia ter mudado, ou não. Não importa.

Flávio Bierrembach me socorre com o nome do Ministro Almino Afonso. Almino Afonso, querido amigo, um dos melhores Parlamentares que este País já teve, discorda de mim no fundamental da análise econômica. Isso não provoca nenhum afastamento da admiração que mantenho por ele.

Apenas digo que Allende é capaz de unir a todos nós na emoção, no pranto e até no fato de que a data da sua morte, sendo mais importante, talvez, que a data do seu nascimento, é muito significativa: coincide com a brutalidade do 11 de setembro em Nova Iorque; coincide com a brutalidade, Flávio Bierrembach, da sevícia e do assassinato da menina Ana Lídia, praticada sob a proteção da ditadura militar brasileira - e não era nada político, era selvageria sexual. A ditadura degenera. E as pessoas que se degeneraram por este lado, seviciaram, ficaram impunes, mataram a menina Ana Lídia.

Também temos o fato de que o 11 de setembro hoje é comemorado, e a França está dando um grande exemplo, por meio do movimento em que cada pessoa deixa um livro num banco de praça, dá um livro a alguém, procurando responder ao equívoco da guerra, à brutalidade do terrorismo com o apelo à paz que, pela leitura, pela cultura, pela sensibilidade talvez seja obtido êxito a este apelo muito mais do que apela forçadas armas.

Sr. Presidente, esta data enche-me de muita emoção. Porque se alguém me dissesse: - “você se emociona, depois de tanto tempo, por Allende!”, eu diria que não só por ele; por todos nós, um pouco pela história de cada um de nós, um pouco pelos momentos que perdemos, pelos momentos que ganhamos, pelos sofrimentos que nos levaram aos ensinamentos de agora, um pouco por tudo, o que mostra que foi acertada a decisão do Senador João Capiberibe de propor esta homenagem, mostra que Allende está muito vivo entre nós.

Encero meu pronunciamento novamente recorrendo ao Ministro Flávio Bierrembach que me dizia: - Arthur, feche o seu discurso dizendo que Allende era de tal maneira predestinado, de tal maneira significativo para todos nós e para a história que se projetou a partir dele que, na pia batismal, seu pai lhe deu o nome de Salvador. Isso explica talvez a nossa sessão.

Muito obrigado. Era o que eu tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/09/2003 - Página 26770