Discurso durante a 115ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Considerações sobre a crise no governo do Presidente Lula.

Autor
Jefferson Peres (PDT - Partido Democrático Trabalhista/AM)
Nome completo: José Jefferson Carpinteiro Peres
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUERITO (CPI), EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELEGRAFOS (ECT). GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.:
  • Considerações sobre a crise no governo do Presidente Lula.
Publicação
Publicação no DSF de 21/07/2005 - Página 24983
Assunto
Outros > COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUERITO (CPI), EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELEGRAFOS (ECT). GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.
Indexação
  • GRAVIDADE, DENUNCIA, CORRUPÇÃO, MEMBROS, GOVERNO, PARTIDO POLITICO, PARTIDO DOS TRABALHADORES (PT), COMENTARIO, DEPOIMENTO, ROBERTO JEFFERSON, DEPUTADO FEDERAL, DESVIO, DINHEIRO, EMPRESA ESTATAL, ESPECIFICAÇÃO, EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELEGRAFOS (ECT), SETOR, ENERGIA ELETRICA, TRAFICO DE INFLUENCIA, CONTRATAÇÃO, CARGO DE CONFIANÇA, FRAUDE, LICITAÇÃO, CONTRATO, LAVAGEM DE DINHEIRO, PROPINA, FALTA, ETICA, FRUSTRAÇÃO, BRASILEIROS.
  • ANALISE, ATUAÇÃO, PARTIDO POLITICO, PARTIDO DOS TRABALHADORES (PT), FALTA, PROGRAMA DE GOVERNO, EXISTENCIA, PROJETO, MANUTENÇÃO, PODER, CRITICA, ALEGAÇÕES, CONLUIO, OPOSIÇÃO, GOVERNO.
  • NECESSIDADE, MELHORIA, PRESTAÇÃO DE CONTAS, JUSTIÇA ELEITORAL, AUMENTO, TRANSPARENCIA ADMINISTRATIVA, LICITAÇÃO, REDUÇÃO, CARGO DE CONFIANÇA, REFORÇO, REFORMA JUDICIARIA, ALTERAÇÃO, CODIGO DE PROCESSO PENAL, COMBATE, IMPUNIDADE.

O SR. JEFFERSON PÉRES (PDT - AM. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, “Tudo isso parece um pesadelo” - gemeu o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no último dia 08, ao saber que o militante petista José Adalberto Vieira da Silva, assessor do Deputado Estadual cearense José Nobre Guimarães - irmão do até então Presidente Nacional do Partido dos Trabalhadores, José Genoíno -, havia sido preso no aeroporto de Congonhas com R$200 mil em dinheiro vivo na mala e US$100 mil escondidos na cueca.

Para Lula, o “pesadelo” começou cerca de dois meses antes, quando o ex-Presidente do Partido Trabalhista Brasileiro, Deputado Roberto Jefferson, denunciou o pagamento de generosas mesadas a Parlamentares da base governista em troca de votações favoráveis às propostas do Executivo. De lá para cá, novos indícios e evidências, surgidos diariamente, constroem uma série aparentemente sem fim de escândalos envolvendo autoridades do Governo, dirigentes petistas, aliados de outros partidos e empresários fornecedores de bens e serviços à administração federal.

Para o País, no entanto, esse pesadelo deita raízes em passado muito mais remoto. E aqui peço licença aos historiadores para cometer uma ousadia metodológica e usar as confissões do prócer petebista, que até agora tem fornecido uma linha segura de investigação à CPMI dos Correios, a fim de lançar um pouco de luz também naquelas espessas sombras da nossa história.

“Todo mundo sabe de onde vem o dinheiro” sentenciou Roberto Jefferson: vem de empresas estatais, como os Correios e as gigantes do setor elétrico, cujos conselhos e diretorias são loteados entre afilhados de políticos. Esses afilhados fraudam licitações, às vezes bilionárias, para favorecer parceiros na iniciativa privada, que retribuem a generosidade daqueles padrinhos com doações em dinheiro “lavado” em operações como aquelas de que está sendo acusado o empresário Marcos Valério de Souza, suposto pagador do “mensalão”.

Ora, Sr. Presidente, sofisticações tecnológicas e financeiras à parte, eis aí, em pleno funcionamento, o modelo do Estado patrimonialista, herança da colonização ibérica, implantado aqui e em outros países da América Latina pelas coroas portuguesa e espanhola e lucidamente dissecado por notáveis intelectuais como o falecido escritor mexicano Octávio Paz, no livro O ogro filantrópico, e o nosso compatriota, também de saudosa memória, Raymundo Faoro, na obra Os donos do poder.

            O patrimonialismo, conceito originalmente cunhado por Max Weber, descreve a confusão entre público e privado, dada a inexistência de fronteira nítida a separar o patrimônio particular do rei - e dos “amigos do rei” - do patrimônio do Estado.

Com a evolução política do Brasil, sobretudo desde a proclamação da República, tais campos foram formalmente demarcados, mas, de fato, o Estado continuou a ser parasitado pelo estamento governante.

É assim que a coisa pública é tratada como cosa nostra nas velhas e novas repúblicas de sempre.

A rigor, a ascensão do PT ao vértice do Estado brasileiro não rompeu esse longo padrão histórico - o que se me afigura, a um tempo, espantoso e revoltante.

Revoltante porque, no último quarto de século, o PT, empunhando vigorosamente o estandarte da ética na política, vergastou todos os governos anteriores com sérias e abundantes acusações de desonestidade na manipulação do dinheiro público, até cristalizar-se no imaginário coletivo como o detentor do monopólio da moralidade. Agora, o partido que jurava ser feito de um barro diferente da lama usual da política brasileira, o partido isento de todos os pecados habituais de nossa vida pública, o único partido que estava moralmente proibido de delinqüir ocupa o epicentro da pior crise política nacional desde 1992, quando Fernando Collor, para fugir ao impedimento iminente, renunciou ao mandato.

Espantoso porque as suspeitas e informações ora trazidas ao conhecimento público já permitem entrever um projeto de poder hegemônico de caráter realmente sistêmico, no qual os recursos financeiros e organizacionais do aparelho de Estado se achavam totalmente submetidos ao imperativo de perpetuação do PT no poder.

Parenteticamente, lembro que, há mais de um ano, quando o Presidente da República e seu Governo singravam o céu de brigadeiro de uma aprovação popular quase unânime, eu mesmo cheguei a divisar, em meus discursos parlamentares e artigos para a imprensa, que era na história de 70 anos de domínio ininterrupto do Partido Revolucionário Institucional (PRI) sobre a política mexicana - muito mais que no castrismo cubano ou no populismo chavizta venezuelano - que se escondia o modelo acalentado pela cúpula petista: perpetuar seu mando no Brasil, a cavaleiro da dupla estratégia de aparelhamento da administração pública, de um lado, e controle dos movimentos populares e organizações sindicais da sociedade civil, de outro.

Do aparelhamento, a evidência mais cabal foi o “grande salto para a frente” da receita partidária, graças aos descontos compulsórios sobre o salário da militância, boa parte da qual agora instalada em cargos públicos. Sem computar os descontos de Parlamentares, que são obrigados a deixar 30% do que recebem para o partido, o “dizimo” dos filiados em 2004, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, totalizou R$3,32 milhões, em contraste com apenas R$341 mil em 2002. Ora, descontada a inflação do período, isso equivale a um crescimento de 730%!

O que realmente explica esse espantoso crescimento é, como já disse, a invasão petista da máquina pública, quase sempre sem qualquer consideração pelos requisitos técnicos, profissionais e mesmo educacionais ao preenchimento dessas posições, unicamente com base na filiação dos seus ocupantes ao Partido dos Trabalhadores.

O saldo negativo do aparelhamento se traduz não apenas nos prejuízos sociais decorrentes da ineficácia gerencial da máquina pública e do esbanjamento do dinheiro do contribuinte, mas também em um flagrante e injusto favorecimento eleitoral.

Por isso, têm razão aqueles que afirmam não possuir o PT nenhum plano de governo, mas tão-somente um projeto de poder alicerçado no círculo vicioso de criação de cargos públicos, nomeação de petistas, drenagem de recursos públicos para o caixa partidário, campanhas eleitorais vitoriosas e novas nomeações - ao infinito...

Quanto a evidências do controle dos movimentos sociais em benefício desse projeto petista, creio que o exemplo mais eloqüente seja o inchaço dos cofres do Movimento Sem-Terra com dinheiro público. De janeiro de 2003 a fevereiro deste ano, três organizações notoriamente ligadas ao MST receberam do Governo, no mínimo, R$22 milhões. Oficialmente destinado a atividades de assessoria técnico-educacional, o dinheiro é desviado para o financiamento de invasões. O Senador Alvaro Dias, Presidente da CPI que investiga irregularidades na aplicação de recursos públicos na reforma agrária, chama atenção para a clara correlação entre o aumento de repasses governamentais para as organizações comandadas pelo MST e a proliferação das invasões.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ao lado dessas nocivas inovações introduzidas pelo modo petista de governar, o Governo Lula, legitimado na promessa solene de mudar o País, de passar o Brasil a limpo, entre outras ardentes profissões de fé, acomodou-se rapidamente às mais vetustas mazelas do nosso sistema político, a saber: a eleição proporcional uninominal com lista aberta, responsável por um individualismo doentio das campanhas eleitorais para cargos proporcionais, onde se consomem montanhas de dólares; a conivência com a perpetuação do ‘caixa dois’, de onde se origina a parcela esmagadora do financiamento das campanhas; o orçamento autorizativo, pretexto de chantagens mútuas entre o Executivo e o Legislativo em torno da liberação de emendas de parlamentares; e o fomento do troca-troca partidário a fim de engordar a maioria governista no Congresso.

Para ser sincero, em face de tantos erros de “fabricação própria” - por omissão, ou omissão -, torna-se revoltante o cinismo do Governo e seus aliados quando tentam convencer a opinião pública de que estão sendo vítimas de um “golpe branco” da oposição, orquestrado por elites dispostas a interromper “no grito” uma inédita experiência de “poder popular” sob a égide impoluta de autêntico líder operário. Aí, já é o pesadelo transformado-se em puro delírio.

Aliás, vários desses delirantes da má-fé, para reforçar o colorido emocional de suas alucinações, recorrem às frases feitas da política brasileira acusando a nós, da oposição, de moralismo udenista. Julgam, com essa pirueta retórica, poder desviar a perplexidade, a desilusão, a indignação e as críticas que chovem sobre um PT prestes a se arrebentar no abismo da incoerência entre a rigorosa ética que sempre cobrou dos outros e a amoralidade com que se comporta no poder.

Moralista, minhas Srªs e meus Srs. Senadores, é a atitude condenável e hipócrita daqueles que lutam para impor aos outros padrões de conduta que não ousam aplicar a si mesmos. Nesse sentido, o PT é moralista.

Moralismo não pode, por um segundo sequer, ser confundido com a defesa da ética na política. Ética na política se identifica com a igualdade de todos perante a lei e com a exigência de que a lei seja cumprida, doa a quem doer.

Moralismo é um capricho arbitrário de consumo privado. Ética é o mais precioso dos bens públicos.

Não podemos permitir que o PT e seu Governo, depois de enganar, iludir e decepcionar um País inteiro, ainda tentem subverter o significado da ética e assim desmoralizá-la para sempre na política brasileira! Mesmo porque, conforme o ensinamento da milenar sabedoria chinesa, a crise ético-político que abala o País já está grávida de oportunidades para a sua própria superação.

Bem sei, Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, que, neste momento, a visão da maioria dos brasileiros é bem outra. Sentem indignação e desalento, descrêem da classe política e até desesperam do futuro do Brasil. Percebo tudo isso nas manifestações que me chegam de todos os lugares e por todos os meios. São inúmeros os e-mails, cartas e telefonemas. Inúmeros, também, são os comentários que ouço, de viva voz, de conhecidos e desconhecidos que me abordam em aeroportos, lojas, supermercados, restaurantes e nas ruas.

Claro que eu também me sinto nauseado por esse lamaçal. Mesmo assim, insisto, não tenho uma visão pessimista da crise.

Na contracorrente das opiniões generalizadas, estou convicto de que o Brasil vai ficar bem melhor depois de cessada a turbulência que ora vivemos, qualquer que seja o desfecho político e jurídico das investigações em curso.

Da mesma forma que, no passado recente, a Constituinte de 1987/88 introduziu avanços, como a autonomia do Ministério Público e a exigência de concurso para as carreiras de Estado; ou que o escândalo dos precatórios partejou a lei de responsabilidade fiscal, também agora a exibição das vísceras pútridas do nosso sistema político vai impor mudanças institucionais profundas, por exigência de uma sociedade que amadureceu e não mais aceita conviver com essa nojeira.

Doravante, dificilmente a Justiça Eleitoral aceitará prestações de contas mentirosas de campanhas milionárias. Doravante, dificilmente partidos exigirão diretorias de estatais para fazer caixa. Doravante, dificilmente alguém terá coragem de propor pagar ou receber mensalões. Doravante, dificilmente as licitações deixarão de ser transparentes. Doravante, dificilmente sobreviverão dezenas de milhares de cargos de livre provimento na administração pública, para serem aparelhados por militantes partidários ou afilhados de políticos. Doravante, dificilmente se elegerão, para os cargos mais importantes, candidatos que não comprovem por suas ações práticas um firme compromisso com a ética.

Verdade é que esses avanços deverão ser secundados por medidas que fortaleçam as instituições encarregadas do combate à corrupção, tais como o aprofundamento da reforma do Judiciário, com modificações no Código de Processo Penal que eliminem o excesso de expedientes protelatórios à disposição de advogados bem pagos a serviço de criminosos de colarinho branco; e a reestruturação filosófica e organizacional do sistema de Segurança Pública nos estados. (Por sinal, faço ardentes votos de que o MP e a PF colaborem com as investigações da CPI ostentando uma parcela, minúscula que seja, do brioso empenho exibido na recente invasão da Daslu, cuja presidente, pelo menos, foi capaz de criar cerca de 3 mil postos de trabalho, em agudo contraste com o fiasco do programa Primeiro Emprego, do Governo federal...)

Acima de tudo, é preciso ter sempre em mente as lições de dois sábios do iluminismo setecentista: o italiano Cesare Beccaria, para quem é a certeza da punição que inibe o malfeitor (aí incluídas a pena de prisão e a devolução do dinheiro roubado) e o francês Montesquieu, segundo o qual sem bons costumes não pode haver boas leis. Em outras palavras, seremos coniventes com toda essa corrupção se negligenciarmos o fato de que uma de suas principais causas reside na extrema tolerância com que nossa sociedade e nossa cultura encaram a roubalheira e a mentira. Afinal, o problema não é só do cidadão extremamente pobre e desassistido que troca seu voto por uma cesta básica, um par de sandálias de borracha, uma camiseta ou material de construção, é também da classe média e até mesmo dos ricos que procuram os políticos para pedir sinecuras e privilégios para si mesmos ou seus familiares. Claro está que a responsabilidade maior compete sempre àqueles homens e mulheres que aspiram ao papel de líderes políticos ou sociais, em qualquer esfera ou nível - uma responsabilidade fundada na força legitimadora do exemplo moral.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, apesar desses desafios e dificuldades, quero encerrar aqui reafirmando meu otimismo realista.

Essa crise é fecunda.

Essa crise nos possibilita transformar o lodo em adubo, que haverá de fertilizar o terreno para o renascimento de um novo Brasil.

Essa crise nos dá a oportunidade de acordar do pesadelo e retomar o sonho de um País muito melhor.

Muito obrigado!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/07/2005 - Página 24983