Discurso durante a 117ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Registro do cinqüentenário do poema Morte e Vida Severina, da autoria de João Cabral de Melo Neto.

Autor
Marco Maciel (PFL - Partido da Frente Liberal/PE)
Nome completo: Marco Antônio de Oliveira Maciel
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Registro do cinqüentenário do poema Morte e Vida Severina, da autoria de João Cabral de Melo Neto.
Aparteantes
Roberto Saturnino, Romeu Tuma.
Publicação
Publicação no DSF de 26/07/2006 - Página 25057
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, LANÇAMENTO, OBRA LITERARIA, ASSUNTO, POBREZA, REGIÃO NORDESTE, AUTORIA, JOÃO CABRAL DE MELO NETO, POETA, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE), DIPLOMATA, ELOGIO, VIDA PUBLICA, CONTRIBUIÇÃO, LITERATURA BRASILEIRA.
  • REGISTRO, IMPORTANCIA, PARTICIPAÇÃO, CELSO LAFER, PROFESSOR, JURISTA, EMBAIXADOR, ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS (ABL).

O SR. MARCO MACIEL (PFL - PE. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente nobre Senador Alvaro Dias, Srªs e Srs. Senadores, a quem quero saudar na pessoa do Senador Roberto Saturnino, ocupo a tribuna nesta tarde para registrar o cinqüentenário de “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto.

O poema trata da pobreza na circunstância nordestina, aliás já versado precedentemente por José Américo de Almeida, em “A bagaceira”, em 1928, Rachel de Queiroz, em “O Quinze”, em 1930 e Graciliano Ramos, em “Vidas Secas”, em 1937, todos em prosa de ficção. De alguma forma, João Cabral, pernambucano, diplomata, poeta e crítico literário bissexto, também já antecipara a preocupação com o assunto em 1953 com o poema “O rio ou relação da viagem que fez o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife, caminho percorrido pelos retirantes da seca”.

A denúncia de um povo em busca de justiça não se limitava, segundo João Cabral, à questão social: almeja-se, acima de tudo, segundo o autor, o essencial da condição humana; daí a sobriedade requerida pelas profundezas da alma, na tentativa de decifrar o enigma do homem.

A formação intelectual dele era, ao mesmo tempo, recifense e ibérica, essa marcada sobretudo pela sua presença como diplomata na Espanha. É verdade que seu amor estendia-se também a Portugal, e não foi outra razão que o levou a encerrar sua vida diplomática em Portugal, como Cônsul Geral do Brasil na cidade do Porto.

O estudioso português Antônio Saraiva, um dos muitos especializados no estudo de sua obra, a admirava por preferir o ritmo à melodia e com as pedras das palavras construía a arquitetura da poesia, pois o sentimento deveria se submeter ao pensamento. O gosto pela concretude da pintura, revelado pelo fascínio que a obra do catalão Joan Miró lhe revelara, levou, no mesmo sentido, o crítico literário nordestino João Alexandre Barbosa, professor da USP, a afirmar tratar-se de “uma reflexão acerca do equilíbrio atingido pelo pintor entre o rigor da composição e o sentido da liberdade”.

De forma semelhante, expressou-se o professor de literatura, igualmente poeta, Antonio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras, ao sintetizar sua formação, observando que “o Nordeste e a Espanha, diálogo entre ambos marcado pelo vetor comum de uma condição humana definida pelos signos da carência do menos”, conduziu a poesia cabralina a um grande rigor e dureza.

Realmente, a poesia de João Cabral de Melo Neto, nas suas próprias palavras, era cortante, “uma faca só lâmina”, e áspera como as pedras que também deveriam servir de exemplo à nossa formação intelectual e moral. Ele assim intitula dois de seus principais livros: “A educação pela pedra” e “A escola das facas”. Por aí se vê o apego de João Cabral à concretude, nas imagens da pedra e da faca, também tão nordestinas na paisagem e no caráter do seu povo.

“Eu nunca acreditei em inspiração”, afirmou João Cabral de Melo Neto, em entrevista à Folha de S.Paulo, em maio de 1988. “Para mim, arte é construção... A palavra arte está ligada à palavra artesão. E a palavra artesão está muito ligada a trabalho. Eu vejo uma fronteira nítida entre arte e artesanato”. E concluiu: “O poeta é um fabricante. Agora, há fabricantes que são bons e outros que são ruins. Os partidários da inspiração dizem que uns são inspirados e outros não”. 

Por outro lado, não podemos nem devemos limitar a densa poesia de João Cabral de Melo Neto e muito menos desconhecer a sua profunda dimensão humana. “A palavra humanismo” - disse ele - “tem um significado que é difícil de responder. Entretanto, dentro da minha concepção de humanismo, o poeta é humanista por excelência”. Humanismo social basicamente brasileiro a partir do Nordeste.

João Cabral sabia que para a arquitetura das pedras era preciso o engenheiro ao lado do operário. Ele, certa feita, escreveu: “A luz, o sol, o ar livre/ envolvem o sonho do engenheiro./ O engenheiro sonha coisas claras.../ O engenheiro pensa o mundo justo;/ mundo que nenhum véu encobre”.

Nem sempre o migrante encontra o almejado trabalho. Daí porque João Cabral sempre liga a imagem do engenheiro à do operário. E diz ele: “Então, ao chegar/ não têm mais o que esperar;/ não podem continuar,/ pois têm pela frente o mar./ Não têm onde trabalhar/ e muito menos onde morar”.

Concedo o aparte ao nobre Senador Roberto Saturnino.

O Sr. Roberto Saturnino (Bloco/PT - RJ) - Senador Marco Maciel, agradeço a V. Exª o pronunciamento que faz nos 50 de anos de Morte e Vida Severina, lembrando e exaltando a figura de João Cabral, um dos nossos maiores poetas, senão o maior, dos últimos tempos. V. Exª ressalta pontos específicos da sua obra e do seu pensamento, como essa ligação entre o engenheiro e o operário, ambos construtores envolvidos na mesma tarefa de construir. V. Exª também lembra aquela asserção, aquela convicção de que a arte é muito mais trabalho do que inspiração, contrariando a imagem popular corrente de que a inspiração é tudo na arte e de que o trabalho é quase nada, é uma simples complementação, quando, na verdade, o que acontece é precisamente o contrário. É claro que há uma centelha de inspiração - e João Cabral certamente a tinha, e muito brilhante -, mas, sobretudo, o rigor do trabalho, a vontade de produzir com o espírito de operário e de engenheiro, de construir uma obra artística e poética do porte de João Cabral. Cumprimento V. Exª e, como disse no início, agradeço a oportunidade que nos está dando de relembrar e conhecer muitos dos aspectos tão importantes da vida deste grande poeta que foi João Cabral.

O SR. MARCO MACIEL (PFL - PE) - Nobre Senador Roberto Saturnino, agradeço, muito sensibilizado, as palavras de V. Exª. Tem razão V. Exª, quando apóia a asserção de João Cabral, ao afirmar que a arte é sobretudo um trabalho de construção.

João Cabral era, por excelência, um antilírico, alguém que trabalhava com os temas, talvez, áridos, mas que entendia que esse era o caminho de uma autêntica e genuína poesia. Era, portanto, um poeta muito exigente, inclusive com ele mesmo. Não foi por outra razão que deixou uma obra que o coloca entre os grandes poetas brasileiros e como um dos maiores do século XX. Lamento que a morte o tenha colhido antes do reconhecimento internacional que estava prestes a obter: um Prêmio Nobel da Literatura. Ele era um dos nomes sempre lembrados e infelizmente faleceu, sem que esse reconhecimento lhe fosse prestado. Como sabe V. Exª, o Prêmio Nobel não é concedido post mortem. Talvez o Brasil tenha perdido a oportunidade de ter seu primeiro Prêmio Nobel. Certamente, teve sua obra marcada não somente por um grande rigor poético, mas, em contrapartida, por uma grande sensibilidade social. Daí o fato de ele ser entendido como o poeta que guarda uma grande completeza, se assim posso dizer, em sua obra.

O aparte de V. Exª vem ao encontro do que estou afirmando, ao ligar a figura do engenheiro ao operário. Ele via aí, nesse paradoxo, uma união com vistas à construção de um país menos desigual, com o qual tanto sonhamos. 

Sr. Presidente, cinqüenta anos após a publicação de “Morte e Vida Severina”, no Nordeste a situação melhorou, contudo aquém do que podia e devia. Ainda hoje a renda média per capita do nordestino é bem inferior à brasileira, e é menor sua expectativa de vida. As estatísticas apontam que muitos anos serão necessários para que a renda dos habitantes do Nordeste alcance a dos do Sudeste. Tudo isso, apesar das potencialidades geradas pelo nosso próprio sol, que por um lado pune, mas por outro premia, neste caso favorecendo a produção da principal fonte de etanol, a cana-de-açúcar. Sol que traz milhões de turistas às praias nordestinas.

João Cabral, em “Morte e Vida Severina”, não deixa, porém, morrer a esperança, fundamental que é - reconheçamos - para que possamos já, como disse o apóstolo Paulo, “contemplar realidades que ainda não se vêem”, isto é, um País menos injusto e mais homogeneamente desenvolvido capaz de exorcizar a tentação final dos desesperados, pois, nas palavras do poeta: “Que diferença faria/ tomar-se a melhor saída:/ a de saltar, numa noite/ fora da ponte da vida?”. E retruca João Cabral: “E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida:/ vê-la desfiar seu fio,/ que também se chama vida,/ ver a fábrica que ela mesma,/ teimosamente, se fabrica”.

Concedo um aparte ao nobre Senador Romeu Tuma.

O Sr. Romeu Tuma (PFL - SP) - Presidente Marco Maciel, como apreciador de seus discursos serenos, objetivos, feitos com a literatura escorreita que levou V. Exª à Academia Brasileira de Letras, sinto-me orgulhoso de estar não só no seu Partido, mas de me considerar seu amigo, seu afilhado, se assim permitir, na questão política.

O SR. MARCO MACIEL (PFL - PE) - Muito obrigado, eu me sinto lisonjeado.

O Sr. Romeu Tuma (PFL - SP) - Mas, Senador, V. Exª está falando sobre o problema de levar o desenvolvimento e de criar condições para que o cidadão se sinta útil à sociedade, produzindo, tendo serviço, trabalho, se não me engano, em conformidade com o objetivo do seu discurso. Peço permissão a V. Exª, porque queria apresentar hoje um requerimento de louvor ao Professor Celso Lafer, ex-Ministro de Relações Exteriores, também um homem completo na sua condição de literato, de escritor e de homem público, que hoje faz par com V. Exª na Academia Brasileira de Letras. Como V. Exª é o nosso querido representante lá, gostaria de cumprimentar o Dr. Celso Lafer por intermédio da figura maravilhosa que é V. Exª.

O Sr. Roberto Saturnino (Bloco/PT - RJ) - Eu gostaria, Senador Marco Maciel, que V. Exª também acrescentasse meu nome ao voto expresso pelo Senador Romeu Tuma de parabéns e cumprimentos a Celso Lafer como novo membro da Academia Brasileira de Letras, tão justamente escolhido.

O SR. MARCO MACIEL (PFL - PE) - Nobre Senador Romeu Tuma, antes de mais nada, agradeço as generosas palavras que V. Exª proferiu a respeito do meu pronunciamento e, de modo especial, destaco o registro que V. Exª faz da escolha para a Academia Brasileira de Letras do professor, filósofo, jurista e Embaixador Celso Lafer, que, aliás, é bom salientar, vai ocupar a vaga deixada pelo grande jurista e filósofo Miguel Reale.

E devo aproveitar a ocasião também para agradecer a manifestação do Senador Roberto Saturnino e dizer tanto a S. Exª quanto a V. Exª, Senador Romeu Tuma, que levarei a Celso Lafer, de forma muito eloqüente, os cumprimentos que V. Exªs apresentaram por sua escolha para ocupar cadeira na Academia Brasileira de Letras.

Sr. Presidente, Senador Renan Calheiros, tantas décadas vivendo como diplomata na Europa, África e América hispânica, João Cabral de Melo Neto permaneceu, malgrado toda a dureza e rigor de seus versos, telúrica e amorosamente brasileiro, nordestino, pernambucano e recifense. Costumava escrever “meu Brasil”, “meu Pernambuco”, “meu Recife”. São palavras que dizem tudo de alguém que, conquanto exato e rigoroso, tinha uma recôndita e enorme porção de afeto.

Tive a graça de, como Governador de Pernambuco, nos idos de abril de 1980, conceder-lhe a Grã-Cruz da Ordem do Mérito dos Guararapes, em cuja solenidade discursou em nome dos agraciados. Na ocasião, afirmou João Cabral, do alto dos montes que simbolizam a vitória contra os flamengos invasores:

“Não tenho dúvida de que a minha escolha para falar em nome dos grandes brasileiros a quem Vossa Excelência, hoje, outorga a Medalha dos Guararapes, vem, não de méritos pessoais, mas sim dessa impressão de que um intelectual é um homem mais capaz para lidar com idéias abstratas, de que um escritor é um homem mais articulado, de que um poeta é um homem mais capaz de explorar a linguagem em todas as suas dimensões: em todo caso, mais do que o escritor que a emprega dia-a-dia, inevitavelmente como moeda corrente, e mais do que o homem de idéias puras, que se acaba, às vezes, ainda à procura de uma linguagem precisa para suas intenções.

Sei que Vossa Excelência, que conhece bem a poesia que venho tentando escrever, sabe que se ela é a poesia de um anti-lírico, é também a de um anti-orador, escrita mais para ser lida em voz baixa do que declamada, mesmo se o cenário que lhe oferecessem fosse o do nosso querido Teatro Santa Izabel.

(...)

Relembremos esses fatos, neste dia, neste lugar, como quem vai rezar a céu aberto: não, numa igreja, e muito menos num cemitério.

Mauriac escreveu que os cemitérios são o único lugar onde estava certo de não encontrar seus mortos. Guararapes não é um cemitério. É um Parque Nacional, aberto aos alíseos e ao terral. E todos sabemos que a preferência dos ventos é mais a de abrir do que a de fechar janelas.

Guararapes não é um cemitério. Não é um museu nem um arquivo. Guararapes aponta na direção contrária: não guarda nem tenta reviver o que morreu. E, se relembramos que aqui muitos morreram, não o fazemos por deleitação mórbida, mas para dizer que morreram por alguma coisa”.

Duas vezes evocou significativamente o Capibaribe, em O Cão Sem Plumas, de 1950, e em O Rio, já mencionado, que recebeu o Prêmio do Quarto Centenário de São Paulo.

Avesso às exibições, Sr. Presidente, João Cabral de Melo Neto só aceitou concorrer em uma competição sob pseudônimos, por pessoal insistência de seu amigo Vinícius de Morais. Outros foram Willy Lewin e Joaquim Cardozo dos tempos recifenses, Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade dos tempos cariocas.

À sua revelia, João Cabral de Melo Neto recebeu vários prêmios literários no Brasil, na Espanha, em Portugal e nos Estados Unidos. Em 1968 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, tomando posse no ano seguinte, saudado por José Américo de Almeida, em reconhecimento ao precursor do romance regional nordestino. Em 1990, a Academia Pernambucana de Letras também o elege, embora sua posse se realize em ausência por motivos de saúde que o levaram ao falecimento três anos após.

João Cabral de Melo Neto era de uma família de escritores; era irmão do lúcido e preciso historiador Evaldo Cabral de Melo, também diplomata, e primo do igualmente notável escritor José Antonio Gonçalves de Melo, e de Gilberto de Melo Freyre, nome completo do distinguido sociólogo-antropólogo brasileiro.

Sr. Presidente, jovem ainda, João Cabral de Melo Neto disse estas primeiras palavras, que poderiam ter sido as suas últimas: “O poema final ninguém escreverá/ desse mundo particular de doze horas./ Em vez de juízo final a mim me preocupa/ o sonho final”. Aliás, é verdade que o homem vive muito mais dos sonhos do que das vicissitudes do presente. .

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente. Peço que V. Exª autorize seja transcrito o discurso de João Cabral de Melo Neto proferido ao receber a Medalha do Mérito dos Guararapes.

Muito obrigado.

 

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DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR MARCO MACIEL EM SEU PRONUNCIAMENTO

(Inserido nos termos do art. 210, inciso I e § 2º, do Regimento Interno.)

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Matéria referida:

“Guararapes (Discurso proferido por João Cabral de Melo Neto na solenidade de recebimento da Medalha do Mérito dos Guararapes).”

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 26/07/2006 - Página 25057