Discurso durante a 184ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexão sobre o fato de que o Brasil tem, hoje, um presidente "comunista", em razão de estar o Deputado Aldo Rebelo (PCdoB) exercendo interinamente a Presidência da República.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA NACIONAL.:
  • Reflexão sobre o fato de que o Brasil tem, hoje, um presidente "comunista", em razão de estar o Deputado Aldo Rebelo (PCdoB) exercendo interinamente a Presidência da República.
Aparteantes
Eduardo Suplicy.
Publicação
Publicação no DSF de 14/11/2006 - Página 34463
Assunto
Outros > POLITICA NACIONAL.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, EVOLUÇÃO, NECESSIDADE, SOCIEDADE, IDEOLOGIA, COMUNISMO, INCLUSÃO, DESENVOLVIMENTO, CONHECIMENTO, TECNOLOGIA, CONSCIENTIZAÇÃO, MEIO AMBIENTE, EFICACIA, ATUAÇÃO, DISCURSO, POLITICA, ESPECIFICAÇÃO, DIREITO A IGUALDADE, ACESSO, QUALIDADE, TRANSPORTE URBANO, EDUCAÇÃO, RENDA MINIMA.
  • COMENTARIO, EVOLUÇÃO, DEMOCRACIA, BRASIL, ELEIÇÃO, TRABALHADOR, MANDATO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, INTERINIDADE, EXERCICIO, ALDO REBELO, PRESIDENTE, CAMARA DOS DEPUTADOS, LIDER, PARTIDO POLITICO, PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PC DO B), PRESIDENCIA DA REPUBLICA.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Eu tentarei não abusar não usando os vinte minutos, Sr. Presidente, Senador Mão Santa.

Sr. Presidente e Srs. Senadores, às vezes, a falta de surpresa é o que nos surpreende. Eu acho fantástico como hoje tivemos uma sessão aqui inteira e me surpreende a falta de surpresa do Senado diante do fato de que o Brasil tem hoje um Presidente comunista. Isso merece que façamos uma pequena reflexão.

O Governo Lula tem alguns simbolismos que não podemos fugir de respeitar. Um simbolismo obviamente é a figura do próprio Presidente, um metalúrgico que vem do Nordeste muito pobre e chega à Presidência da República. Isso é um fato que ninguém imaginava no País, poucos anos atrás. É uma surpresa, uma surpresa extremamente positiva, porque quebra um preconceito característico da nossa sociedade ainda imperial, ainda com uma aristocracia e uma plebe. E vemos um homem que vem lá debaixo e chega a Presidente da República.

Também o fato de termos como Presidente, neste dia de hoje - claro que por algumas poucas horas, digamos -, alguém de uma sigla que ainda mantém o nome “comunista” - e isso é algo que merece uma reflexão. Por um lado, esse simbolismo da quebra do preconceito que existe neste País, de uma maneira tão forte, contra as esquerdas e contra o povo e o trabalhador. Mas, ao mesmo tempo, essa reflexão merece avançar um pouco mais na percepção de que, apesar de terem vindo de onde ninguém imaginava, essas pessoas chegaram sem a mística transformadora.

A verdade é que o Brasil mudou ao aceitar dirigentes que vêm de siglas como essa, da esquerda. Mas, mudaram mais, Senador Mão Santa, os que chegaram ao poder. Por um lado, positivamente, é a mudança de quem se ajusta a uma realidade nova. E a realidade do século XXI não é a realidade do século XIX, quando foram formuladas as principais idéias que caracterizaram o movimento socialista no mundo inteiro.

Houve, sim, algo positivo na adaptação das forças de esquerda à idéia de que podemos ser obrigados a respeitar os limites que a realidade impõe. Uma delas é a realidade ambiental, que não permite aquilo que se sonhava no século XIX: a igualdade plena no consumo. Naquela época, o consumo limitava-se aos bens essenciais, e toda essa parafernália de bens de consumo suntuoso não existia então. No tempo de Marx era perfeitamente possível imaginar a igualdade plena. Hoje não o é. Não é possível todos terem automóvel, porque não cabe nas ruas. O que todos precisam é ter direito a um sistema de transporte público de qualidade, eficiente e confortável. Mudou o conceito, Senador Flávio Arns, de qual a igualdade que buscamos porque há limites ecológicos que impedem aquele sonho do século XIX.

Por outro lado, também parabenizar a todos das esquerdas - e me incluo entre esses - que conseguimos entender que a economia não se manipula como se deseja, conforme determinações ideológicas. Percebemos - e eu me orgulho de dizer que percebi muito antes de muita gente das esquerdas. No PT, quando defendia os limites que a economia nos impõe, eu era quase crucificado; diziam que isso era posição de direita. Não, a economia tem limites que não se modifica apenas com a vontade política. E insisto que uma das qualidades do Governo Lula nesses quatro anos foi perceber e levar isso adiante.

Agora, acho lamentável e triste que, ao mesmo tempo em que houve esse amadurecimento, se perdeu a capacidade de sonhar, de dizer eu respeito os limites, sejam econômicos, técnicos ou ecológicos. Respeito os limites, mas não abro mão de certos sonhos.

Nossa tarefa, das forças progressistas, das forças de esquerda, é exatamente redesenhar os sonhos, mostrar que os sonhos para o século XXI estão vivos, mas são diferentes dos sonhos do século XIX, dos sonhos do século XX, inclusive. O sonho novo, o sonho de uma esquerda que queira, de fato, trazer uma utopia tem que ser baseado em dois capitais fundamentais do progresso: primeiro, o capital natureza, que a esquerda sempre relegou; segundo, o capital conhecimento. As duas pernas da utopia - e não podemos abrir mão de ter uma utopia se quisermos ser progressistas de esquerda - são o respeito aos limites ecológicos e o aumento, o acúmulo do capital conhecimento. Essas duas pernas estão faltando não só nos discursos, mas na prática também dos partidos de esquerda.

Temos hoje, sem dúvida alguma, e volto a insistir, o simbolismo importante de termos um Presidente metalúrgico e de termos um Presidente comunista, mas temos que lamentar o fato de que esses dois não trouxeram a capacidade de pôr, no imaginário coletivo do Brasil, o sonho de uma utopia possível: a utopia do respeito aos limites ecológicos, da proteção da natureza e o sonho de um acumulado imenso de capital conhecimento a serviço de todos.

A idéia é de que, daqui para adiante, não devemos abrir mão de sonhar com utopia, mas a utopia não é mais a igualdade de consumo nem de renda; a utopia é a igualdade de oportunidades que são asseguradas por uma escola equivalente para todos, sem diferença, coisa que, inclusive, os países desenvolvidos não têm, porque a brecha educacional na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos é muito menor do que no Brasil, mas ainda é muito grande entre pobres e ricos daqueles países.

Ainda não há uma igualdade no que se refere à educação, ainda não há o comunismo do conhecimento, o comunismo da educação, a igualdade total da educação. Isso é possível! Isso não fere interesses e não exige estatização do capital como se defendia antes; o que se exige hoje é distribuição do conhecimento em vez de estatização do capital. Não exige mais fuzil para fazer revolução, a revolução está no lápis. Não exige mais guerrilheiro, precisa de professor. Não exige mais trincheira nem praça pública, precisa de escola.

Essa revolução da educação, uma doce revolução, Senador Mão Santa, que hoje falou de um escritor piauiense aqui - então, usando essa metáfora poética -, essa doce revolução é possível e não está nos discursos dos últimos meses no Brasil, apesar do imenso avanço simbólico de termos um Presidente metalúrgico e, hoje, um Presidente comunista.

Essa é a dimensão da utopia, Senador Flávio, Senador Suplicy, Senador Eurípedes, que sinto falta não só na prática, mas até mesmo no debate, até mesmo nas idéias do Governo Lula: a libertação de um debate sobre qual o sonho e não sobre se o sonho morreu ou não. O sonho não pode ter morrido; ele pode ter mudado de forma, senão, não se justifica tudo que estamos fazendo aqui.

Fiz questão de vir aqui - já vou conceder um aparte ao Senador Eduardo Suplicy - porque acredito que não podia passar em branco esse fato simbólico de o Brasil ter um Presidente do Partido Comunista. E mais simbólico ainda é o fato de isso não gerar nenhum depoimento; ninguém se assusta, ninguém estranha, inclusive. Isso é uma beleza! Ninguém estranhar esse fato é a maior de todas as belezas.

Agora, estranhar o fato de que esse Presidente não signifique mudança, utopia, sonho, proposta nova, também merece ser lembrado aqui.

            Ouço o aparte do Senador Eduardo Suplicy.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Agradeço a oportunidade. V. Exª faz muito bem em registrar que, hoje, em virtude da viagem do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, para um compromisso junto à Venezuela, ao Presidente Hugo Chávez, uma viagem breve, e em virtude de o nosso Vice-Presidente, querido José Alencar, estar passando por uma cirurgia nos Estados Unidos da América, está o Presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Aldo Rebelo, constitucionalmente exercendo interinamente a Presidência da República. V. Exª bem chama a atenção, afinal de contas, é a primeira vez que um membro histórico do Partido Comunista do Brasil assume a Presidência do Brasil. É um fato de grande relevância, mas também é um fato de grande relevância aproveitarmos essa oportunidade para homenagear esse Deputado Federal, que, inclusive, foi meu colega na Câmara Municipal de São Paulo, onde exerceu seu primeiro cargo público. Ele também foi Presidente da União Nacional dos Estudantes e, na Câmara dos Deputados, distinguiu-se de tal maneira a conseguir o respeito de todos os partidos. É importante que tenhamos hoje na Presidência da República uma pessoa que tem prestado serviços sérios e relevantes e que se tem distinguido muito na defesa da Câmara dos Deputados e do Congresso Nacional, inclusive em parceria com o Presidente do Senado, Renan Calheiros. Em todos os seus atos, atitudes e decisões, o Presidente Aldo Rebelo tem se saído, felizmente, muito bem. Inclusive, seu nome está sendo seriamente considerado para a hipótese - até porque seu mandato não foi inteiro - de continuar no cargo. Essa decisão cabe à Câmara dos Deputados, mas não será surpreendente sua reeleição, porque, constitucionalmente, nas circunstâncias atuais, em meio à Legislatura, isso é possível. Eu gostaria de formular um convite a V. Exª, que é um dos membros, mas ainda não participou de um congresso - como fiz na semana passada, na cidade do Cabo - da Rede Mundial da Renda Básica ou Basic Income Earth Network. E por que razão? Porque V. Exª aqui fala em utopia. Qual o convite que formulo a V. Exª, inclusive como Co-Chair, Co-Presidente da BIEN? Que aceite V. Exª o convite, e espero que esteja com boa saúde, uma vez que o professor Philippe Van Parijs resolveu sugerir que o Congresso da BIEN, que se realizará em 2016, seja em Louvain. V. Exª compreenderá o porquê desse convite: será a oportunidade de se comemorarem os 500 anos da obra Utopia, de Thomas More, um pensador de enorme influência até o mundo atual. Ele foi um dos formuladores do humanismo moderno e foi consagrado santo pela Igreja Católica por volta de 1935 - João Paulo II, por causa da sua estatura moral e ética, proclamou-o o grande patrono dos políticos e dos governantes no ano 2000. O evento será um estímulo àquilo que V. Exª tão bem gosta de formular, como aqui hoje o fez e faz muito bem, que é a defesa da importância de abraçarmos esta que é, inclusive, uma das metas importantes do próprio Deputado Aldo Rebelo, hoje Presidente da República, uma pessoa que, no PCdoB, sonha e proclama que precisamos caminhar na direção de uma utopia de igualdade de oportunidades, com uma educação de igualdade em tantos aspectos da vida, que possa garantir dignidade e liberdade real às pessoas. Cumprimento-o pela feliz homenagem que faz ao Deputado Aldo Rebelo, hoje Presidente da República do Brasil.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Agradeço o aparte a V. Exª, Senador Eduardo Suplicy. Quero lembrar que esta é uma homenagem, sem dúvida, mas uma cobrança também; uma cobrança à falta de uma proposta nova, diferente e alternativa do seu partido e em todos nós - não vou me excluir.

Senador Eduardo Suplicy, eu quero dizer-lhe que a utopia não está na renda. Senão, não seria renda mínima, seria renda média. Se fosse para ser igualdade, seria a renda média “igualzinha“ que íamos defender para todos, mas penso que não é por aí. Temos de defender, tolerar e entender que a renda não precisa ser igual para que tenhamos a utopia; a renda tem de ser mínima para que todos tenham o essencial. Porém, esse é um passo pequeno. Eu acho que, no lugar da idéia da igualdade, temos de falar na idéia da integração. O que fará os seres humanos viverem em uma utopia - e acho que, se More estivesse vivo, seria por aí, porque, no seu tempo, nem se falava em renda, nem se falava em consumo, nem se falava em economia - é a utopia da liberdade, a utopia da não-necessidade, a utopia do direito ao credo. Hoje, acho que seria a integração; todos os seres humanos integrados, o que atualmente significa estarmos conectados em rede - mas não somente conectados em rede; participantes também do processo de tomada de decisões e do processo cultural, com todos dialogando. Senador Eduardo Suplicy, esta é a utopia: o diálogo geral, através da integração, da conexão e da participação.

Isso exige, sim, uma renda, mas exige, sobretudo - este, sim, é o instrumento revolucionário -, a igualdade de acesso à educação. Essa é a igualdade plena, não é a educação mínima, é a educação máxima.

E é a educação máxima para todos, porque é possível que seja para todos, Senador Mão Santa. Não é possível todos terem automóvel, mas é possível todos terem doutorado. Isso só depende do potencial de cada um; só depende da persistência de cada um. Não há limite físico que impeça a todos de serem plenamente educados e cultos.

Sr. Presidente, agradeço-lhe o tempo que me foi concedido. Eu não poderia deixar de registrar o simbolismo de termos um Presidente metalúrgico que, ao viajar, deixa em seu lugar um Vice-Presidente que é comunista. Ao mesmo tempo, lamento que ambos e talvez muitos de nós também não estejamos levando a sério o que está por trás da idéia de querer ser um político de esquerda, que é transformar em direção a uma utopia. Isso é possível e está ao alcance de nossas mãos, não de um dia para o outro, mas ao longo de anos, e começando agora, já.

Obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/11/2006 - Página 34463