Discurso durante a 31ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Indignação contra a atitude adotada pelas autoridades espanholas, que impediram o ingresso de brasileiros naquele País.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA EXTERNA. POLITICA SOCIAL.:
  • Indignação contra a atitude adotada pelas autoridades espanholas, que impediram o ingresso de brasileiros naquele País.
Aparteantes
Paulo Paim.
Publicação
Publicação no DSF de 18/03/2008 - Página 6077
Assunto
Outros > POLITICA EXTERNA. POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • PROTESTO, IMPEDIMENTO, PAIS ESTRANGEIRO, ESPANHA, ENTRADA, BRASILEIROS, ESPECIFICAÇÃO, ESTUDANTE, TURISTA.
  • ANALISE, DISCRIMINAÇÃO, BRASILEIROS, AMBITO, TERRITORIO NACIONAL, IMPEDIMENTO, ACESSO, POPULAÇÃO, BAIXA RENDA, HOSPITAL, ESCOLA PARTICULAR, FACULDADE, CENTRO COMERCIAL, REPUDIO, TENTATIVA, OCULTAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
  • DEFESA, MELHORIA, QUALIDADE, ESCOLA PUBLICA, SAUDE PUBLICA, GRAVIDADE, DESEMPREGO, FALTA, QUALIFICAÇÃO, TRABALHADOR, OCUPAÇÃO, VAGA, CONCLAMAÇÃO, SENADO, BUSCA, SOLUÇÃO, INCLUSÃO, PRIORIDADE, ALFABETIZAÇÃO.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente Eduardo Azeredo, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, o Brasil inteiro tem estado indignado, com raiva eu diria até, com do comportamento das autoridades espanholas, Senador Mão Santa, impedindo a entrada de brasileiros naquele país.

            É correto que o Brasil fique indignado com essa situação. Durante décadas, recebemos aqui de braços abertos os espanhóis; fizemos deles brasileiros, eles se integraram à sociedade. Agora, de repente, a gente vê esse comportamento de barrar jovens estudantes, de barrar turistas na entrada da Espanha. Por isso, começo o meu discurso manifestando também a minha indignação.

            Mas não paro aí, Senador. Quero lembrar que nós nos indignamos com isso, mas não percebemos que também fazemos o mesmo. O Brasil é um país cheio de fronteiras dentro dele, impedindo outros brasileiros de entrar onde precisam.

            Apesar de toda a indignação que sentimos corretamente, é preciso ver que, às vezes, Senador Jayme Campos, é um espelho nosso o que os espanhóis estão fazendo. Por exemplo, quantos brasileiros hoje foram impedidos de entrar em hospitais de que precisavam para ser tratados? Ali na frente, como se fossem guardas de fronteira, funcionários impedem pessoas doentes de entrar em hospitais de qualidade. É ou não é igual ao que faz a Espanha com os nossos turistas? De maneira errada como eles fazem; mas de uma maneira errada como nós fazemos.

            Na Espanha, para entrar agora, você precisa mostrar a sua carteira cheia de dinheiro. E, para entrar num hospital de qualidade aqui, não é preciso mostrar também uma carteira cheia de dinheiro? Lá, é preciso ter um passaporte com visto. E aqui? Não precisamos também de um cartão de seguro? Se não tem seguro, pode morrer lá fora. É preciso que, ao mesmo tempo em que protestamos contra aquilo que os outros fazem erradamente com nossa classe média e alta que vai a Espanha, percebamos o que a gente faz aqui, nas nossas fronteiras internas, com os brasileiros.

            E nas escolas? Vocês já viram alguma pessoa pobre conseguir entrar numa escola de qualidade se não tiver dinheiro para pagar. Da mesma maneira que os brasileiros, para entrar na Espanha, têm de mostrar que possuem dinheiro para pagar o hotel? Não entram aqui. Não entram nas escolas. As escolas têm guardas de fronteira que olham se aquela pessoa tem ou não direito de entrar. Da mesma maneira que, na Espanha, é necessário mostrar que se tem direito de lá entrar.

            Nós não somos muito diferentes no absurdo que eles cometem contra os brasileiros.

            E nas faculdades? Às vezes nem guardinha de fronteira tem. É a catraca que não deixa entrar o estudante se o cartão dele não provar que pagou a mensalidade, ou seja, é até pior do que na Espanha, Senador Paim, porque tem de pagar antes, para poder entrar depois. Lá pelo menos eles querem saber se tem crédito para, quando estiver lá dentro, pagar o hotel. Nós nos acostumamos tanto a criticar as aberrações dos outros que deixamos de ver as aberrações aqui dentro.

            E, Senador Paim, quantos negros são impedidos de entrar em elevadores sociais? Quantos? Quantos não são barrados na porta de edifícios apenas porque são negros, e aí têm de provar que são negros com dinheiro? Da mesma maneira que os brasileiros têm de provar que são brasileiros com dinheiro para entrar na Espanha.

            Vamos, sim, protestar contra os espanhóis, mas façamos um exame de consciência para descobrirmos, percebermos que nós não somos melhores. E não é porque não deixamos aqui os espanhóis entrarem, é porque não deixamos aqui dentro os brasileiros entrarem naquilo que eles querem e têm direito.

            E se, além de negro, for pobre, não entra nem no shopping center, Senador Paim. Não entra, porque os guardas da fronteira das portas do shopping center, como os guardas da fronteira na Espanha, identificam as pessoas e dizem: “Esse é um dos que podem freqüentar o shopping center. Esse é um dos que não podem. “

            E esses que não podem eles os tiram do shopping center e os levam para fora.

            Hoje, os jornais mostram um lugar com muro na praia. Um condomínio fechou a praia para ele. É claro que, nesse caso, já se vai derrubar. Mas quando é que se vão derrubar os muros das escolas de qualidade onde os pobres não podem entrar? E a maneira de permitir que entrem não é arrombando as portas dessas escolas, é construindo as escolas públicas com a mesma qualidade. A maneira de fazer com que os pobres possam entrar nos hospitais caros não é deixando que entrem ali, é fazendo com que o hospital público seja da mesma qualidade. Aí, a gente começará a ter autoridade para reclamar quando somos barrados na Europa!

            E os aposentados que ficam em filas e, muitas vezes, no final delas, não penetram no sistema de aposentadoria, apesar de terem idade, apesar, às vezes, de terem trabalhado. Mas estão fora do sistema, tão fora do sistema como nós, brasileiros, estamos fora do sistema da Comunidade Econômica Européia neste momento.

            Por isso, ao mesmo tempo em que eu deixo aqui, sim, sem nenhuma dúvida alguma, o meu protesto contra a maneira como nossos compatriotas são tratados na Espanha, eu trago a debate a maneira como nós, os que fazem parte do sistema moderno brasileiro, nos comportamos contra os brasileiros que não são parte desse setor moderno.

            Para citar ainda mais um exemplo de fronteira. Quando é que a gente vai derrubar a fronteira que existe entre as vagas de empregos e os desempregados que não conseguem ocupá-las por falta de qualificação profissional? Há uma barreira, ou um abismo - melhor ainda -; em vez de construirmos uma fronteira, fizemos um abismo entre os desempregados e as vagas.

            Qual é a maneira de resolver isso? Construir uma ponte. Essa ponte é a escola. Eu não estou propondo que desempregados desqualificados, sem qualificação profissional possam ocupar vagas que exigem qualificação. Isso seria um absurdo. O que estou propondo é que, para termos o direito de protestar com clareza contra aquilo que hoje a Espanha faz com os brasileiros, precisamos garantir que neste País qualquer cidadão vai ter direito a disputar uma vaga porque vai ter o diploma de sua qualificação profissional.

            E para não parar de falar, há outros exemplos dessa fronteiras internas que construímos e que enchemos de guardinhas, ou de catracas, ou de crachás - porque quem não tem crachá não entra nos lugares nesse País - e a gente esquece aqui dentro de ver fronteiras mais dramáticas do que as fronteiras européias que impedem os brasileiros de lá entrar.

            Senador Paim, o senhor pediu um aparte.

            O Sr. Paulo Paim (Bloco/PT - RS) - Senador Cristovam Buarque, vou falar muito rápido para não ocupar o tempo de V. Exª, que faz um pronunciamento brilhante como sempre. Eu só queria dizer que concordo com V. Exª na íntegra. O desrespeito aos brasileiros no exterior acontece na Espanha e não só na Espanha. Ninguém fique achando que nos outros países europeus é diferente. Não é diferente. Infelizmente, poderíamos citar uma série de outros países e, por isso, é preciso esse protesto veemente como o que V. Exª está fazendo e como outros Senadores fizeram, porque, se a moda pegar, cada vez mais, o brasileiro no exterior será tratado de forma desrespeitosa e deportado de imediato. A segunda questão é que quero dizer que tive muito orgulho em assinar junto com V. Exª o requerimento da sessão do dia 13 de maio - assinei com V. Exª e outros Senadores -, para o chamado 120 anos da abolição não acontecida ou não conclusa, como alguns preferem, quando teremos a oportunidade debater temas que V. Exª está levantando neste momento, corretamente, em relação ao povo negro dentro do Brasil. É só um aparte, cumprimentando V. Exª pelo discurso. Quero dizer que fiquei com um pouco de inveja de V. Exª, porque não pude estar em São Paulo - V. Exª me convidou, o reitor José Vicente também me convidou - na formatura dos 126 estudantes, dos quais, se não me engano, 90% eram negros, na Universidade Zumbi dos Palmares. Parabéns a V. Exª.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - O senhor traz, Senador Paim, a lembrança de uma prova de como derrubar a fronteira: é a Universidade Zumbi dos Palmares, onde tive a chance, o privilégio, de assistir à primeira formatura de uma turma de 156 jovens negros; 90% da turma de negros.

            Fiz as contas rapidamente, Senadores, e aquela única turma - não fui ainda olhar os livros estatísticos, mas pelo que me lembro - deve ter aumentado em pelo menos de 5% a 10% o número de negros que se formarão nas universidades públicas este ano. Uma turma de um curso, de Administração, para verem o absurdo que é a situação dos negros nas universidades brasileiras. Uma turma foi dedicada ao ensino para negros, elevou em quase 10% o número total de negros que se formarão este ano.

            Para concluir, Senador, quero chamar atenção para o fato de que reclamamos contra o rigor que hoje se aplica na Europa contra o passaporte brasileiro, e esquecemos que este é um país de crachás. Aqui, para ir de qualquer lugar a qualquer lugar, você tem de ter passaporte. É o passaporte que você pendura aqui para dizer: “Tenho direito de entrar em recintos do meu próprio País, senão sou barrado”, como somos barrados na Espanha. E esquecemos disso.

Nós nos acostumamos tanto com um país de exclusão, de crachás, de passaportes, sob a forma de diploma, sob a forma de qualificação para poucos, sob a forma da carteirinha do seguro, que a gente se irrita corretamente contra os que lá fora não nos deixam entrar, mas a gente esquece todos aqueles que aqui dentro, nós, os de dentro, não deixamos entrar. Não deixamos entrar nos hospitais quando precisam, não deixamos entrar nas escolas quando precisam, não deixamos entrar no emprego quando precisam, não deixamos entrar nas clínicas quando precisam, não deixamos entrar e moradias quando precisam. Tudo dividido em fronteiras dentro do próprio país, irritando-se esse país contra as fronteiras externas que não nos deixam entrar.

            Concluo, Senador Eduardo Azeredo, dizendo que está na hora de o Senado, nós, discutirmos algumas coisas como esta: como derrubar as fronteiras internas dentro do Brasil que separam os que têm e os que não têm escolas, os que têm e os que não têm seguro médico, os que têm e os que não têm direito de entrar no hospital, os que têm e os que não têm direito de um curso de formação profissional para poder ter emprego. Enquanto não discutirmos isso não temos direito total de protestar contra o que faz a Espanha. Mesmo assim, eu protesto, mas eu protesto contra o que faz a Espanha com os brasileiros e contra o que faz o sistema brasileiro contra os pobres brasileiros que não têm os passaportes necessários para um bom tratamento médico, que não têm o passaporte necessário para entrar numa boa escola, porque as públicas não estão com a qualidade devida, que não têm o passaporte para conseguir o emprego, porque lá atrás eles não tiveram condições de receber a formação devida.

            E, finalmente, para não esquecer nenhuma hipótese - deixei para o final -, o passaporte da alfabetização. Temos dezesseis milhões de brasileiros que não têm acesso a nada neste País, porque não sabem ler o que está escrito na porta de onde eles querem ir. Aliás, isso é pouco. Dezesseis milhões, se olham para a nossa bandeira, não são capazes de entendê-la, porque não sabem ler “Ordem e Progresso”. Qualquer outra coisa que estiver escrito ali para eles parece a mesma coisa. Ou seja, dezesseis milhões de brasileiros não têm direito a entrar em absolutamente nada, porque são iletrados, em um mundo onde ler é fundamental.

            E nós reclamamos porque não entramos na Espanha, esquecendo-nos de que não deixamos esses dezesseis milhões de adultos entrarem dentro do Brasil moderno, porque não os ensinamos a ler.

            Vamos olhar para os espanhóis com raiva, mas como se estivéssemos olhando para um espelho. Às vezes, quando somos bem conscientes dos nossos erros, o espelho também nos dá raiva, quando olhamos para ele. A Espanha hoje é um espelho da elite brasileira a qual nós pertencemos - e não me excluo disso.

            Por isso, critiquemos, mas sejamos conscientes e honestos para reconhecer que nós também fazemos o mesmo com os brasileiros excluídos que aqui dentro não têm direito de entrar onde precisam.

            Era isso, Senador Eduardo Azeredo.

            E para concluir, finalmente, existe mais uma barreira aqui que a gente esquece: a barreira do entendimento. Aqui, ou a gente funciona tão nitidamente entre branco e preto, de uma maneira definitiva, que quem tenta analisar as coisas de uma maneira diferente também fica excluído.

            É provável que hoje eu receba toda a crítica dos espanhóis porque critiquei-os, e toda a crítica dos que não entraram na Espanha, porque vão dizer que estou justificando o que eles fizeram. Não justifico o que eles fizeram, mas eu não justifico também o que nós estamos fazendo aqui.

            Era isso, Sr. Presidente, o que eu tinha para dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/03/2008 - Página 6077