Discurso durante a 88ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Análise de matéria publicada hoje no jornal Correio Braziliense, segundo a qual o governo federal não conseguirá atingir as metas estabelecidas pela Organização das Nações Unidas para melhorar a vida de crianças e adolescentes.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • Análise de matéria publicada hoje no jornal Correio Braziliense, segundo a qual o governo federal não conseguirá atingir as metas estabelecidas pela Organização das Nações Unidas para melhorar a vida de crianças e adolescentes.
Aparteantes
Sibá Machado.
Publicação
Publicação no DSF de 24/06/2006 - Página 21478
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • COMENTARIO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, CORREIO BRAZILIENSE, DISTRITO FEDERAL (DF), DEFINIÇÃO, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), OBJETIVO, DESENVOLVIMENTO SOCIAL, INSUCESSO, BRASIL, CUMPRIMENTO, INCLUSÃO, POPULAÇÃO CARENTE, ANALISE, INEFICACIA, APLICAÇÃO DE RECURSOS, FALTA, COMPROMISSO, PRAZO, ALFABETIZAÇÃO, COMBATE, EXPLORAÇÃO SEXUAL, EXPLORAÇÃO, TRABALHO, CRIANÇA, CRIAÇÃO, DEMANDA, MELHORIA, EDUCAÇÃO BASICA, OFERTA, SERVIÇO PUBLICO, GARANTIA, QUALIDADE, GRATUIDADE.
  • OPOSIÇÃO, PRIORIDADE, AUMENTO, RENDA, OBJETIVO, COMBATE, POBREZA, DEFESA, AMPLIAÇÃO, OFERTA, BENS PUBLICOS, SERVIÇOS PUBLICOS, DETALHAMENTO, PROPOSTA, SANEAMENTO.
  • JUSTIFICAÇÃO, PRIORIDADE, MELHORIA, QUALIDADE, ESCOLA PUBLICA, COMBATE, EXCLUSÃO.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Srª Presidente Senadora Heloísa Helena, Srªs e Srs. Senadores, estou aqui aproveitando um gancho de que V. Exª, Srª Presidente, vai gostar muito, dado pelo Correio Braziliense de hoje, que diz que o Brasil não está cumprindo as Metas do Milênio na área social.

Vim aqui para discutir por que o Brasil não consegue cumprir essas metas e o que fazer para que sejam cumpridas. Em primeiro lugar, cabe lembrar que essas metas foram definidas em Assembléia Geral das Nações Unidas, na busca de fazer com que esse mundo moderno do século XXI, tão rico de renda, de conhecimento, seja mais justo, e seja mais justo quebrando esse sistema, que é mundial, de apartheid que separa o setor moderno do setor excluído.

As Nações Unidas elaboraram as metas que se precisava cumprir para que, em um prazo de quinze anos, o mundo tivesse incorporado na modernidade as parcelas excluídas da sociedade. E o Brasil é importante signatário, até porque é um país padrão, é um país que tem a média do mundo inteiro, tanto em riqueza como em pobreza, dentro de suas fronteiras.

A média de renda do Brasil é a média do mundo. A média dos problemas de saúde do mundo é a mesma do Brasil. Se o Brasil resolvesse esses problemas seria um grande exemplo para o mundo inteiro. Por isso criou-se tanta esperança em relação ao Brasil. Além de que, com a eleição de um Presidente comprometido no discurso com a solução dos problemas sociais, o mundo inteiro, as Nações Unidas - e eu acompanhei isso - passaram a olhar o Brasil como um lugar onde as metas poderiam ser cumpridas.

É triste dizer que chegamos anos depois sem essas metas cumpridas. Vale a pena refletir por que e dizer como superar isso.

A primeira razão que precisamos descartar como explicação é a falta de dinheiro. O Brasil é um país que tem mais de R$20 mil de renda por pessoa, por ano. São R$2 trilhões divididos por 185 milhões de pessoas. Se dividirmos R$2 trilhões por R$200 milhões, vai dar R$20 mil. Então, por que não usamos melhor esse dinheiro? Mas há uma razão mais forte ainda: desses R$2 trilhões, R$700 bilhões vão para o Governo. Do dinheiro que cada brasileiro paga, da renda que cada brasileiro paga, mandamos um terço para o Governo. Dez mil, e não R$20 mil como falei, é a renda de cada um. É uma renda razoável, R$10 mil para cada um. E desses R$10 mil, temos que mandar para o Governo R$3 mil. Não é possível que não consigamos resolver os problemas sociais do Brasil usando esse dinheiro corretamente.

Se não é falta de dinheiro, Senador Eurípedes Camargo, o que é então? É falta de algumas coisas. A primeira é uma vontade, um compromisso. Incorporar as massas pobres do Brasil nos benefícios da modernidade, tirando-as da exclusão, incluindo-as no essencial, é um objetivo central, Senador Sibá. É dizer: nós não podemos conviver com essa realidade. É não ficar apenas fazendo coisas, mas resolvendo as coisas.

Tomemos um item, o analfabetismo. É radicalmente diferente a idéia de alfabetizar da idéia de erradicar o analfabetismo. Alfabetizar não tem a meta da inclusão, não tem o objetivo central de superar o problema, mas apenas de minorá-lo. No caso da alfabetização, trata-se de reduzir o número, sempre deixando que haja analfabetos. No caso da erradicação, tomam-se as medidas necessárias para que não haja mais analfabetos.

O que significa que em um certo prazo todos os adultos serão alfabetizados. E fechar a torneirinha que lá na escola fundamental fabrica adultos analfabetos. Não temos essas metas, essa vontade, esse desejo, esse compromisso. Somos capazes de ter o compromisso de projetar uma represa como Itaipu e construí-la, de fazer redes de rodovias e inaugurá-las. Temos a vontade de implantar aeroportos em todo o País e o fazemos. Não temos, até hoje, a vontade radical, centralizada, determinada de incorporar a parte pobre da população no acesso ao que é essencial.

Portanto, a primeira coisa é ter um governo que diga que isso vai ser feito porque é a obrigação e que tem um prazo para fazer. A segunda é definir com seriedade as metas. O Brasil só tem como seriedade a meta inflacionária. A meta da inflação é tratada com seriedade. Basta dizer que, quando ela sobe 0,1 ponto, na expectativa da inflação no ano, a taxa de juro sobe para poder puxar a inflação para baixo.

Sou favorável que haja metas inflacionárias, mas por que, ao lado da meta inflacionária, não temos a meta da alfabetização? Por que não temos a meta de, em dois anos, erradicar o trabalho infantil deste País e colocar todas as crianças na escola? Por que não temos a meta, Senador Sibá Machado, de acabar com a prostituição infantil, a exploração sexual de menores? Por que isso não é uma meta, com prazo? Por que isso é apenas um programa para ser feito ao longo do tempo, sem prazo para terminar? Por que a represa tem um prazo para ser inaugurada e não temos um prazo para inaugurar e dizer: o Brasil é um território livre da exploração sexual de menores?

Não temos isso. Isso é mais difícil de se fazer do que uma represa? Não é mais difícil do que fazer uma represa como Itaipu, não é mais difícil do que fazer uma rede de aeroportos sofisticados, como fazemos. Isso acontece porque nunca, neste País, tratamos com metas a incorporação das populações excluídas.

A própria abolição da escravidão, por exemplo, fomos fazendo aos pouquinhos. Primeiro, proibimos o tráfico de escravos. Permitimos que os escravos que aqui estavam procriassem, mas seus filhos continuavam escravos. Fizemos depois a Lei do Ventre Livre; ou seja, os negros que nascessem aqui já não seriam mais escravos. Depois libertamos os sexagenários. Até que, um dia, acabamos com a escravidão, mas levamos quatro séculos para fazer isso! Será que vamos levar também quatro séculos para acabar com a prostituição infantil? E quem sabe se esse problema, em vez de acabar, vai aumentar, como estamos vendo hoje?

É preciso dizer que resolver essas questões é uma obrigação do País, como está na Constituição. A Constituição brasileira prevê a erradicação da pobreza como objetivo. Eu lembro que durante décadas e décadas as Constituições brasileiras, uma depois da outra, estabeleciam que a Capital da República seria transferida do Rio de Janeiro para o Planalto Central. Nenhum governo levou isso a sério. Até que Juscelino disse: se a transferência da Capital está prevista na Constituição, eu vou fazê-la. Por que não fazemos o mesmo em relação à questão de abolir a pobreza no Brasil, se isso está previsto na Constituição? Por que não definimos metas? Por exemplo: em quanto anos abolir o trabalho infantil; em quantos anos abolir a exploração sexual infantil; em quantos anos 100% das crianças deverão terminar a 4ª série; em quantos anos todas as crianças deverão terminar a 8ª série; em quantos anos todas as crianças deverão terminar o 2º grau; em quantos anos todas as escolas deste País deverão funcionar em horário integral.

Precisamos definir essas metas com força, com clareza, não como gesto de publicidade.

A terceira reforma é transformar o que é necessidade em demanda, porque quem necessita não é atendido; quem demanda consegue. Não fazemos com que o povo possa demandar, porque criamos a idéia de que a demanda tem como base o dinheiro que se possui. Não há demanda pelos serviços públicos; pelos serviços públicos, há necessidade. A necessidade é condenada a não ser atendida; a demanda tem toda a possibilidade de ser resolvida.

Quando aqui defendi o projeto da Senadora Heloísa Helena referente ao direito à creche para todas as crianças, sabíamos da dificuldade. Mas eu disse a S. Exª que, com aquele projeto, ela estava transformando necessidade em demanda. O pai, a partir de agora, tem um instrumento legal que lhe permite exigir a creche. Não vai exigir nos primeiros meses nem nos primeiros anos, mas aos poucos, Senadora Heloísa Helena, isso vai acontecer. Um cidadão vai, pede ao prefeito; outro vai e não vota mais naquele prefeito; o próximo prefeito promete; e o primeiro que promete, como sabemos, neste País, não cumpre. Mas esse daí fica tão execrado que o próximo vai cumprir.

O que V. Exª, Senadora Heloísa Helena, fez com a idéia do direito a cada criança de ter um atendimento público de qualidade desde a primeira infância, transformando necessidade em demanda, temos que fazer para os outros itens dessas metas por meio de leis. Da mesma forma que a creche é um direito, a partir de agora, de acordo com a Constituição, graças à emenda proposta por Heloísa Helena, temos que elaborar uma emenda que garanta acesso à escola aos quatro anos. Que essa seja uma demanda.

Quando estiver na Constituição que o período de escola tem que ser de seis horas; os pais levarem os filhos para a escola e, depois de quatro horas, nem irem buscar; a escola ter que esperar por seis horas e entrar na Justiça para que o presidente, o governador ou o prefeito seja cassado por não cumprir a Constituição; aí, sim, vamos começar a resolver os problemas.

É preciso transformar necessidade em demanda! As metas do milênio não foram cumpridas, porque são tratadas como necessidades e não foram transformadas em demanda. Eu tinha grande esperança de que o Governo Lula fizesse isso. A revolução do Lula era transformar necessidade em demanda. Em vez disso, Sua Excelência aplicou o pouco recurso individual do Bolsa Família como se a demanda fosse financeira. E aí vem a terceira forma de solucionar o problema.

A demanda de que falo não é a demanda comprada no mercado, porque não há a menor possibilidade de atender a todos os brasileiros com uma educação de qualidade, com saúde e qualidade, com água e esgoto, por meio do mercado. Não é comprando escola, não é pagando mensalidade com o salário mínimo, mesmo que ele dobre, mesmo que ele triplique; não é com renda que se vai comprar escola para todas as crianças do Brasil. Para comprar escola, para pagar a mensalidade em escolas privadas, será necessária uma renda tão alta que só com a concentração de renda é possível. E concentração de renda, como o próprio termo já diz, é para poucos; senão, seria distribuição de renda.

Distribuir a renda não permite que os que se beneficiam dela possam pagar uma mensalidade, porque a distribuição levará a uma queda da renda dos que estão em cima. Escola, saúde, água, esgoto, coleta de lixo, segurança, até cultura, ou são serviços públicos gratuitos, ofertados a todos, ou não vão existir.

É preciso ressaltar que a demanda de que falo não é a intermediada pela renda, a demanda de que falo é a intermediada pelas leis e pela oferta de serviços públicos à população.

Esse conceito talvez seja o mais difícil de ser rompido, Senador Sibá, porque está introjetada na cabeça de quase todos nós, inclusive nas camadas mais pobres deste País, a idéia de que a solução desses problemas virá da renda e não da oferta pública do serviço. Submetamos hoje esses nossos 100 milhões de eleitores a escolher entre a proposta de aumentar 30% no salário mínimo ou garantir 100% de escola pública de qualidade e é provável que eles votem nos 30% do aumento do salário, em parte porque eles não acreditam em nós políticos, e o salário, pelo menos, entraria no bolso deles. Eles não acreditam que vão ter boas escolas.

Durante a escravidão, a imensa maioria dos escravos que tomavam conhecimento da luta de Joaquim Nabuco não acreditava naquilo. Eles queriam ser tratados com mais dignidade; a maior parte deles não queria ser libertada - salvo alguns heróis como Zumbi -, porque pensava que era mentira, que era demagogia, que a abolição era algo impossível. Tanto isso é verdade que a abolição só entra no dicionário brasileiro do linguajar político no final da escravidão. Até os anos 60, falava-se em medidas para diminuir a violência contra os escravos, a falta de dignidade com que os escravos eram tratados. A abolição, quando apareceu, foi vista como uma idéia revolucionária impossível, utópica, e os escravos viam aquilo como uma discussão dos brancos, distante. O que eles queriam mesmo era não serem chicotados quando tentavam fugir, não serem obrigados a trabalhar amarrados com correntes.

Está na hora de mostramos que é possível a Abolição, mas ela não virá, isso é importante, do aumento da renda - que é necessário, não sou contra -, porque a renda não vai permitir comprar o essencial aos 70 milhões de pobres brasileiros excluídos. Só vamos salvá-los da exclusão garantindo acesso direto, público, gratuito e com qualidade aos serviços públicos.

No entanto, não vemos essa concepção. A imensa maioria, inclusive, das forças progressistas brasileiras está prisioneira do conceito da renda, não do conceito da oferta pública do Estado. É como se o chamado neoliberalismo, no sentido de fazer da renda o veículo da solução, tivesse contaminado mesmo os mais radicais formuladores das idéias de Esquerda. Ficaram prisioneiros do neoliberalismo por meio do conceito de que a renda é o caminho; e a renda é um produto da economia.

Além disso, Senador Sibá - e peço só um minuto -, é preciso quebrar outro tabu. Além do tabu de que é o aumento da renda que reduz a pobreza, outro tabu é insistirmos em que, neste País, não temos condições de fazer a oferta de bens e serviços para todos. Foi um tabu que se criou.

É claro que há como! O que é preciso para ofertamos bens e serviços a todos? Vamos falar do caso do saneamento. É preciso indústria de tijolo, de cimento, porque bastam mãos, tijolo e cimento para fazermos água e esgoto.

O Brasil tem milhões de mãos sobrando, ansiosas para serem ocupadas, e tem dezenas de fábricas de cimentos e de tijolos ansiosas para produzirem mais. Isso geraria emprego, estaríamos resolvendo o problema do desemprego e o da falta de água, fazendo com que dois problemas se encontrassem, anulando-se, como duas solidões, que quando se encontram se anulam. É claro que, para duas solidões se encontrarem e se anularem, algum gesto tem de ser feito e isso custa algum dinheiro, que é o salário dessas massas.

Além disso, essas massas vão gerar demanda para roupa, para sapato, para comida; não vão dinamizar apenas os insumos de cimento, de tijolo, usados na obra que vão fazer. Com a renda, vão demandar os bens que precisam consumir, dinamizando também a economia. Isso é quebrar o tabu de que é preciso crescimento para reduzir o problema da pobreza. É o contrário! É a solução do problema da pobreza que trará uma taxa de crescimento neste País - pela primeira vez nesse sentido, porque até aqui o crescimento ainda é feito para atender as classes privilegiadas. A concentração da renda no Brasil não aconteceu por um processo natural; foi uma arquitetura dos organizadores da economia no sentido de que, para haver demanda para os produtos ricos, foi preciso concentrar a renda, porque, se ela fosse distribuída, ninguém teria dinheiro para comprar os produtos de luxo.

Então, temos de quebrar esses tabus, construir esses propósitos e definir as nossas metas, senão, daqui a alguns anos, mais uma vez, os jornais, como fez o Correio Braziliense hoje - não li ainda os outros -, vão dizer que o Brasil não cumpre as metas do milênio.

Se a Srª Presidente me permitir, ouvirei o aparte do Senador Sibá Machado.

A SRª PRESIDENTE (Heloísa Helena. P-SOL - AL) - Nobre Senador Cristovam Buarque, V. Exª tem todo o tempo que entender necessário.

O Sr. Sibá Machado (Bloco/PT - AC) - Nobre Senador Cristovam Buarque, eu sempre referencio V. Exª nos momentos em que estou debatendo assuntos próximos deste que V. Exª está tratando aqui. Gosto muito de lembrar das frases que me serviram de efeito e que, inclusive, me ajudam nas minhas reflexões. Ouvindo V. Exª tratar deste assunto, estou me lembrando que, quando eu estava me preparando para fazer o vestibular, li muitos livros da história que, na parte da economia, abordavam o surgimento do dinheiro, como facilitador de trocas, de bens e serviços. O dinheiro não tinha outro papel além desse. Com o sistema capitalista, ele passa a ter um papel a mais: ele também vira um bem, uma mercadoria em si. Ele, então, passa a mensurar não as trocas, mas o status. Então, é incrível que todas as sociedades de que se tem notícia passam a trabalhar o seu comportamento e as suas relações falando desse pressuposto, desse ideal de vida que é o volume de circulação financeira da pessoa, da família, da comunidade e da nação inteira. Isto, então, preocupa muito, porque, a partir desse tipo de visão, o mundo passa a medir tudo por estatísticas, por números. É a frieza das relações. Certa vez eu li que quando uma pessoa morre de acidente, é uma fatalidade, mas quando morrem muitas pessoas, passa a ser um número. Então aí está a frieza. Se alguém, em casa, vê as imagens de um terremoto pela televisão, ela pode até se chocar naquele momento, mas se ela ler no jornal ou ouvir notícias no rádio a respeito do terremoto, como o impacto na Escala Richter ou o número de pessoas que morreram, o impacto é diferente, é menor. Isso mostra como a sociedade acaba ficando fria nessas relações. Fico pensando na banalização dos números. As pessoas recebem com muita frieza informações sobre a fome, o analfabetismo, o desemprego, sobre, digamos assim, a “desinclusão” de pessoas no melhor estágio da vida. As pessoas não se compadecem mais. Vejam o caso de categorias em greve. Fazem greves, sim. E daí? São tantas greves, tantas pessoas, que acabam virando um número. É a frieza do número. Estou dizendo isso para concordar com V. Exª, que insiste, sempre que vem à tribuna, em termos emoção quando tratarmos de números. É claro que os números servem para um gestor público. V. Exª já foi Governador e sabe que é preciso ter uma base para a tomada de decisões. Eu sei disso, sei que todas as pessoas que governam, que administram seus próprios salários - pode ser o salário mínimo, pode ser o salário do Bolsa-Família - precisam mensurar para tomar decisões. Precisamos distinguir a mercadoria quando ela é apenas mercadoria e quando ela é bem de uso. Ao entrar num supermercado, tudo lá dentro é mercadoria. Ao comprar a mercadoria e levá-la para minha casa, ela passa a ser um bem de uso. Então, não é mais preço que vou discutir, mas valor. Eu sempre falo para o meu filho colocar no prato apenas a comida necessária para satisfazê-lo, para que não sobre, para que não estrague. Então, passa a ser um bem de valor e não mais apenas de preço, porque entre valor e preço há uma diferença, e acredito que muito grande. No preço, está embutida uma outra coisa, que é o lucro, a circulação do lucro. No valor, só a pessoa que usa sabe mensurá-lo. Pode ser que para alguém um caderno - já que V. Exª é da área da educação - não tenha muito valor, mas ele pode ter um preço; para outros, o preço pode até não importar muito, o que importa é o valor de uso, e assim por diante. Estou dizendo isso porque V. Exª é o candidato do PDT à Presidência da República. Acredito que isso é muito importante para a democracia do Brasil, porque acho que todos os que forem à televisão, em nível nacional, e quem subir em qualquer palanque para tratar do assunto Brasil vai, com certeza, prestar grandes contribuições. Espero que quem vencer as eleições aproveite as lições de cada um, porque todos têm algo a ensinar. Encerro, então, este aparte com uma leitura que fiz de Malba Tahan. Ele contava que havia um mendigo na esquina pedindo esmola quando parou a carruagem de um rei. O rei desceu, foi até ele e propôs uma troca: se o mendigo desse ao rei tudo que tivesse em seu bornal, o rei devolveria em dobro o que lhe fosse dado. O que tinha no bornal do mendigo eram grãos de trigo, crus. O mendigo, ao encher a mão, pensou: se eu der esse trigo para o rei, ele vai jogar fora, porque ele não precisa, e esse trigo é minha refeição de hoje. Portanto, resolveu pegar um único grão de trigo e colocou na mão do rei. O rei, com a outra mão, tirou dois outros pequenos objetos, colocou-os na outra mão do mendigo, entrou na carruagem e foi embora. Quando o mendigo abriu a mão, viu duas pepitas de ouro. Então, ele quis voltar a conversar com o rei para refazer os negócios, mas não pôde mais. Citei isso para diferenciar o que é valor do que é mercadoria. É preciso que as pessoas cuidem para que não fiquemos apenas na superficialidade dos números, na frieza dos números, esquecendo-se de que, além disso, há seres humanos precisando de uma casa, de um trabalho, de uma renda fixa, de uma condição melhor de vida, porque são seres humanos, e não fomos nós que os criamos. Com certeza, houve uma força superior, e devemos dar um recado dessa experiência humana na Terra. Muito obrigado pelo aparte.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Agradeço, até porque, com a palavra frieza, V. Exª me ajuda a concluir.

Creio que o passo principal das soluções dos nossos problemas sai da frieza, como V. Exª falou. Por exemplo, no Brasil de hoje, falar em violência é uma maneira fria de dizer algo mais sério, que é a guerra civil que tomou conta do Brasil. Quando falamos em desigualdade, é uma maneira fria de dizer algo muito mais sério, que é o apartheid social que há no Brasil.

O que é apartheid? Apartheid é a expressão que se criou na África do Sul para indicar um mundo onde os negros não podiam conviver com os brancos. Não podiam entrar na mesma loja, no mesmo banheiro, não podiam andar na mesma calçada. Foi preciso que Mandela, com um gesto, dissesse que a partir de então brancos e negros andariam na mesma calçada.

O Brasil, felizmente, não precisa disso, Senador Eurípedes. Mas sabe do que precisa? Precisa quebrar o apartheid social dizendo que a partir de hoje os brasileiros não estarão uns de um lado e outros de outro lado da sociedade, que não estarão uns incluídos no que há de mais moderno no mundo e outros excluídos do essencial. O caminho para isso, pelo que vou continuar brigando e insistindo, é a educação.

Vi, certo dia, uma foto do Presidente Lula com um grupo de crianças do Nordeste no jornal Correio Braziliense. Peguei a foto e fui àquele lugar, um subúrbio de Caruaru, chamado Canaã, nome simbólico. Localizei cada uma daquelas crianças, que tinham entre oito e doze anos. Fui à casa delas, fui à escola, provei o lanche, vi os livros, falei com os professores. Nenhuma das crianças sabia ler ou escrever, e tinham entre oito e doze anos. Isso não aconteceu no fim do mundo, mas em Caruaru, a segunda cidade do meu Estado, Pernambuco.

Fiz uma carta ao Presidente Lula dizendo o que vi e que o Presidente Mandela ficou na história porque conseguiu que brancos e negros andem na mesma calçada; “para o senhor, o desafio é fazer com que pobres e ricos estudem em escolas equivalentes”. Nem disse que deveriam estudar na mesma escola, porque isso seria demagogia, uma vez que moram tão longe que não têm como ir para a mesma escola, salvo em cidades como o Rio de Janeiro, onde há proximidade entre as favelas e os bairros ricos. Esse ensino com a mesma qualidade no Brasil inteiro, para os 160 milhões de habitantes, é a porta da inclusão.

Houve um tempo em que a porta da inclusão era o crescimento econômico, era conseguir um emprego em uma fábrica. Não é mais. Não é mais, primeiro, porque não haverá emprego nas fábricas para quem não estudou; segundo, porque as fábricas já não necessitam de tantos trabalhadores, os robôs já fazem o papel dos trabalhadores. Não há demanda por trabalhadores e, se houver, é por trabalhadores preparados.

A porta para derrubar o apartheid, o muro que separa os brasileiros, é a escola. Só o socialismo derruba o muro de vez, mas, enquanto isso não for possível, deve-se criar uma brecha, uma porta nessa muralha: é a escola.

Se as 160 mil escolas públicas do Brasil, nas 5.561 cidades, que atendem a 40 milhões de meninos e meninas em idade escolar, tivessem equivalência na qualidade, não tenham dúvida de que acabaria a exclusão à medida que essas crianças fossem crescendo. Acabariam a exclusão, a separação e os dois brasis. As pessoas casam nas igrejas, e os dois pedaços de uma sociedade casam na escola. É a escola que unifica um país.

Há cento e poucos anos, países da Europa não eram países, mas feudos. Cada um falava um idioma. A Itália se formou na escola. Não foi a Constituinte que os fez, mas ela definiu as regras de como aqueles diferentes principados se uniriam em um só país. Aqueles principados viraram um país graças à escola, onde eles aprenderam um idioma comum, a língua de todos. Antes, cada um falava uma língua diferente.

O Brasil quase não tem esse problema da língua, mas o Brasil precisa, pelo menos, ter igualdade nos conhecimentos básicos.

Além disso, se a escola é a porta por onde os pobres excluídos entram na modernidade, é também a porta por onde o Brasil inteiro entra na modernidade, porque vale para os países o que vale para as pessoas.

Ser um país moderno era ter um PIB alto e uma boa produção industrial, mas não é mais. Ser um país moderno hoje é ter centros importantes de ciência e tecnologia. O capital do século XXI não é mais o econômico, mas o humano.

Estamos tão atrasados, que o nosso capital ainda não é nem o produtivo, mas o financeiro. Temos de dar um passo adiante. Não adianta esperar que mude de financeiro para econômico para, então, chegar ao capital humano. Essa mentira nós vendemos por cinqüenta anos ao povo brasileiro dizendo: “Calma, produzam indústrias, construam hotéis de luxo, dinamizemos a economia que vocês sairão da pobreza”. Foi uma mentira. Enquanto se dizia que os pobres sairiam da pobreza pelo crescimento da renda, se concentrava renda para dinamizar o crescimento econômico. Vamos fazer o contrário agora. Vamos dizer: “Nossa meta é cumprir aquelas metas do milênio, que, somadas, farão a integração da sociedade brasileira em uma só, mas ainda com desigualdade”.

A desigualdade não vai acabar, mas a exclusão, como a que existia na África do Sul de Nelson Mandela, pode acabar - lá não acabou a desigualdade, mas acabou o apartheid. A desigualdade continua existindo entre os mais ricos e os mais pobres, mas não temos mais lá, felizmente, a separação por raça. Temos de acabar com a separação por acesso aos bens de serviço.

Fiz questão de não usar a expressão “por classe”, porque vai haver diferença de classe, vai haver desigualdade de classe. Claro que acredito que um dia a inteligência humana será capaz de formular um mundo onde não haja patrão e empregado, onde não haja necessidade de bancos nem de juros, mas isso vai demorar a acontecer. Só depois disso é que vamos ter o Brasil integrado em uma só família, a família brasileira, com pessoas desiguais, como há numa família, mas não excluídas - se houver exclusão, essa família não merece o nome de família.

Essa mudança não pode ser alcançada de um dia para o outro, mas é possível dar início a ela já. E volto à comparação com a África do Sul. O apartheid racial teve fim com um simples conjunto de leis que, entrando imediatamente em vigor, acabou com o apartheid. Não se pode, porém, acabar com o apartheid social com uma lei que passe a viger no dia seguinte. Não. As leis serão feitas para dar início a um processo pelo qual serão construídos sistemas de saúde igualitários e sistemas educacionais equivalentes no País inteiro.

Para isso é preciso desmunicipalizar a responsabilidade pela educação básica; é preciso criar padrões nacionais; é preciso federalizar a educação básica, como fizemos com aeroportos, com bancos e com universidades. Por que é que em qualquer cidade do Brasil se pode encontrar o Banco do Brasil instalado em prédio moderno, bonito, com os melhores computadores, com funcionários que têm a mesma qualificação? Não importa a cidade: onde há um Banco do Brasil, o funcionário tem a mesma formação que tem seu colega de qualquer outra cidade e o mesmo salário. Por que é possível serem bem equipados, bem edificados, bem pagos e igualmente competentes num banco e não na escola? Por que, no caso da escola, cada Município tem uma escola tão diferente da outra do ponto de vista da qualidade, do salário do professor, da formação do professor? Porque o Banco do Brasil é regido por normas federais e a educação básica é entregue aos pobres limites dos Municípios desiguais deste País, incapazes de terem uma escola com o mesmo padrão.

A mudança é possível e pode começar já. Levará dez anos, quinze anos? Muito bem! Levará o tempo necessário, como levou doze anos para fazer-se Itaipu, como leva dois anos fazer uma estrada média, como leva três anos fazer uma ponte grande. Tudo tem o seu tempo. O que não é possível é esperar que a ponte surja sem o projeto de construção que diga quando ela vai terminar.

Para as pontes, nós temos as metas; para a inflação, nós temos metas; para as estradas, temos as metas; para as hidrelétricas, temos as metas. No entanto, não temos metas para a alfabetização, não temos metas para garantir o fim do trabalho infantil e da exploração sexual de menores. Está na hora de levar essas metas a sério. Está na hora de fazer uma mudança cultural que diga: essas metas serão cumpridas no prazo previsto não por causa da renda, mas para garantir o acesso dos pobres aos bens e serviços essenciais.

Está na hora de dizer que o principal instrumento, que o veículo fundamental, que o motor do fim da exclusão e da quebra do apartheid é a escola, é a educação. É essa a porta da modernidade para o Brasil e a porta da igualdade de oportunidade para todos. Pena que isso esbarre num problema cultural muito sério, que é a prisão que representa trabalharmos o mundo como se fosse apenas uma fábrica da economia, como se tudo passasse pela renda e como se o papel do governo fosse fazer voltar o crescimento.

Ora, o crescimento não depende só do governo, depende até menos do governo do que do resto hoje: depende do humor dos empresários, depende de a economia crescer na China, depende da movimentação da taxa de juros nos Estados Unidos, depende de uma guerra no Oriente Médio que afeta a todos nós... A economia não está sob nosso controle. No entanto, está sob nosso controle, sim, garantir o acesso de todos os brasileiros aos serviços essenciais, cumprindo as metas do milênio e, através disso, unificando o Brasil em uma só família brasileira, em uma só nação, unificando a nossa sociedade.

Agradeço à Senadora Heloísa Helena não apenas por dirigir os trabalhos nesta manhã, mas também pela inspiração que nos oferece sempre com suas lutas por um Brasil desse tipo. Ainda que sem mandato das crianças brasileiras, V. Exª trouxe um grande benefício para elas: senão hoje, algum dia vão se beneficiar de sua emenda que garante o acesso de todas as crianças ao atendimento através de creches públicas de qualidade desde a primeira infância.

Muito obrigado, Srª Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/06/2006 - Página 21478