Discurso durante a 134ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem a memória de Euclides da Cunha.

Autor
Arthur Virgílio (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/AM)
Nome completo: Arthur Virgílio do Carmo Ribeiro Neto
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem a memória de Euclides da Cunha.
Publicação
Publicação no DSF de 19/08/2009 - Página 36628
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • CUMPRIMENTO, AUTORIDADE, PRESENÇA, SENADO, SESSÃO ESPECIAL, HOMENAGEM, CENTENARIO, MORTE, EUCLIDES DA CUNHA (BA), ESCRITOR, IMPORTANCIA, CONTRIBUIÇÃO, PUBLICAÇÃO, OBRA INTELECTUAL, DESCRIÇÃO, VIDA, POVO, REGIÃO SEMI ARIDA, REGIÃO NORDESTE, GUERRA, MUNICIPIO, CANUDOS (BA), ESTADO DA BAHIA (BA), ATUAÇÃO, TECNICO, EXPEDIÇÃO, REALIZAÇÃO, LEVANTAMENTO, HIDROGRAFIA, RIO PURUS, ESTADO DO ACRE (AC), FACILITAÇÃO, DEFINIÇÃO, FRONTEIRA, BRASIL, PAIS ESTRANGEIRO, PERU, FRUSTRAÇÃO, ORADOR, FALTA, OPORTUNIDADE, CONCLUSÃO, EDIÇÃO, LIVRO, DEFESA, PRESERVAÇÃO, REGIÃO AMAZONICA, DENUNCIA, EXPLORAÇÃO, MÃO DE OBRA, EXTRAÇÃO, BORRACHA.

                          SENADO FEDERAL SF -

            SECRETARIA-GERAL DA MESA

            SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. ARTHUR VIRGÍLIO (PSDB - AM. Como Líder, pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, saúdo quem abriu a sessão, o Senador Marconi Perillo, 1º Vice-Presidente da Casa; saúdo o 3º Secretário da Mesa do Senado Federal, o Exmº Sr. Senador Mão Santa, e o neste momento Presidente da sessão, primeiro signatário do requerimento de convocação desta sessão solene em homenagem a Euclides da Cunha, que é o ilustre Senador Geraldo Mesquita Júnior, do PMDB do Acre; saúdo, e com muita honra, o Vice-Reitor Acadêmico da Universidade do Legislativo Brasileiro - Unilegis, o Exmº Sr. Ministro Carlos Fernando Mathias de Souza e o Presidente da Casa do Poeta Brasileiro, Sr. Luís Carlos Cerqueira.

            Sr. Presidente, para falar a respeito de uma personalidade nacional da dimensão de Euclides da Cunha, necessariamente devo referir-me a sua maior obra, Os Sertões, marco expressivo da literatura nacional. Creio, aliás, que o maior deles.

            Num tempo em que eram precárias as comunicações, desincumbiu-se ele da tarefa de relatar a epopéia de Canudos, em 1897. Homem de sólida formação universitária e detentor de invejável bagagem cultural, Euclides assumiu a configuração de repórter especial, a serviço do jornal O Estado de S. Paulo.

            E, então, produziu notáveis reportagens acerca do movimento rebelde chefiado por Antônio Conselheiro, no sertão da Bahia.

            Delas, na tranquila São José do Rio Pardo, interior paulista, viria a nascer o seu livro maior, escrito sobretudo com a alma, burilando cada frase com rara qualidade de escritor, mas sem se distanciar da precisão, requisito obrigatório no jornalismo.

            Já se disse que, nessa área, o ideal seria o jornalismo acolher, quando necessário, o bom estilo literário. E, no reverso, a literatura, em determinados gêneros - muitos, por sinal -, adotaria ao menos parcialmente a precisão que se exige do jornalismo.

            O esmero do escritor foi, depois, observado com rigor no livro que haveria de imortalizá-lo no Brasil e além fronteiras.

            Os Sertões foram, pois, resultado de um projeto de Euclides da Cunha, para cujo êxito sua mudança temporária para São José do Rio Pardo caíra do céu. Ali, na placidez do interior paulista, foi escrita boa parte do importante livro, obra básica da literatura brasileira. Presidente Marco Maciel, da rica, da exuberante literatura brasileira.

            Foi em 1898. Com a queda de uma ponte metálica, construída para facilitar o escoamento do café produzido na região, em direção à estação da Estrada de Ferro Mogiana, foi ali que Euclides da Cunha se instalou. À época, técnico do Departamento de Obras Públicas do Estado de São Paulo, sua transferência se deu para cumprir a missão de supervisionar as obras de reconstrução da ponte.

            Foram três anos em São José do Rio Pardo, tempo suficiente para concluir a obra da ponte e - aqui, sim, vem o lado importante - para ultimar o texto de Os Sertões.

            O tempo que o escritor passou no interior paulista fez com que adquirisse forte vinculação com São José do Rio Pardo, apreço esse que motivou a Semana Euclidiana, até hoje comemorada.

            Registro, com orgulho de amazonense e amazônida, outra paixão que Euclides da Cunha deixou evidente também pela minha região, a Amazônia, a região estratégica por excelência em nosso País.

            A Amazônia só não o levou a escrever um novo épico, uma nova obra-prima euclidiana, porque a morte se apresentou muito prematuramente, pouco depois de sua permanência na Floresta Maior.

            Euclides esteve na Amazônia na condição de técnico contratado para, como resultado da Expedição Juruá, apresentar levantamento hidrográfico do Rio Purus, que haveria de possibilitar ao Brasil a solução de questões de fronteira com o Peru.

            Em Os Sertões, Euclides contempla como figurante principal o homem brasileiro.

            No livro que não chegou a escrever sobre a Amazônia, o tema seria a Terra.

            Em ambos, a face humanista do escritor.

            No tocante a minha região, o escritor revelava preocupação com o meio ambiente, numa época em que isso não estava posto à mesa de estadistas ou intelectuais.

            Nos primeiros contatos com a Grande Floresta, sua reação denotava algum desapontamento, sem, no entanto, esconder o encantamento com “a vegetação labiríntica e o emaranhado dos rios”.

            Tais contornos serviriam de roteiro e objeto para o sonhado livro, a que daria o título de Um Paraíso Perdido, inspirado na obra poética de John Milton. O texto, no entanto, jamais saiu da idéia para o papel. Euclides, contudo, em involuntária compensação, legou, como relicário da literatura brasileira, alguns pensamentos em À Margem da História, publicado um mês depois da sua morte. Essa obra dividia-se em quatro partes: “Na Amazônia, Terra sem História”; “Vários Estudos”; “Da Independência à República”; e “Estrelas Indecifráveis”.

            Um Paraíso Perdido, na definição dele mesmo, seria um livro vingador.

            Isso mesmo! Vingança em forma de denúncia.

            O período em que Euclides permaneceu na Amazônia, embora pequeno, permitiu-lhe uma visão do quadro de crueldade que ali se criava com a escravidão do homem pelos grupos que exploravam a borracha na Floresta.

            Por isso e pela exuberância da região, o escritor pensou em compor a nova obra. Apenas conseguiu legar à literatura brasileira o que seriam os sete primeiros capítulos.

            Mesmo provisório, até o título ficou para os registros da trajetória literária brasileira: Amazônia, Terra sem História.

            Como escritor sempre atento ao estilo, o que ele logrou escrever não passava de subsídios, uma espécie de roteiro para a obra imaginada.

            Sua convivência com a fantástica região levou-o a ter forte preocupação ambiental. Era a fase de prosperidade da borracha, de que Manaus guarda sólidas lembranças, a começar pelo extraordinário Teatro Amazonas.

            Os escritos que se destinavam ao novo livro mostram em Euclides a face do repórter diante do que então via:

A impressão dominante que tive, e talvez correspondente a uma verdade positiva é esta: o homem, ali, é ainda um intruso.

            O homem, na visão de Euclides, seria, sim, um intruso, tanto que, em outro trecho do texto, ele completa:

O homem ali chegara sem ser esperado nem querido, quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais luxuoso salão. E encontrou uma opulenta desordem.

            Mas o que Euclides criava sobre a Amazônia brotava como pensamentos laterais à missão que, como técnico, levava a cabo na região. 

            Pela descrição que transportava para o papel, não vejo como não unir a sua veia de escritor também à face do sociólogo e, já lembrei, à do repórter e professor:

Não se sabe se tudo ali é uma bacia fluvial ou um mar profusamente retalhado de estreitos.

            Suponho que o livro em mente haveria de lhe exigir convivência mais prolongada com a Amazônia, dadas as imensuráveis dimensões que o encantavam. Para falar sobre a região, o tempo limitado claramente conspira contra quaisquer relatos.

            Ainda hoje é assim.

            Quantos não falam, exaltam, aplaudem ou criticam a Amazônia, sem nunca ter colocado os pés por ali!

            A Amazônia, estou convencido, permanece sem a necessária proteção, sem planejamento mais adequado. O que, longe de lá, falam sobre a Floresta Maior é quase verbo sem consistência. Que se fale sobre a Amazônia, sim! Mas, por favor, conhecendo-a! Ou tentando fazê-lo.

            Como Euclides, outro grande jornalista, Gilles Lapouge, esteve na Amazônia e escreveu L’Amazonie, livro-reportagem com um encadeamento de informação bruta, estatística, análises e depoimentos.

            Lapouge, jornalista francês que escreve - como Euclides o fez - para o jornal O Estado de S. Paulo, passou quatro semanas na região e considerou tal permanência um tanto curta. Para ele, teria sido razoável percorrer a Grande Floresta em quatro séculos, mas, para isso - aspas para Lapouge -, “me desculpem, eu não teria tido tempo.

            Muito do que se comenta e até se planeja, em utópicas políticas para a Amazônia, baseia-se, sabemos, em imaginação. Imaginação do Fantástico, talvez!

            Um diagnóstico verdadeiro e preciso sobre a Amazônia exige a participação também de cientistas e estudiosos. E, principalmente, do homem da Amazônia. Só assim será possível chegarmos a uma correta definição desse mundo de águas diluvianas e verde estonteante, até hoje exigente desafio para os brasileiros.

            Euclides, com seu projeto de livro, chamou a atenção para isso, apontando a relevância da região tanto para o Brasil, quanto para toda a humanidade.

            Na Amazônia, é de se repetir, Euclides da Cunha cumpria missão contratual, completada em tempo oportuno pela sua inegável qualidade de técnico. Gênio literário e, ao mesmo tempo, técnico competente. Eis aí Euclides da Cunha.

            Ele, porém, foi muito além. Com seu fantástico perfil de escritor, o repórter de Canudos jamais conseguiria ignorar a imensidão verde entrecortada por rios e onde, para ele, o homem havia chegado, no mínimo, de forma impertinente.

            A obra de Euclides sobre a Amazônia, nos moldes que supunha e da qual tinha um incipiente “desenho”, haveria de figurar como vigorosa arma para a defesa da região.

            Na denúncia da exploração do homem na Amazônia e com amparo em Caspar Barleaus, Euclides usou frase que encerra contundente aforismo ou máxima: “Ultra aequinotialem non peccavi” - não existe pecado abaixo do Equador.

            Lembrava-se ele da sentença engendrada pelo clérigo e professor de Lógica da Universidade de Leiden para explicar, em 1631, desmandos da época do império colonial holandês no Brasil, no século XVII, em minucioso relato de extenso título: História dos Feitos Recentemente Praticados durante Oito Anos no Brasil e Noutras Partes sob o Governo de Wesel, Tenente-General de Cavalaria das Províncias-Unidas sob o Príncipe de Orange. Ou, em latim, língua em que redigiu o texto: Casparis Balaei, Rervm per octennivm im Brasilia et alibi nuper geftarum, Sub Praefectura Illftriffimi Comitis I. Mavritii, Nassoviae, &c. Comitis, Nunc Vefallae Gubernatoris & Equitatus Foederatorum Belfii Ordd. Fub Avriaco Ductoris, Historia.

            Além de apresentar o seringueiro como um homem sujeito à escravidão na região - e essa seria a primeira denúncia de desrespeito aos direitos humanos na Amazônia -, Euclides transmite suas impressões sobre a região no mesmo texto de À Margem da História. Aspas para o genial brasileiro:

À entrada de Manaus, existe a belíssima Ilha de Marapatá - e essa ilha tem uma função alarmante. É o mais original dos lazaretos - um lazareto de almas! Ali, dizem, o recém-vindo deixa a consciência.

Meça-se o alcance deste prodígio da fantasia popular.

A ilha que existe fronteira à boca do Purus perdeu o antigo nome geográfico e chama-se Ilha da Consciência; e o mesmo acontece a uma outra semelhante, na foz do Juruá. É uma preocupação: o homem, ao penetrar as duas portas que levam ao paraíso diabólico dos seringais, abdica às melhores qualidades nativas e fulmina-se a si próprio, a rir com aquela ironia formidável.

            Hoje, Marapatá é área complementar pertencente à Superintendência do Pólo Industrial de Manaus. E continua linda, como a descreveu Euclides. Felizmente com tênue lembrança da distante fase que tanta aversão a ele causara.

            Em outro texto, exuberante, completou, como que a realçar o triste papel que seu sentimento ligava, não sem asco, à destinação conferida à ilha:

É que, realmente, nas paragens exuberantes das héveas e castilloas, o aguarda a mais criminosa organização do trabalho que ainda engendrou o mais desaçamado egoísmo”, reservando ao seringueiro, à gleba das ‘estradas’, o vil e desumano trabalho escravo.

            Técnico, valeu-se de “alguns cifrões secamente positivos e seguros”.

Verde esta conta de venda de um homem:

No próprio dia em que parte do Ceará, o seringueiro principia a dever: deve a passagem de proa até ao Pará (35$000) e o dinheiro que recebeu para preparar-se (150$000). Depois, vem a importância do transporte, numa gaiola qualquer, de Belém a barracão longínquo a que se destina, e que é, na média, de 150$000. Aditem-se cerca de 800$000 para os seguintes utensílios invariáveis: um boião de furo, uma bacia, mil tigelinhas, uma machadinha de ferro, um machado, um terçado, um rifle (carabina Winchester), duzentas balas, dois pratos, duas colheres, duas xícaras, duas panelas, uma cafeteira, dois carretéis de linha e um agulheiro. Nada mais. Aí temos nosso homem do barracão senhorial, antes de seguir para a barraca, no centro, que o patrão lhe designará. Ainda é um brabo, isto é, ainda não aprendeu o corte da madeira e já deve 1:135$000. Segue para o posto solitário encalçado de um comboio, levando-lhe a bagagem e víveres, rigorosamente marcados, que lhe bastem para três meses: 3 paneiros de farinha d’água, 1 saco de feijão, outro, pequeno, de sal, 20 quilos de arroz, 30 de charque, 21 de café, 30 de açúcar, 6 latas de banha, 8 libras de fumo e 20 gramas de quinino. Tudo isso lhe custa 750$000. Ainda não deu um talho de machadinha, ainda é o brabo canhestro e já tem o compromisso sério de 2:090$0000.

            Não apenas esses aspectos chamavam a atenção do escritor. Euclides encantava-se também com a fantástica visão da região.

         Em 30 de dezembro de 1904, pouco depois de seu desembarque em Manaus, transmitiu, naturalmente em texto, sua primeira manifestação de apreço e aconchego à Amazônia. E, também, de reconhecimento. Está em carta enviada a seu pai:

(...)Em todos os pontos onde saltei, fui gentilmente recebido graças à influência de seu grande neto - os Sertões.

            Ele nem de longe avaliava o renome conquistado pela notável obra que, muito justamente, conquistara o Brasil:

(...) Realmente nunca imaginei que ele (Os Sertões) fosse tão longe. No Pará tive uma lancha especial oferecida pelo senador Lemos e alguns rapazes de talento. Passei ali algumas horas inolvidáveis... e jamais esquecerei a surpresa que me causou aquela cidade. Nunca São Paulo e Rio terão as suas avenidas monumentais largas de 40 metros e sombreadas de filas sucessivas de árvores enormes.

            Para mim, não restam dúvidas: se o pretendido livro de Euclides se tivesse completado, alcançaria dimensão equivalente - eu ouso dizer, Senador Marco Maciel - à grandiosidade de Os Sertões.

            O desejo de Euclides de legar ao Brasil seu acalentado Um Paraíso Perdido, para secundar Os Sertões, não veio a se concretizar.

            Se materializado, o texto certamente seria mais que perfeito, em dimensão e estrutura linguística, em beleza literária e em precisão descritiva. Enfocaria a Amazônia como todos gostaríamos de lê-la. Mas como resultado de presença física na região. Não se limitaria a uma repetição de frases surradas como as que amiúde e à exaustão são proclamadas e publicadas, inclusive pelos que jamais pisaram a terra das águas e do verde.

        Com o escritor, nada disso. Ele foi, viu, sentiu e escreveu, além de prometer o novo livro, como neste trecho de carta ao pai. Aí diz Euclides ao seu pai:

(...) Nada te direi da terra e da gente. Depois, aí (no Rio de Janeiro), e num livro: Um Paraíso Perdido, procurarei vingar a hibe maravilhosa de todas as brutalidades das gentes adoidadas que a maculam desde o século XVIII. Que tarefa e que ideal!”

            E mais:

(...) Decididamente, nasci para Jeremias destes tempos. Faltam-me apenas umas barbas brancas, emaranhadas e trágicas”

(Jeremias: o mais conhecido profeta do Antigo Testamento, autor do Livro das Lamentações).

            A descrição de Euclides sobre a Amazônia é rica em aspectos morfológicos e artísticos, situando-a em plano no qual figuram o escritor e o técnico, a dupla condição que o levava a estabelecer comparações com áreas de montanhas, incomuns na região.

            Diante de cenário para ele novo, Euclides sentenciou:

(...) Na antemanhã do outro dia - um daqueles glorious days de que nos fala Bates, subi para o convés de onde, com olhos ardidos de insônia, vi, pela primeira vez, o Amazonas...

Salteou-me, afinal, a comoção que eu não sentira. A própria superfície lisa e barrenta era mui outra. Porque o que se me abria às vistas desatadas naquele excesso de céus por cima de um excesso de águas, lembrava (ainda incompleta e escrevendo-se maravilhosamente) uma página inteira e contemporânea do Gênesis.

Compreendi o ingênuo anelo de Cristóvão da Cunha: o grande rio devera ter nascido no Paraíso”.

(Cristóvão da Cunha era um militar português, capitão de Ordenanças)

            E mais - novamente Euclides:

(...) Atentei outra vez nos baixios indecisos, nas ilhas ou pré-ilhas meio diluídas nas marejadas - e vi a gestação de um mundo. O que se me afigurava um bracejo angustioso era um arranco de triunfo. Era a flor salvando a terra numa luta onde vislumbrava uma inteligência singular: aqui, enfileirando as aningas de folhas rijas, rebrilhantes e agudas à feição de lanças, em estacadas unidas para o combate das águas; além, estendendo diante das correntezas refertas de sedimentos, os retiários e os filtros das carananas e dos aturizais; por toda a banda, alongando e retorcendo os tentáculos flexíveis dos mangues em urdiduras inextricáveis, em cujas malhas infinitas o lodo quase diluído vai transmudando-se em solo resistente, inventando depois a anomalia dos arbustos-cipós e ajustando sobre tudo aquilo os longos traços de união dos galhos estirados das apuiranas e dos juquiris - até acravar-se no primeiro firme, que se vai construindo um alto maritizeiro, abrindo no azul os seus enormes leques sussurrantes e prenunciando a floresta ou vem logo após, impressionadora e majestosa, destruindo de repente toda a monotonia daquela imensidade nivelada com as frondes das samaúnas, altas e redondas, a ondearem nos sem-fins das paisagens como se fossem colinas.

Compreendi os mesmos céus resplandecentes e limpos: e que a terra toda surge à flor das águas e emerge mais e mais, crescendo na ascensão da seiva das florestas atraídas vigorosamente pelas energias incomensuráveis da luz.

            Pelas palavras tantas que produziu sobre a Região da Floresta Maior, sou levado a crer que Euclides também se tornou, espiritualmente, amazonense, como todo brasileiro, de qualquer ponto, ele que era fluminense de Cantagalo.

            Não é por acaso. E isso ficou evidente em seu discurso de posse, como Acadêmico da Academia Brasileira de Letras. Suas primeiras palavras, em mais de uma lauda, referiam-se, poeticamente, à Amazônia:

Compreendi, ali, que o Grande Rio, como foi dito, devera nascer no Paraíso. Ali a terra toda surge à flor das águas e emerge mais e mais, crescendo na ascensão da seiva das florestas atraídas vigorosamente pelas energias incomensuráveis da luz.

            Encerro, lamentando não ter havido oportunidade de Euclides da Cunha concluir e editar seu livro sobre a Amazônia.

            Com sua pena, seu estilo e sua sensibilidade literária, ele se teria transformado, na mesma dimensão com que relatou Canudos, num forte e sincero aliado em defesa da Amazônia, certamente o mais talentoso de todos.

            Haveria de ser, pois, uma voz representativa clamando contra a devastação e a consequente degradação da mais rica biodiversidade global. Biodiversidade brasileira, sim. Ameaçada, também. Por todos cantada. Por Euclides, igualmente, pelo amor nele impregnado, pelas matas estonteantes e pelos misteriosos rios de dilúvio.

            Muito obrigado, Sr. Presidente.

            Era o que tinha a dizer. (Palmas.)


Modelo1 7/17/245:33



Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/08/2009 - Página 36628