Discurso durante a 103ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Apresentação de voto de pesar pelo falecimento do escritor português José Saramago.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Apresentação de voto de pesar pelo falecimento do escritor português José Saramago.
Aparteantes
Paulo Paim.
Publicação
Publicação no DSF de 22/06/2010 - Página 30456
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, ESCRITOR, PAIS ESTRANGEIRO, PORTUGAL, ELOGIO, CONDUTA, ENGAJAMENTO, COMUNISMO, COMPETENCIA, OBRA ARTISTICA, IMPORTANCIA, CONTRIBUIÇÃO, VALORIZAÇÃO, LINGUA PORTUGUESA, MUNDO, APRESENTAÇÃO, VOTO DE PESAR.
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE MORTE, LEONEL BRIZOLA, EX GOVERNADOR, ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (RS), ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), ELOGIO, ATUAÇÃO, POLITICA NACIONAL, EMPENHO, DEFESA, MELHORIA, EDUCAÇÃO.

                          SENADO FEDERAL SF -

            SECRETARIA-GERAL DA MESA

            SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Sem revisão do orador.) - Obrigado, Senador Mão Santa.

            Senador, venho aqui para trazer e pedir que o senhor coloque em votação, senão hoje em outro momento, um voto de profundo lamento pelo desaparecimento de um dos mais importantes escritores que a humanidade teve e certamente o mais importante deste século XX na Língua Portuguesa, que foi o escritor José Saramago.

            Saramago faleceu na sexta-feira, aos 87 anos. E a gente precisa lembrar do seu nome, aqui no Senado da República brasileira, pela importância que ele teve para o nosso idioma, sem o qual nós não teríamos a representatividade que temos hoje.

            Ao lado de Fernando Pessoa, José Saramago é o nome da Língua Portuguesa no século XX. Apesar de que nós, brasileiros, também tivemos grandes nomes neste século XX, ele foi aquele que encarnou a simbologia do Prêmio Nobel para o nosso idioma.

            Quando eu soube do falecimento do Saramago, eu lembrei, imediatamente, de um voo de helicóptero que eu fiz com ele por sobre o Distrito Federal, em que ele disse algo que só vem da cabeça de uma pessoa com a sensibilidade poética que ele tinha. Olhando para baixo, depois de rodarmos por todo o Distrito Federal, desde as mais pobres cidades até a parte mais rica, olhando para baixo quando estávamos aqui, nisso que se chama Plano Piloto, que todos conhecem, Senador Paim, e disse: “Que engraçado: daqui a 100 anos, isto aqui, que é o moderno, vai ser o velho; e, ao redor, o que é velho hoje vai ser o moderno! Porque aqui vocês se transformaram num patrimônio histórico e vão conservar isto; lá eles não vão conservar, mas vão modificar e modernizar.”

            Isso me trouxe duas reflexões: primeiro, a reflexão de que o antigo não significa menos valoroso. O Plano Piloto, conservado, sem ser moderno daqui a 100 anos, refletirá os anos cinquenta do século XX; quando, daqui a 100 anos, a gente vai ter já o século XXII, este Plano Piloto, apesar de velho, será antigo e terá a riqueza de ter congelado um momento histórico. Esse congelamento que hoje vemos nas ruínas vamos ver aqui vivo.

            A outra reflexão, ao lembrar desse voo, foi de que, na história, as coisas se renovam. Na vida, ela morre e fica a lembrança - obviamente falando deste plano da vida terrestre, aquele plano em que Saramago acreditava.

            Aí me lembrei de uma frase dele em que disse, prevendo uma morte próxima, pela idade avançada: “Mergulho no nada. Meu corpo se transformará em átomos que se espalharão pelo mundo”. Esse é o destino de cada um de nós, mas não da história.

            Pessoalmente, ele mergulhou no nada. Começa a virar átomos, sem a vida que ele carregou ao longo de 87 anos. Mas a sua obra fica; ela servirá para iluminar e alimentar centenas de milhares, milhões de pessoas que irão ler a sua obra, em 30 livros. São 30 libros que mostram o talento de um escritor capaz de descrever, da maneira que ele inventou, com um estilo absolutamente pessoal. Ele vai inspirar gerações e gerações no futuro.

            Hoje, o idioma português está órfão. Órfão! O idioma português está órfão, a língua portuguesa está órfã. Mas em algum momento surgirá outro Saramago, em algum momento surgirá, talvez até entre os escritores que já existem no Brasil, na África portuguesa, na Ásia, em Timor Leste, em Portugal, surgirá outro escritor que colocará a língua portuguesa outra vez no patamar alcançado pelo nome da dimensão de Saramago, porque a história se renova mesmo que a vida não.

            Saramago está-se transformando em átomos, está mergulhado no nada como pessoa, mas está vivo, ativo, como uma entidade em que ele conseguiu se transformar ao escrever sua obra.

            Cabe lembrar o talento que o fez ser o grande escritor. Mas cabe lembra também, além do talento, a coragem de um escritor que não teve medo de se manter fiel aos seus princípios, aos seus compromissos, a sua fé que se chocava com a fé de tantos outros; a coragem inclusive de defender posições de comunistas, posições de ateu, como ele se declarava, contra o mundo inteiro ao redor que via esse comunismo entrando em crise, desaparecendo e essa posição que ele tinha o direito de ter, como ateu que foi, diante de um mundo de tanta religiosidade.

            Lembro também que eu o apresentei, Senador Mão Santa, a um dos secretários que eu tinha como Governador e eu disse: “Saramago, este aqui foi comunista”. Ele disse: “Não foi”. Eu disse: foi, eu o conheço. Ele disse: “Não, porque quem foi comunista é comunista ou não foi comunista”. Essa era a convicção dele contra toda a corrente.

            Essa coragem precisa ser lembrada mesmo por aqueles que discordarem dele.

            Além disso, cabe lembrar também uma capacidade imensa dele, a capacidade de superar dificuldades. Saramago era filho e neto de analfabetos e conseguiu superar isso. Segundo, ele superou o fato de que começou a escrever, com um mínimo de reconhecimento, já aos 60 anos, e não quando jovem, como a maioria. Foi um homem de superação!

            Finalmente, cito uma outra qualidade dele: a militância, a militância constante. Não acontecia um problema em parte alguma do mundo sobre o qual ele não se manifestasse, tomando posição. Lá de sua casa, isolada em uma pequena ilha, ele dava a sua opinião. Ele não foi omisso diante de nenhum problema da civilização que o abrigou, da civilização que ele ajudou a fazer mais bela com seus livros.

            Saramago precisa ser lembrado. Neste momento, como uma pessoa de língua portuguesa, eu me sinto órfão. Sinto o meu idioma órfão porque sei que teremos dificuldades de ter pelo menos um ou dois livros que ele deixou inacabados. E sei que depois desses um ou dois que ele deixou inacabados não teremos outros livros de Saramago.

            E não temos hoje ninguém com o talento dele para captar onde estão essas palavras mágicas. Ele captava essas palavras, ele captava essas histórias. Ele escrevia as histórias que lhe chegavam, como a uma antena, que caracteriza o talento de um escritor. O talento para captar as histórias, para captar as palavras, para arrumar as palavras da maneira tão especial como ele arrumava; às vezes, páginas inteiras sem um ponto, em que sujeito e verbo... A gente tinha certa dificuldade de entender, até mergulhar no estilo dele. Aí a gente não conseguia parar de ler o livro. Um escritor que é difícil você avançar em uma, duas, três páginas, e difícil parar depois dessas.

            Esse nosso irmão em língua portuguesa, com a sensibilidade que eu percebi nos momentos em que estive com ele, esse cidadão, esse escritor, ele mergulhou no nada. Ele está se dissolvendo em átomos, mas está presente conosco.

            Por isso, apresento, Senador Mão Santa, e peço que seja votado...

            O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PSC - PI) - V. Exª, que é professor e nos ensina a cada instante. Por exemplo, no caso de Gabriel García Márquez, que nós sabemos que escreveu muitos livros, Cem Anos de Solidão foi fundamental para ele ganhar o Prêmio Nobel. De todas essas obras de Saramago, qual foi a que...

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Por coincidência ou não, a que mais me tocou foi a última. É uma obra...Claro, a que mais me tocou.

            O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PSC - PI) - Não, eu quero saber a que motivou a concessão do Prêmio Nobel.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Ele recebeu o Prêmio Nobel pelo conjunto da obra. O Evangelho Segundo Jesus Cristo foi uma obra marcante...

            O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PSC - PI) - Mas Gabriel García teve um conjunto de obra, mas a marcante foi Cem Anos de Solidão.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Ele não teve. Não, ele não teve. No caso dele, foi o conjunto. Não houve só uma. Para mim, a última obra que ele publicou, chamada Caim - aquele que a gente aprendeu a dizer que foi maldito, porque matou o irmão Abel.

            Ele escreveu essa história de uma maneira que só um gênio podia imaginar. Ele escreveu um livro em que o Caim, depois de matar Abel, sai viajando pelo mundo. E ele está presente na Arca de Noé, e ele está presente em Sodoma e Gomorra, quando foram destruídas. E, mediante isso, ele vai mostrando a visão que tem Caim dialogando com Deus. E, de fato, é um livro que não está perto de ser cristão nem de longe, porque o diálogo de Caim com Deus choca qualquer um com sentimento religioso. É uma visão tão diferente da que nós temos que nos choca, mas que embeleza.

            E, aqui, eu quero fazer um protesto contra alguns que dizem que um ateu é incapaz de escrever um livro bonito. É, sim, capaz, mesmo que eu discorde das ideias que ele apresenta. Como Borges foi capaz de escrever maravilhas, apesar de ser um conservador politicamente. Temos que separar essas duas coisas. É um equívoco imaginar que você é bom em tudo ou ruim em tudo.

            Presidente, por essa razão apresentei aqui um voto de pesar que peço que seja...

(Interrupção do som.)

            O Sr. Paulo Paim (Bloco/PT - RS) - Senador Cristovam, permite-me um aparte, depois que V. Exª concluir?

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT-DF) - Vou dar o aparte, mas tenho certeza de que a minha conclusão vai provocar o senhor no seu aparte.

            No mesmo momento em que venho aqui trazer um voto de pesar pela morte de Saramago, venho trazer aqui um voto de lembrança pelos seis anos da morte do seu conterrâneo, Leonel Brizola.

            Leonel Brizola, que foi o único dos grandes políticos do Brasil, desses que adquirem uma dimensão maior, como poucos, tipo Arraes, ele próprio, o Presidente Lula, que colocou a educação sempre em primeiro lugar. Nos discursos, ele deixava claro que educação era o motor do progresso, tanto econômico como social. Como Governador em dois Estados, como Prefeito em uma cidade, ele provou, na prática, o que defendia nas suas posições políticas.

            No mesmo momento em que lamento a morte de Saramago, deixo o meu ponto de lembrança da vida de Leonel Brizola neste dia em que comemoramos seis anos do seu desaparecimento, quase com a mesma idade de Saramago, apenas um pouquinho mais jovem. Ele, como Saramago, mergulhou no nada, dissolveu-se em átomos, mas deixou sua obra. No caso de Saramago, a obra literária e o exemplo de militância. No caso de Brizola, a sua obra política e também o exemplo de militância. Ficam aqui essas duas lembranças desses dois grandes seres humanos que, em vida, fizeram tanto e que, em morte, nos obrigam a que lembremos deles e que agradeçamos a eles por tudo o que eles fizeram e nos deixaram. Eles se foram, mas as coisas deles continuam conosco.

            Era isso o que eu tinha a dizer, mas concedo um aparte antes ao Senador Paim, para aparte.

            O Sr. Paulo Paim (Bloco/PT - RS) - Senador Cristovam, eu estava no interior do Rio Grande. Uma série de pessoas resolveram, numa atividade, fazer uma homenagem a Saramago. Pediram-me que, em um ou dois minutos, eu dissesse alguma coisa e vou dizer aqui o que disse lá. Estava chovendo muito, Senador Cristovam, e, quando chove, a terra molhada acaba trazendo um perfume gostoso. Então eu disse: Saramago me lembra o cheiro gostoso da terra molhada sob o toque da chuva. Eu disse também que Saramago, pela sua visão socialista e comunista, lembrava-me as flores do campo, que eu acho as mais lindas. Eu disse também que Saramago me lembrava os poetas noturnos que conspiram de forma permanente, com a sua escrita, pela construção de uma sociedade mais justa, igualitária, libertária, para todos. Eu disse isso e acho que consegui resumir o que penso de tudo que ele fez e do que ele escreveu. Hoje, V. Exª aqui discorre, com muita tranquilidade, sobre a caminhada desse homem que ficou como um marco para todos nós. Não posso deixar de concluir, dizendo que falo muito de homens que marcaram a minha vida. Gosto de lembrar do Gandhi, gosto de falar do Mandela. É claro que falo do Lula e de Barack Obama, mas nunca deixei de falar de Leonel Brizola. Os seus pronunciamentos eram encantadores. Sempre repito que estive com ele algumas vezes e que ele nos seduzia com a sua fala. Horas passavam e eu ficava ouvindo. A última vez que o recebi foi aqui no Senado, quando eu era Vice-Presidente da Casa. Foi um momento mágico, que jamais esquecerei. Brizola está - eu diria, como disse antes - na alma e no coração de todos nós. Parabéns a V. Exª.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Eu que agradeço.

            Quero dizer que essas últimas palavras fecham meu discurso melhor que qualquer coisa que eu pudesse dizer. Por isso, termino, pedindo apenas que, no momento oportuno, a Mesa aprove o meu pedido de um voto de pesar do Senado Federal à família de Saramago e a todo povo português.


Modelo1 8/16/249:15



Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/06/2010 - Página 30456