Discurso durante a 189ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem a Vladimir Herzog, por ocasião dos 30 anos de sua morte.

Autor
Mão Santa (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/PI)
Nome completo: Francisco de Assis de Moraes Souza
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ATUAÇÃO PARLAMENTAR. HOMENAGEM.:
  • Homenagem a Vladimir Herzog, por ocasião dos 30 anos de sua morte.
Aparteantes
Cristovam Buarque.
Publicação
Publicação no DSF de 27/10/2005 - Página 37029
Assunto
Outros > ATUAÇÃO PARLAMENTAR. HOMENAGEM.
Indexação
  • CRITICA, OMISSÃO, SENADO, DESEQUILIBRIO, PODERES CONSTITUCIONAIS, CASSAÇÃO, MANDATO, JOÃO CAPIBERIBE, SENADOR, ESTADO DO AMAPA (AP).
  • LEITURA, DISCURSO, AUTORIA, JOÃO CAPIBERIBE, SENADOR, HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE MORTE, VLADIMIR HERZOG, JORNALISTA, VITIMA, HOMICIDIO, DITADURA, REGIME MILITAR, DETALHAMENTO, TORTURA, CONGRESSISTA, IMPOSSIBILIDADE, PRONUNCIAMENTO, MOTIVO, INJUSTIÇA, CASSAÇÃO, MANDATO PARLAMENTAR.

O SR. MÃO SANTA (PMDB - PI. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Senadora Serys Slhessarenko, que preside a sessão, Senadoras, Senadores, brasileiras e brasileiros, ontem, esta Casa viveu um dos dias mais tristes, mas há a esperança de luta e de conquistas.

Senadora Serys Slhessarenko, o mundo hoje ainda chora o julgamento de Cristo, de Sócrates e, ontem, o Brasil chorou o “lavar as mãos” do Poder Legislativo - do Senado.

Senador Leonel Pavan, o Senado ontem lavou as mãos contra o entendimento de que os Poderes têm que ter igualdade e eqüidade. Um Poder é para frear o outro Poder. Isso é a igualdade, o equilíbrio de forças físicas.

Este Poder, Senador Antonio Carlos Valadares, se agacha diante do Poder Executivo, quando aqui coloca as medidas provisórias.

Brasileiros, atentai bem! A Constituição, a Bíblia das leis de um país, Senadora Serys Slhessarenko, tem 250 artigos. Ontem, o número da Medida Provisória era 255. Isso é uma lástima! Isso é uma vergonha!

E, ontem, agachava-se ao Poder Judiciário. Não. Um Poder é para frear o outro, e aqui nós estamos. E dizia-se que o Senador não existiu. Atentai bem! Aqui está a posição de São Tomé: a dignidade e o trabalho.

A verdade, a tese é que cassaram o diploma do Senador João Capiberibe. Então, que ele não existiu.

Eu vim lá do Piauí e aprendi que é mais fácil tapar o sol com uma peneira do que esconder a verdade. E a verdade está aqui. Esta sessão, quem a solicitou, quem a pediu foi o Senador João Capiberibe, que, para a Justiça, nunca existiu. Ele fez as melhores leis, os melhores relatórios e os melhores instantes de vida.

Então, está aqui o documento. E eu passarei a lê-lo depois de apresentar a justificativa àquele que deveria ser seu orador oficial e que está como Cristo. Foi julgado, como Sócrates e outros injustiçados. Então, acho que, nos meus 63 anos de vida e de luta, trazido aqui pela força do povo do Piauí... O povo do Piauí, em episódios como esse, soube dar um freio. E eu passo a ler, com muita honra e com muita dignidade, o trabalho do extraordinário homem público João Alberto Rodrigues Capiberibe, Senador de fato. O fato vem antes da lei; a lei vem depois do fato; o fato é que faz a lei, e este é o fato:

Blém! Blém! O passado encostou no presente.

No outro dia, eu seria transferido do calabouço do quartel da 5ª Companhia de Guardas, sediada no Forte de Belém, para o Presídio São José. Após 110 dias, longos, quase intermináveis, de dor e sofrimento, a transferência parecia um acontecimento a festejar. Mesmo sem imaginar a vida em uma penitenciária, a esperança me dizia que não seria pior do que viver mergulhado na incerteza do dia seguinte e sem ter com quem falar.

O silêncio e a escuridão da cela foram rompidos pelo barulho da porta metálica se escancarando ruidosamente, deixando penetrar um pouco de claridade de um sol distante.

- Comunista não pode ter bom dia! Vamos! Levanta, terrorista! Tem um batalhão vindo aí pra te levar pro presídio!

Era o Cabo Caranguejo fazendo suas despedidas sem perder o estilo; repetiu umas dez vezes que no segundo dia eu iria sentir saudades dali, que se eu não ficasse esperto lá no São José, com um olho no padre e outro na missa, viraria “presunto” em menos de uma semana. Pra quem não sabia o que iria encontrar pela frente, as palavras assustadoras do maldito Cabo Caranguejo grudaram no meu pensamento, atravessaram a noite e acompanharam-me no dia seguinte ao longo do percurso pelas ruas de Belém.

O cortejo parou em frente ao portão principal do velho casario do século XIX, na Praça Amazonas, onde no passado funcionara um convento, transformado em prisão para abrigar duzentos presos. Na minha chegada recebi o número 519. Levou um tempão a minha passagem das mãos dos homens da ditadura para as mãos dos homens do Diretor da penitenciária; houve troca de informação e muita recomendação, afinal tratava-se de um preso enquadrado na Lei de Segurança Nacional, que falava de coisas estranhas e absurdas como democracia, direitos humanos, justiça social, etc.

Antes de concluir a história da minha entrada no presídio há 33 anos [diz Capiberibe, extraordinário e mais digno Senador que passou por esta Casa], eu gostaria de voltar ao presente para falar de uma visita recente que fiz ao lugar onde passei uma temporada dolorosa da minha vida. Encontrei tudo transformado. Ainda assim reconheci paredes e grades e ouvi o eco do blém! blém! da campana da torre do presídio. Hoje é um grande e sofisticado centro de formação e produção cultural, obrigatório no roteiro turístico de Belém. Nessa visita fui até a torre e pude observar que o sino foi retirado.

Naquele dia da transferência, quando passei pras mãos dos homens do diretor, fui conduzido até a torre, e lá estava o sino. Ordenaram-me que tirasse a roupa. Despido, com as mãos pra trás, fizeram-me sentar em um banquinho. Em seguida, rasparam a minha cabeça com uma máquina tão ruim que senti a sensação de que estava sendo escalpelado. Com a cabeça em brasa, demorei a entender a ordem para levantar, e fui advertido com uma estocada de cassetete na altura dos rins. Refiz-me do susto e da dor rapidamente, ficando em pé com as mãos para trás e olhando para o chão, tal como tinham me ordenado.

- O homem está pronto! - disse um carcereiro para o outro. Pode anunciá-lo!

Esforçava-me ao máximo para entender o que diziam e seguir prontamente suas ordens. No entanto, a dor e a humilhação provocavam-me confusão mental. Meio perdido no tempo e no espaço, ouvi soar o blém! da campana. Um só toque, um só preso acaba de entrar no Presídio São José. O som de um único toque penetrou fundo em minha alma, indo se alojar definitivamente em algum ponto obscuro da minha memória.

Desci as escadarias da torre, que davam no primeiro pátio. Dali em direção à solitária, por onde desfilei de cabeça raspada e seminu, sob o olhar de centenas de presos. Vinte e quatro horas de castigo na solitária fazia parte do cerimonial de recepção. Mergulhado na escuridão, lembrei-me das palavras do Cabo Caranguejo e cheguei a duvidar do futuro. Contudo, após algumas semanas de convivência no presídio, pude me certificar de que a esperança tinha razão, e aos poucos fui recuperando a confiança de que um dia sairia dali com vida para poder contar esta história.

O nosso tempo biológico é quase um nada diante do tempo histórico. No entanto, faz uma grande diferença saber que a nossa passagem pela história nos individualiza e permite que vivamos o nosso tempo, o tempo de cada um ou de cada uma, único e intransferível. Sinto às vezes, na minha vida, que o passado se aproxima perigosamente do presente, produzindo sensações de profundas injustiças. Foi assim que, no dia 1º de abril deste ano, voltei a ouvir com nitidez ecos da campana do presídio, logo que o Ministro Carlos Veloso do TSE concluiu seu relatório condenando a mim e a minha companheira Janete às perdas dos mandatos de Senador e de Deputada Federal. O passado encostou no presente e o blém! blém! emergiu no fundo da memória reafirmando nossas crenças e nossas dores.

João Capiberibe fez este trabalho para apresentar hoje. Escreveu em 18/4/2004.

O Sr. Cristovam Buarque (PDT - DF) - Senador Mão Santa, permita-me um aparte?

O SR. MÃO SANTA (PMDB - PI) - Com a palavra o Senador Professor Cristovam Buarque.

O Sr. Cristovam Buarque (PDT - DF) - Senador Mão Santa, acho que farei algo inédito nesta Casa. Estou pedindo aparte não à sua palavra, mas ao seu gesto. Não sei se o Regimento prevê aparte a gesto. Mas o gesto que V. Exª está fazendo, nesta tarde, no Senado orgulha esta Casa e cada um de nós que é seu colega. Fico orgulhoso de ver um nordestino como eu subir à tribuna para ler um discurso de um Senador que ontem perdeu o mandato e, de acordo com 100% aqui da Casa, de uma maneira injusta. Parabéns, Senador Mão Santa. Não vou comentar o discurso belíssimo do Senador João Capiberibe. Quero comentar apenas o seu gesto que dignifica a honradez, a democracia e, sobretudo, a figura de um homem.

O SR. MÃO SANTA (PMDB - PI) - Senadora Serys, entendo que o Professor Cristovam traduz aqui o sentimento da maior autoridade entre todos nós, Senadores. Pode haver aqui presidente, pode haver empresários, pode haver fazendeiros, mas professor, aquele a quem a sociedade e a humanidade chamam de “mestre”, só o Professor Cristovam tem esse título aqui. Evidentemente, quis Deus que estivesse aqui também a Professora Serys.

Estas foram as palavras escritas pelo Senador João Capiberibe no dia 18. Hoje, 26 de outubro, esta sessão está sendo realizada - árvore boa dá bons frutos - para homenagear aquele que sofreu em razão da ditadura.

            Diz João Capiberibe:

Brasília, 26 de outubro de 2005.

Prezados senhores, apesar de ser um dos signatários do requerimento que solicitou a realização desta sessão solene no dia de ontem, fui destituído do mandato de Senador. O meu mandato foi arrancado das mãos do povo do Amapá e não poderei me pronunciar nesta sessão que homenageia Vladimir Herzog, outra vítima do autoritarismo e da opressão dos poderosos.

Por isso, encaminho o texto em anexo como homenagem de alguém que também tentam calar.

João Alberto Rodrigues Capiberibe.

Senadora Serys, Srªs e Srs. Senadores, brasileiras e brasileiros, ao longo dos meus 73 anos de idade, o destino me ofereceu grandes oportunidades. Com grande dignidade e com muita honra, apresentei as palavras e o sentimento de um dos melhores homens públicos do Brasil: Senador João Alberto Rodrigues Capiberibe.

Era o que eu tinha a dizer.

Agradeço à Presidente pelo tempo generosamente cedido a mim.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 27/10/2005 - Página 37029