Discurso durante a 189ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem a Vladimir Herzog, por ocasião dos 30 anos de sua morte.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. ESTADO DEMOCRATICO.:
  • Homenagem a Vladimir Herzog, por ocasião dos 30 anos de sua morte.
Publicação
Publicação no DSF de 27/10/2005 - Página 37025
Assunto
Outros > HOMENAGEM. ESTADO DEMOCRATICO.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE MORTE, VLADIMIR HERZOG, JORNALISTA, VITIMA, HOMICIDIO, DITADURA, REGIME MILITAR.
  • ANALISE, SITUAÇÃO, ATUALIDADE, PRECARIEDADE, JUSTIÇA, LIBERDADE, DEMOCRACIA, NECESSIDADE, DEBATE, SEMELHANÇA, TORTURA, MENOR ABANDONADO, EXPLORAÇÃO SEXUAL, ANALFABETISMO, FALTA, ATENDIMENTO, SAUDE PUBLICA, EXCLUSÃO, JUVENTUDE, ENSINO MEDIO, DESEMPREGO.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, eu vim falar sobre Herzog, sobre um herói, sobre a injustiça, sobre a ditadura que o Brasil enfrentou durante vinte e um anos. Cheguei a preparar um discurso em homenagem a Herzog e peço à nossa Presidente que o considere como lido. Isso porque, depois de ouvir o discurso do Presidente Renan Calheiros e o do Senador Eduardo Suplicy, achei que devia reorientar a minha fala não para lembrar o Herzog, não para lembrar aqueles tempos, mas para falar como são e quem são os herzogs de hoje.

O Presidente Renan Calheiros lembrou muito bem que, nesses vinte anos de democracia, nós não conseguimos completar os sonhos de pessoas como Herzog. De fato, Srªs e Srs. Senadores, hoje o Brasil tem imenso contingente de pessoas que sofrem de forma diferente, que enfrentam perseguições e torturas. Por isso parabenizo os Senadores Eduardo Suplicy e João Capiberibe por terem requerido esta solenidade não apenas para prestar homenagem ao herói do passado, mas também para lembrar tudo aquilo que ainda não fizemos, apesar de tantos terem lutado antes com esse objetivo.

Srª Presidente, lembro-me dos herzogs pequenos de hoje, que são as meninas e os meninos de rua, as meninas e os meninos que estão na prostituição. Não estão seus corpos enforcados como mostra a imagem trágica de Vladimir Herzog, mas o dia-a-dia deles e delas é de tortura. Não se trata da tortura da ponta do cigarro aceso nem do choque elétrico, mas é, sim, uma forma de tortura.

Lembro aqui os herzogs que existem naqueles 15 milhões de brasileiros analfabetos, adultos, que não sofrem a mesma tortura de Herzog, que não são assassinados, mas carregam a tortura em forma de cegueira causada pelo não atendimento da educação no momento certo. Imagine, Srª Presidente, que alguém fosse cegado. Essa é uma tortura. Imagine alguém que não consegue ler no mundo de hoje. Essa é uma tortura.

Quero lembrar também os herzogs que existem entre cada pai e mãe que têm um filho doente no braço e não têm um médico para atendê-lo. Senador Mão Santa, é um “herzog” esse pai, essa mãe. É um “herzog” no sofrimento, é um “herzog” que sofre a ameaça de perder a vida não sua, mas do próprio filho, que não sobrevive por falta de atendimento médico disponível no Brasil de hoje. Sei que há uma diferença, uma diferença física, mas, conceitualmente, ser assassinado ou ser levado à morte por falta de atendimento médico, em qualquer forma, é uma injustiça. Por isso, esses pais e mães são herzogs dos tempos de hoje.

Quero falar desses 30 milhões de crianças, três quartos de nossas crianças, que chegam até à escola, mas não são capazes de terminar o ensino médio. Sem um ensino médio completo neste País, a pessoa não encontra forma de sobreviver, não consegue entender a si mesmo nem entender o mundo plenamente. Por isso, são jovens herzogs, como são herzogs os milhares de jovens assassinados todos os anos neste País. Não são assassinados na forca, não são assassinados por autoridades policiais, não são assassinados por perseguições políticas, mas, mesmo assim, são assassinados e depois de uma tortura diferente daquela que sofreu o herói Herzog; é a tortura de viver na pobreza vendo ao lado a ostentação dos ricos, que não olham para eles. Essa é uma tortura que milhares de jovens brasileiros enfrentam a cada dia e milhares e milhares deles são assassinatos antes dos 25 anos de idade.

Quero falar também desses 1,5 milhão de meninos fora da escola. Nem ao menos se inscreverão para estudar, nem ao menos serão matriculados. Ficar fora da escola hoje condena cada criança a um destino que tem, senão fisicamente pelo menos eticamente e moralmente, o conteúdo daquilo que sofreu Herzog.

Quero falar daqueles tantos herzogs que hoje sofrem neste País pela destruição do rio São Francisco, pela seca dos rios da Amazônia. Não são heróis na luta como o foi Vladimir Herzog, não sofrem o mesmo tipo de perseguição e de tortura, mas são também perseguidos pela falta de esperança, pela falta de água próxima, pela impossibilidade de transporte, pela ameaça da fome, pela perda da perspectiva de um futuro melhor.

Esses, Senador Eduardo Suplicy, são também herzogs que merecem a homenagem que V. Exª tão perspicazmente tomou a iniciativa de requerer. Eu poderia falar de muitos outros tipos de herzogs que há hoje, mas vou completar apenas com um. Falo dos milhões de desempregados, que não ficam presos em celas nem são ameaçados de morte, mas que voltam para casa, todos os dias, cabisbaixos, depois de caminharem dezenas de quilômetros pedindo aquilo que a dignidade de um ser humano tem direito de querer: um emprego para usar as mãos, para usar o cérebro, para produzir para este País e sua família. Cada desempregado deste País - e quanto mais meses de desemprego, mais grave é a situação -, cada um desses é um Herzog do século XXI, é um Herzog produzido pela democracia.

Nós esperávamos que, com a democracia, fosse extinto o fenômeno que levou à tragédia de Herzog. Como disse aqui o Presidente Renan Calheiros, nós conseguimos, sim, completar a democracia do ponto de vista político, mas construindo uma sociedade com o apartheid social que nós temos, com uma desigualdade brutal, com a exclusão de cerca de 70 milhões de brasileiros. Cada um deles, cada um desses 70 milhões, um Herzog anônimo. Um Herzog anônimo que, tenho certeza, o Herzog verdadeiro gostaria de ver lembrado aqui, nesta homenagem a ele.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP) - Senador Cristovam Buarque, peço-lhe um aparte.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Senador Eduardo Suplicy, com o maior prazer, eu lhe dou a palavra.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Senador Cristovam Buarque, V. Exª está aqui falando tão bem a respeito de quantos pequenos Herzogs devem existir no Brasil procurando seguir o seu exemplo, sobretudo os jovens jornalistas aqui representados por Romário Schettino, Vice-Presidente do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal. Que possam todos os jornalistas, assim como todos os brasileiros, ter a vontade de Herzog de sempre mostrar a vida como ela é, ele que aprendeu, já tendo o instinto de querer saber das coisas - passou um tempo em Londres, trabalhando na BBC -, a fazer documentários considerados da maior relevância, fosse sobre a vida de Che Guevara, em Cuba, fosse sobre o que se passava no Vietnã, durante a guerra. Os documentários às vezes eram sobre o que se passava com os brasileiros - algum problema como uma doença, uma epidemia ou um desastre, uma inundação, ou ainda a infringência de direitos humanos pelos órgãos da Segurança contra trabalhadores, ou algo assim. Ele procurava mostrar as coisas como eram, tendo inclusive no Governador à época, Paulo Egydio Martins, o respaldo para, na hora da notícia, mostrar essas coisas. Mas aquilo começou a incomodar o sistema político dominante no Brasil. Acharam que era preciso levar esse homem para o Departamento de Ordem Política e Social (Deops) para ali ser interrogado. E o fizeram de tal maneira, usaram das ações mais brutas, tanto que simplesmente o mataram já em apenas um dia. As pessoas que estavam naquele lugar, naquele dia, como, por exemplo, Rodolfo Konder, perceberam que algo estranho tinha ocorrido ali. Eles estavam em outra parte da dependência do DEOPS, mas perceberam que tragédia havia ocorrido com o seu amigo. Então, quero também agradecer a lembrança de V. Exª, porque hoje gostaria de estar aqui fazendo um discurso conosco o Senador João Capiberibe, que foi também um dos autores desta homenagem a Vlado Herzog. Meus cumprimentos por suas palavras.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Muito obrigado, nobre Senador.

Concluo, Srª Presidente Serys Slhessarenko, dizendo que talvez a melhor homenagem ao Herzog seja lembrar os Herzogs que ainda estão hoje sofrendo.

O meu discurso de homenagem específica a ele eu quero dar como lido. Mas quero lembrar aqui que, enquanto nós falamos, milhares de crianças estão sofrendo tanto ou mais quanto Herzog. Lembrar que Herzog vive, porque os heróis não morrem, mas as causas pelas quais ele lutou continuam ainda tendo necessidade de serem levadas adiante. A luta de Herzog também não morreu porque não conseguimos realizar o sonho dele e de tantos heróis daqueles tempos.

Srª Presidente, gostaria que o Senado, que chega ao ponto de prestar uma homenagem a Herzog pessoalmente, não esqueça todos esses milhões de Herzogs que sofrem hoje e que eram o objeto da luta dele. Porque ele lutou mesmo pela libertação plena do Brasil e não apenas pelo direito de termos partidos, opinião pública e uma Imprensa livre. A luta dele continua e nós temos a obrigação de levá-la adiante.

 

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SEGUE, NA ÍTEGRA, DISCURSO DO SR. SENADOR CRISTOVAM BUARQUE

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O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, há 30 anos, a ditadura militar cometia um dos atos mais violentos e insanos contra a liberdade e a cidadania brasileira. Há exatos 30 anos, nas circunstâncias mais obscuras e covardes, calou-se de vez, em São Paulo, a voz do jornalista Vladimir Herzog. Há 30 anos, uma luta fratricida entre facções militares no poder fez dos jornalistas paulistanos o bode expiatório preferencial de suas disputas pela hegemonia.

            Nascido em 1937, Herzog era um exímio jornalista, fino pensador, um democrata por vocação e por princípio. Ingressou no incipiente universo da mídia nos anos 60, e nele se envolveu com extrema competência. Aprendeu a apreciar a televisão pelo cinema, a cuja arte dedicou significativa parte de seu interesse estético e político. Podemos especular que seu ingresso no universo político se deu pela arte, pela admiração literária, pela paixão cinematográfica.

Na verdade, a tragédia da política em Herzog se instaura bem antes, quando sua família foge da fúria anti-semita dos nazistas, na Europa dos anos 40. Curiosamente, o mesmo Brasil que lhe ofereceu abrigo àquela altura não coincide com aquele que brutalmente retira-lhe a vida; duas facetas antagônicas que teimam ainda em confundir o País com uma paródia lamentável e nada cômica do romance de Dante.

Nesse segundo contexto, a arbitrariedade dos ditadores não tem limites. Quando se esperava que, com a posse do General Geisel em 1974, uma distensão menos traumática fosse encaminhada, o Brasil despertou para uma realidade ainda mais cruel. Naquele momento, descortinava-se um violento e dramático racha nas fileiras militares, dando ensejo a atos e ações escandalosamente criminosos, como se o País estivesse mergulhado numa espécie de guerra civil camuflada.

Por um viés alvissareiro das contradições, o assassinato de Vladimir Herzog se converteu na instauração de uma autêntica brigada popular e pacífica contra o regime de exceção. A contragosto dos militares de plantão, o povo brasileiro, a partir de uma tragédia tão politicamente insuportável, mobiliza-se em favor do respeito aos direitos humanos, contra os quais qualquer ditadura sempre se organiza.

As circunstâncias do assassinato de Herzog nunca foram totalmente esclarecidas. O cerco à TV Cultura de São Paulo se prolongou por uma semana, até que todos os jornalistas fossem seqüestrados e seguidamente torturados. Ao que tudo indica, os torturadores e seus chefes não foram até hoje identificados e devidamente enquadrados no museu dos horrores. Outro detalhe que ainda persiste: por onde anda, se é que ainda vive, o jornalista Cláudio Marques, cuja rotineira coluna no Shopping News atiçava os militares contra o suposto "antro comunista" da TV Cultura?

Do lado dos algozes, nada se sabe de ninguém. De lá para cá, o que se sabe é que o Governo Lula reformou recentemente a medida provisória do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso sobre o sigilo dos papéis do Serviço Nacional de Informação (SNI) - com a possibilidade de manter segredo eterno. Além disso, foi montada uma comissão interministerial para tratar da abertura, de cuja operacionalidade pouco se ouviu. Pior do que isso foi constatar que a área de Direitos Humanos, que ostentava há até pouco o status de Ministério, reduziu-se a uma mera Subsecretaria.

Não por acaso, na tentativa de proporcionar uma releitura dos fatos vividos à época, o recém-lançado "Vlado - 30 Anos Depois", dirigido pelo cineasta João Batista de Andrade, versa sobre a vida e a morte do jornalista Vladimir Herzog. Amigo pessoal, companheiro político e colega de trabalho de Herzog, Batista talvez tenha demorado até demais para dar cabo da tarefa. Porém, é ele mesmo quem justifica que, justamente por estar muito envolvido com o tema, o roteiro e a produção da obra nunca se resumiram a algo fácil.

Trinta anos depois, ele consegue, se não distanciamento, pelo menos certa serenidade - não isenta de afeto e indignação - para encarar os fatos. Não isenta de afeto e indignação, tal serenidade se insinua como um virulento protesto contra o despotismo covarde do Estado militar.

Como é sabido, Vladimir Herzog, que trabalhava na TV Cultura, foi seqüestrado, torturado e morto em outubro de 1975, nas dependências do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), o mais temido órgão da repressão política. Tudo durou muito pouco. Em pouco mais de 24 horas, o serviço sujo e inesperadamente homicida compromete todo o incipiente processo de abertura do regime.

Sua morte, que o 2º Exército tentou apresentar como suicídio, chocou a Nação, acentuou as fissuras internas do regime militar e impulsionou o movimento pela democratização do País. Na realidade, segundo a historiografia do jornalista Elio Gaspari, o Exército já computava, em seus arquivos, 36 casos de “suicídio” entre os presos nos porões da ditadura. Somente em 1975, havia o registro de 7 desaparecidos de um total de 142 pessoas “seqüestradas” pelos DOIs de todo o País.

A pretexto de combater agentes subversivos infiltrados no Estado, o Governo do General Geisel se deixava, na prática, embalar-se pela linha mais radical, segundo a qual “a distensão seria uma balela”. Nessa lógica, embora fosse simpático à postura mais liberal de seu braço esquerdo, General Golbery, o Presidente Geisel manobrava suas ações de modo a atender, no fundo, às duas alas antagônicas vigentes àquela altura da ditadura militar.

Logo no início do documentário, João Batista de Andrade entrevista transeuntes na praça da Sé, perguntando-lhes o que sabem sobre Herzog. A maioria não sabe nada. Um homem de seus 50 anos diz, absurdamente, que a ditadura não é do seu tempo, mas que, na sua opinião, "deveria voltar". Eis os absurdos de um País, cuja elite não costuma revisar sua história, não cultua princípios políticos de uma verdadeira república.

No filme, as imagens mais contundentes seriam, em princípio, aquelas do culto ecumênico celebrado, em 1975, na Sé, pelo arcebispo dom Paulo Evaristo Arns e pelo rabino Henry Sobel, entre outros líderes religiosos. Entretanto, os depoimentos dos jornalistas da TV Cultura igualmente presos à época transmitem algo ainda mais impactante.

Paulo Markun e Rodolfo Konder surpreendem pelos detalhes e pela dor da humilhação sofrida. De tão covarde, o verdugo sequer suporta o olhar suplicante do torturado. O painel assim formado reconstitui, de modo vivo, tanto o drama pessoal de Herzog, como o tenso contexto político da época.

Ainda que não fique clara a verdadeira relação de Herzog com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), sua preferência ideológica pelas causas da esquerda tradicional é incontestável. Coincidência ou não, o 2º Exército decidiu aniquilar setores expressivos e organizados da resistência dita “pacífica” do País. Algumas lideranças do Partidão foram, por exemplo, devastadas naquele momento pelos órgãos de repressão, apesar de não adotarem a luta armada. Na verdade, ser ou não do partido não muda em nada a barbárie do assassinato.

Sr. Presidente, Clarice Herzog, mulher de Vlado, merece igualmente o reconhecimento do País como autêntica heroína dos episódios da ditadura. A ela coube demonstrar resistência ante a arbitrariedade desmedida dos militares, determinando a postergação do sepultamento do Vlado para o primeiro dia útil da semana. Isso contrariava as práticas do Exército, norteadas pela regra do enterro sumário após a execução.

Ainda sobre o heroísmo de Clarice, merece menção sua iniciativa de procurar legistas que se propusessem a realizar nova autópsia. Todavia, para o desalento de todos, dos três médicos necessários, apenas um se dispôs a cumprir a tarefa, impossibilitando a contestação do laudo oficialmente divulgado. Mas certamente, não terá sido tudo inutilmente.

Em todo caso, os preparativos para o funeral tiveram de seguir um ritual nada convencional, e sob um andamento aceleradíssimo. Nesse contexto, permanece irretocável na memória nacional a decisão do rabino Henry Sobel, que contrariando as regras de sepultamento dos suicidas, determinou um jazigo destinado aos judeus mais ilustres.

Se o sepultamento teve que se submeter ao medo e ao silêncio, a missa de 7º dia não suportou a força da indignação popular. Por sugestão do Sindicato dos Jornalistas, um ato religioso foi convocado. O cardeal Evaristo Arns ofereceu a catedral da Sé para abrigar um ato tão eminentemente ecumênico.

A mobilização foi instantânea, envolvendo imprensa, sindicatos, artistas, estudantes e trabalhadores anônimos. Parecia prevalecer o consenso de que o conceito de repressão preventiva, sustentado pela ditadura, devia ser duramente rechaçado. Mas nada parecia indicar que a cerimônia se realizaria com tranqüilidade. Na hora do culto, 385 barreiras policiais foram erguidas na capital paulista, para impedir as passeatas que marchavam até a catedral da Sé.

De nada adiantou tanta intimidação. O ato reuniu 8 mil pessoas. Ao final da cerimônia, a multidão calada e altiva se dissolveu serenamente na praça, dissipando qualquer eventualidade que pudesse culminar em baderna ou tiroteio.

A simbologia de todo o processo da prisão, assassinato, enterro e homenagem póstuma a Vladimir Herzog adquiriu uma dimensão tão significativa em favor do respeito aos direito humanos, que a partir dali, renasceu uma consciência nacional pela retomada do Estado de Direito. Mais do que símbolo dos direitos humanos, a saga de Herzog incorporou um significado de resistência contra os desmandos autoritários, de persistência pela liberdade, de intransigente adesão à solidariedade humana.

O 25 de outubro se transforma em um ponto de inflexão política que marca o início da derrocada do regime militar. Tal data deve ser lembrada, com homenagens, ciclos de debates e lançamentos. Mas é preciso frisar que parte importante da documentação da época continua inacessível, já que os arquivos do regime militar continuam fechados. Tal situação é inadmissível.

Na experiência brasileira, embora o Brasil tenha ratificado a Convenção contra a Tortura em 1989, somente em 1997 foi aprovada a lei que define e pune o crime de tortura. A Constituição de 1988 foi a primeira a consagrar a tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Todavia, passados mais de oito anos da adoção da Lei 9.455/97, o número de agentes condenados pela prática da tortura em todo o País não chega a 20.

Para concluir, Sr. Presidente, além de homenagear a vida e a morte de Vladimir Herzog, gostaria de estender igual sentimento a todos os outros bravos brasileiros, cuja trajetória política, profissional e existencial tenha sido igualmente ceifada pela truculência da ditadura militar. Às famílias de cada um, presto minhas homenagens, certo de que, em todos os casos, a morte transcendeu seu sentido mais imediato e ganhou o significado da eternidade da história, da morte que gera novas vidas e, seguramente, vidas mais humanas.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 27/10/2005 - Página 37025