Discurso durante a 139ª Sessão Especial, no Senado Federal

Homenagem a memória do médico e geógrafo Josué de Castro pelo transcurso do centenário de seu nascimento.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem a memória do médico e geógrafo Josué de Castro pelo transcurso do centenário de seu nascimento.
Publicação
Publicação no DSF de 08/08/2008 - Página 29536
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • AGRADECIMENTO, PARTICIPAÇÃO, AUTORIDADE, PARENTE, SESSÃO ESPECIAL, HOMENAGEM, CENTENARIO, ANIVERSARIO, JOSUE DE CASTRO, ESCRITOR, MEDICO, GEOGRAFO, SOCIOLOGO, CIENTISTA, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE), ELOGIO, CARATER PESSOAL, EMPENHO, COMBATE, DESIGUALDADE SOCIAL, IMPORTANCIA, OBRA INTELECTUAL, ESPECIFICAÇÃO, GEOGRAFIA, FOME, RECONHECIMENTO, AMBITO INTERNACIONAL.
  • HOMENAGEM, EX PRESIDENTE, PAIS ESTRANGEIRO, CHILE, IMPORTANCIA, TENTATIVA, REDUÇÃO, DESIGUALDADE SOCIAL.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Um bom dia a cada uma e a cada um de vocês!

Eu quero agradecer, como fez o Senador Jarbas, a presença de cada um que aqui está. Agradecer também a presença do Prefeito da minha cidade, meu amigo João Paulo. Não tenho a menor dúvida de que, se Josué não tivesse nascido naquela cidade, dificilmente ele teria tido a oportunidade da convivência com a realidade que fez a sua cabeça, obviamente, cabeça privilegiada.

Meus cumprimentos à Anna Maria. Gostaria de vê-la mais vezes por aqui e não passar tanto tempo sem vê-la.

Ao Presidente da Mesa, Jarbas, quero agradecer a amizade antiga e o fato de estarmos juntos nesta homenagem ao Josué de Castro.

Ao Ministro Patrus, quero cumprimentá-lo como aquele que dirige, obviamente sob a administração do Presidente Lula, o maior programa de luta contra a fome que há hoje no Planeta inteiro. Não há nenhuma outra experiência desse tamanho.

À Tereza, quero agradecer a presença, representando o Centro Josué de Castro, e, aproveitando - não tomem como fisiologismo -, cumprimentar uma pessoa que não está presente, que foi o fundador do Centro Josué de Castro, Sérgio Buarque, meu irmão.

Dos que aqui estão, quero escolher duas pessoas para cumprimentar: o representante do Patriarca da Igreja Ortodoxa, que nos honra com sua presença, e Dom Mauro Morelli, meu amigo antigo, que tem sido um símbolo da luta contra a fome no Brasil.

Feitos esses cumprimentos, quero dizer que, antes de subir aqui, caminhando com vocês, uma pessoa me disse: “Mas ele tinha uma cara muito boa”. Realmente, tinha uma cara boa. Realmente, era uma pessoa que a gente podia dizer boa. A foto reflete muito a alma quando é feita por um bom fotógrafo. Essa foto reflete a alma de uma pessoa chamada Josué de Castro. Um homem que conseguiu juntar três coisas que raramente a gente consegue ver em qualquer lugar do mundo. Em primeiro lugar, um intelecto privilegiado, capaz de ser respeitado universalmente. Isso é muito raro, mas existem alguns. Além disso, um intelectual que quis transformar a realidade e foi político de sucesso. Isso não é tão comum, mas existem outros. Agora, além disso, foi um homem que conseguiu um destaque internacional que raramente se consegue.

Agora, algo que é quase impossível e que a gente raramente vê é alguém que reúna essas três qualidades: um intelecto privilegiado, respeitado, uma atividade transformadora na política e um respeito em todas as áreas por onde passou. Josué de Castro foi uma dessas raras pessoas.

Mas há detalhes mais específicos. É que ele foi um intelectual e um transformador com características diferentes da maioria. Como intelectual brasileiro, Josué conseguiu pensar o Brasil com os olhos de brasileiro, numa época em que os pensadores seguiam uma ou outra fonte internacional. Ele era marxista. Os outros pensadores ou eram marxistas, ou pensavam pela ótica da emancipação cristã, ou eram socialistas democráticos; mas quase todos estavam afinados com uma linha de pensamento importada. Josué não importou; Josué criou. Josué formulou, com olhos de brasileiro, a realidade brasileira. Isso temos poucos. Temos até alguns que conseguiram ajustar as teorias externas para o Brasil, para a realidade latino-americana, como quase todo o pensamento cepalino conseguiu. Não era exatamente uma importação do marxismo, mas também não estava livre dessas raízes.

Josué foi um pensamento brasileiro, como Bonfim e poucos outros no Brasil. Mas não só isso é uma especificidade. Foi um pensamento que teve não apenas a independência de ser brasileiro no mundo influenciado pela Europa, Estados Unidos ou a União Soviética, mas ele foi também o pensamento contra a corrente do seu tempo.

Isso se vê no discurso que o Senador Jarbas fez: Josué, na hora em que todos falavam em ferro, ele falava em pão. E ele disse: “Não se mata fome com ferro”, como todos acreditavam que o desenvolvimento econômico faria. Todos acreditavam que mais indústrias significava mais comida. Josué teve a capacidade de se antecipar à realidade do final do século, quando se percebeu que mais riqueza não significa menos pobreza; que mais riqueza pode conviver com a tragédia da fome. Ele teve essa capacidade de ver antes. Poucos viram isso em toda a América Latina e em todo o Terceiro Mundo.

Nós - não me coloco no ponto de vista da responsabilidade específica, porque não tinha idade -, mas nós, os pensadores brasileiros de então, pensávamos que a industrialização era a mãe de toda a Justiça, quando ela termina sendo a mãe de muitas injustiças. Josué previu isso, e essa frase que eu falei não é minha: “Não se mata a fome com ferro. Mata-se a fome com pão”. Essa frase é dele, em algum de seus trabalhos.

Mas não é só isso. Há outra coisa forte: Josué foi um homem que fez cabeças. Não era um desses intelectuais que apenas têm alguns discípulos. Ele chegava onde os discípulos não sabiam que eram discípulos. Isso é raro. Ele não tinha apenas alunos; ele teve discípulos no sentido de que ele fez cabeças, e a minha é uma delas.

Há pouco, por conta da Bienal do Livro que vai realizar-se na próxima semana, um grupo de editores decidiu me fazer uma pergunta: quais os livros que haviam me influenciado de zero a 10 anos, de 10 a 20, de 20 a 30, de 40 a 50? Queriam saber um livro. Na linha de 10 a 20, eu coloquei Geografia da Fome. Pode ser que tenha tido outros, mas o que me veio à cabeça foi Geografia da Fome. Aquele livro certamente mudou o meu rumo, porque nós todos, a cada minuto, mudamos de rumo. Mudamos de rumo conforme um filme que vemos, uma conversa que temos, um livro que lemos ou até um susto que levamos. Geografia da Fome foi um livro que me assustou, que me deslumbrou, que me formou.

Esse era Josué no que se refere à sua parcela intelectual. Mas não foi só isso. Ele não se acomodou na cadeira de maestro, na cadeira de professor, na cadeira de intelectual. Ele foi às ruas ganhar os votos para mudar o País onde ele denunciava as injustiças. Esse é um lado que a gente tem de respeitar, tanto quanto o lado daqueles intelectuais que formam cabeças, que inventam teorias, que são capazes de abrir os olhos de quem tem acesso àquilo que ele deixa.

Josué, portanto, foi um homem que juntou a capacidade de pensar o novo de uma maneira diferente, de influenciar pessoas que pensavam de um jeito e descobriram que o mundo era diferente, e que quis mudar esse mundo. Mas, sobre essa área dele, o Senador Jarbas falou muito bem. Quero falar de uma outra que tive a oportunidade de vivenciar: a generosidade.

Josué foi um homem que, no esplendor de sua vida, respeitado internacionalmente, morando em um belíssimo apartamento na França, recebia para conversar a mim e à Gladys, minha mulher, dois estudantes, nos 20 anos ainda, morando em uma casa de estudante. Ele nos tirava do restaurante universitário para tomar uma sopinha feita ou servida por Dona Gláucia, sua esposa. E ele conversava. Eu não entendi nunca por que ele tomava o tempo dele para conversar com a gente, e falava coisas que para nós eram absolutamente intocáveis, inatingíveis, como, por exemplo, quando ele dizia: “Ontem me ligou U Thant, Secretário-Geral das Nações Unidas”; “Na próxima semana, eu vou ao Marrocos”. Lembro-me desse dia. “E o Rei descobriu que eu vou e quer falar comigo. Eu não gosto de conversar com o Rei”; “Eu estou indo, tenho um encontro com Mao Tse-Tung”.

Esse era o homem internacional que convivia com um casalzinho de estudantes. Talvez assim fosse pelo fato de sermos pernambucanos, mas, de qualquer maneira, foi uma generosidade que eu não pude, obviamente, esquecer nunca na minha vida. E isso, claro, me marcou; esse cosmopolitismo de um conterrâneo meu marcou, obviamente, a minha formação. Mas era um cosmopolitismo com raízes profundas na cidade onde ele nasceu, no Estado onde ele nasceu, na região nordestina onde ele nasceu, no Brasil onde ele nasceu, na América Latina onde ele nasceu, com raízes muito fortes.

Josué de Castro tinha esse cosmopolitismo com apego ao local, como Jarbas Vasconcelos disse aqui, e tinha uma visão generosa, não apenas a generosidade da opção pelos pobres, quando o resto fazia opção pela riqueza; não apenas a visão de que a Economia não resolve o problema da pobreza, de que a Economia existe para ensinar como aumentar a riqueza, com a ilusão de que essa riqueza vai sempre, ao crescer, se distribuir como se estivesse dentro de um copo onde a água, ao chegar ao limite do recipiente, se espalha para os que estão fora. Josué percebeu - talvez não tenha dito - que, quando a água alcança o limite do copo, os ricos fazem o copo crescer para que a água não se espalhe. Essa é a característica especialmente do regime atual, chamado neoliberal, em que intrinsecamente é impossível ser distribuído aquilo que é produzido apenas pelas regras de mercado e da Economia.

Nós estamos aqui hoje para comemorar o centésimo aniversário que ele faria dentro de alguns dias, e comemorando-o pelo que deixou, junto com os milhões que, sem saberem até que ele existiu, pensam conforme ele escreveu, conforme ele lutou para tornar diferente o país e o mundo.

Eu concluo apenas dizendo que a esta comemoração gostaria de agregar uma outra pessoa, que viveu quase exatamente o número de dias que viveu Josué, uma pessoa que nasceu alguns dias antes dele, em 26 de junho, e morreu poucos dias antes dele, no dia 11 de setembro. Refiro-me ao Presidente Salvador Allende. Eles viveram quase que exatamente o mesmo número de dias: nasceram quase no mesmo dia e morreram quase no mesmo dia.

E não foi por acaso que Josué morreu naquele dia. A meu ver, ele morreu, sobretudo, do mesmo mal que matou outras pessoas: a tristeza com o fim da experiência chilena, que era a esperança de um novo rumo, no qual poderiam se casar democracia e igualdade. A mesma doença que matou, quase que no mesmo dia em que morreu Josué, Pablo Neruda. Morreram de tristeza, mas deixaram a alegria daqueles que se alegram ao usar o intelecto e se alegram ao militar, caminhando nas ruas, para entender a realidade e mudá-la.

            Esta é a grande lição de Josué: ele ajudou a entender a realidade e lutou para mudá-la. Que viva muitos anos, muitas décadas, muitos séculos! Que viva Josué e que sigamos o seu exemplo!

Muito obrigado pelo privilégio de estar aqui falando talvez do mais importante personagem que eu conheci na minha vida. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/08/2008 - Página 29536