Discurso durante a 64ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexões acerca do Programa Bolsa Família.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • Reflexões acerca do Programa Bolsa Família.
Publicação
Publicação no DSF de 07/05/2013 - Página 23594
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • COMENTARIO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, O GLOBO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), ASSUNTO, INSUCESSO, POLITICA SOCIAL, BOLSA FAMILIA, INICIATIVA, GOVERNO FEDERAL, RELAÇÃO, EXTINÇÃO, POBREZA, DEFESA, NECESSIDADE, VINCULAÇÃO, PROGRAMA, AMPLIAÇÃO, ACESSO, EDUCAÇÃO.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, Srªs Senadoras, o que me traz aqui hoje, Senador Ataídes, é uma matéria de ontem, de primeira página, com uma manchete bem grande no jornal O Globo feita pelo jornalista Demétrio Weber.

            Eu creio que essa matéria deve ficar nos anais da imprensa brasileira pelo papel que ela tem quando a gente analisa os trabalhos, o cuidado do jornalista e da equipe e, sobretudo, a competência para conseguir as informações que eu próprio venho tentando há muito tempo e nunca consegui. Eles tiveram a competência de, em vez de ficar apenas pedindo ao Ministério, como eu pedia, eles conseguiram através da lei que garante acesso às informações.

            Por que eu digo que essa matéria é tão importante? Vamos ver primeiro o lado positivo que a matéria mostra da Bolsa Família.

            Senador, já imaginou como estariam 50 milhões de brasileiros e de brasileiras que hoje recebem a Bolsa Família se ela não existisse? Já pensou na dificuldade dessas pessoas para comer no dia a dia? Se alguém não está conseguindo perceber essa importância, olhe a seca no Nordeste. Sou nordestino, e vi seca. As pessoas migravam para as cidades; as pessoas assaltavam carros com comida, ônibus, caminhões. Hoje elas têm um dinheirinho que lhes permite comprar comida. A tragédia econômica e social é total nessas regiões, em seca; mas a fome não veio, como sempre vem, graças à Bolsa Família.

            Esse é um programa que representa, a meu ver, uma das grandes conquistas da democracia brasileira; essa ideia de transferir renda através do governo, da sociedade, para os mais pobres do Brasil. A nossa elite sempre foi egoísta, arrogante.

            Com a Bolsa Família nós temos talvez o primeiro gesto de generosidade da elite brasileira, graças ao governo Fernando Henrique Cardoso, com a Bolsa Escola, e com o governo Lula, que ampliou o número, de 12 para 50 milhões.

            Dito isso, desse meu elogio, dessa minha constatação de que a Bolsa Família é uma conquista no atendimento às necessidades básicas, e vou repetir, é uma conquista no atendimento às necessidades básicas, quero mostrar que ela é um fracasso do ponto de vista da eliminação das necessidades básicas e do ponto de vista da superação do quadro da pobreza.

            Há uma diferença muito grande entre atender à necessidade e abolir a necessidade. A Bolsa Família atende, sim, e merece ser elogiada por isso. Atende para resolver uma necessidade imediata, mas não serve para aquilo que nós todos desejamos, que é abolir a necessidade de bolsas. O triste é que, na sua concepção inicial - e tenho orgulho de dizer que formulei -, a Bolsa Escola casava a bolsa e a escola. A bolsa atendia à necessidade, a escola abolia a necessidade. Havia um casamento entre atender à necessidade já com esse dinheiro, não dá para esperar que a criança estude para sair da pobreza, mas, ao mesmo tempo em que atendia à necessidade imediata, abolia a necessidade futura por meio da educação das crianças.

            O presidente Lula, Senador Ataídes, cometeu três grandes erros ao transformar a Bolsa Escola em Bolsa Família. O primeiro erro foi o nome. Parece tolice, mas, quando uma mãe recebe um dinheiro que vem sob o nome de Bolsa Escola, ela pensa: eu recebo esse dinheiro porque o meu filho está na escola e, pela escola, ele vai sair da pobreza. Quando ela recebe um dinheiro chamado Bolsa Família ela pensa: eu recebo esse dinheiro porque a minha família é pobre; se eu sair da pobreza eu perco esse dinheiro.

            Os neurolinguistas explicam isso; a palavra passa a ideia. O Lula, ao mudar de Bolsa Escola para Bolsa Família, quebrou o compromisso educacional, quebrou, na cabeça das mães, a vinculação daquela renda com a escola aonde o filho ia. Quebrou, rompeu, acabou, na cabeça das mães, esse compromisso.

            O segundo erro foi ter tirado o Programa do Ministério da Educação e colocado no Ministério da Assistência Social, que é chamado de Desenvolvimento Social, mas, na verdade, é o Ministério da Assistência Social.

            Fora do MEC, perdeu-se a conotação do compromisso com a educação. Um erro grave! Facilitou o atendimento da necessidade, mas dificultou a abolição da necessidade no futuro.

            O terceiro erro foi misturar o Programa Bolsa Escola, vinculado à educação das crianças, com Vale-Gás, Vale-Alimentação. Vale-Gás e Vale-Alimentação tinha que ser para todos, mas Bolsa Escola tinha que ser para quem tem criança na escola.

            Foram três erros gravíssimos, ao lado da grande coisa que foi aumentar o número. Temos que elogiar, temos que parabenizar. Chegar praticamente a todas as famílias necessitadas e atender, com um minimozinho, é verdade, para superar essa necessidade imediata, mas sem abolir a necessidade.

            Senador Ataídes, acho que dá para fazer uma comparação com a nossa luta pela abolição da escravatura. A Bolsa Família é mais ou menos como a Lei do Ventre Livre, ou como a Lei dos Sexagenários, que, de fato, ajudou a melhorar a situação dos escravos. Uma criança nascia de mãe escrava, era escrava desde o nascimento. A Lei do Ventre Livre trouxe essa coisa maravilhosa: o filho da escrava fica livre; mas não aboliu a escravidão. A mãe continuou escrava, continuava sendo possível vender os escravos adultos de um lugar para o outro. A Lei do Ventre Livre foi um avanço, mas não foi a mudança que a gente queria.

            A mesma coisa foi a Lei do Sexagenário. Colocar um velho de 60 anos para trabalhar era uma maldade. A Lei do Sexagenário disse: vamos acabar essa maldade; os velhinhos não precisam trabalhar. Mas a escravidão continuou.

            A Bolsa Família tem o mesmo tipo de resultado: é boa, merece elogios, tem que ser comemorada. Mas tem que ser criticada, porque não corresponde à Lei Áurea, não corresponde à abolição da necessidade; corresponde apenas ao atendimento à necessidade.

            E a mudança para o Ministério do Desenvolvimento Social foi uma tragédia, porque a obrigação do Ministério é atender, não é abolir; é atender à necessidade dando dinheiro, não é colocar as crianças na escola. O Ministério do Desenvolvimento Social não consegue colocar na cabeça, a Ministra atual não consegue colocar na cabeça dela a importância da educação.

            Quer um exemplo? Vou repetir o que já falei aqui: apresentei um projeto de lei que colocava uma condicionalidade para receber a Bolsa Família. Do mesmo jeito que está escrito que a família tem que ir à escola - mas a própria matéria de O Globo mostra que isso não é cumprido -, tem que ir para a escola. Está escrita essa condicionante

            Eu coloquei mais uma condicionante: os pais teriam de ir à escola dos filhos pelo menos uma vez por ano, Senador, porque educação não é só escola, é escola e família.

            Esse projeto passou pelo Senado inteiro. Chegou à Câmara e passou por diversas Comissões, na última Comissão o Governo da Dilma não deixou ser aprovado. A Presidenta Dilma, que no dia 1º de maio falou tão bem sobre educação, não permitiu que fosse aprovado um projeto que fazia com que as famílias fossem à escola onde estudam os filhos. Por quê? A Ministra me disse que nós temos que atender aos pobres e não dar obrigação a eles. Mas sem essa obrigação, os filhos não estudam, se não estudam, não abandonam a necessidade e continuam prisioneiros do Bolsa Família, que é o que a matéria de O Globo mostrou.

            Ela mostrou o que falei diversas vezes aqui e não tinha prova. O Globo deu a prova de que já estamos na segunda geração de mães recebendo o Bolsa Família, ou seja, necessitando. Crianças que recebiam a Bolsa há dez anos, hoje a recebem como mães e não mais como crianças. Perpetuou-se. E essa mãe, que era criança e recebe, suas crianças vão continuar necessitando e felizmente vamos continuar dando a Bolsa Família. Pior seria se não déssemos. Felizmente vai continuar sendo dada a Bolsa Família.

            O ideal, e essa era a ideia inicial, é que em uma geração ninguém mais precisasse de Bolsa Família nem de Bolsa Escola. Essa era a ideia. A Bolsa Escola é um programa abolicionista. A Bolsa Família é um programa assistencialista. E isso faz toda a diferença, isso faz uma diferença radical.

            A própria matéria do jornalista Demétrio Weber mostra que quando analisamos, em certas famílias têm meninos estudando, têm meninas estudando, mas deveriam todos e todas estar estudando. Ele mostra como uma menina que recebe Bolsa Família está fazendo curso universitário, mas seria preciso que todos estivessem terminando o ensino médio com qualidade, todos estivessem conseguindo fazendo um bom ensino de formação técnica, para ter um emprego e não precisar da Bolsa Família.

            Lamento profundamente que o Governo Lula e a Dilma continuem com essa concepção, que tenham preferido um programa assistencialista a um programa abolicionista; tenham preferido apenas uma coisa boa que é atender a necessidade àquilo que, realmente, é revolucionário: abolir a necessidade!

            Isso é pela educação, como V. Exª mesmo já deu o seu exemplo um dia desses - é a escola, e não é a Bolsa que resolve o problema. A Bolsa é uma condição, um instrumento que usamos, mas o grande mérito desse programa é a escola, não é a Bolsa. Por isso, a mudança de nome foi um erro.

            E digo isso não por uma questão de mágoa de eu ter inventado esse nome, porque fui eu que inventei esse nome. O programa já existia, criei, conceitualmente, o programa, quando reitor da UnB. Escrevi um livro que foi publicado, ainda nos anos 80, propondo essa ideia, mas não tinha o nome Bolsa Escola, era Renda Mínima Vinculada à Educação.

            O Bolsa Escola - vou fazer aqui uma confissão - criei durante a campanha para Governador. Quando se perguntou se não se podia usar esse programa para o Distrito Federal, eu achava que não era possível, porque viria todo mundo do Brasil. Mas descobri: Podemos colocar uma condição de cinco anos e um valor maior do que meio salário mínimo. E passamos a pagar, aqui, um salário mínimo, mas, naquele momento, sabíamos, do ponto de vista publicitário, Senador Ataídes, que, ao colocar na televisão, criaríamos um programa de renda mínima condicionada à educação, ninguém iria entender, não iria ter um voto!

            Então, inventei a palavra Bolsa Escola, lembro-me muito bem, numa noite, no meu computador, para levar para o pessoal da publicidade, e não sei por que foi Bolsa Escola, poderia ter sido outro nome, mas esse nome pegou. E pegou tanto que o Fernando Henrique Cardoso, que esperou cinco anos para pôr em prática o programa, cinco anos - vamos cobrar isso dele, e eu levei para ele, ainda na transição, ainda em 94, no mês de novembro, tenho a carta guardada e coloquei num livro meu chamado Bolsa-Escola - História, Teoria e Utopia. Levei para ele, levei para o Ministro Paulo Renato, levei para D. Ruth, e ele esperou cinco anos, mas teve a generosidade - raríssima, na política! - de pegar o nome que eu inventei e manter no programa dele.

            E sei que, ao redor dele, muitos disseram: “Isto é um erro, Presidente, colocar o nome que já foi inventado por outro político, do PT, e o senhor é do PSDB!” E ele disse: “Não, esse nome é bom” - e, claro, ele deveria saber que, ao colocar no Brasil inteiro, o Distrito Federal seria esquecido, e não haveria problema nenhum. Mas ele manteve o mesmo nome, e essa é uma generosidade que é preciso reconhecer.

            O Presidente Lula foi muito mais orientado por Duda Mendonça - porque eu era Ministro e participei disso: Duda Mendonça foi quem criou o nome Bolsa Família. Lembro-me do dia em que ele mostrou, numa reunião com alguns ministros, em que ele botou dois cartazes: em um escrito “bolsa”; em outro, “escola”. Aí ele mostrava um e outro. Aí, depois, ele tirava esse e botava um escrito “família”.

            Por quê? Porque o Programa deixaria de ser do Fernando Henrique. Mas tem mais uma lógica que depois eu vim perceber, embora eles não percebessem também: é que, de fato, não era mais o Bolsa Escola; de fato, era uma bolsa família. De fato, não era mais um programa educativo, era um programa assistencial com todas as qualidades da assistência social, todas, todas, todas. E eu volto a repetir o que eu disse no começo: imagine o Brasil hoje se não tivéssemos o Bolsa Família?

            Agora, imagine o Brasil daqui a 20 anos se a gente ainda tiver Bolsa Família? E é o que vai acontecer, porque se a gente considera desde 2001 com Fernando Henrique, já são 14 anos; se a gente considera esses 10 anos dos governos Lula e Dilma, falta pouco para completar 20 anos. Então, eu repito: seria uma tragédia se o Brasil de hoje não tivesse o Bolsa Família e será uma tragédia se daqui a 20 anos a gente continuar precisando do Bolsa Família. E a saída é a educação. Está lá.

            A matéria do jornalista Demétrio coloca a situação de alguns que estão saindo da pobreza pelo estudo. E não dá para colocar, mas eu garanto: não sai mais sem o estudo, a não ser que ganhe na loteria. Não tem outro jeito. Hoje não tem uma maneira de sair da pobreza se não passar pela educação. E essa revolução tem que ser feita na cabeça das mães pobres.

            Eu digo mães, porque os homens hoje estão abandonando as famílias. Elas têm que entender que as crianças delas não sairão da pobreza se ficarem só com o Bolsa Família hoje, sem serem colocados na escola para construir o amanhã. Elas têm que entender. Alguém precisa mostrar a essas mães que é um direito delas terem a escola para os filhos, escola boa, não isso que faz de conta que é escola, que parece escola, mas que não é escola. As famílias pobres precisam despertar para o direito da escola; é mais ainda do que o direito ao Bolsa Família.

            Aí um dia alguém me disse: “Mas sem comida não se estuda.” É verdade, por isso o Bolsa; mas só com o Bolsa não se estuda, por isso escola. Sem feijão não se aprende, mas só feijão não ensina.

            Sem o estômago, a cabeça não funciona. Mas só com o estômago, a cabeça não funciona também. Precisa dos dois. O estômago é a bolsa, a cabeça é a escola. Ao chamar Bolsa Família, ficou só no estômago. É melhor do que nada? Mil vezes melhor que nada! É suficiente? Mil vezes menos do que ser suficiente!

            Por isso, Senador, eu venho aqui tomar esse seu tempo, o tempo dos Senadores e Senadoras, para dizer ao povo brasileiro: comemoremos o fato de que o Brasil tem um programa Bolsa Família, mas nos preocupemos com o risco de que, daqui a vinte anos, o Brasil ainda vá precisar ter Bolsa Família. Isso depende apenas de uma coisa: educação para os filhos das famílias que têm Bolsa Família. Educação, escola, este é o caminho da abolição da necessidade.

            Bolsa Família é o caminho da assistência à necessidade. Mas não basta assistir a necessidade, precisa abolir a necessidade. E a matéria de O Globo de ontem, a meu ver, tem um papel histórico, porque pela primeira vez se mostra com dados que as famílias estão perpetuando a necessidade de uma bolsa. E se isso acontece o programa fracassou, apesar de assistir bem. Assistiu, mas fracassou. É como você manter uma pessoa na UTI, sem curá-la. Não basta ficar dando remédio, é preciso dar o remédio e dar a cura. A Bolsa Família é um remédio.

(Soa a campainha.)

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PDT - DF) - A educação é a cura que permitiria que essas famílias saíssem da pobreza e, aí sim, nós vamos poder comemorar.

            É isso, Senador, que eu tinha para colocar, parabenizando o jornal O Globo, parabenizando o jornalista Demétrio Weber, sua equipe, pela competência investigativa, pela ênfase do texto e, certamente, já me adiantando, pelo papel histórico que essa matéria vai ter no funcionamento das políticas públicas brasileiras daqui para frente.

            O SR. PRESIDENTE (Ataídes Oliveira. Bloco/PSDB - TO) - Senador Cristovam, é sempre um grande aprendizado poder ouvi-lo, sem sombra de dúvida. Eu me sinto privilegiado em ter a oportunidade de estar aqui, neste momento, ouvindo V. Exª.

            O senhor usou um termo tão interessante, eu gostaria de repeti-lo: abolir a necessidade. Também sou plenamente a favor do Bolsa Família, porque eu vim de lá: nós tivemos a necessidade, nós passamos fome no passado. Essa Bolsa, essa cesta que chega àquela casa é muito bem vinda. Mas não basta dar o peixe; tem que ensinar a pescar.

            V. Exa colocou que hoje é muito bom, mas daqui a 20 anos, como vai ficar este País? A minha preocupação, Senador, além do cunho principal que o senhor deu a esse ponto - vinte anos -, é a parte financeira, porque hoje o custo dessa Bolsa para a União está muito próximo de R$20 bilhões. Será que o nosso País, daqui a 20 anos, vai dar conta de arcar com essa Bolsa, com esse benefício?

            Então, eu quero parabenizá-lo pelo seu belíssimo pronunciamento e dizer que não basta dar o peixe, tem que ensinar a pescar. E esse ensinar a pescar é levando a educação, essa bandeira que o senhor tem carregado com muita sabedoria e com muita competência.

            Parabéns, Senador.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PDT - DF) - Obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 07/05/2013 - Página 23594