Discurso durante a 61ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Considerações sobre os dez anos de bolsa escola no Brasil.

Autor
Cristovam Buarque (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
EDUCAÇÃO.:
  • Considerações sobre os dez anos de bolsa escola no Brasil.
Aparteantes
Heloísa Helena.
Publicação
Publicação no DSF de 17/05/2005 - Página 14802
Assunto
Outros > EDUCAÇÃO.
Indexação
  • ANALISE, PROGRAMA, CONCESSÃO, SALARIO MINIMO, FAMILIA, MANUTENÇÃO, CRIANÇA, ESCOLA PUBLICA, INICIATIVA, GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL (GDF), PERIODO, GESTÃO, ORADOR, GOVERNADOR, DISTRITO FEDERAL (DF).
  • ELOGIO, PAIS ESTRANGEIRO, MEXICO, IMPLANTAÇÃO, PROGRAMA, ASSISTENCIA ESCOLAR, SEMELHANÇA, BRASIL.
  • COMENTARIO, DESIGUALDADE SOCIAL, DESIGUALDADE REGIONAL, OBSTACULO, MELHORIA, EDUCAÇÃO, BRASIL, DEFESA, AMPLIAÇÃO, ATUAÇÃO, GOVERNO FEDERAL, AUXILIO, CRIANÇA.
  • COMENTARIO, BOLSA FAMILIA, DESVALORIZAÇÃO, ASSISTENCIA EDUCACIONAL, PROGRAMA.
  • DEFESA, IMPORTANCIA, REALIZAÇÃO, REVOLUÇÃO, EDUCAÇÃO, BRASIL.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, ontem, dia 15 de maio, fez dez anos que foi paga a primeira bolsa-escola no Brasil. Essa data foi escolhida pelo Governo do Distrito Federal da época não por acaso, mas para coincidir, o mais próximo possível, com o 13 de maio, quando se comemora a abolição da escravatura no Brasil.

Naquela ocasião, queríamos demonstrar que a educação era o caminho para conseguir-se completar a abolição, que não tinha sido completada ainda. E também a crença que tínhamos de que o primeiro passo para solução do problema da educação no Brasil seria a universalização, não apenas na matrícula - o Brasil hoje está próximo da universalização, no tocante às matrículas -, mas na freqüência, na permanência até o fim do segundo grau.

Foi com esse interesse que, naquela oportunidade, começamos aqui, no Distrito Federal, o Programa Bolsa-Escola. Dez anos depois, Sr. Presidente, podemos dizer que aquele foi um programa que conseguiu não apenas dar resultados no Distrito Federal, como também espalhar-se pelo Brasil inteiro e, inclusive, por diversos países.

Hoje, dez anos depois, pode-se estimar que cerca de vinte milhões de crianças no mundo recebem programas do tipo bolsa-escola, chamado no Brasil de Bolsa-Família.

Porém, se começamos, 10 anos atrás, dia 15 de maio, a pagar a primeira bolsa-escola a uma família da cidade do Paranoá, dentro do Distrito Federal, é preciso dizer que, naquele tempo, já sabíamos que a bolsa-escola em si - pagar às famílias pobres para que suas crianças possam estudar no lugar de trabalhar - é um programa assistencial se não vier acompanhado de melhoria na qualidade da escola.

É por isso que o Governo do Distrito Federal daquele momento, ao lado do bolsa-escola, de um salário mínimo para cada família, começou um programa sistemático para melhorar a qualidade da educação. Com aumentos substanciais, sim, do salário dos professores, com aumento do tempo de duração das aulas, conseguindo que quase todas as escolas já tivessem pelo menos cinco horas por dia e algumas, seis horas; com a implantação de um novo sistema pedagógico chamado Escola Candanga; com a melhoria de todos os aspectos da educação. A prova é que hoje, se quiséssemos, não seria uma, nem duas, nem três apenas, mas diversas as crianças pobres que, nesta cidade do Distrito Federal, em Brasília, graças ao Bolsa Escola, chegariam à universidade. Pessoas de famílias extremamente pobres, aos poucos, passaram a estudar em vez de trabalhar e de auxiliar a família.

Pena, Sr. Presidente, que, dez anos depois, o Bolsa Escola seja mais vinculado ao México que ao Brasil. Temos de reconhecer que os mexicanos aqui vieram para conhecer o programa e que daqui levaram a experiência, mas conseguiram realizá-lo de maneira mais séria, mais competente e mais dedicada. Por quê? Porque conseguiram complementar o Programa de Freqüência às Aulas do Bolsa Escola com um programa nutricional e com um programa de saúde para toda a família, não apenas para as crianças na escola, mas também para aquelas que ainda não estavam na escola. O projeto Progressa, como é chamado no México, hoje é um exemplo no mundo inteiro. É citado muitas vezes com o nome de Bolsa Escola, mas com referência ao que ocorreu no México. Conseguiram montar um sistema de controle da freqüência escolar que permite que o governo mexicano, por meio do seu Ministério da Educação, saiba onde está cada criança do país.

Esse é um exemplo que podemos seguir, mas ele não bastará se não agirmos rapidamente para melhorar a qualidade da educação básica no Brasil. Lamentavelmente, não será possível melhorar plenamente a qualidade da educação básica no Brasil enquanto essa for uma preocupação apenas municipal, porque nossas prefeituras não têm condições de arcar com o custo de uma boa escola no Brasil.

Além disso, há desigualdade entre as cidades, que não é menor do que a desigualdade entre as pessoas brasileiras. Há cidades com R$1.000,00 de renda per capita por mês e cidades com renda per capita de R$66,00 por mês. No Brasil, é uma loteria, para cada criança, o lugar em que ela nasce. Todo o seu destino está definido pelo seu lugar de nascimento. No Brasil, uma criança não é brasileira até completar os 18 anos e entrar na universidade ou no Exército. Até os 18 anos, ela é brasiliense, carioca, recifense. Ela não é brasileira. No Brasil, o Governo Federal não tem qualquer responsabilidade com as crianças a não ser pelas gotinhas contra a poliomielite.

No mais, tudo é fruto dos prefeitos e da responsabilidade dos governadores, o que faz com que haja uma brutal desigualdade educacional que se consolida com uma brutal desigualdade social, pois o berço da desigualdade está na desigualdade do berço. Faz parte do berço a escola, desde a primeira infância.

Para melhorar essa situação vem lutando muito a Senadora Heloísa Helena, a quem concedo um aparte.

A Srª Heloísa Helena (P-Sol - AL) - Senador Cristovam Buarque, por mais que estivesse prestando atenção ao pronunciamento de V. Exª, não posso deixar de fazer um aparte para saudá-lo por toda a sua trajetória de luta e de dedicação à educação pública, gratuita e de qualidade. Mais do que um sonho, do que uma aspiração social, do que uma perspectiva, é a dedicação de toda uma vida política. Quero também compartilhar de suas preocupações com relação ao cuidado e à atenção dados à criança. V. Exª fez esta afirmação, numa frase que ficará na história deste Senado: “O governo que não tem preocupação com suas crianças não merece ser governo”. Fico impressionada com o descaso. A criança é frágil. O idoso também é frágil, especialmente quando acometido por uma doença crônico-degenerativa, quando pobre. No entanto, a criança é muito mais frágil. Sua estrutura anatomofisiológica é frágil, ela é impossibilitada de discernir entre o certo e o errado. É na primeira infância, de zero a três anos, que as conexões neurológicas que dirão o que é inteligência serão desenvolvidas. Mesmo assim, sempre que se fala sobre atenção à criança, vem o velho e vergonhoso patrocínio de um verdadeiro e vexatório terrorismo de que isso vai quebrar município, de que isso vai quebrar Estado. Ninguém discute tantas outras coisas que, no cotidiano da análise do orçamento, das finanças públicas, das relações internas e externas, levam um país a quebrar. Mas criança não vota, criança não consegue fazer lobby no Congresso Nacional, criança pobre não consegue articular populações inteiras para discutir seus interesses aqui. Como bem disse V. Exª sobre o “berço da desigualdade”, parece que as meninas pobres e os meninos pobres do País, ao nascerem, recebem um carimbo na testa definindo que o seu destino é dormir no quartinho de empregada, é vender o corpo por um prato de comida, é vegetar na estrutura do narcotráfico, nas periferias das cidades. Portanto, saúdo com entusiasmo V. Exª pelo pronunciamento e parabenizo-o pela sua luta em defesa da educação, especialmente em relação às nossas crianças.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Senadora, quero agradecer duas coisas: primeiro, o aparte; segundo, o cuidado que V. Exª teve ao moderar as minhas palavras. Eu não disse apenas que o governo que não se preocupa com a criança não merece ser governo, eu fui mais radical: o governo que não é capaz de cuidar das crianças do seu município, do seu estado ou do seu país não merece ser governo.

É claro que falta dinheiro no Brasil para abrir creche com ar condicionado e que nem todas as pessoas que cuidam das crianças têm curso superior, mas jamais falta o necessário para manter com dignidade um cuidado à criança. Isso não faz sentido faltar. Pode faltar cafezinho no gabinete do prefeito, mas não pode faltar comida para as crianças.

Agradeço a V. Exª o aparte.

Ontem comemoramos o 10º aniversário da primeira Bolsa Escola paga no Distrito Federal. Aproveito para dizer que esse programa se espalhou pelo Brasil inteiro graças ao Presidente Fernando Henrique Cardoso, mas pagando um valor insignificante. S. Exª teve a generosidade - reconheço de público - de manter o nome Bolsa Escola, quando poderia tê-lo mudado e se apropriado completamente do programa, mas manteve o mesmo nome e espalhou-o pelo Brasil, com um valor muito pequeno e sem fazer o que era necessário para um salto educacional.

Mas esse mesmo programa hoje corre sério risco, Sr. Presidente. Ao juntarmos no mesmo tipo de programa a parte assistencial do Vale-Alimentação, do Vale-Gás, do Bolsa Alimentação, com o Bolsa Escola, ao misturarmos tudo, nós destruímos a concepção educacional.

O Bolsa Escola não tinha importância pela bolsa, mesmo quando pagávamos um salário mínimo. Ele tinha importância pela escola. Ao tirar a dimensão da escola e ao chamar de família, havia por trás um entendimento de que o importante era a renda. Não é a renda.

Aproveito o que falou a Senadora Heloísa Helena, para que S. Exª saiba, para dizer que vi recentemente uma foto do Presidente Lula na primeira página dos jornais com um grupo de crianças, e fui atrás daquelas crianças. Identifiquei que se tratava da cidade de Caruaru, no meu Estado, do bairro de Canaã. Peguei um avião e fui ao local. Identifiquei cada uma daquelas crianças, fui a casa delas, visitei a escola, comi o lanche delas e mandei uma carta ao Presidente, dizendo que, naquele momento, aquilo que eu havia visto era uma herança que Sua Excelência recebeu, mas, se aquilo continuasse por mais quinze anos, seria uma herança que Sua Excelência e o meu Partido deixaríamos para o Brasil - e uma herança triste. Essa carta eu enviei a Sua Excelência com uma lista de medidas que, acredito, se as tomarmos, poderemos modificar isso, e lembrando as que tive o orgulho de adotar, em 2003, quando Ministro. Coloquei o nome de cada criança, e lembrei que nenhuma delas, com doze anos, na quarta-série, aprendeu a ler ainda. Pedi que cada uma escrevesse uma carta ao Presidente. Nenhuma conseguiu mais do que rabiscar algumas coisas que ninguém lê. Conversei com seus professores e com os irmãos adultos. Nenhum concluiu a quarta série.

Isso não é culpa do Presidente Lula nem do Governo. Mas será, se não tomarmos medidas rápidas no sentido de dar início a uma revolução educacional no Brasil. Há 10 anos, iniciamos o Programa Bolsa-Escola, que não serve muito, pois é um programa de assistência, se não vier acompanhado de uma boa escola.

O Brasil tem recursos e tem condições de fazer isso. Países mais pobres o fizeram. Basta fazer hoje o que se fez há algum tempo, querendo fazer deste um país industrial, um país justo.

O caminho da justiça, a porta da modernidade, não é mais a fábrica, é a escola.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 17/05/2005 - Página 14802