Discurso durante a 57ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Lembrança sobre episódio da infância de S.Exa. e do tempo da escravidão, relativos ao tema da educação.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
EDUCAÇÃO.:
  • Lembrança sobre episódio da infância de S.Exa. e do tempo da escravidão, relativos ao tema da educação.
Publicação
Publicação no DSF de 24/04/2009 - Página 12507
Assunto
Outros > EDUCAÇÃO.
Indexação
  • COMENTARIO, PROGRAMA, EMISSORA, TELEVISÃO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), QUESTIONAMENTO, AUSENCIA, INGRESSO, FILHO, PESSOAS, PRESTIGIO, ESCOLA PUBLICA, INFANCIA, ORADOR, NECESSIDADE, ATENDIMENTO, CRITERIOS, ENTRADA, ENSINO PUBLICO, REGISTRO, REDUÇÃO, QUALIDADE, ENSINO, DIFICULDADE, GARANTIA, IGUALDADE, OFERECIMENTO, EDUCAÇÃO.
  • DEFESA, DEBATE, PROJETO DE LEI, TRAMITAÇÃO, CONGRESSO NACIONAL, OBRIGATORIEDADE, IGUALDADE, ESCOLA PUBLICA, ESCOLA PARTICULAR, CRITICA, ALEGAÇÕES, IMPOSSIBILIDADE, GARANTIA, UNIFORMIDADE, COMENTARIO, FALTA, COMPLEMENTAÇÃO, PROCESSO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, REGISTRO, EXPERIENCIA, PAIS ESTRANGEIRO, GRÃ-BRETANHA, PUNIÇÃO, MINISTRO, MANUTENÇÃO, DESCENDENTE.
  • DEFESA, REALIZAÇÃO, AUDIENCIA PUBLICA, DEBATE, ANALISE, IMPORTANCIA, PROJETO DE LEI.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, venho falar de duas coisas antigas. Sei que hoje em dia só se fala nas coisas de hoje. Uma não tão antiga porque diz respeito à minha infância; outra mais antiga porque diz respeito ao tempo ainda da escravidão.

No que diz respeito ao primeiro tempo antigo, eu quero dizer que quando eu era garoto, meu pai tentou me matricular numa escola pública e não conseguiu. Porque disseram que para entrar naquelas escolas pública era preciso, Senador Eurípedes, ser filho de alguém com prestígio: era preciso ser filho de Deputado, filho de Senador, filho de Governador, de Prefeito. Além disso, era preciso ter carro. Porque eram muito poucas, raríssimas as escolas públicas e, ao redor de minha casa, não tinha nenhuma. Senador Duque, isso não faz tantos anos assim; vamos dizer, cinquenta anos atrás.

Hoje, é o contrário. Hoje, o que o SBT mostrou, num programa de televisão, é que filho de quem tem alguma importância não vai para a escola pública. O que mudou tão radicalmente, no Brasil, e por quê? Nós dizemos que o Brasil melhorou. Que melhora é essa, que antigamente para entrar na escola pública tinha que ser filho de alguém com prestígio? Agora, filho de quem tem prestígio não entra na escola pública? Não melhorou este País. Pelo menos, no ponto central que caracteriza a formação de uma sociedade republicana - que a escola é igual para todos - não melhorou; ao contrário, piorou. Por falta dessa influência - o meu pai foi um pequeno representante comercial -, eu fui estudar naquelas escolas em que a gente conseguia - escolas de padres; escolas dos Irmãos Maristas -, onde a gente podia estudar quase que de graça, porque os professores não recebiam salários, não tinham famílias, moravam lá, no Colégio São Luís; eram todos eles religiosos; não havia pagamento de aluguel do prédio, nem pagava-se imposto.

Na verdade, além da boa educação que me deram, eles tinham um trabalho de proselitismo religioso. Por isso, tantos foram ser seminaristas, porque não tinham prestígio, seus pais, para colocá-los no Colégio Pedro II, por exemplo, no caso do Rio de Janeiro, ou uns dois ou três que tínhamos em Recife naquela época. Hoje, é o contrário. Hoje, Senador Paim, filho de quem tem prestígio não entra na escola pública, vai para a escola particular.

Essa é a primeira reflexão sobre o passado de cinquenta anos atrás. Mudamos, de um tempo em que para entrar na escola pública era preciso ser filho de alguém com prestígio, tinha que ter um pistolão, como se dizia na época - não sei se ainda se fala assim -, para um tempo em que, ao contrário, se considera absurda a ideia de que alguém filho de quem tem prestígio, ou de quem tem dinheiro, possa entrar na escola pública ou ficar na escola pública. Falo isso com base na matéria do SBT, sobre este assunto.

E a segunda reflexão do passado que faço é mais antiga. Quando, mais ou menos aí por 1860, este País começou pela primeira vez a falar em Abolição da Escravatura, foi chamada de demagogia a posição de Joaquim Nabuco. Joaquim Nabuco foi chamado de demagogo, Senador Eurípides, porque ele defendia a Abolição da Escravatura. E era natural que fosse; 400 anos de costume da escravidão.

Era demagogia naquele momento dizer que os negros teriam o mesmo direito que os brancos. Era demagogia naquele tempo dizer que uma pessoa poderia ser liberada e deixar a agricultura abandonada. E mais que isso, dizia-se que a Abolição da Escravatura tirava a liberdade do senhor de engenho ter um escravo que ele comprou, como ele dizia, com o dinheiro que acumulou na vida. E não esqueçamos que não eram só os grandes proprietários que tinham escravos. Havia famílias que tinham um escravo, dois escravos. Viúvas que herdavam o escravo e alugavam o escravo para que o escravo trabalhasse para outra família, e o dinheiro vinha para aquela família que era proprietária.

Pois bem, cento e tantos anos depois, a ideia que está hoje no Congresso com um projeto de lei em andamento de que seria falta de decoro para alguém na vida pública ter seus filhos na escola privada, por isso seria obrigatório ter seus filhos na escola pública, isso, no próprio programa do SBT, foi colocado como demagogia.

Demagogia? O óbvio virou demagogia no Brasil. E olhe que se eu tivesse dizendo que esse projeto de lei era para a partir de amanhã, como foi a Abolição da Escravatura, dia 13 de maio: a partir de hoje está abolida a escravatura, eu até diria: é demagogia, sim! Veja como eu sou conservador, porque eu acho que deveria ser a partir de já. Mas não é.

O projeto de lei diz: sete anos depois que a lei for sancionada. Onde que é possível a gente ver num País, que se diz uma República, onde a ideia dos Parlamentares, dos Governadores, dos Prefeitos terem seus filhos na escola pública, daqui a sete anos, ser vista como demagógica?

E nós achamos que demos um grande passo quando fizemos a Abolição da Escravatura. A verdade é que demos um grande passo do ponto de vista da liberdade dos escravos, mas não demos ainda um grande passo do ponto de vista da mentalidade da elite brasileira, que apenas chegou à conclusão que naquela época era caro demais manter um escravo, que era preciso comprá-lo, e eles estavam sobrando no mercado. Como são nossos desempregados de hoje: não precisa comprar, basta pagar uma ninharia por mês. A gente achava que estava fazendo a revolução. Quando a revolução, já dizia o próprio Joaquim Nabuco, era colocar o filho do escravo na mesma escola do filho do senhor do escravo, era colocar os filhos dos negros na mesma escola dos filhos dos brancos. Mas isso era demagogia. E o pior é que até hoje a gente não conseguiu cumprir esse sonho do velho Joaquim Nabuco, que no próximo ano já vai fazer 100 anos de sua morte.

Eu fico feliz que o sistema SBT tenha colocado essa matéria no noticiário, noticiário local, só de Brasília, não sei por quê. Mas eu quero dizer que esse debate tem que ser feito de uma maneira mais profunda.

Não defendo que essa lei seja aprovada sem uma audiência pública, ou duas, ou três, ou dez. Está na hora da gente discutir como é que completamos a Abolição, Senador Raupp, está na hora; 121 anos vamos comemorar no próximo mês, dia 13 de maio, a Abolição e não a completamos.

Vamos falar com franqueza. A Princesa Isabel não teve tempo de completar, porque eu acho até que se a gente tivesse mantido a Monarquia - e não venham dizer que eu defendo a Monarquia, do mesmo jeito que passaram a dizer que eu defendia fechar o Congresso. Não defendo não. Sou republicano. Mas do mesmo jeito que eu disse aquilo, que eu quero abrir o Congresso, eu hoje digo: É preciso completar a República, 120 anos passados - aliás, nós estamos fazendo este ano, no dia 15 de novembro. Não há como completar a República enquanto houver escola para os filhos dos eleitos diferente da escola dos filhos dos eleitores. Isso é o obvio!

O que se pode discutir é quando é que se vai fazer isso. Aí eu volto para o tempo passado. Todos diziam que eram a favor da Abolição da Escravatura. Mas todos diziam: não é tempo ainda. Se fizermos agora desarticularemos a agricultura, a economia vai pagar um alto preço e tiraremos a liberdade de o senhor de escravo ter o escravo.

As liberdades, todas elas, devem existir à medida que não ferem a liberdade do outro. Alguns dizem: mas uma lei dessas não pode ser feita, porque tira a liberdade de qualquer pessoa colocar seu filho na escola que quer. Mas todos têm essa liberdade, só que então precisam dizer que não querem ser Parlamentar. Quando você nasce não é obrigado a ser Parlamentar. Nós, quando assumimos um cargo de Parlamentar, assumimos algumas obrigações. Estar aqui, por exemplo, nesta tarde; estar com os holofotes em cima da gente, olhando cada errinho que cometemos. Isso é uma obrigação nossa, mesmo que doa em cada um de nós. Apenas acrescentaríamos mais uma: sendo eleito, seus filhos estudarão numa escola pública, daqui a sete anos.

Ainda temos sete anos para fazer com que a nossa escola fique igual à escola do povo. Isso é considerado demagogia do mesmo jeito que a Abolição da Escravatura, entre os anos 60 e 88; ou seja, mais de 20 anos, quase 30, foi considerada demagogia, foi considerada impossível, foi considerada como um gesto que queria apenas fazer com que alguns Parlamentares, como Joaquim Nabuco, ficassem bem com os pobres escravos. Ele não estava propondo aquilo que se dizia para valer, porque isso era impossível. Eu acho que era mais impossível, sim, abolir a escravatura do que hoje termos escola igual para todos. E comecemos por esse projeto de lei.

A escola igual ainda não é para todos, mas que pelo menos aqueles que se submetem a uma eleição para representar o povo tenham seus filhos na escola do povo.

Esse projeto merece mais respeito, esse projeto também não deve ser aprovado de maneira leviana e rápida. Façamos audiências públicas, façamos debates, convidemos pessoas, analisemos esse lado da liberdade, analisemos as consequências disso sobre a escola, mas tratemos com a seriedade que esse projeto merece da mesma maneira que merecia, há 120 anos, 140 ou 160 anos, a ideia da Abolição da Escravatura. Por mais absurda que fosse essa ideia naquela época, ela merecia ser debatida. E foi graças à persistência e à teimosia de pessoas como Joaquim Nabuco que aquela demagogia, que aquele absurdo da Abolição da Escravatura para a maioria da população terminou um dia virando realidade, embora uma realidade ainda incompleta.

Vamos completar, está em nossas mãos isso, vamos debater antes se quisermos, mas não deixemos de tratar com seriedade um projeto que visa fazer o óbvio: a escola do filho do eleito igual à escola do filho do seu eleitor. Acho que esse deveria ser o slogan desta Casa. Vamos levar adiante pelo menos o debate e se tivermos coragem digamos ao povo: não, vocês vão ter uma escola ruim e nós vamos ter uma escola boa. Que tenha coragem se alguém pensar isso, mas não diga que é demagogia, até porque os outros países já fizeram ou estão fazendo.

Há pouco, Senador Valdir Raupp, e não quero tomar mais tempo porque sei que V. Exª é o próximo a falar, uma ministra na Inglaterra foi penalizada publicamente, criticada, porque descobriram que o filho dela estudava em uma escola particular. Ela não era nem a Ministra da Educação. Era uma simples ministra. Mas acharam que isso era um absurdo. E olha que lá é uma Monarquia. Não é uma República, mas é mais republicana a Inglaterra do ponto de vista social, embora não do ponto de vista político, que o Brasil, que tem na política uma república e na sociedade uma aristocracia separada da plebe; e a ponte que transforma aristocracia e plebe em um povo unido é a escola. Vamos começar entre nós. Se alguém acha que isso é demagogia, vou continuar insistindo; se alguém acha que isso é impossível, vou continuar insistindo; se alguém acha que isso é ridículo, vou continuar insistindo, porque outros no passado já insistiram em coisas que eram ridículas, que pareciam demagogia, que pareciam impossíveis, mas que terminaram se realizando, como, por exemplo, as eleições diretas para Presidente, a anistia para presos políticos e exilados, e Abolição da Escravatura.


Modelo1 6/29/243:54



Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/04/2009 - Página 12507