Discurso durante a 74ª Sessão Especial, no Senado Federal

Comemoração dos 120 Anos da promulgação da Lei Áurea e da Abolição da Escravatura no Brasil.

Autor
Paulo Paim (PT - Partido dos Trabalhadores/RS)
Nome completo: Paulo Renato Paim
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • Comemoração dos 120 Anos da promulgação da Lei Áurea e da Abolição da Escravatura no Brasil.
Aparteantes
Arthur Virgílio, Renato Casagrande.
Publicação
Publicação no DSF de 14/05/2008 - Página 13813
Assunto
Outros > HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • CUMPRIMENTO, AUTORIDADE, PRESENÇA, SESSÃO ESPECIAL, ANIVERSARIO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, SAUDAÇÃO, ALUNO, FORMANDO, UNIVERSIDADE, VALORIZAÇÃO, NEGRO, AGRADECIMENTO, ARTISTA, CIDADÃO, ASSINATURA, MANIFESTO, DESTINATARIO, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), MANUTENÇÃO, POLITICA, COTA, ENSINO SUPERIOR, APOIO, ESTATUTO, IGUALDADE, RAÇA, LEITURA, TRECHO, SOLICITAÇÃO, TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO.
  • EXPECTATIVA, CAMARA DOS DEPUTADOS, APROVAÇÃO, PROJETO, ORIGEM, SENADO, ANISTIA, VULTO HISTORICO, ALMIRANTE, NEGRO, VOTAÇÃO, ESTATUTO, IGUALDADE, RAÇA, POSSIBILIDADE, SANÇÃO, DATA, ZUMBI, PERSONAGEM ILUSTRE.
  • APRESENTAÇÃO, DADOS, ESCRAVATURA, BRASIL, IMPORTANCIA, MEMORIA NACIONAL, CONHECIMENTO, TRAFICO, EXPLORAÇÃO, TORTURA, INDIGNIDADE, VITIMA, NEGRO, ANALISE, ATUALIDADE, SITUAÇÃO, MISERIA, VIOLENCIA, DESIGUALDADE SOCIAL, DISCRIMINAÇÃO, MERCADO DE TRABALHO, POLITICA, EDUCAÇÃO, COMPARAÇÃO, TOTAL, POPULAÇÃO.
  • ANALISE, HISTORIA, BRASIL, INJUSTIÇA, FALTA, ASSISTENCIA, POSTERIORIDADE, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, CONTINUAÇÃO, EXPLORAÇÃO, TRABALHO, JUSTIFICAÇÃO, NECESSIDADE, POLITICA, INCLUSÃO, COMPENSAÇÃO.
  • ELOGIO, RADIO, JORNAL, SENADO, ARTIGO DE IMPRENSA, HOMENAGEM, LUTA, LIBERDADE, NEGRO, DIVULGAÇÃO, HISTORIA, SOLICITAÇÃO, LANÇAMENTO, LIVRO, GRATUIDADE, DISTRIBUIÇÃO, ESTADOS, ESCOLA PUBLICA, DEFESA, CAMPANHA, CONSCIENTIZAÇÃO, COMBATE, DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
  • DEFESA, CRIAÇÃO, FERIADO NACIONAL, DATA, ZUMBI, VULTO HISTORICO, NEGRO, OBJETIVO, AMPLIAÇÃO, DEBATE, COMBATE, DISCRIMINAÇÃO.

O SR. PAULO PAIM (Bloco/PT - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Senador Cristovam Buarque, que preside a sessão e companheiro de tantas e tantas jornadas - e esta é uma delas, dos 120 anos da Abolição; Exmº Sr. Reitor José Vicente, da Universidade Zumbi dos Palmares, permitam-me dizer, rapidamente, que eu não estive lá mas assisti pela tevê, a uma data histórica: 126 negros sendo formados na Universidade Zumbi dos Palmares. Com certeza, o maior evento de toda América Latina, de alunos negros. O Senador Cristovam, muito mais feliz do que eu, eu diria, esteve lá e acompanhou ao lado do Presidente Lula aquele magnífico momento.

Eu tomaria a liberdade, Senador Cristovam, de pedir à Universidade Zumbi dos Palmares e ao seu Reitor uma grande salva de palmas nos 120 anos da Abolição da Escravatura (Palmas.), porque, efetivamente, foi um momento belíssimo!

Quero também, neste momento, dirigir-me ao Frei David. Frei David, V. Revmª é um ícone para todos nós. Eu diria que tenho dois ícones: Abdias e V. Revmª, pela militância, pela causa, pela luta. V. Revmª recentemente teve um problema seriíssimo - permita-me dizer - de coração. Ficou afastado um longo período devido a doença, mas voltou com a mesma garra de um guri, como a gente fala lá no Rio Grande. Voltou com a mesma garra de um moleque, voltou com a mesma garra de um Zumbi, de um filho de Dandara e Zumbi. Por isso, Frei David e vitória no Supremo, uma salva de palmas. (Palmas.) O manifesto que V. Revmª apresentou aqui ao Presidente sei que vai entregar hoje à tarde.

Carlos Moura, representa aqui a CNBB. Meu amigo Carlos Moura, eu lembro ainda a Assembléia Nacional Constituinte: eu, Deputado na época, Carlos Moura, Caó, Edmilson, Benedita da Silva, ajudamos a escrever aquele capítulo que diz que todo crime de racismo é inafiançável e não prescreve. Em seguida, aprovamos a Lei Caó, da qual tive a alegria de ser o Relator, mas, em seguida, criamos a Fundação Palmares, por obra principalmente de V. Sª. E, hoje, a Fundação Palmares é uma realidade.

Eu estou meio metido a pedir palmas. Eu não posso deixar de pedir palmas para o nosso grande Carlos Moura. E viva a Fundação Palmares! (Palmas.)

Quero, também, me dirigir à poetisa Elisa Lucinda - eu a chamo aqui de poetisa, mas, além de poetisa, você é atriz porque eu sempre a vejo na televisão com um brilhantismo enorme.

Faço uma homenagem, Frei David - uma homenagem de coração mesmo - a todos os artistas, a todos os atores que assinaram o Manifesto para que as cotas e o Estatuto da Igualdade Racial sejam uma realidade.

Eu considero um crime de lesa-pátria, de lesa-humanidade, assinar um Manifesto contra o ProUni! (Palmas.)

Todo o Brasil está nos vendo neste momento. Como é que alguém... Desculpe-me, meu amigo. Eu ouvia tantos discos teus e confesso que não ouço mais. Não adianta. Eu acabo dizendo aquilo que não queria dizer. Desculpe-me, Caetano Veloso. Eu gostava tanto de ouvir as tuas músicas, mas não ouço mais. (Palmas.) Desculpe-me. Desculpe-me, porque assinar um Manifesto contra o ProUni? Só eu sei - na vila, no bairro, lá onde está o nosso povo, a nossa gente, onde está o povo negro - a importância de um ProUni, a possibilidade de os pobres chegarem à universidade.

Estou aqui me cuidando para não falar muito, por isso vou voltar ao meu texto.

Embora doa em muitos, tenho algo a dizer, minha querida Pietá, meu querido Pedro Wilson, eu havia tomado nota disso - estavam aqui conosco também o Relator Antônio Roberto e o Presidente da Comissão, que é o Santana. Está na Câmara dos Deputados o Estatuto da Igualdade Racial. É um estatuto singelo, que não contempla tudo o que gostaríamos, inclusive, muitas das redações ali colocadas vão na linha autorizativa. Trata-se apenas de um passo a mais para que este País tenha, em sua legislação, o que chamamos de políticas afirmativas.

Hoje alguém me perguntava o que eu achava que a Câmara poderia fazer nos 120 anos da abolição. Sugeriria dois gestos. O primeiro deles: está pronto para ser votado um projeto, está na mesa do Presidente - já falei com o Presidente Arlindo Chinaglia, e ele já o colocou em pauta -, já temos tudo pronto para assegurar a anistia definitiva ao grande Almirante negro João Cândido. Como seria bom se a Câmara votasse amanhã ou quarta-feira esse projeto! Nós já votamos aqui há muito tempo o projeto da ex-Senadora e Ministra Marina Silva. Seria muito bom que a Câmara também o aprovasse - sei que o Presidente Arlindo tem essa disposição, já pautou a matéria. Aprová-lo será um gesto belíssimo.

Tenho dito o seguinte aos Deputados - e o faço porque conheço bem o Senado da República -: com alterações ou não, votem o Estatuto antes de novembro. Remetam-no de volta para o Senado da República, que nós votaremos o Estatuto antes de novembro para sancioná-lo com o Presidente no dia 20 de novembro, a data do grande Zumbi dos Palmares.

Só quero que a Câmara vote esse projeto. Com alteração ou sem alteração, o Senado o apreciará em seguida - e estou falando aqui em nome do Senado da República. Se acharem necessário alterá-lo, que o façam - sei que, para alterá-lo, há inúmeras dificuldades na Câmara. Claro que gostaríamos que o texto aqui aprovado fosse o ideal, mas se, como está, eles já não querem votar, calculem se a gente tivesse feito o texto ideal! Isso fica para a reflexão de todos.

O Senador Cristovam sugeriu - ele vai pedir e vou assinar com ele - que todos os pronunciamentos desta sessão sejam publicados em separata. Então, vou deixar aqui a mensagem da CNBB de apoio ao Estatuto, de apoio à política de cotas, mostrando como é importante debatermos os 120 anos da abolição não-conclusa - o manifesto, eu já apresentei.

Queria, rapidamente, dizer para vocês algo sobre esses dados que às vezes eu coloco - alguns me dizem, inclusive em universidades: “Paim, dói tanto isso! Por que tu falas?”. Falo porque tenho de falar. Acho que ninguém tem o direito de negar a nossa história e o que o nosso povo sofreu. E vou dizer de novo: o Brasil, infelizmente, foi a última nação do mundo a abolir a escravidão dos brancos sobre as mulheres e homens negros.

A partir de 1530, o País absorveu cerca de 40% do total de africanos trazidos como escravos para a América. Por isso é que somos a nação mais negra fora da África.

Como sabemos, os filhos do continente africano foram vítimas de séculos e séculos de tráfico negreiro, de escravidão e de maus tratos. Milhões de pessoas foram transportadas como carga nos chamados navios negreiros. Empilhadas, sem conseguir se mover, sem conseguir se alimentar, muitas se jogavam ao mar, sonhavam em voltar nadando à pátria-mãe, em nome da liberdade.

Milhões de pessoas foram retiradas de seus lares, separadas de suas famílias, obrigadas a deixar para trás suas origens, seus costumes, suas crenças. Essas pessoas foram violentadas, torturadas e assassinadas, eram tratadas nos navios como animais.

Quantos negros não foram vítimas do banzo? Alguém me perguntou o que é banzo. É depressão, peleia com greve de fome, suicídio por saudade de sua terra.

Cento e vinte anos depois da abolição, o que vemos hoje? Nossa gente continua a ser morta, nossa gente continua a ser massacrada.

Hoje, a cada dez jovens que são assassinados, oito são negros. Atualmente, o risco de um homem negro morrer por causas externas é 70% maior do que o mesmo risco associado a um homem branco. De um modo em geral, o risco de morte por homicídio é maior na população negra, independentemente do gênero. Cento e vinte anos depois da abolição, a nossa gente continua sofrendo!

O atlas brasileiro não mostra que, apesar do aumento da expectativa de vida dos brasileiros, ainda existe uma grande desigualdade se compararmos essa expectativa entre os negros com aquela que se verifica entre os que não são negros.

De acordo com o último levantamento, uma pessoa negra nascida em 2000 viverá em média 5,3 anos menos que uma pessoa branca. Cento e vinte anos atrás, muitas eram as crianças negras que nasciam mortas ou que não sobreviviam em razão dos maus tratos aplicados à criança e à mãe. Hoje, apesar de a mortalidade infantil ter diminuído de forma considerável, as crianças negras de até um ano de idade apresentam possibilidade 66% maior que as brancas de morrerem antes de um ano de vida, 66%!.

No mundo do trabalho não é diferente. Cento e vinte anos depois da assinatura da Lei Áurea, a grande maioria da nossa gente continua da mesma maneira, ocupando os mesmos postos de trabalho do passado.

Quase não vemos afro-brasileiros em postos considerados de primeiro escalão. Podemos verificar isso no Executivo, no Legislativo, no Judiciário e mesmo na área privada. Pesquisa do Ibope divulgada este fim de semana mostra que apenas 3,5% dos cargos executivos são ocupados por negros; os brancos ocupam 94% - estou me referindo, inclusive, à área privada. Cargos de gerência ocupados por negros são apenas 17%, contra 81% dos cargos ocupados por brancos; cargos de supervisão: 17%, contra 80%.

Com a abolição, os negros precisavam ingressar no mercado de trabalho, mas, sem qualificação, como aqui já foi dito, estavam entre os desempregados ou entre aqueles que emprestavam sua força de trabalho para serviços pesados.

Cento e vinte anos depois, o que mudou?

Os negros são assalariados, mas não têm direito aos mesmos postos e aos mesmos salários daqueles que não são negros. Nem vou dar os dados, mas estudo feito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro demonstra que, em média, os negros e negras ganham, como salário, praticamente a metade do que é pago para um homem não-negro. A taxa entre os pobres e negros é 48,99%.

No ano passado, a Fundação Seade divulgou estudo feito em São Paulo que diz o seguinte: um negro tem quatro vezes mais dificuldade que um branco para conseguir um posto de trabalho. Ainda segundo a fundação, o desemprego também é maior entre os negros: 18,1% entre os desempregados, comparados com 13,2%.

Senhores, se olharmos para trás, veremos que a nossa gente, depois de 13 de maio de 1888, alcançou a liberdade, mas não alcançou direitos. Cento e vinte anos após essa data, nossa gente continua, em grande parte, fora dos bancos escolares, fora das universidades.

Em 2001, a taxa de analfabetismo no Brasil era de 12,4%. Desse total, 18,2% foram registrados entre a população negra, 7% entre os não-negros. Em média, os brancos apresentam em torno de sete anos de estudo; os negros, em torno de 4,7 anos.

No acesso ao ensino superior, a situação da população negra ainda é pior. Dados do IPEA indicam que, do total de universitários brasileiros, 97% ainda são brancos, 2% são negros e 1% descendente de orientais - isso ocorre 120 anos depois da abolição.

Há 120 anos, os negros libertos não tiveram direito à terra, ao contrário das políticas adotadas para os imigrantes europeus, que receberam terras e ferramentas. Aos negros era proibido, inclusive, comprar terra, mesmo que tivessem dinheiro. E esta é a pergunta que faço hoje: os senhores que estão assistindo à TV Senado conhecem algum negro fazendeiro? Alguém me disse que a estatística seria, talvez, de menos de 1% - eu chegaria a dizer: quem sabe é meia dúzia de pessoas?!

Isso tem explicação. Quando eu era estudante, lá no interior do meu Rio Grande do Sul, eu notava que nenhum negro tinha grandes terras. Só depois fui perceber por quê: as terras foram passadas de pai para filho, e aos negros não foi dada a oportunidade de terem acesso a ela, nem de comprá-la.

Passaram-se 120 anos. Podemos lembrar aqui dos negros quilombolas. Atualmente, existe no Brasil em torno de 5 mil comunidades quilombolas; dessas, 1.218 estão certificadas, mas sabem quantas têm titularidade definitiva de sua terra? Somente 92. De 5 mil comunidades quilombolas, somente 92 têm título definitivo da terra.

Há 120 anos, os negros foram libertos, mas não tiveram direito à nada, nem sequer à moradia. Cento e vinte anos após, o que vemos? A maioria da nossa gente, na verdade, mora em comunidades carentes e nas favelas. Dados do Ipea indicam que os negros são maioria entre os pobres, e os indigentes chegam a ser 70%. A proporção de negros abaixo da linha da indigência, do total da população do País, é, sem sombra de dúvida, mais do que o dobro daqueles que não são negros.

Há 120 anos, nossas crianças, adultos e idosos eram usados no trabalho pesado. Desde a assinatura da Lei Áurea, nossa gente sempre teve os mais baixos salários. Cento e vinte anos depois, o que mudou? Em 2005, o Dieese mostrou que, em todas as regiões do País, o salário pago aos afro-brasileiros em relação àqueles que não são negros, como eu dizia antes, é em torno de 50%. E onde está comprovado que existe hoje trabalho escravo, pode-se ver que grande parte das crianças são negras.

Meus amigos e minhas amigas, sei - e os senhores vão concordar comigo - que não adianta somente levantar esses dados, ma é importante falarmos do mundo real do povo brasileiro. Há 120 anos, poucos eram os negros reconhecidos pelo seu papel na história do País. Cento e vinte anos depois, isso não mudou. Se questionarmos sobre os heróis negros, vamos citar aqui, talvez, Zumbi dos Palmares, Chica da Silva, mas pouca gente conhece a belíssima história de Chica da Silva e de Zumbi dos Palmares. Se citarmos Aleijadinho, Machado de Assis, Lima Barreto, Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha e tantos outros, muitos até dirão: “Eu até os conheço, mas quem sabe se eles são negros?” A história não se refere a isso. As referências para a criança negra praticamente desapareceram.

Eu sempre digo, Senador Cristovam: eu estava de novo lá, voltando no tempo por meio de imagens da memória, como se fosse um filme, no interior da cidade em que nasci, Caxias do Sul. Eu procurava referências para minha caminhada nos livros; procurava referências, minha querida atriz, no cinema, na televisão, e não encontrava.

Há 120 anos, a voz dos nossos ancestrais sempre ressoou como se fosse batida de tambor. Sabemos que a liberdade dos negros teve, na época, um grande cunho econômico. Por isso, os abolicionistas venceram os escravocratas. Porém, 120 anos após a abolição, ainda existem os que pensam como os escravocratas de antigamente. Frei David, hoje, hoje, hoje - e está aqui por escrito - hoje, após 120 anos da abolição, V. Exª vai ter de ir ao Supremo Tribunal, vai ter de ir à Suprema Corte pedir para que o Supremo não se manifeste contra o ProUni e contra as cotas.

Tudo isso que li é para mostrar em que País estamos vivendo. Cento e vinte anos depois, um projeto bonito como o ProUni, um projeto de cotas, muitas universidades, sem lei, adotam espontaneamente e democraticamente as medidas, mas 79 universidades poderão ser proibidas de dar acesso aos negros. Então, que liberdade é essa? Que País é este? Por isso, Frei David, eu tinha de falar de tudo isso, voltando 120 anos e relembrando o momento atual.

Quero, aqui, dar um abraço carinhoso - e, se pudesse, eu daria um beijo - em cada um destes: em todos os intelectuais, artistas e militantes que assinaram este Manifesto Pró-Cotas, referente ao ProUni. Vou pedir que o Manifesto, que já entregamos ao Presidente Garibaldi, fique nos Anais da Casa, para que, um dia - quem sabe daqui a 100 anos, quando cada um de nós já estiver nas pradarias do Universo -, as pessoas fiquem sabendo quem era a favor e quem era contra o ProUni, a política de cotas, a inclusão do negro no mercado de trabalho e, também, a educação.

Termino, dizendo: é triste, mas, ainda hoje, 120 anos depois, existem aqueles que se mostram contra as políticas afirmativas; pessoas que não têm vergonha - desculpem-me a expressão - de usar seu nome, para pregar, de forma velada e mentirosa, o racismo e o preconceito. Uns agem como os antigos feitores, que eram pagos pelos seus senhores para impedir que os negros tivessem direitos a bens e serviços, como a educação, tão fundamental.

Infelizmente, isso é fruto da história do nosso País. O que vemos? Nós todos ficamos aqui a debater e somos obrigados a admitir o poder da elite conservadora deste País. Eles conseguem manter seu poder, sua vontade há séculos, mas isso, podem crer, não tira nossa força. Ao contrário, faz-nos pensar, cada vez mais, em como fazer o bom debate e enfrentar aqueles conservadores que são iguais aos escravocratas do passado.

Nesse contexto, quero aqui destacar a belíssima cobertura feita pelo Senado da República - eu conversava agora com nosso reitor, que me pedia, inclusive, cópias do jornal. O Senado da República fez um documentário belíssimo, assim como a rádio, chamado: A chama da liberdade. A Chama da Liberdade, realizada pelo Senado da República e por toda sua equipe, merece aqui os meus parabéns.

Eu gostaria muito de pedir ao Presidente da Casa, Senador Garibaldi, que remetesse esse documentário, feito pela equipe do Senado e pelo Jornal do Senado, para todos os Estados, para todas as escolas, para todos os meios de comunicação. Faço um apelo: Publiquem-no! De graça. O Senado não vai cobrar, porque esse documentário, realizado pela TV Senado, conta a verdadeira história do povo negro.

O povo negro não era servil, o povo negro nunca foi covarde, o povo negro sempre foi guerreiro, lutou e morreu pela liberdade. (Palmas.)

Não digam mais, na sala de aula, que o negro foi covarde e que, por isso, ficou sob os grilhões da escravidão. Morreram aos milhares, aos milhões na busca da liberdade tão sonhada.

Sr. Presidente, sabemos que é preciso mudar muita coisa neste País; sabemos que é preciso ser alterada, em primeiro lugar, a forma de pensar e de ver as coisas. Por isso, aproveitamos este momento para provocar, mais uma vez, nosso Senado da República. Seria muito bom se lançássemos uma campanha chamada: “Preconceito e discriminação zero.” Acreditamos que será uma nova forma de lutarmos por todos aqueles que hoje estão à margem da sociedade.

Neste ano em que completamos 120 anos da abolição inconclusa, queremos que a campanha “Preconceito, Discriminação Zero” seja liderada pelo Senado e, claro, acompanhada pelo Executivo e pelo Judiciário.

Permitam-me dar destaque, mais uma vez, para o Senado, pois esta Casa tem aprovado todas as pautas do povo negro, por unanimidade e sem grande dificuldade. Todas as pautas que o povo negro pediu o Senado aprovou. A Câmara, infelizmente, não correspondeu, ainda, à expectativa de todos nós.

Ninguém diga que essa é uma questão somente de alguns Senadores negros. Aqui, não. Aqui, essa é uma causa de brancos e negros, todos comprometidos com a igualdade e com a liberdade.

Lembro - eu nem estava no Senado - que a primeira política de cotas que o Senado aprovou foi obra do ex-Presidente Sarney. Ela foi remetida para a Câmara e eu, ingenuamente, entendi que aquela Casa queria aprová-la e a introduzi no Estatuto da Igualdade Racial. Até hoje ela está lá. Por isso, muito cuidado devemos ter para que a Câmara acompanhe esse pique do Senado, que não é de hoje.

Meu texto é longo e não vou fazer toda a sua leitura, porque outros querem falar.

Senador Cristovam, tenho acompanhado com muito carinho, confesso que com muito carinho, a caminhada, nos Estados Unidos, do candidato dos democratas, Barack Obama.

Li seu livro, chamado A audácia da Esperança, em que ele diz: “Não existe uma América branca e uma América negra, uma América latina e uma América asiática: existem os Estados Unidos da América.”.

            Como seria bom se, um dia, cada um de nós pudesse vir à tribuna e dizer: “Não existe o Brasil dos brancos, dos negros ou dos índios. Existem os brasileiros.”

Na minha cidade, Caxias do Sul, há um slogan recente que acho lindo, que diz: “Uma vez imigrante, para sempre brasileiro!”.

Como seria bom, Senador Cristovam, não termos de vir à tribuna do Senado, da Câmara ou de qualquer local, com esses dados, com esses números. Não pensem vocês que não fico triste, pelo carinho que tenho por todos os homens de bem, brancos e negros.

No meu Estado, somente 10% são negros e 90% são brancos, mas fui eleito Deputado Federal por cinco vezes e Senador da República com 2,2 milhões de votos. Eles sabiam, quando lá me apresentei, que eu viria para cá, como disse o Senador Mesquita, não para defender coisas, mas para defender causas. A causa do povo negro está no sangue de todos nós, brancos e negros que sonhamos com uma Pátria justa e libertária.

Eu não poderia vir aqui para falar diferentemente, por isso faço um apelo neste encerramento. Eu poderia falar o que está aqui escrito, mas faço um apelo aos meus colegas da Câmara dos Deputados.

Pietá e Pedro Wilson, aqui presentes, como seria bom se aprovássemos o PL nº 73, da Deputada Eunice Lobão. O projeto não é de nossa origem e trata da política de cotas.

Como seria bom, meu nobre e querido Relator Antônio Roberto, que está aqui presente. Relator Antônio Roberto, quero falar com liberdade: V. Exª é negro? Não é negro, mas faz a defesa do Estatuto da Igualdade Racial de uma forma linda, singela, grandiosa e solidária. Meu nobre Relator do Estatuto, Antônio Roberto, se dependesse de V. Exª, tenho certeza de que o Estatuto seria aprovado nesta semana. Por isso, uma salva de palmas para o nosso Relator do Estatuto da Igualdade Racial. (Palmas.)

V. Exª merece esta singela homenagem deste Senador negro.

Quando falo em combate a todo tipo de discriminação, isso significa lutar não somente pela história das nossas raízes, do nosso povo, do povo negro, mas lutar por todos, lutar para que ninguém seja discriminado pela cor da pele, seja branco, negro ou índio, lutar para que ninguém seja discriminado por ser deficiente ou não, lutar para que, um dia, o nosso povo tenha acesso do jardim de infância à universidade. Lutar pela igualdade e pela liberdade é querer que não haja nenhuma discriminação, como a religiosa. Por que discriminar os evangélicos? Por que discriminar as religiões de matriz africana? Por que discriminar a livre orientação sexual? Por que discriminar alguém por idade? Por que discriminar alguém por gênero?

Tenho um outro projeto, que a Senadora e ex-Governadora do Rio, Benedita, também apresentou, propondo que 20 de Novembro seja feriado nacional.

Sabem como vejo o 20 de Novembro? Vejo o 20 de Novembro como um dia de reflexão contra todo tipo de preconceito. Que seja um dia para discutirmos o preconceito contra os negros, contra os índios, contra os brancos, contra os pobres, contra as mulheres, contra as crianças, contra os idosos, para refletirmos a respeito da livre orientação sexual, das religiões, das pessoas com deficiência, de todo tipo de preconceito. O 20 de Novembro já é feriado em 267 cidades, que o têm como um dia de reflexão a respeito de todo tipo de preconceito, não só contra o negro.

Quero que o 20 de Novembro, na simbologia maior do grande Zumbi dos Palmares, seja um dia para refletirmos sobre políticas públicas e, naturalmente, o combate a todo tipo de preconceito.

Prometi ao Frei David, Senador Renato Casagrande, que leria somente a conclusão, em letras garrafais, de um manifesto entregue hoje ao Supremo, assinado por 400 intelectuais, entre eles artistas. O manifesto tem 30 páginas e sua conclusão diz:

Esse é o quadro, Srs. Ministros, que temos diante de nós. Está na mão de V. Exªs não apenas o destino das centenas de milhares de estudantes que, graças às políticas de inclusão, conseguiram o sonho do ingresso na universidade. Está na mão de V. Exªs, Ministros (e sei que muitos estão assistindo a este pronunciamento), a decisão da possibilidade ou não de darmos continuidade às medidas que fizeram este País começar a ajustar suas contas com o seu passado escravista e o seu presente discriminatório, rumo a um futuro sem injustiças e concretamente democrático.

Para as suas mãos se voltam os olhos de milhões de brasileiros cheios de esperança num País mais justo, mais solidário que, com base nos princípios constitucionais, se afirme materialmente contra desigualdades incompatíveis com o Estado democrático de direito.

O Sr. Arthur Virgílio (PSDB - AM) - Senador Paim, permite-me um aparte?

O SR. PAULO PAIM (Bloco/PT - RS) - Eu concedo o aparte ao Senador Arthur Virgílio. O Senador Casagrande também já tinha pedido.

Esse é um apelo feito ao Supremo Tribunal Federal que eu não tinha como não ler, Frei David, no encerramento da minha fala.

O Sr. Arthur Virgílio (PSDB - AM) - Senador Paim, eu gostaria muito de me pronunciar nesta sessão, mas vejo que temos muitos oradores, ainda, e eu deverei presidir uma reunião da minha Bancada dentro de minutos. Eu gostaria apenas de dizer que compreendo a sua emoção. V. Exª se move pela emoção sem perder a razão, e essa é uma das qualidades que o fazem admirado e respeitado por aliados e adversários seus nesta Casa. Quero registrar que quando eu examino a Lei Áurea, é óbvio que olho o seu alcance social enorme e suponho a luta que se travou, àquela altura, em torno dela, sem desconhecer os interesses econômicos que eram um esboçar do sistema capitalista de produção, a precisar de assalariados e, ao mesmo tempo, portanto, sendo essas forças levadas a entender que era preciso se liberar aquela mão-de-obra para outros momentos. Obviamente, se formos fazer a crônica daquela época, vamos ver o contingente de desempregados, o contingente de deserdados, enfim, muitos trocaram um brutal horror por outro horror. A injustiça era muito patente. Eu dizia ainda agora a um dos nossos companheiros da Mesa que sou exatamente fruto dessa miscigenação: tenho um avô negro, meu avô era negro. Tenho dois irmãos - minha irmã é loira - que são bem caboclos mesmo do meu Estado. O meu avô saiu do interior de Pernambuco e foi para o Amazonas; passou 19 anos como Juiz e chegou à desembargadoria. Certa vez, o meu avô estava no jardim da casa dele regando as plantas, e chega um advogado do Rio de Janeiro, que lhe disse: “Ô neguinho, eu vim do Rio de Janeiro” - à época era muito chegar em Manaus vindo do Rio de Janeiro - “e gostaria de ser recebido pelo Desembargador.” Respondeu-lhe o meu avô: “Está falando com ele”. O advogado disse-lhe: “Deixa de brincadeira, negão. Vai lá e chama o teu patrão”. O meu avô foi. Subiu, colocou paletó e gravata, e mandou que ele entrasse. Quando ele se viu diante do meu avô, tomou um susto danado, e se desculpou. Meu avô lhe disse: Não tem de se desculpar. Eu sou negro mesmo.” Enfim, para o meu avô, àquela altura, isso representou uma vitória. Ele era o único negro, e assumidamente negro, Desembargador no Estado, num Colegiado que dava orgulho, pela decência de todos os seus membros. Portanto, é uma luta que merece toda a minha solidariedade, seja por essas lembranças, que são imemoriais, seja pelo fato de vermos que não é coincidência o fato de, no Brasil, termos negros densamente colocados em favelas, termos menos diplomas universitários nas mãos de negros, termos menos negros dirigindo empresas de grande porte neste País. Diria que temos, aqui, uma situação de discriminação racial que, se é menos aguda que nos Estados Unidos, ela é mais sibilina, ela é menos sincera até, o que dificulta um acordo. Não estou aqui a pregar separações, mas, sim, a não fugir das verdades que me assaltam a cabeça. Portanto, como aqui discutimos a Lei Áurea, quero não desconhecer o fato econômico, mas gostaria de dizer que foi uma grande conquista. Eu brincava há pouco com o Senador Mercadante na Comissão de Assuntos Econômicos dizendo que, se eu fosse negro e fosse do Parlamento, estaria, àquela altura, na posição de liderado do José do Patrocínio; se eu fosse considerado branco num País onde não se sabe quem é branco - enfim, deveríamos todos ter orgulho da nossa vinculação com os índios e com os negros -, eu seria o Parlamentar liderado por Joaquim Nabuco. O fato é que, àquela altura, o Brasil se dividiu em dois: os que tinham lucidez de olhar o futuro: os abolicionistas; e os que se aferravam a uma odiosa ferramenta do passado. Parabéns a V. Exª. É uma honra muito grande ter participado desta sessão num aparte precisamente ao seu discurso. Muito obrigado.

O SR. PAULO PAIM (Bloco/PT - RS) - Muito obrigado, Senador Arthur Virgilio.

Concedo o aparte ao Senador Casagrande.

O Sr. Renato Casagrande (Bloco/PSB - ES) - Muito obrigado, Senador Paulo Paim. Primeiro, quero parabenizá-lo pelo pronunciamento, pelo profundo conhecimento e pela grande emoção, demonstrando, claramente, o vigor e a veracidade de sua luta aqui nesta Casa. Mas gostaria também de deixar a posição do Partido Socialista Brasileiro nesta data em que comemoramos os 120 anos da promulgação da Lei Áurea, e também reconhecer a importância daquele ato - um ato conquistado, não um ato concedido, mas um ato conquistado -, com a proibição do tráfico, com a Lei do Ventre Livre, até chegarmos até à abolição da escravatura, por diversos interesses, mas o que importa é que foi uma conquista dos democratas, dos libertários, dos negros, que lutavam e morriam naquela época. Cento e vinte anos depois temos o que comemorar, mas ainda verificamos no dia-a-dia, nos estudos, nos levantamentos feitos as desigualdades presentes em nosso País, nas oportunidades que faltam a todos, especialmente aos afros-descendentes, aos negros. Comemoramos, lembramos, mas também reconhecemos que temos ainda políticas específicas a serem adotadas para a população negra neste País, que precisa ter a consideração do Congresso Nacional, já relatadas em diversos projetos por V. Exª desta tribuna. Parabéns, e obrigado pela oportunidade.

O SR. PAULO PAIM (Bloco/PT - RS) - Senador Casagrande, agradeço a V. Exª.

Resta a mim, agora, encerrar, deixando muito claro à comunidade negra deste País que por isso estamos aqui, neste 13 de maio, há cento e vinte anos da Abolição. Temos clareza, como disse o grande Abdias, no documento que aqui li: “A liberdade do povo negro é fruto de uma luta centenária”, e conquistamos a liberdade.

O que estamos também a refletir aqui neste momento é o day after, como muitos dizem, ou seja, o dia depois. Entendemos que a situação, Senador Cristovam, como V. Exª descreveu muito bem, da comunidade negra ainda - e todos os dados estão aí - demonstram que, infelizmente, a discriminação é muito forte, é muito grande. Por isso, lutamos pelas políticas afirmativas, pelas políticas de cotas e pelo Estatuto da Igualdade Racial.

Terminaria dizendo: vida longa aos abolicionistas de ontem e de hoje!

Viva a liberdade e a igualdade de oportunidades!

Preconceito e discriminação zero!

Muito obrigado a todos. (Palmas.)

 

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DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR PAULO PAIM EM SEU PRONUNCIAMENTO.

(Inserido nos termos do art. 210, inciso I e § 2º, do Regimento Interno.)

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Matéria referida:

Manifesto em Defesa da Justiça e Constitucionalidade das Políticas de Inclusão. (Texto para Adesões)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/05/2008 - Página 13813