Discurso durante a 190ª Sessão Especial, no Senado Federal

Comemoração do Dia da Criança, com objetivo de se discutir e encontrar meios para inclusão social das crianças do nosso País, e do Dia do Professor.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL. EDUCAÇÃO.:
  • Comemoração do Dia da Criança, com objetivo de se discutir e encontrar meios para inclusão social das crianças do nosso País, e do Dia do Professor.
Publicação
Publicação no DSF de 16/10/2008 - Página 39776
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL. EDUCAÇÃO.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA, CRIANÇA, LEITURA, TEXTO, AUTORIA, ORADOR, REGISTRO, DIVERSIDADE, DENOMINAÇÃO, INFANCIA, DEMONSTRAÇÃO, DESIGUALDADE SOCIAL, DEFESA, INCENTIVO, EDUCAÇÃO, REDUÇÃO, POBREZA, MELHORIA, QUALIDADE DE VIDA.
  • HOMENAGEM, DIA, PROFESSOR, DEFESA, VALORIZAÇÃO, PROFISSÃO, OCORRENCIA, ALTERAÇÃO, HISTORIA, REGISTRO, CRIANÇA, PISO SALARIAL, IMPORTANCIA, MELHORIA, CONDIÇÕES DE TRABALHO.
  • DEFESA, UNIÃO, PROFESSOR, LUTA, VALORIZAÇÃO, ALTERAÇÃO, SOCIEDADE, REDUÇÃO, DESIGUALDADE SOCIAL, IMPORTANCIA, IGUALDADE, ENSINO, BRASIL.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Bom dia a cada uma e a cada um de vocês.

Cumprimento o Senador Mão Santa, que preside esta sessão, e, por meio dele, todos os demais Senadores e autoridades aqui presentes. Cumprimento os senhores embaixadores que aqui estão e especialmente os professores e as crianças que vieram de suas escolas e de suas casas, para estarem conosco neste dia em que queremos prestar homenagem dupla aos professores e às crianças.

Quem já me ouviu falar aqui sabe que não costumo ler discurso. Acho que muitas vezes a leitura tira a ênfase, o impacto. Mas hoje decidi ler dois textos: um que fiz no passado e um recente. O do passado é um texto sobre crianças, e o recente é uma carta que enviei aos professores do Distrito Federal, que, se não receberam ainda, receberão.

Eu leio, porque gostaria que as pessoas que nos estão assistindo pela televisão pudessem tomar conhecimento dessas mensagens.

A primeira é um artigo que chamei de Os Nomes da Criança, que começa, lembrando que, entre os esquimós, Senador Mão Santa, existem muitas palavras para dizer “neve”. Para nós, “neve” é neve, mas para os esquimós não pode ser, porque, se eles pisarem numa neve sem substância, afundam! Eles têm que ter uma palavra para denominar a neve que afunda e outra para a neve sólida. Para nós, não há diferença.

Os homens, os povos das florestas também têm mais de um nome para dizer “mato”. Para nós, da cidade, “mato” é mato. Para uma pessoa da floresta, cada mato tem um nome próprio, porque há alguns que, se furarem, matam. Há alguns que, se forem comidos, matam a fome, e outros, que envenenam. Eles têm de saber os nomes diferentes de cada mato.

Os povos que vivem nos desertos também têm palavras diferentes para dizer aquilo que chamamos de areia. Se eles não prestarem atenção e não souberem que aquela areia é a que o vento leva, podem morrer, porque o vento vai criar uma tempestade.

Pois bem, no Brasil, Senadora Marisa, para proteger-se do meio ambiente, o mundo brasileiro criou palavras diferentes, para dizer uma coisa tão simples, que é “criança”. A cultura evolui conforme o número de palavras que se tem para dizer uma só coisa. Os esquimós têm uma alta cultura no que se refere à neve; as pessoas das matas, para o que significa “árvore”; as pessoas do deserto, para o que significa “areia”.

            O Brasil tem uma alta cultura para dizer “criança” - porque a gente sabe que no Brasil criança não é uma só coisa. Por exemplo, para poder andar com segurança nas ruas, os brasileiros têm maneiras diferentes de dizer “criança”, para saber se podem ficar perto ou longe delas. Não se trata de sinônimos, como antigamente, para indicar a mesma coisa, ou seja, “menino”, “guri”, “pirralho”. Isso são sinônimos. Não. Trata-se agora de que cada nome indica uma sutil diferença no tipo de criança.

         O português falado no Brasil é hoje o mais rico e o mais imoral dos idiomas do mundo, no que se refere à definição de criança. É um rico vocabulário que mostra a degradação moral de uma sociedade que trata suas crianças como se não fossem apenas crianças.

Por exemplo, “menino-de-rua”. Nós tivemos que inventar essa conceituação, de “menino-de-rua”, diferente de “criança”. É uma criança diferente, chamada de “menino-de-rua”. “Menino-de-rua” significa aquele que fica na rua, em lugar de estar na escola, em casa, brincando ou estudando, mas às vezes tem até uma casa aonde ir. Por isso, existe uma sutileza para diferenciar “menino-de-rua” de “menino na rua”. O “menino na rua” é o que tem uma casa para ir de noite; o “menino-de-rua” é aquele que não tem uma casa onde ficar.

Ao vê-los, esses “meninos de rua” ou “na rua”, um habitante das nossas cidades os distingue das demais crianças que ali estão passando. Ele sabe a criança que é de rua e a que não é de rua, da mesma maneira que um esquimó sabe uma neve sólida, onde pode pisar, e uma neve tênue, onde não pode pisar.

Flanelinha, outra maneira de dizer criança, um tipo de criança.

“Flanelinha é aquele que, nos estacionamentos ou nas esquinas, dribla os carros dos ricos, carregando um frasco de água em uma mão e um pedaço de pano na outra, na tarefa de convencer o motorista a dar-lhe uma esmola, em troca da rápida limpeza no vidro do veículo.”

Criamos um outro tipo de criança, chamada flanelinha, que são diferentes dos esquineiros, que tentam vender algum produto ou apenas pedem esmolas aos passageiros dos carros, ou dos meninos-de-água-na-boca, milhares de pobres que carregam uma pequena caixa com chocolate que eles não podem comer, porque eles têm de vendê-la para terem o direito de, depois, comerem um pão. Meninos-com-água-na-boca.

Não vou ler aqui, até porque fica duro ver a quantidade de palavras que temos hoje, no Brasil, para nos referir às meninas e aos meninos explorados sexualmente. Há, pelo menos, oito ou dez palavras para dizer, de acordo com onde está, de acordo com o quanto cobra, de acordo com o cliente que recebe. Vou pular essa parte que coloquei no artigo, mas vou dizer outras palavras:

Delinqüente, infrator, avião, pivete, trombadinha, menor, pixote. Só aqui são sete palavras para o conjunto de relação das nossas crianças com o crime. Cada qual dessas palavras tem uma maldita sutileza conforme o artigo do Código Penal em que cabe, o crime que comete, a maneira como abordam suas vítimas, o crime ao qual se dedica...

Podem também, no lugar de crianças, serem chamadas de boys, engraxates, meninos-do-lixo, recicladores-infantis, de acordo com o trabalho que eles fazem em de estarem na escola.

Ainda há os filhos-da-safra, para indicar crianças deixadas para trás, por pais que emigram todos os anos em busca de trabalho, nos lugares onde há emprego para bóias-frias, nome que indica - filhos-da-safra - essa riqueza cultural do sutil vocabulário da realidade social brasileira.

E o que dizer de uma outra palavra, pagãos-civis, vivendo sem registro que lhes indique a cidadania de suas curtas passagens pelo mundo, em um País que lhes nega não apenas o nome de criança, mas também a existência legal? Pagãos-civis!

E creio que, como resumo de todos esses tristes verbetes, há um outro que é criança-triste. Não a tristeza que nasce de um brinquedo quebrado, de uma palmada ou reprimenda recebida, ou mesmo da perda de um ente querido. No Brasil há um tipo de criança que não apenas fica ou está triste, mas nasce e vive triste. Seu primeiro choro mais parece um lamento pelo futuro que ainda não prevê do que um respiro no novo ar em que vai viver, quando pela primeira vez recebe o oxigênio em seus diminutos pulmões.

Criança-triste como substantivo, não como adjetivo, como um estado permanente de vida. Essa talvez seja a maior das vergonhas do vocabulário da realidade social brasileira, assim como a maior vergonha da realidade política é a falta de tristeza no coração de nós, líderes e autoridades, diante da tristeza das crianças brasileiras com as sutis diversidades refletidas no vocabulário que indica os nomes da criança.

Não são os nomes das crianças; são os nomes da criança, do ente criança. Esse ente criança tem diversos nomes, porque elas são diferentes.

A sociedade brasileira, em uma maldita apartação, foi obrigada a criar palavras que distinguem cada criança conforme sua classe, sua função, sua casta, seu crime. Essa cultura brasileira, medida pela riqueza de seu vocabulário, enriqueceu perversamente ao aumentar as palavras que indicam uma coisa chamada criança. Um dia, essa cultura vai se enriquecer criando nomes para os Presidentes, Governadores, Prefeitos, políticos em geral que não sofrem, que não ficam tristes, que não percebem a vergonha trágica de nosso vocabulário. Mas ainda não existe essa maneira de diferenciar a nós, os políticos.

Quem sabe não será preciso que um dia chegue ao Governo uma das crianças-tristes de hoje, para que o Brasil torne arcaicas as palavras que hoje enriquecem o triste vocabulário brasileiro e construamos um dicionário onde criança... seja apenas criança.

Este é um desafio, e esse desafio só será cumprido pelos professores, obviamente passando por nós, Senadores, ao regulamentarmos e ao agirmos para que haja uma boa escola.

            Por isso, leio o segundo trecho, que é para os professores. Começo lembrando que a História do Brasil registra três datas marcantes. Temos muitos feriados, mas há três especiais - o 7 de setembro, o 13 de maio e o 15 de novembro -, mas comemoramos essas datas sem percebermos que a Independência não foi completada, que a Abolição não foi completada e que a República não está completada.

Afinal de contas, que Independência é essa que é tão vulnerável a qualquer aspecto que acontece lá fora? Que Independência é essa onde estou falando no microfone, cuja maior parte dos componentes são importados?

Nós não somos independentes, nem somos uma República.

Que República é essa em que existe uma escola para uns diferente da escola dos outros, em que existe escola para ricos e escola para pobres, em que existem escolas de cidades grandes e escolas de cidades pequenas, em que existem até mesmo escolas para os filhos dos eleitos diferentes das escolas para os filhos dos eleitores? Não é uma República.

E que Abolição é essa em que dissemos aos escravos: “Vocês não são mais escravos. Podem ir para a miséria nas cidades. Não tem mais trabalho forçado para vocês. Vocês podem ficar desempregados. Não têm mais que viver na senzala. Podem ficar morando na rua. Não têm mais que comer o resto da casa grande. Podem ficar com fome.” Isso não é uma Abolição completa, e essa Abolição não é completa, porque o caminho para completá-la é a escola.

Um príncipe, D. Pedro I, uma princesa, Dona Isabel, um marechal, Deodoro da Fonseca, eles ficaram conhecidos pelas viradas da História, mas só os professores vão completar aquilo que eles começaram. E isso não aconteceu ainda, porque, ao negar escola de qualidade para todos, o Brasil continuou semi-independente, com a escravidão disfarçada e uma pseudo-república.

Nós não teremos Independência sem uma população educada, capaz de desenvolver o conhecimento que a sociedade moderna exige; não há Abolição plena se a educação não chega a todos; não é República um país em que a escola do filho do rico é diferente da escola do filho do pobre.

Só a escola de qualidade para todos será capaz de fazer com que aquelas três datas que eu citei possam merecer toda a dimensão que deveriam ter.

E a escola é sobretudo o professor: um país não se completa se o professor não for a categoria mais bem preparada, mais dedicada e com os melhores salários. Não tem como construir um país onde os professores não sejam os mais bem remunerados, os mais dedicados e os mais qualificados. E, lamentavelmente, esse não é o caso do Brasil ainda. Só agora, 500 anos de história depois, quase 200 anos de Independência, 120 anos de Abolição e República, conseguimos um Piso Nacional para o Salário do Professor. Mesmo assim, é um piso que equivale a 10% do piso salarial de outras categorias do setor público.

Ainda não somos escolhidos, os professores, e tratados como se fôssemos a elite dos profissionais brasileiros, nem recebemos as condições que nos permitem plena dedicação ao desempenho de nossas funções. Por isso, o Brasil precisa colocar o 15 de outubro como a data-mãe de todas as outras datas históricas, como o Dia do Construtor do Futuro, que é o professor. Só quando o 15 de outubro for uma grande data, é que 7 de setembro, 13 de maio e 15 de novembro vão merecer de fato a dimensão que deveriam ter, de datas simbólicas da Independência, da Abolição e da Proclamação da República.

Mas, para que isso aconteça, os professores têm um papel importante: além de educadores, eles devem ser também educacionistas. Além do trabalho profissional dentro da sala de aula, eles precisam militar politicamente nas ruas e nas urnas pelo educacionismo. O educacionismo é uma sociedade na qual o filho do trabalhador estude na mesma escola do filho do patrão; o filho do eleito, na mesma escola do filho do eleitor; todos estudando com o máximo de qualidade, algo que os tempos atuais exigem. Sem sair da sala de aula, é preciso que entremos na política para defender uma revolução no Brasil. E a única revolução possível hoje, libertária, eficiente e igualitária, é a revolução pela educação, a revolução de termos todos os sessenta milhões de alunos, os dois milhões de professores, as quase duzentas mil escolas públicas com a mesma qualidade, não importando a cidade ou a renda da família do aluno, todas com professores bem-remunerados, dedicados e qualificados, em edifícios bonitos e bem-equipados.

A revolução atual não está mais, como se dizia no passado, em transferir o capital das mãos dos capitalistas para as mãos dos trabalhadores. A revolução está em levar os filhos dos trabalhadores para a mesma escola dos filhos dos capitalistas. Por isso, a revolução passa pelas mãos dos professores.

Neste 15 de outubro, quero não apenas prestar uma homenagem a vocês, professores como eu quero pedir que reflitam sobre a importância de cada professor, sobre a responsabilidade de cada professor, sobre o compromisso de cada professor de lutar pela revolução no Brasil, mas uma revolução educacionista. Não mais na economia, não mais na propriedade das coisas materiais, não mais na igualdade dos bens de consumo: trata-se agora da revolução na igualdade do acesso ao conhecimento. Que sejamos diferentes e desiguais pelo talento, pela persistência, e não pelo lugar onde nascemos, não pela família de onde viemos. Eu peço que não esmoreçam nem se acomodem e que tenham a mesma dedicação na sala de aula de sua escola e na luta pela educação de todo o Brasil.

É isso que eu venho aqui pedir, quando deveria apenas homenagear, mas a homenagem ficaria tão incompleta quanto a Independência, quanto a República e quanto a Abolição se ela não viesse acompanhada deste pedido: sejam educadores e sejam também educacionistas.

Sejam bons professores e professoras, mas sejam também lutadores por uma revolução: a escola igual para todos, o filho do trabalhador na mesma escola do filho do patrão. Essa é a revolução de que precisamos. Que este 15 de outubro sirva como um momento para refletirmos a possibilidade, a necessidade de que isso seja feito e o nosso compromisso de levarmos essa luta adiante.

Parabéns a vocês, mas vocês têm muito ainda o que fazer por este País, na sala de aula e nas ruas.

Um grande abraço para cada uma e para cada um de vocês, construtores do futuro. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 16/10/2008 - Página 39776