Discurso durante a 74ª Sessão Especial, no Senado Federal

Comemoração dos 120 Anos da promulgação da Lei Áurea no Brasil e da Abolição da Escravatura.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • Comemoração dos 120 Anos da promulgação da Lei Áurea no Brasil e da Abolição da Escravatura.
Publicação
Publicação no DSF de 14/05/2008 - Página 13803
Assunto
Outros > HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • SAUDAÇÃO, PRESENÇA, AUTORIDADE, CUMPRIMENTO, MAÇONARIA, CONTRIBUIÇÃO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, REGISTRO, DADOS, HISTORIA, BRASIL, ANALISE, LUTA, COMBATE, INJUSTIÇA, LIDERANÇA, JOAQUIM NABUCO (PE), CONGRESSISTA, IMPERIO, COMENTARIO, DISCURSO, PERIODO, NECESSIDADE, COMPLEMENTAÇÃO, LIBERDADE, ASSISTENCIA, REFORMA AGRARIA, EDUCAÇÃO.
  • REGISTRO, SUPERIORIDADE, NUMERO, PROPOSIÇÃO, TRAMITAÇÃO, CONGRESSO NACIONAL, POSSIBILIDADE, COMPLEMENTAÇÃO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, ATUALIDADE, MAIORIA, NEGRO, POPULAÇÃO CARENTE, PROTESTO, ATRASO, PROVIDENCIA, DIGNIDADE, POVO, ESPECIFICAÇÃO, IGUALDADE, QUALIDADE, EDUCAÇÃO, PROPOSTA, AUTORIA, ORADOR, PAULO PAIM, SENADOR, CRIAÇÃO, ANO, DEBATE, INCLUSÃO, RAÇA.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente da Mesa, Senador Paulo Paim, Sr. Presidente do Senado, Senador Garibaldi Alves Filho, Srs. Embaixadores, muito especialmente os Embaixadores de países africanos, os quais eu cumprimento, Srªs e Srs. Senadores, e quero fazer uma referência especial ao Senador Mozarildo Cavalcanti, pelo papel que a Maçonaria brasileira, entidade à qual ele pertence, teve na libertação dos escravos - um cumprimento especial a todos aqueles daquele tempo -, Srªs e Srs. Deputados, meu caro Reitor e amigo José Vicente e, muito especialmente, Carlos Moura, não apenas por ele próprio, por sua luta, mas pelos 20 anos, que hoje comemoramos, da Fundação Palmares, a escravidão durou, no Brasil, 150 mil dias aproximadamente. Durante 150 mil dias, ao longo desse período, dez milhões de africanos, alguns vindos da África, outros nascidos aqui, sofreram a mais brutal forma de tratamento possível, que foi a escravidão nos moldes como vivenciada na América, uma escravidão ainda pior do que a escravidão vivida em tempo anterior, no período medieval, a escravidão chamada doméstica.

Hoje faz 43.830 dias que nós fizemos a abolição da escravatura, do regime escravocrata. Portanto, para 150 mil dias de escravidão, nós temos 43 mil de liberdade. É ainda um tempo muito curto da história deste País. A história ainda é muito mais, quase quatro vezes mais, identificada com a escravidão do que com a abolição. E essa abolição foi um luta muito longa de escravos e de não-escravos para conseguir, um dia, que o que hoje parece óbvio fosse realizado, porque nada de óbvio havia nas classes dirigentes deste País em relação à abolição, tanto que a própria palavra só surge no vocabulário político, por uma pequena minoria, já nos anos 1850. Até aí era tudo camuflado, como ainda hoje camuflado é o racismo.

No dia 03 de maio, quando a Princesa Isabel fez a abertura dos trabalhos do Parlamento de 1888 - e pela primeira vez a Coroa fala explicitamente da necessidade de resolver o problema -, a palavra “abolição” não foi usada nem a palavra “escravidão”. Dizia-se “o sistema servil”; “o elemento servil”. Não se dizia escravidão; não se dizia abolição, tal como hoje se tenta esconder o racismo não falando esta palavra; tal como até hoje se tenta esconder o racismo não falando a palavra “negro”, com toda a beleza que esta representa.

De qualquer maneira, naquele 03 de maio, a Princesa Isabel abriu a porta para que o Parlamento - onde os Senadores eram vitalícios, nomeados; onde os Deputados eram eleitos por formas esdrúxulas - começasse a discutir seriamente a idéia do fim do sistema escravocrata.

Do dia 3 de maio ao dia 7 do mesmo mês, a lei foi elaborada pelo governo. Lembrem-se de que o governo de então era do Partido Conservador, o Partido que, ao longo da história, havia defendido a escravidão. E, no dia 7, a lei entrou no Parlamento pela Câmara dos Deputados.

E aí surge forte, vigorosa, a figura de Joaquim Nabuco, que já vinha lutando, desde a sua juventude, pela abolição, mas que aqui, no Parlamento, teve a competência, inclusive regimental, de evitar que se conseguisse postergar, protelar, adiar o projeto que vinha do governo. Queriam adiar por anos e anos, como hoje, aqui, nós temos, pelo menos, 110 projetos de lei, que visam a completar a abolição, que estão sendo adiados há anos. Através de truques, jogadas, manipulações regimentais, consegue-se jogar para adiante, adiante, adiante e adiante, a forma de tentar completar a abolição. Mesmo assim, Joaquim Nabuco e outros conseguiram, entre o dia 7 e o dia 12, fazer todo o processo, que hoje nós tomamos anos e anos. Em cinco dias, o projeto, daqui de dentro, chega à Princesa Isabel.

Tive o cuidado, desde o ano passado, quando fizemos aqui uma solenidade, de ir ver as Atas dos debates que aqui ocorreram naquele período. A partir daí, preparei um pequeno folheto, em que confronto os discursos de Joaquim Nabuco e de alguns escravocratas e os analiso. E, para minha surpresa, são muito parecidos com os de hoje. Muda o rococó da linguagem; muda a maneira como se fala. Mas, aqui, o que se via é que os que não eram a favor da abolição não tinham coragem de dizer isso. O que é que eles diziam? “Não é hora ainda de fazer a abolição”. “A lavoura não vai continuar funcionando se nós abolirmos a escravidão”. “Queremos abolir a escravidão [eles diziam], mas não ainda. Precisamos nos preparar com mais cuidado para isso”. Alguns chegavam a dizer que “ainda não era tempo de fazer abolição, porque os escravos não estavam preparados para a liberdade”. Há um discurso que diz: “É em nome do humanismo que eu defendo a escravidão, para que os escravos não passem fome nem fiquem ao relento”. E Joaquim Nabuco dizia: “Não temam, porque, livres, encontram o seu caminho. Mas se estão tão preocupados com isso, façamos, junto com a abolição, a reforma agrária e a reforma da instrução pública no Brasil, que nenhum ex-escravo vai precisar de apoio para sobreviver”.

Naquele momento, Joaquim Nabuco era um dos poucos que dizia, com firmeza, que a abolição não estaria completa só com a Lei Áurea. Que era preciso, sim, completá-la, colocando todas as crianças na escola e dando terra a todos os trabalhadores. É dele, sobretudo, a explicitação de que aquela causa não pertencia a um partido. Ler os discursos de Joaquim Nabuco, que estão aqui, é de dar orgulho ao ver um homem dizer: “Eu e o meu Partido passamos a história lutando pela abolição e perdemos a chance. Agora vai ser o Partido Conservador que vai levar isso para a realidade”.

Mais que isso: o chefe de governo, João Alfredo, era seu inimigo político em Pernambuco, havia manipulado a eleição de 1884 para que ele perdesse. E, mesmo assim, ele teve a firmeza de dizer: “Não importa quem vai assinar a lei, não importa o partido no poder. O que importa é acabar a vergonha da escravidão”. E ele dizia, com toda a clareza: “Meu Partido, os Liberais, perdeu a chance de fazer o que a história queria”.

Creio que isso lembra muitos de nós, hoje, quando não tomamos certas medidas que poderiam ajudar a, mais rapidamente, completar a abolição, de que são prova esses 110 projetos de lei que circulam no Congresso, de partidos diferentes, na Câmara e no Senado, e que a gente deixa que se adie por tanto tempo.

A abolição foi feita. E o Presidente Sarney tem razão ao dizer que talvez tenha sido o mais importante gesto ou, eu até diria, o único gesto realmente próximo de revolucionário na História do Brasil. De lá para cá, só acomodamentos.

Mesmo assim, foi uma abolição incompleta; absolutamente incompleta; totalmente insuficiente. E a prova é a situação hoje em que vivem os negros brasileiros. Alguns dizem: “Não é por serem negros, é por serem pobres”. Mas são negros e vivem na pobreza. E o fato de que a pobreza, no Brasil, tem a cor negra é uma das provas de que a abolição não foi completada. O que a gente pode dizer é que colocamos muitos brancos vivendo em situações iguais às que viviam os negros de antes da abolição. Mas não foi completada a abolição.

Precisamos fazer com que mude o discurso, que diz: “Hoje, queremos educar todas as crianças, mas ainda não há dinheiro. Queremos que os negros entrem nas universidades, mas não pelas cotas. Queremos, sim, que professor ganhe muito bem, mas ainda não é tempo”. Ou também aqueles que dizem: “Nos queremos que os professores ganhem bem, trabalhem bem”; e os professores dizem: “Mas trabalhar bem, não”.

Nós precisamos completar a abolição. Completar a abolição é fazer com que não haja mais filas nos hospitais deste País. Completar a abolição é fazer com que não haja desemprego, e, se houver algum, que a pessoa não passe fome por causa do desemprego. Completar a abolição é a gente conseguir que todos tenham direito a um endereço, a um lugar onde morar, a um pequeno pedaço da terra, dos 8,5 milhões de quilômetros quadrados que tem este País; e que, nesse lugar, a pessoa receba o apoio necessário para que esse endereço seja transformado em uma moradia: com água potável, esgoto e coleta de lixo. Completar a abolição hoje é a gente conseguir que a Amazônia seja permanentemente conservada e sirva às gerações futuras. Senão fizermos isso, não estaremos completando a abolição. Completar a abolição é oferecer cultura a todos, tanto para que se pratique como para que se usufrua dela. Completar a abolição é acabar com a violência, que cai, sobretudo, sobre os negros pobres das periferias das cidades, onde se pode dizer que, hoje, sofrem tiros no lugar das chicotadas dos pelourinhos de antigamente. Completar a abolição é garantir os direitos dos nossos índios, obviamente respeitando a nacionalidade brasileira. Porém, sem respeitar os direitos dos índios, vamos precisar de nova Princesa Isabel para fazer outra lei, a lei de proteção. Completar a abolição é garantir que qualquer criança brasileira, ao nascer, não importa a raça, a cidade onde nasce, a renda de seus pais, terá chance igual à de todos. Nenhuma criança ter menos chance que outra é completar a abolição. Completar a abolição também, no mundo de hoje, é não ficarmos alheios aos problemas do resto do mundo. No mundo global de hoje, completar a abolição é olhar para a África e saber em que podemos ajudar para que os povos africanos melhorem sua condição de vida. E, sobretudo, completar a abolição é fazer com que a escola dos filhos da senzala seja a mesma escola dos filhos da casa grande, traduzindo para hoje, que a escola do filho da senzala seja a mesma escola do filho do condomínio, que a escola do filho do trabalhador seja a mesma escola do filho do patrão.

Por incrível que pareça, nesses últimos tempos em que circulo o Brasil dizendo isso, estou absolutamente convencido de que encontro tanto descrédito como encontravam os que defendiam a abolição naquele tempo. As pessoas não achavam possível um Brasil sem escravidão. As pessoas, Deputado Pedro, não acreditam que é possível escola igual para pobre e para rico. Façamos uma pequena reflexão e veremos que muitos de nós não acreditamos nisso, e até imaginamos que é uma frase de efeito, uma demagogia. Claro que não é possível hoje, mas é possível e necessário começar já, e saber que leva 10, 15, 20 anos, como levou quase 12 anos para fazer Itaipu, como leva anos para construir uma fábrica, uma casa. A construção da escola igual para todos vai levar anos, mas não pode ser adiada nem um dia. (Palmas.)

O nome da abolição hoje é escola igual para todos. Naquele tempo, era preciso libertar os braços; agora, é preciso libertar os cérebros, mas os cérebros são libertados pela educação: a educação em casa, a educação na mídia, a educação na rua e, sobretudo, a educação na escola. Hoje, completar a abolição significa pagar bem, e muito bem, aos nossos professores e exigir bem, e muito bem, dedicação e formação dos professores. Isso é completar a abolição. Completar a abolição, hoje, é garantir que, enquanto a escola não é igual para todos, os negros terão cotas para entrar na universidade. Esse é o nome da abolição hoje. (Palmas.)

O Senador Paulo Paim e eu - creio que posso me adiantar porque foi algo que decidimos há algum tempo - queremos, hoje, coerentes com a idéia de que é preciso completar a abolição, propor ao Senado que, de hoje até o dia 13 de maio de 2009, tenhamos um ano inteiro para refletir sobre como completar a abolição. (Palmas.)

Um ano de reflexões, intelectuais, sim, para entender como se faz, mas, sobretudo, um ano de ações políticas para conseguir com que leis como as que estão aqui sejam aprovadas, com que leis outras que não entraram aqui sejam aprovadas, com que leis que ainda não foram preparadas sejam elaboradas.

Por isso, Senador Paulo Paim, concluo dizendo que hoje comemoramos 43.830 dias da abolição, mas hoje ainda é o ponto de partido para um Brasil sem escravidão de nenhuma forma, sem racismo de nenhuma forma. Hoje é o ponto de partida da nossa luta para completar aquilo que nossos antepassados, nesta Casa, não conseguiram.

Um abraço para cada um e para cada uma. Não peço que saiam daqui comemorando os 120 anos, mas que saiam daqui pensando como faremos para enfrentar o desafio de, daqui para frente, completarmos a abolição. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/05/2008 - Página 13803