Discurso durante a 91ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Críticas ao pronunciamento de ex-oficial do exército, na tribuna da Câmara dos Deputados, que dizia se arrepender de não ter torturado um militante de esquerda.

Autor
Cristovam Buarque (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS. ESTADO DEMOCRATICO.:
  • Críticas ao pronunciamento de ex-oficial do exército, na tribuna da Câmara dos Deputados, que dizia se arrepender de não ter torturado um militante de esquerda.
Aparteantes
Mão Santa, Paulo Paim.
Publicação
Publicação no DSF de 28/06/2005 - Página 21031
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS. ESTADO DEMOCRATICO.
Indexação
  • CRITICA, DECLARAÇÃO, OFICIAL DO EXERCITO, CAMARA DOS DEPUTADOS, DEMONSTRAÇÃO, CULPA, AUSENCIA, TORTURA, JOSE GENOINO, PRESIDENTE, PARTIDO POLITICO, PARTIDO DOS TRABALHADORES (PT), OPINIÃO, ORADOR, DESRESPEITO, DIGNIDADE, VIDA HUMANA, AMEAÇA, DEMOCRACIA.
  • APRESENTAÇÃO, REQUERIMENTO, REPUDIO, UTILIZAÇÃO, TRIBUNA, CAMARA DOS DEPUTADOS, PRONUNCIAMENTO, AUSENCIA, ETICA, COMBATE, ESTADO DEMOCRATICO, DEFESA, AUTORITARISMO.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores e Srªs Senadoras, eu vim falar de golpe, mas não do golpe que se discutiu aqui a semana passada, porque eu próprio me manifestei dizendo que não via nenhuma ameaça à democracia brasileira apenas porque a Oposição estava tomando posições firmes em relação a alguns fatos que podem incomodar o Governo.

Também não vim falar em hipótese de golpe.

Eu vim falar, Sr. Presidente, de um golpe que eu vi pela televisão, na semana passada, ao assistir a um ex-Oficial do Exército, na tribuna da Câmara dos Deputados, dizer que se arrependia de não haver torturado, com a debochada expressão “dar bolacha”, que ele se arrependia de não haver torturado um jovem que lutava na clandestinidade pela democracia no Brasil.

Sr. Presidente, poucas vezes fiquei tão chocado, em vinte anos de democracia no Brasil, quanto naquele momento, ao ver, na tribuna da Câmara, que nós lutamos tanto para abrir, um representante, profissional, das Forças Armadas, dizer que se arrependia de não ter torturado um militante de esquerda. E esse militante de esquerda no qual ele dizia se arrepender de não ter “dado bolacha” é o Presidente do meu Partido, José Genoíno.

Eu discordei aqui, na semana passada, de afirmações do próprio ex-Deputado José Genoíno, quando falava em ameaças golpistas às instituições brasileiras, mas eu quero dizer que, entre as pessoas de minha geração, se eu tiver de me identificar com aquele senhor que disse aquilo ou com o Presidente do meu Partido, José Genoíno, eu me identifico com José Genoíno, porque ele lutava pelo lado certo, de um modo que a gente tem de respeitar.

O que mais me incomoda é que lutamos muito para abrir esse Congresso, que alguns fecharam e outros tutelaram durante anos, e agora essa mesma Casa, por meio da Câmara dos Deputados, tenha escutado um discurso em que um agente da repressão nos anos 70 disse - Senador Mão Santa, não sei se V. Exª ouviu pela televisão - arrepender-se de não ter dado - e ele disse debochadamente - algumas “bolachas” no então jovem guerrilheiro José Genoíno.

Sr. Presidente, gestos como esses, sim, ameaçam a democracia, gestos como esses, sim, podem significar o risco de golpismo, não discursos da Oposição, mas manifestações desse tipo, claramente antidemocráticas, pior ainda, que não respeitam a dignidade das pessoas que lutaram pela democracia.

O ex-Deputado Genoíno é um homem que dedicou a parte mais rica da sua juventude à luta pela democracia no Brasil. Escolheu um caminho que eu, da mesma idade, não escolhi, que foi a luta armada, mas o fato de ele ter escolhido aquele caminho não diminui em nada a sua luta e, talvez, até a engrandeça, tendo em vista a coragem pessoal.

Esse homem saiu da guerrilha preso, torturado, como todos sabem. Sofreu na prisão e, depois, teve uma carreira brilhante, a ponto de ser Presidente do Partido dos Trabalhadores, no momento em que o Partido chega ao poder.

Dizer aquilo é não apenas um gesto golpista, sim, como é também um golpe de falta de respeito a um cidadão brasileiro, falta de respeito a uma geração inteira, porque, como disse um poeta uma vez, certas pessoas representam toda a sua geração. Neste momento para mim, o ex-Deputado José Genoíno representa toda a minha geração. Aqueles que lutaram como ele na guerrilha, aqueles que lutaram nas ruas das grandes cidades, aqueles que lutaram nos sindicatos, aqueles que ficaram no exílio, cada um daqueles que tinham acesa a chama da democracia e conseguiram, eles juntos, nós todos, que a democracia voltasse a se implantar no Brasil. E foi graças a essa democracia que conseguimos reabrir, com plenitude, o funcionamento das duas Casas do Congresso.

E nós não podemos deixar passar em branco um discurso desse tipo. Deixar passar em branco um discurso desse tipo hoje é tolerar, amanhã; passar em branco discursos desse tipo, até o dia que, em vez de discursos, outra vez se usem as armas para ameaçar de fato a democracia.

Da mesma maneira que eu vim aqui dizer que a Oposição nada tem de golpista, eu venho aqui dizer que gestos isolados como esse, se deixarmos passar em branco, podem criar uma cultura golpista no Brasil. Sobretudo quando - e vamos reconhecer - nós, os civis que assumimos este País, às vezes passamos à juventude de hoje a sensação de que não estamos à altura do momento que atravessamos. E esta é a idéia que muitos jovens têm hoje: a de que os civis não estão tendo a capacidade, a firmeza e a ética de levar o Brasil no caminho certo, de desatar os nós que recebemos e atam o crescimento, a decência no Governo e a concentração de renda; esses diversos atos que nós não conseguimos desatar: da concentração da renda, do crescimento da violência, da pobreza.

Nós estamos passando, hoje, uma imagem má para essa juventude. Se se alia o caldeirão que nós estamos criando, por nossas omissões, com o caldeirão que alguns revanchistas como aquele senhor manifestam aqui dentro, aí, aquilo que na semana passada eu disse que não havia, na próxima semana poderá começar a existir.

É por isso, Sr. Presidente, que eu vim aqui para apresentar a V. Exª um requerimento, com base no art. 222, no sentido de que seja manifestado o nosso repúdio, com toda clareza, ao uso da tribuna da Câmara para que se digam aberrações políticas e éticas como aquela. Nós, diferentemente de outros, não devemos fechar o Congresso nem impedir que suba à tribuna quem quiser falar, mas não podemos silenciar diante dos discursos equivocados e antidemocráticos que sejam ditos aqui nesta Casa.

Por isso, eu deixo com V. Exª o requerimento no sentido de que seja, com clareza, manifestado o nosso repúdio e que se faça conhecer ao Presidente Severino Cavalcanti a nossa insatisfação com o fato de que, neste período, 20 anos de democracia, depois de tanto sacrifício, sejamos obrigados a ouvir aqui dentro, transmitido pela televisão ao Brasil inteiro, um senhor que exerceu o poder autoritário no passado dizer que se arrepende de não ter torturado - volto a insistir: com o debochado nome de “dar bolacha” - um companheiro da mesma geração dele, da mesma geração minha, chamado José Genoíno. Eu hoje me identifico como parte daquela geração muito mais com José Genoíno do que com aquele ex-Oficial do Exército.

Concedo um aparte ao Senador Paulo Paim.

O Sr. Paulo Paim (Bloco/PT - RS) - Senador Cristovam Buarque, comungo com as idéias de V. Exª. Eu comentava aqui com os Senadores Leonel Pavan e Mão Santa o início do pronunciamento de V. Exª, quando cita que essa história de dizer que a Oposição, porque está a cobrar e fiscalizar, está dando um golpe, acho que é totalmente equivocada. Eu cheguei a usar o termo, é uma bobagem. Agora, por outro lado, V. Exª vai à tribuna e faz um pronunciamento, em nome do processo democrático, sobre aquele ato escandaloso e vergonhoso que ocorreu na Câmara dos Deputados, inclusive contra o Regimento Interno, pois, em sessão de homenagem na Câmara dos Deputados, só quem pode usar a tribuna são os Deputados. Falo como ex-membro da Mesa. O Deputado que solicitou a sessão, ao permitir que alguém que não é Parlamentar use a tribuna, agiu de forma indevida. Foi um ataque que nos envergonha perante o País da forma que foi feita. Um articulista do jornal Folha de S.Paulo escreveu um belo artigo, em que diz que ele discorda do PT, nunca votou no PT, critica o PT e faz uma defesa de ponta a ponta do Presidente do Partido José Genoíno. E diz que duvida quem, torturado, em 99% dos casos, não acuse até Jesus uma, duas, três vezes. Com isso ele não está dizendo que Genoíno acusou ou não acusou, mas diz: “Agora se inverteram os valores: o torturado é culpado e o torturador quer virar herói.” Por isso eu cumprimento V. Exª, que alerta, faz uma defesa do processo democrático. E aí eu daria mais um gancho que já fiz da tribuna: acho correto o movimento feito por entidades civis, que estão fazendo atos e vão fazer um em Porto Alegre, onde estarei presente, não dizendo que alguém é golpista, mas em defesa da democracia e em defesa do combate permanente à corrupção e em defesa da ética na política. Os movimentos sociais se movimentando em defesa do processo democrático e combatendo à corrupção está mais do que correto. E V. Exª, no meu entendimento, faz um alerta nesse sentido. Parabéns a V. Exª.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Agradeço, nobre Senador Paulo Paim, seu aparte.

Para concluir, Sr. Presidente, quero dizer que ficou clara essa inversão do perseguidor transformar-se em vítima do perseguido. Mas, para mim, mais do que essa, me preocupa a inversão mais profunda de que a tribuna que José Genoíno lutou para abrir dentro do Congresso seja usada por uma pessoa para dizer que se arrepende de não haver torturado ele. Essa inversão é que é a gravidade do momento, e esta Casa não pode ficar em silêncio diante disso, porque silêncio uma vez, silêncio outra vez... silêncio outra vez significa suicídio. Nós não temos o direito de suicidar a democracia brasileira. Temos de respeitar a Oposição, e não aceitar essa idéia de que a Oposição é golpista, mas temos de dizer com clareza que há golpes, sim, na cabeça de algumas pessoas que nada têm a ver com a Oposição; têm a ver, sim, é com um passado que, felizmente, nós já sepultamos, embora, de vez em quando, algumas pessoas querem pôr o dedinho de fora. Nós não podemos deixar que isso aconteça. Democraticamente, temos que lutar para que essas pessoas sintam, pelo menos, o nosso repúdio.

Senador Mão Santa, concedo o aparte a V. Exª.

O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - Senador Cristovam Buarque, como sempre V. Exª, com toda a arte da prudência, usa da palavra. Mas eu aprendi do latim pars in pabula facimile congregatur, pancada traz pancada. Isso tudo ocorreu pelo mal comportamento do José Dirceu. Padre Antônio Vieira disse que um bem sempre traz outro bem, mas o mal traz outro mal. A maneira como ele se comportou na sua volta ao Congresso foi uma maneira vil, uma maneira que traduz o caráter do José Dirceu. Congresso é para isto: reflexão, meditação, pronunciamentos prudentes. E ele trouxe um exército de baderneiros, pensando que, com a sua história, desconhecida até para seus próprios familiares, amedrontasse os que estiveram e que lutaram pela democracia. Eu, por exemplo, estava lá no momento, cantando. Estava no Rio de Janeiro e vi Geraldo Vandré: “Vem vamos embora que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora/Não espera acontecer”. E saímos cantando Brasil afora. E eu, lá na minha cidade de Parnaíba, eu fiz o PMDB, o MDB derrotar o Partido do Governo, numa primeira grande vitória popular e democrática. Então que seja advertido também o mal comportamento de José Dirceu.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Senador Mão Santa, estou falando de dois momentos completamente diferentes. Um momento foi o pronunciamento na Câmara do Deputado José Dirceu, em que aconteceram as coisas que o senhor está citando. A outra foi num momento posterior, independente, sem nada que ver com aquilo que foi o pronunciamento de um ex-oficial do Exército, que, eu tenho certeza, nada tem a ver com as atuais gerações de oficiais e soldados do nosso Exército...

O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - Pediria ... apenas para justificar quando busquei o latim Pars in pabula facimile congregatur, pancada atrai pancada. Então o Zé Dirceu pensou que iria amedrontar. Não amedronta nada, é um Zé Moleirão.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Sr. Presidente, então eu quero deixar aqui o meu requerimento de que esta Casa não fique em silêncio diante do que aconteceu. E que o Senador Mão Santa, com todo direito, faça um requerimento relacionado com o outro evento, que nada tem a ver com aquele que estou trazendo aqui à sua presença.

Era o que eu tinha a dizer, Sr. Presidente, cumprindo com a minha consciência, para que amanhã ninguém diga que eu fiquei em silêncio diante de uma aberração que foi aquela fala daquele senhor.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 28/06/2005 - Página 21031