Discurso durante a 58ª Sessão Especial, no Senado Federal

Comemoração da abolição da Escravatura, assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Comemoração da abolição da Escravatura, assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888.
Publicação
Publicação no DSF de 13/05/2006 - Página 16286
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, BRASIL, CONCLAMAÇÃO, SENADO, EMPENHO, EFETIVAÇÃO, EMANCIPAÇÃO, POPULAÇÃO, COMENTARIO, SITUAÇÃO, DESIGUALDADE SOCIAL, POBREZA, AUSENCIA, DISTRIBUIÇÃO DE RENDA, DIFICULDADE, ACESSO, POVO, EDUCAÇÃO.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, meu caro amigo e meu chefe como reitor da UnB, onde sou um trabalhador professor, e a quem agradeço bastante a presença, Professor Timothy Mulholland, demais convidados, ontem comemoramos aqui o aniversário de 180 anos do Senado. Por coincidência, o Senado foi criado e a Abolição da Escravatura foi proclamada na mesma semana, com apenas oito dias de diferença entre os dois. Mas não é essa a única coincidência entre o Senado e a Abolição. Há também o fato de que, com responsabilidade, nesta Casa foi aprovada a Abolição. Ainda mais: da mesma maneira que a Abolição ficou incompleta, o nosso trabalho está incompleto.

No dia 13 de maio de 1888 talvez tenha sido a única ou pelo menos a última vez em que o povo, das tribunas, ainda no Rio de Janeiro, jogou flores nos Senadores, porque a lei foi aprovada em apenas um dia. Uma lei que mudaria o Brasil, mas mudaria de uma maneira insuficiente. Por isso, agradeço ao Presidente Paulo Paim por ter trazido aqui a lembrança de que este é um dia mais de reflexão do que de comemoração.

Nós não estamos mais recebendo flores porque não completamos a Abolição, não completamos a República, não transformamos este País em uma Nação. O país é um território onde as pessoas caminham, de preferência falando a mesma língua, mas não necessariamente torcendo por uma mesma seleção de futebol. Isso é um país. Uma nação se consolida quando a população desse país se transforma e apresenta semelhança no estilo de vida - eu não disse igualdade -, sentindo-se parte, toda a população, de uma mesma família. E essa família brasileira ainda não está criada.

Não podemos dizer que são da mesma família a parcela da população que estuda 20 anos e a outra que não estuda nada e fica analfabeta. Ainda mais: mesmo que tenha aprendido a ler, mas que não tenha adquirido o universo da comunicação lingüística do português entre os que estudaram e os que não estudaram.

Não é uma família um país em que se vai a um restaurante e se gasta uma fortuna e, ao mesmo tempo, se considera que, para sair da pobreza, só basta chegar a R$ 65,00 por mês. Ou seja, para sair da pobreza, para ultrapassar a linha da pobreza tecnicamente, no Brasil, você precisa ter, para alimentar toda a sua família, o que uma pessoa gasta num restaurante médio. Não estou falando nos restaurantes mais finos deste País.

Aproveitando o exemplo dado ontem pelo Senador Mão Santa, não se pode considerar uma família um país em que um único banco lucra, em 15 dias, o que o Brasil gastou em um ano com água e esgoto para a sua população pobre.

Não é a mesma família, não é a mesma Nação; pode ser o mesmo País, do ponto de vista geográfico, mas não é a mesma Nação do ponto de vista de se sentir parte de uma mesma família. Isso, o Senado não completou; a Câmara dos Deputados não completou; os Governos que vieram depois não completaram. Nós não demos nenhum passo radicalmente substancial para a emancipação plena daqueles que eram escravos e hoje, não só dos que eram escravos, dos descendentes de muitos que não eram escravos, mas que vivem hoje na exclusão social.

Por isso, neste 13 de maio, não podemos deixar de dizer que foi um passo, sim, dizer que, a partir de hoje, nenhum ser humano será vendido neste País; dizer que, a partir de hoje, nenhuma pessoa pode dizer obrigada ao trabalho forçado também foi um passo; dizer que as pessoas não são obrigadas a morar acorrentadas perto do engenho de açúcar onde trabalhavam também foi um passo. Agora um passo é insuficiente porque aqueles que foram libertados do trabalho forçado foram jogados no desemprego; o desemprego é um passo adiante do trabalho forçado, mas é um passo muito pequenininho. Foi um passo desacorrentar os escravos na senzala, mas eles foram jogados nas favelas e, muitas vezes, embaixo das pontes, dormindo nas calçadas. Libertar, quebrar as correntes da senzala é um passo, mas dormir na calçada em lugar de dormir acorrentado na senzala não deixa de ser um passo, mas é um passo pequeno.

Era proibido escola para os filhos dos escravos e, em 13 de maio, demos um passo: passou a ser permitida a escolaridade para os filhos dos escravos. Mas foi um passo pequeno: dissemos que eles poderiam estudar, mas não fizemos as escolas para que eles estudassem.

Fizemos, no dia 13 de maio, algo que é preciso comemorar. Discordo daqueles que dizem que não temos o que comemorar no dia 13 de maio. Discordo também daqueles que dizem que nós completamos a nossa responsabilidade ao fazer a abolição com aquele artigo único tão simbólico e tão completo de significado, mas tão pouco completo de reforma social.

Ontem houve a comemoração dos 180 anos do Senado, e é formidável ter um Senado por 180 anos. É o mais antigo da América Latina. Tem dado provas de resistência em momentos necessários; tem dado provas de competência, tem mantido este País unido do ponto de vista dos seus Estados. Mas é pouco em 180 anos; não basta unir os Estados, é preciso unir as pessoas. Não basta ter uma Federação, é preciso ter o Brasil transformado em uma família em que uns têm mais do que outros, mas ninguém fica abandonado.

Esta é a reflexão que gostaria de provocar hoje, Senador Paim: a necessidade de completarmos a abolição. E como é que se completa a abolição? Completa-se a abolição emancipando plenamente aqueles que estavam acorrentados; acorrentados como escravos ou acorrentados como excluídos. É um passo adiante, mas é um passo pequeno.

O caminho para completar a emancipação está em este País descobrir que o caminho da unificação social não virá automaticamente no crescimento econômico porque o crescimento econômico aumenta a renda, mas não se distribui a ponto de permitir que todos tenham acesso ao essencial.

Não há como, Senador Ney Suassuna, pagarmos um salário mínimo capaz de oferecer aos trabalhadores escola de qualidade, saúde de qualidade, água e esgoto. Isso não vem da renda monetária do salário mínimo. Por isso, tenho sempre discutido com o Senador Paulo Paim que o salário mínimo tem de ser visto em duas partes: a monetária, que pressiona diretamente o Orçamento cada vez que aumentamos R$ 1,00; e um programa de choque social que custa muito menos que isso, mas que oferece emancipação, garantia de escola pública e privada de qualidade para todos.

Quem quiser que estude em escolas privadas. Sou contra a idéia de alguns que dizem que deve ser proibido. Para quem quiser; que não seja necessário. Que ninguém fique na fila com dor de dente para ser atendido por um dentista; que ninguém precise ficar esperando transporte público duas horas. Que uns tenham carro e outros, não; mas que isso não seja fundamental! Fundamental é que ninguém fique duas horas, roubadas da família, esperando transporte coletivo.

Precisamos completar a abolição da escravatura. Cento e dezoito anos depois, com a responsabilidade de Senador, digo que não completamos a abolição. Cento e dezoito anos é muito tempo! São quatro gerações, e não completamos a abolição. Para completá-la, precisa-se de um choque social neste País que unifique a população, garantindo a oferta gratuita daquilo que é essencial e que vem do serviço público e um salário mínimo capaz de comprar aquilo que não vem da oferta pública, como comida, transporte público, vestimenta.

Esse choque social tem um índice fundamental que faltou na Lei de abolição. Aliás, dois. Um deles é reforma agrária para quem quiser trabalhar a terra. Esqueceram-se de colocá-lo na Lei da Abolição. Se a lei tivesse, além daquele artigo maravilhoso que diz que fica abolida a escravatura, outro assegurando um pedaço de terra a todo brasileiro que quiser trabalhar nela, sobretudo aos ex-escravos, só ficaria faltando uma coisa: tomar as medidas para que todos pudessem entrar numa escola de qualidade, porque a verdadeira emancipação vem da escola.

A emancipação não vem do chão da fábrica, mas da banca da escola. Não vem pelo crescimento econômico, mas pela educação. Obviamente o crescimento econômico é necessário para gerar renda suficiente para pagar uma boa escola, é claro, mas o Brasil já tem isso. Com uma renda nacional de R$ 2 trilhões de renda nacional, R$ 700 bilhões apropriados pelo setor público na imensa carga tributária que caracteriza o Brasil de hoje, temos dinheiro, sim, pelo menos os R$ 2,3 mil necessários por criança para uma escola em horário integral, dobrando o salário médio atual dos professores.

Ainda não é grande coisa, mas seria um salto, desde que as crianças estudem; desde que os professores se comprometam a dar aula e que os meninos e meninas aprendam, porque, a um professor cujas crianças não aprendem, não há por que pagar salários altos. A um professor que não se dedica não há por que pagar salário. Pagamos salários para professores. Ser professor não é questão de ter diploma; é uma questão de função, de atividade. Quem não dá aula não está sendo professor. Sou professor intimamente, mas apenas quando estou dando aula. No mais, é um título. Por isso, evito parar de dar aulas, apesar das atividades que tenho exercido.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ao abrir esta sessão, queria dizer que eu, com o apoio de muitos outros Srs. Senadores, convocamos esta sessão com a idéia de comemorar. Mas quero mesmo é lembrar, não comemorar, aquela data de 13 de maio de 1888, e refletir sobre 2088, quando completarmos dois séculos da abolição. Será que estaremos na mesma situação de uma abolição incompleta, como estamos hoje? Se não tomarmos alguns passos, vamos chegar a 2088 na mesma situação de hoje. Ninguém pode ser vendido, mas pode ser livre para ser desempregado; ninguém vai ter trabalho forçado, mas vai deixar de trabalhar e de ter uma renda. Hoje não se proíbe ninguém de estudar, mas não há escola perto das casas, e as escolas, sem qualidade, são transformadas em verdadeiros restaurantes populares mirins. As crianças, depois da merenda, vão embora. Não têm comida em casa, elas vão comer na escola; não vão para estudar. Assim, a abolição não ficará completa. Tenho a impressão de que o Brasil vive um momento em que poderia começar a dar esse salto. Depende muito de nós.

            Por isso, em lugar de ficar aqui lembrando o tempo passado, aproveito para trazer este desafio: que o Senado, que foi capaz de, num dia, aprovar a abolição da escravatura, que deixou na História todos aqueles líderes que aqui estavam naquele momento, que, outra vez, faça um gesto de abolição para completar aquela, nos unindo os Senadores, para que possamos formular um programa aceitável, possível, para completar a abolição.

            Estive lendo esses dias, Senador Mão Santa, Senador Gilvam - até porque um gosta muito de história e o outro escreve -, estive lendo, Senador Suassuna, as Atas do dia 13 de maio de 1888. Havia muita gente contra. Todos diziam ser a favor, mas acrescentavam: “Mas não é hora ainda!”, “Mas vai desarticular a economia abolir a escravidão!”, “Claro que nós queremos um país sem o trabalho servil - como eles chamavam eufemisticamente -, não queremos trabalho servil, mas não é hora, porque nós não podemos desarticular a produção do café, a produção do açúcar”. Outros diziam: “Não é hora, porque o escravo é um patrimônio comprado e para ser libertado alguém tem que pagar por isso, e o Estado não tem dinheiro ainda para pagar”. Enfim, é o mesmo que se diz hoje quando se fala em colocar água e esgoto, em dobrar o salário do professor. É igual o debate. Todos somos a favor de ter uma boa universidade - e um dia desses o Reitor Timothy Mulholland teve de sofrer para pagar a conta de luz, não é verdade? Desde o meu tempo já era assim.

            Pois bem. Está na hora de pegarmos aquilo que os de antes fizeram, ler a Ata daquele dia - e vou publicar aquelas Atas - e descobrir como havia gente que dizia o mesmo que se diz hoje: que quer mudar o Brasil, mas que o Brasil não está pronto para ser mudado ainda. Eu, como Senador, não tenho saudade da vitaliciedade que tínhamos como cargos permanentes. Tenho saudade das flores que jogaram nos Senadores naquele dia. Eu gostaria de um dia receber flores aqui, mas não está fácil.

O povo está querendo jogar flores em nós, mas estamos perdendo a oportunidade de recebê-las. O povo está querendo daqui medidas que mostrem que podemos completar a emancipação, mas não estamos fazendo. A agenda consome-nos no dia-a-dia, sem olhar para frente. Consome-nos em temas que são importantes, mas não são transformadores.

Quanto tempo gastamos numa coisa importante que são as CPIs, mas que não transformam, ainda que tragam uma indignação que pode ajudar na construção de governos honestos? Mas não vai transformar, de fato, este País. Transformaria se trouxéssemos um programa de erradicação total do analfabetismo em quatro, cinco anos. Se trouxéssemos um programa para dobrar o salário dos professores que se dedicam e conseguem que seus alunos aprendam. Que criássemos uma lei de responsabilidade educacional para que os prefeitos que não cumprissem ficassem inelegíveis.

Temos uma Lei de Responsabilidade Fiscal, que apóio e sempre apoiei. Foi um dos grandes avanços deste País essa lei. Mas por que esquecemos a lei de responsabilidade educacional? Por que fica inelegível o prefeito que gasta mais do que tem na sua prefeitura e continua elegível, passeando contente, tranqüilo, o prefeito que não alfabetiza os seus adultos, que não garante que suas crianças aprendam, que não apóia seus professores?

Isso só é possível se o Governo Federal colocar mais recursos. Não vamos pedir milagres dos prefeitos; vamos pedir responsabilidade. Responsabilidade exige recursos. Esses recursos, se trabalhássemos bem o Orçamento, poderíamos conseguir isso.

Mas não temos trabalhado bem, não levamos a sério a elaboração do Orçamento, aprovamos sem fazer uma análise cuidadosa das prioridades.

Era isso que queria dizer aqui.

Propus que fizéssemos uma sessão de lembrança, não de comemoração. De reconhecimento, mas não de satisfação; sobretudo uma sessão de reflexão sobre o que falta ainda fazer para emancipar todos os brasileiros.

Para que não digam que eu não falei, acho que um dos pontos para completar a emancipação, muito pequenininho ainda, é o assunto das cotas. Claro que as cotas não vão emancipar o povo brasileiro, porque as cotas nas universidades só virão para aqueles negros que terminarem o ensino médio e passarem no vestibular. Esquecemos que para ter direito a entrar na universidade por cota tem que passar no vestibular. Passou, mas ficou fora dos limites das vagas. Então as cotas vão beneficiar muito poucos, e não os mais pobres, mas mesmo assim vai ser mais uma contribuição, mais um tijolinho no edifício da emancipação da população negra. Eu defendo isso.

Agora, mais do que as cotas para negros, são as cotas para a escola pública; porque as cotas para a escola pública também não vão chegar aos mais pobres, que são analfabetos, que não terminam a quarta série primária. Mas ao ter cotas para alunos da escola pública, a população mais rica deste País vai colocar os filhos na escola pública. Quando fizerem isso, a escola pública melhora, porque neste País tudo que é para a parte de cima da sociedade vai bem. Tudo que é para a parte de baixo vai mal.

Nunca vi um país que construa tantos aeroportos como o Brasil e tão poucas rodoviárias como o Brasil. Isso porque os aeroportos são para o pessoal de cima, e as rodoviárias são para o pessoal de baixo. Precisamos dar o salto que aqueles que vieram antes de nós não deram nesta Casa, para um dia voltarmos a receber flores que o povo quer jogar em alguém. O povo está procurando alguém para isso e não encontra, por mais que busque. Ninguém vai encontrar essas flores sozinho, Senador Pedro Simon. Ou nós, juntos, fazemos por onde receber essas flores, ou nenhum de nós vai recebê-las.

É hora, em nome daquela data de 118 anos atrás, de pensarmos, não vou dizer nos próximos 118 anos, mas nas próximas duas décadas, tempo suficiente para completarmos a emancipação da população brasileira e não apenas dos descendentes dos escravos. É preciso fazer isso para completarmos a abolição, porque ela ainda está incompleta.

            Era isso, Sr. Presidente, que eu tinha a dizer hoje, nesta data, que é mais um momento de lembranças do que de comemorações. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 13/05/2006 - Página 16286