Discurso durante a 67ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Registro do debate realizado hoje na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, sobre o analfabetismo e sobre os direitos dos indígenas.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS. EDUCAÇÃO.:
  • Registro do debate realizado hoje na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, sobre o analfabetismo e sobre os direitos dos indígenas.
Publicação
Publicação no DSF de 08/05/2009 - Página 16288
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS. EDUCAÇÃO.
Indexação
  • IMPORTANCIA, DEBATE, COMISSÃO, SENADO, CONCLUSÃO, OBRIGATORIEDADE, ALFABETIZAÇÃO, IMPEDIMENTO, PRIVAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, DEFESA, DIREITOS, INDIO.
  • COMENTARIO, APROVAÇÃO, SENADO, PROJETO DE LEI, AUTORIA, ORADOR, PROPOSIÇÃO, OBRIGATORIEDADE, ESTUDANTE, UNIVERSIDADE FEDERAL, PARTICIPAÇÃO, PROGRAMA, ALFABETIZAÇÃO, EXPECTATIVA, ACOLHIMENTO, CAMARA DOS DEPUTADOS.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador. ) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, Srªs Senadoras, ontem, a Comissão de Direitos Humanos fez um debate que eu tenho a impressão de que pode servir como um eixo não apenas para o Brasil, mas até mesmo para fora do Brasil, sobre a definição, Senador João Pedro, de direitos humanos.

Nós conseguimos trazer especialistas, nós trouxemos pessoas para debater se o analfabetismo é ou não uma privação de direitos humanos, porque nos acostumamos com a idéia de que um político preso, se ele não recebe livros para ler, os direitos humanos dele não estão sendo respeitados. Veja bem: se um preso não recebesse livros para ler durante a ditadura, Isso era falta de respeito aos direitos humanos dele. O que dizer dos analfabetos, que, mesmo não estando presos, mesmo estando soltos, mesmo estando em casa, mesmo dentro de uma livraria, não conseguem ler os livros?

É uma privação de direitos humanos, sim, não saber ler.

Nós passamos tempo lutando contra a tortura, porque a tortura fere um direito humano. Agora, e no mundo de hoje, em que tudo é regido por símbolos para você saber onde está e para onde ir, não saber ler não é uma tortura? É uma tortura. O analfabeto está sendo torturado permanentemente. É uma tortura diferente de queimar as pessoas com cigarro, de dar choques elétricos, é diferente do velho chamado pau-de-arara, aquele velho instrumento maldito, mas é, sim, uma tortura. Não é uma tortura num conjunto onde todos fossem analfabetos, como, por exemplo, uma tribo de índios primitiva. Não, aí não é. Mas, numa sociedade moderna, onde tudo é regido pela capacidade de as pessoas entenderem os símbolos mostrados em letras, não saber ler é estar sujeito a uma tortura.

E a liberdade? Nós lutamos pela liberdade dizendo que, sem ela, não havia direitos humanos. O analfabeto tem o mesmo grau de liberdade daquele que sabe ler? Não tem. Ele não consegue ir para onde ele quer, porque ele não sabe ler o nome do ônibus; ele não consegue ir para onde quer, porque ele não sabe ler o mapa onde está escrito o destino para onde se vai.

E tem direito humano mais fundamental do que você poder escrever o nome do seu filho, o nome do seu neto, o nome do seu irmão? O analfabeto não tem esse direito.

         Senador João Pedro, só fui perceber isso quando, em Minas Gerais, dando diplomas a pessoas alfabetizadas, vi uma mulher, com a aparência de cinquenta anos, dizer: “Eu escrevi o nome do meu filho”. Para ela, isso significou o máximo que era possível da satisfação. Nós estamos negando a quatorze milhões de brasileiros o direito de escreverem os nomes das pessoas que amam, sem falar do direito de escrever cartas, sem falar do direito de trocar informações. É uma tortura, é uma privação de direitos humanos.

         Ontem, analisamos que, em um país como o Brasil, onde a bandeira tem texto escrito - isso é muito raro, ocorre em poucos países -, não ensinar as pessoas a ler é deixar que elas não tenham o direito humano de conhecer a própria bandeira, porque o analfabeto não consegue conhecer a bandeira brasileira. Se você misturar aquelas letras de Ordem e Progresso, ele continua achando que é a mesma bandeira. Se você escrever em inglês, parece que é a mesma bandeira. Se você colocar “desordem e atraso”, parece que é a mesma bandeira.

         Então, não há dúvida, para esse grupo que ontem esteve reunido na Comissão de Direitos Humanos, de que alfabetizar é cumprir uma obrigação de direitos humanos.

Aí, Senador João Pedro, por coincidência, na semana passada, a Comissão de Educação aprovou um projeto que diz que todo estudante universitário que estudar em uma faculdade que recebe dinheiro público terá de participar de programa de alfabetização de adultos.

Eu cresci lutando pelos direitos humanos: o direito à liberdade, o direito ao voto, o direito à eleição direta, o direito a um Congresso aberto. Eu tenho orgulho de ser autor desse projeto de lei que faz com que o jovem universitário seja alfabetizador; estou dando uma chance a ele de ser um libertador; estou dando chance a ele de ser um lutador pelos direitos humanos; estou dando chance a ele de fazer aquilo que hoje está faltando na juventude brasileira: uma mística, uma bandeira, uma luta pelo País. O projeto de lei foi aprovado aqui no Senado e vai já para a Câmara dos Deputados. Eu espero que seja aprovado.

Termos quatorze milhões de analfabetos é uma vergonha. Mas vergonha maior ainda é termos quatorze milhões de analfabetos no mesmo momento em que temos quatro milhões de universitários. Se não tivéssemos nenhum universitário, até que poderíamos dizer que os analfabetos são consequência do atraso intelectual do nosso País. Mas um país que tem quatro milhões e meio de universitários não pode ter quatorze milhões de analfabetos sem envergonhar-se profundamente dessa tragédia inexplicável em que tantos estão estudando além da educação de base e tantos estão estudando sem conseguir entrar na educação de base. É uma brecha entre os que não entram na educação de base e os que já saíram da educação de base.

A melhor maneira de resolver isso é casar os dois. Casar os dois com programas de alfabetização, Senador Mão Santa, forçado. Na medida em que se recebe dinheiro público, que se devolva ao público um pouquinho desse dinheiro sob a forma de participação em programas de alfabetização.

Nós precisamos, para erradicar quatorze milhões de analfabetos, em quatro anos, de apenas cem mil alfabetizadores. Não precisamos de quatro milhões, não precisamos de um milhão, não precisamos de quinhentos mil, não precisamos nem de duzentos mil. Precisamos de cem mil alfabetizadores. Mas, obviamente, a gente não vai querer que sejam os mesmos cem mil durante quatro anos para erradicar o analfabetismo. Então, que sejam quatrocentos mil, mas diferentes. Cada um fazendo apenas um semestre. Veja que o que se está pedindo é muito pouco, Senador Mão Santa! Que cada estudante universitário reserve seis horas por semana, durante um semestre, que tem quatro meses, do ponto de vista educacional. Só isto: seis horas por semana, durante quatro meses. Depois, em todos os outros semestres da universidade, não precisarão mais fazer isso. Não precisarão mais fazer isso. É muito pouco.

Agora, o que é importante é que, além de erradicar o analfabetismo, matando essa vergonha nacional, dando um incremento a este País - porque a gente sabe que um alfabetizado ganha mais do que um analfabeto, produz mais e, portanto, o País cresce -, além disso, cada um desses estudantes universitários que participar desse programa de alfabetização vai poder contar aos filhos e aos netos que fez parte do heróico movimento nacional para erradicar o analfabetismo neste País. Mas, se acha pouco isso, se acha que o patriotismo, o nacionalismo e o sentimento nacional são coisa do passado, não esqueça que um profissional que foi alfabetizador de adultos tende a ser melhor do que aquele que não foi, desde que estude o mesmo na sua profissão.

Um engenheiro que estudou bem para se formar e que foi alfabetizador de adulto será um engenheiro melhor do que outro que estudou igual a ele e que não foi alfabetizador de adulto, pela simples forma como vai se relacionar com seus trabalhadores. Conheço empresários que dizem que, na hora de escolher um engenheiro para ele, ele pergunta: “De que programa de voluntariado você participou? Quantas pessoas você conheceu das camadas mais pobres?”, para saber se ele vai ser capaz de conversar com aquilo que a gente chama de “peão” da construção. O alfabetizador de adultos, ele se relaciona melhor com o trabalhador. Por isso, ele pode ser um engenheiro melhor.

         Quero concluir, Senador Mão Santa, dizendo que, esta semana, a Comissão de Direitos Humanos, além de hoje ter tido uma sessão formidável, onde recebemos 500 ou 600 indígenas brasileiros, das mais diversas tribos, de todas as regiões do País, a discutir os direitos dos indígenas... E espero que um dia haja um Senador representante dos indígenas. Não estou dizendo um dia ter aqui um Senador indígena apenas, estou dizendo ter aqui um Senador eleito pelo povo indígena. Nós precisamos ter isso. São o 28º Estado do Brasil, os povos indígenas, massacrados, destruídos a cada dia, maltratados permanentemente.

         Hoje, foi um dia bonito na Comissão de Direitos Humanos. Mas, ontem, foi mais marcante. Ontem, quando vi aquele grupo todo chegando à conclusão de que é possível dizer que o analfabetismo é uma privação de direitos humanos, que aquele que não é letrado, que não é capaz de ler, sofre tortura, tem menos liberdade, tem menos mobilidade, cuida menos da sua saúde, tem mais dificuldades em ter um emprego, é torturado, diariamente. Quando vi aquele grupo chegar a essa conclusão, fiquei orgulhoso de ver uma Comissão do Senado dando uma lição ao mundo inteiro com base numa experiência brasileira, porque nenhum país hoje tem a riqueza de quatro milhões e meio de universitários e a tragédia de quatorze milhões de analfabetos. Os países que têm muitos universitários já não têm mais analfabetos. Os países que têm analfabetos ainda não têm muitos universitários. Nós temos os dois.

Por isso, acho que foi uma bela semana para o Senado: a sessão de hoje, com os indígenas; a sessão de ontem, sobre direitos humanos e alfabetização; e a sessão anterior, da Comissão de Educação, em que aprovamos o projeto que fará com que, no Brasil, casemos os estudantes universitários com os analfabetos para acabar com essa tragédia de uma juventude universitária que não sabe que no Brasil há analfabetos, e com a outra tragédia, de que há no Brasil o analfabetismo. Vamos casar o Brasil. Vamos casar o Brasil. Vamos casar os dois lados do Brasil: o lado universitário e o lado analfabeto.

Eu fui reitor. Quando assumi a reitoria da Universidade de Brasília, um tempo atrás, mandei fazer uma pesquisa e identificamos que havia 67 analfabetos na universidade: jardineiros, pedreiros... E quero dizer que, embora muitos digam que essa não era a função do reitor - a função do reitor é cuidar dos cursos universitários -, eu me dediquei e pude dizer que, em pouco mais de seis meses, nós não tínhamos um único trabalhador na Universidade de Brasília, por mais humilde que fosse sua função, analfabeto.

Eu lamento dizer que, hoje, no Brasil, as 56 universidades federais estão cheias de trabalhadores que não sabem ler. Trabalhadores cuja comunidade não se preocupou em fazer com que eles aprendessem a ler. Mas não quero que se preocupem apenas com os trabalhadores da própria universidade; quero ver a nossa universidade brasileira podendo carregar, com orgulho, o título de “a universidade que formou doutores e usou esses doutores para erradicar o analfabetismo”. Vamos fazer isso? Até para pagar o preço histórico de que nossos cursos superiores não lutaram pela Abolição da Escravatura. Os estudantes de nível superior no Brasil ficaram alienados durante todo o período da escravidão. Pelo menos agora, século XXI, que a universidade carregue a bandeira da abolição do analfabetismo no País! A abolição dessa falta de um direito humano fundamental, que é o direito a ler e escrever.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/05/2009 - Página 16288