Discurso durante a 62ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexão sobre o assassinato sistemático de crianças no Brasil.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • Reflexão sobre o assassinato sistemático de crianças no Brasil.
Publicação
Publicação no DSF de 26/04/2008 - Página 10893
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • GRAVIDADE, SUPERIORIDADE, NUMERO, HOMICIDIO, VITIMA, CRIANÇA, BRASIL, DEMONSTRAÇÃO, ERRO, VALOR, SOCIEDADE, ANALISE, SITUAÇÃO, IMPUNIDADE, CRIMINOSO, CURTO PRAZO, ATENÇÃO, POPULAÇÃO, CRIME, DENUNCIA, OMISSÃO, PAIS, ABANDONO, INFANCIA, CORTE, POSSIBILIDADE, FUTURO, CONDENAÇÃO, EXCLUSÃO, NECESSIDADE, ORGÃO PUBLICO, RESPONSABILIDADE, PROTEÇÃO, MENOR.
  • PROPOSTA, REALIZAÇÃO, SENADO, SESSÃO ESPECIAL, DEBATE, SITUAÇÃO, CRIANÇA, PERDA, OPORTUNIDADE, DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL, DESENVOLVIMENTO, SAUDE, BUSCA, SOLUÇÃO, INCLUSÃO.
  • ANALISE, FALTA, QUALIDADE, ENSINO, EFEITO, PERDA, OPORTUNIDADE, EDUCAÇÃO, PROTESTO, DEMORA, TRAMITAÇÃO, PISO SALARIAL, PROFESSOR.
  • PROPOSTA, REALIZAÇÃO, SENADO, MUTIRÃO, LEVANTAMENTO, EXAME, PROPOSIÇÃO, TRAMITAÇÃO, BENEFICIO, CRIANÇA, ESPECIFICAÇÃO, AREA, ALIMENTAÇÃO, SAUDE, EDUCAÇÃO, AGILIZAÇÃO, APROVAÇÃO, CONCLAMAÇÃO, REPUDIO, OMISSÃO.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, se eu ler uma lista de nomes aqui, é provável que, de imediato, as pessoas que estão nos assistindo nem percebam o que há de comum com essas pessoas. Os nomes, por exemplo, de Maria Andressa, de Luana de Jesus, de Laila Luiza, de Izabela Tainara Faria, de João Hélio e de Isabela Nardoni. As pessoas vão saber o que une esses nomes que eu falei por causa dos dois últimos, provavelmente - João Hélio e Isabela Nardoni. Os outros, provavelmente, ninguém vai saber, porque já esquecemos. Já esquecemos que eu li a lista de crianças assassinadas há pouco tempo nos Brasil.

Eu não disse um nome. Se fosse um nome, poderíamos dizer que há maldade, há perversidade de bandidos bárbaros, assassinos e criminosos.

Mas eu li uma lista. Quando, em vez de um único nome, há uma lista, é porque não se trata apenas dos bandidos bárbaros que cometem esses crimes e merecem ser punidos. Quando a gente vê uma lista de crianças sendo assassinadas é porque há algo mais profundo do que uma mente doentia de um assassino. Há algo errado na sociedade brasileira que está provocando isso não como caso esporádico, isolado e raro, mas em seqüência.

E nós precisamos refletir por que este País se transformou num lugar onde bandidos assassinam crianças no plural e não uma só, a cada década, mas sistematicamente.

Segundo: devemos saber o que fazer, agir, para que a gente possa tomar alguma medida no sentido de que, se houver crime contra criança neste País, seja como uma exceção, como algo doentio de uma mente e não como algo doentio de uma sociedade, que é o que está acontecendo agora.

No que se refere à reflexão sobre o porquê, tenho impressão de que a gente já sabe. A primeira coisa é a tolerância. Nós sabemos que esses criminosos ou não serão presos ou ficarão pouco tempo na cadeia. Sabemos disso. Há uma tolerância do sistema jurídico nacional, para fazer com que alguns crimes - estou falando daqueles cujos responsáveis já foram descobertos - não provoquem a punição dos criminosos. Há uma tolerância.

O segundo é o esquecimento. Nós fazemos o imenso sentimento nacional de frustração de culpa cada vez que há um crime como esse, especialmente no caso do João Hélio com o que o Brasil ficou perplexo. Neste Senado, foram dias de debates e eu diria até de choros. Passado um ano, quantos aqui lembram o que passou com o João Hélio?

Nestes últimos dias, é o caso da menina Isabela Nardoni. O Brasil inteiro está revoltado, indignado, sofrido. Por quanto tempo mais? Posso dizer com toda a certeza que não será por muito mais tempo do que o tempo que ficarão na cadeia aqueles que cometeram esse fato. A tolerância e o esquecimento são duas causas fundamentais de termos provocado o Brasil se transformar no País onde crianças são violentadas, assassinadas.

O terceiro é que a barbaridade hoje, Senador, não se limita à mente de uma ou outra pessoa. Vivemos numa sociedade em que se transformou em fato natural o abandono das crianças. Não fazemos como o bandido que joga uma criança da janela do apartamento onde vive, mas fazemos, sim, com as crianças, ao jogá-las pela janela da história, por essa outra janela, a janela do futuro.

Nós jogamos para fora deste País centenas de milhares e milhões de crianças.

Não é o assassinato brutal que desperta a polícia, que faz com que ela identifique o responsável; e até que a Justiça, de vez em quando, condene; e até que fiquem presos por alguns meses ou anos. Não. Falo de uma janela pela qual jogamos as crianças brasileiras; e nem percebemos que estamos jogando essas crianças brasileiras para fora do trem do futuro, onde elas deveriam viver. Não assassinamos fisicamente, mas condenamos essas crianças a não terem futuro. Não ter futuro é sinônimo de morte, mesmo que não seja a morte biológica. É a morte de um desemprego permanente. É a morte de ter até um emprego, mas sem um salário decente. É a morte de não participar da sociedade do seu país. É aquela morte pior de todas: a de saber que seu filho também será jogado fora pela janela da história do País, saber que seu o filho repetirá o mesmo tipo de vida, de constrangimento, de necessidade, de insatisfação, de desespero que o pai e a mãe têm por falta de atendimento no momento certo.

Nós vivemos num País que joga as suas crianças pela janela, de vez em quando num crime bárbaro como a gente viu recentemente em São Paulo, em que se identifica o criminoso. Mas, todos os dias, todas as horas, todos os minutos, há crianças sendo jogadas pela janela neste País, diante dos olhos tranqüilos, diante da total conivência de todos nós. Aí, temos que fazer uma diferença entre a conivência daquele popular que não tem poder e a conivência nossa, de Parlamentares, que temos a obrigação de procurar evitar que isso aconteça.

Mas, no Brasil, a gente não sabe como recorrer para evitar que isso aconteça; no Brasil, a gente, depois de uma criança jogada pela janela, recorre à polícia para descobrir quem fez, a gente recorre à Justiça para punir, mas a gente não sabe como recorrer para que essas coisas não aconteçam. E alguns podem dizer: mas o futuro ninguém sabe. Como recorrer a alguém para evitar que algo aconteça no futuro?

Eu lembro que, faz poucos meses, os aviões deste País começaram a atrasar, e nós soubemos a quem recorrer. Há uma coisa chamada Anac. Recorreu-se à Anac, demitiu-se o dirigente da Anac, colocou-se outra pessoa. O próprio Ministro da Defesa, que é o superior maior da Anac, foi demitido para que se pudesse fazer com que os aeroportos do Brasil voltassem a funcionar.

Pois bem, não há no Brasil, Senador Mozarildo, Anac para a criança. Não há uma Anac de criança no Brasil. Quando algumas crianças indígenas morreram, nós soubemos onde recorrer, à Funai, porque eram indígenas, não porque eram crianças. Eram indígenas. Aí, havia uma agência para recorrer. A Funai foi responsabilizada porque algumas crianças morreram - indígenas. Mas, quando as crianças não são indígenas, a quem a gente recorre? Ao Ministério da Educação? Não. O Ministério da Educação cuida da educação. E das crianças? Ao Ministério da Assistência Social? Não. O Ministério da Assistência Social cuida da assistência social, com o nome de desenvolvimento social.

A quem recorrer? Não há uma agência para recorrermos, não há ninguém a quem culparmos, não pela morte de uma criança - porque desta sabemos: o criminoso - mas pela morte do conjunto das crianças. Não sabemos. Não há.

Pois bem. Hoje, de manhã, falei com o Senador Garibaldi que precisamos fazer alguma coisa no Senado Federal para tentarmos enfrentar essa tragédia, essa vergonha de sermos um País que joga suas crianças pela janela.

Volto a repetir: a janela do ponto de vista físico, real, de um apartamento no 6º andar de um prédio em São Paulo em que uma pessoa é responsável, ou duas, o que seja; e a janela do ponto de vista simbólico - a metáfora, como dizem os poetas -, a janela do tempo, a janela da história, a janela do trem para onde caminha este País. E aí a culpa não é de nenhum criminoso isolado: aí a culpa é de todos nós coniventes, especialmente, os dirigentes deste País.

Eu falei com o Senador Garibaldi que ia fazer uma proposta, que eu divido em duas partes. Uma, que eu reconheço, mais uma vez, que é daquelas propostas que não vão terminar sendo aceitas - embora ele, como Presidente, diga que sim -: é a de que, no Senado Federal, em que fazemos tantas sessões de homenagem, façamos uma sessão para refletirmos sobre a situação das crianças do Brasil, dediquemos um dia. Ainda ontem, houve uma sessão para a ABI; no dia anterior, houve uma sessão para os aposentados; segunda e terça-feira, haverá aqui diversas sessões de homenagem ao passado. Por que não fazemos uma sessão de homenagem ao futuro? Por que não nos reunimos aqui para descobrir por que estamos jogando nossas crianças pela janela, tanto do ponto de vista físico dos assassinatos brutais dos últimos meses quanto do ponto de vista simbólico de fazer com que as crianças não tenham oportunidade na vida, porque nascem, mas nem sobrevivem no número suficiente, se usássemos uma boa medicina? Sobrevivem, mas não se desenvolvem plenamente nos primeiros anos de vida. E, se não se desenvolvem plenamente nos primeiros anos de vida, não se recuperarão depois, salvo raríssimas exceções. Sobrevivem, têm até uma boa oportunidade nos primeiros anos, mas não conseguem entrar numa escola aos quatro anos. E quem não entra na escola aos quatro anos e espera entrar aos sete, terá menos chance de se alfabetizar corretamente na hora certa, terá menos chance de entender o mundo como deve. Ou entra até na escola aos quatro anos, mas não sai aos dezoito, sai antes, porque no Brasil não chega a seis anos a média de anos de escolaridade. Estamos jogando fora, estamos jogando pela janela, estamos assassinando no sentido da produtividade dessas crianças, do bem-estar dessas crianças, do potencial dessas crianças. Somos um País que joga suas crianças pela janela. E só nos chocamos quando é a janela física de um apartamento, não nos chocamos quando é a janela simbólica do trem da história do País.

A primeira proposta seria esta: fazermos aqui uma sessão para decidir como fechar as janelas para que este País possa ter suas crianças para dentro, garantindo que: nasceu, vai ter uma boa alimentação e vai ter saúde. Chegou aos quatro anos, vai entrar na escola. Nessa escola vai encontrar professores motivados. E, para isso, eles precisam ser bem preparados e bem remunerados.

Colocar as crianças hoje em certas escolas é jogar a criança pela janela. Não matamos: abandonamos. E para uma criança a diferença entre o assassinato e o abandono é que a vida biológica continua, como continua em muitos outros seres vivos - que tem, até, é bom lembrar, sociedades de proteção dos animais. Mas nós não temos uma agência de proteção da criança e do adolescente no Brasil. A idéia de reunir-se, este Senado inteiro, num dia em que os 81 Senadores estejam juntos para discutir a criança brasileira é a proposta que eu fiz ao Senador Garibaldi cuja viabilidade ele disse que vai estudar. Eu acho que é difícil. Tantas coisas que os Senadores têm para fazer. Ano de eleição municipal... Dificilmente a gente vai ter tempo para sentarmos, todos juntos aqui, e discutirmos como fechar as janelas do trem da história pelas quais nós estamos jogando as crianças.

A segunda, Senador Mozarildo, eu creio que pode ser mais fácil: é fazermos um mutirão para analisarmos tudo o que está hoje no Senado e com projetos de lei relacionados com crianças, e portanto, com saúde, e, portanto, com educação. Vamos fazer um mutirão. Vamos fazer um mutirão em homenagem a essas crianças cujos nomes eu li aqui: a Maria Andressa, a Luana de Jesus, a Laila Luíza, o João Hélio, a Isabela Tainara, a Isabella Nardoni. Vamos prestar uma homenagem a elas pensando nas outras que ainda estão vivas, pensando nas outras que ainda não nasceram. Vamos prestar uma homenagem a elas, senão nos reunindo aqui um dia inteiro os Senadores, para descobrirmos o que fazer com as crianças brasileiras, o que fazer para fechar as janelas pelas quais nós jogamos as crianças do Brasil, ou, pelo menos, fora do plenário, uma equipe até de técnicos - que muitas vezes têm mais tempo, pelo que se vê, que os Senadores; têm mais tempo para trabalhar, e trabalham duro - que pesquise, identifique, localize em que comissões estão os projetos relacionados com as crianças, os projetos relacionados com o futuro delas, com o presente das crianças.

E feito isso, vamos fazer um mutirão. Vamos fazer um mutirão neste Senado para que não esperemos, como estamos esperando há quatro anos, para aprovar o piso salarial do professor. Quatro anos! Há quatro anos, o Senado e a Câmara dos Deputados analisam um projeto para criar um piso salarial do professor de R$940,00. Se fosse como o de outras categorias, que começa com R$10 mil, está bom que levasse muito tempo para estudar e saber de onde vem o dinheiro; mas R$940,00 por mês como piso salarial do professor? Não tem razão para esperar quatro anos! Vamos fazer com que esses projetos que tenham a ver com as crianças a gente possa agilizar.

Eu falei isso hoje com o Senador Garibaldi. E eu deixo aqui registrado, neste discurso de uma sexta-feira, que não podemos continuar tolerando que bandidos perversos, malditos, violentem, assassinem, joguem nossas crianças pela janela. Não podemos continuar com essa tendência ao esquecimento que nos caracteriza; de nos indignarmos durante algumas semanas, graças à mídia, e depois jogarmos tudo isso para a Justiça, que, em geral, não tem condições de condenar, e às vezes, quando condena é por pouco tempo, e às vezes, esse pouco tempo, nem ele inteiro é cumprido na cadeia.

Paremos a tolerância! Paremos com o esquecimento! Mas, também, paremos com a irresponsabilidade, com a omissão de todos nós, que sabemos que não somos nenhum de nós capazes de assistir sem tristeza o assassinato de crianças, mas assistimos tranqüilos que outras crianças continuem sem comida, que outras continuem sem atendimento médico, que continuem sem escola... Ou seja, somos coniventes quando, neste País, as crianças são jogadas pela janela.

Concluo, lembrando duas propostas, pequenas, do tamanho das crianças deste País. Uma, de que façamos uma sessão aqui para discutir o futuro deste Brasil por meio do futuro das nossas crianças, mas sei que isso é difícil. Então, que fique o segundo: façamos um mutirão para agilizar da maneira mais rápida possível todos os projetos que mudariam a vida das crianças que hoje no Brasil estão, sem a gente lembrar, sendo jogadas pela janela.

Desejo lembrar que há aqui o número de crianças assassinadas, mas, durante o tempo de meu discurso, Senador, não sei quantos minutos exatamente, podemos dizer que pelo menos três mil crianças foram jogadas pela janela. Esse é o número de crianças que nesse período que falei abandonaram a escola. Abandonarem a escola na idade infantil é o mesmo que serem jogadas pela janela, e aí a culpa não é delas. Não foi voluntariamente que se jogaram da janela da história, do futuro, mas sim porque a escola não presta, porque elas têm que trabalhar, porque os pais não estudaram e, por isso, de repente, não são capazes de transmitir o valor da educação para os seus filhos.

A culpa, talvez não dessas que li, mas dessas outras que foram jogadas pela janela durante o tempo em que falei, a culpa é nossa. Se não fizermos nada disso que sugeri, pelo menos assumamos a culpa. Não joguemos a culpa em uma coisa abstrata que seria o Brasil, mas, sim, na coisa concreta que é o Brasil que nós temos a obrigação de administrar, de gerenciar e de mudar.

É possível mudar, mas é difícil quando a gente não dedica o tempo necessário ou quando a gente não vê o problema na sua real dimensão, quando a gente limita o problema daquelas crianças que são jogadas fisicamente pela janela do apartamento, e esquecemos aquelas crianças que, não fisicamente, mas, mentalmente, intelectualmente, produtivamente, são jogadas pela janela da história do nosso País.

Fica aqui, de público, a sugestão que fiz hoje ao Presidente Garibaldi, que me autorizou a fazê-la de público, nesta manhã, no Senado.

Agradeço, Senador Mozarildo. Alegro-me, por um lado, de que este País tenha ainda um Congresso onde a gente possa falar, mas me entristece, porque a sensação que tenho é de que estamos impotentes. O mais que a gente faz é falar com a tristeza de quem vê as crianças sendo jogadas pela janela.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 26/04/2008 - Página 10893