Discurso durante a Sessão Solene, no Congresso Nacional

Homenagem ao transcurso de mais de quarenta anos de dedicação à vida pública do ex-Ministro da Justiça, ex-Deputado, Sr. Fernando Lyra.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Congresso Nacional
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem ao transcurso de mais de quarenta anos de dedicação à vida pública do ex-Ministro da Justiça, ex-Deputado, Sr. Fernando Lyra.
Publicação
Publicação no DCN de 07/05/2013 - Página 1147
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, EX MINISTRO DE ESTADO, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE), ELOGIO, VIDA PUBLICA, COMENTARIO, ATUAÇÃO, POLITICA.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Boa tarde a cada uma e a cada um dos presentes!

            Querida Márcia, por seu intermédio, cumprimento todos aqueles que aqui estão, os amigos, os companheiros de luta e os familiares, até porque, talvez, seja a única aqui que faz parte total destes três grupos: amigos, políticos e familiares.

            Quero começar dizendo que é difícil falar sabendo que Fernando Lyra não nos vai escutar, nem nos vai telefonar depois para dizer o que achou bom e o que não achou bom, para discutir se o que foi dito sintoniza com as necessidades do momento histórico que o Brasil exige. É difícil falar sabendo que ele não vai escutar, mas é exatamente por isto, meu caro João, que a gente está aqui para homenageá-lo: pela realidade que era a figura de Fernando Lyra.

            Há pessoas que passam pela vida, mas há outras que vivem a vida. Fernando Lyra foi uma dessas pessoas. Ele não passou por aí pela vida. Ele, de fato, agiu e usufruiu a vida que o mundo lhe deu.

            Nós não estamos aqui porque ele foi apenas um amigo importante, mas porque, mais do que amigo, ele soube cativar cada um de nós com seus gestos, com suas palavras, com seus telefonemas a qualquer hora, com sua solidariedade constante até diante dos menores problemas que cada um de nós pudesse ter.

            Há pessoas que passam pela vida. Há outras que vivem a vida, e Fernando Lyra foi uma dessas pessoas. Há pessoas simpáticas e outras profundamente empáticas, e Fernando Lyra foi uma dessas. A simpatia de Fernando ia muito além do riso franco, das gargalhadas profundas. Ele não apenas conversava com a gente, ele mergulhava nas conversas que tinha com cada pessoa como se só ela existisse naquele momento.

            Ele estava presente nas alegrias e nas tristezas. Ele tinha uma habilidade de tecelão para tecer redes, criando laços de amizade dele com as pessoas e dos amigos entre eles.

            Por isso, há pessoas muito simpáticas, outras profundamente empáticas, e Fernando Lyra foi uma dessas.

            Há políticos que buscam vitórias eleitorais. E há outros que buscam usar a vitória para transformar seu país, e Fernando foi um desses. Em qualquer momento de sua carreira de 40 anos, ele nunca deixou de ter clareza dos objetivos para os quais queria usar as vitórias que viesse a ter, em nenhum momento. Desde o início, deixou claro por palavras e gestos que sua luta era pela democracia no Brasil. Fernando Lyra faz parte de uma geração que construiu sua carreira política na longa noite de chumbo do pesadelo autoritário.

            Em Pernambuco, dos 11 companheiros de partido do antigo MDB, que se elegeram com ele para a Assembleia Legislativa, apenas dois não foram cassados nominalmente. Mas, logo em seguida, Fernando e os outros tiveram a cassação sob a forma do AI-5, que, mesmo mantendo essas pessoas em cargos, proibiu o desempenho da atividade política na sua plenitude.

            Ingressando na Câmara Federal na Legislatura de 1970, empenhou-se vivamente na luta pela restauração das liberdades democráticas. Desafiou os apoiadores do regime do arbítrio. Não raro, seu nome estava nas listas dos Parlamentares a sofrerem processos de cassação.

            Fernando Lyra construiu seu perfil político, portanto, nesse caldo de luta oposicionista contra a ditadura militar. No MDB, que, naquele período, assumia a natureza de ampla frente parlamentar oposicionista, integrava-se com o grupo político de postura mais radical entre os emedebistas e que acabou sendo reconhecido pela alcunha de os “autênticos do MDB”, dos quais aqui está Jarbas Vasconcelos como o principal representante.

            Ele foi, portanto, um político não apenas como os outros que buscam vitórias. Ele foi um político de um grupo muito especial, que busca vitória para realizar objetivos a serviço do País.

            Há pessoas que deixam marcas na política; outras deixam marcas na história, e Fernando Lyra faz parte desse pequeno grupo. E estes são raros, até porque não é apenas questão de mérito pessoal. Às vezes, isso depende das circunstâncias históricas, desse casamento entre o destino pessoal e o destino da nação.

            Fernando Lyra faz parte desse grupo muito seleto de políticos que podem chegar ao final de suas carreiras vendo a marca que deixaram na história do seu País. Ele soube realizar o casamento entre a coerência da luta e a coincidência do momento histórico que o País vive.

            Nenhum grande político seria o político que é se tivesse nascido 20 ou 30 anos antes ou 20 ou 30 anos depois, como, aliás, ele deixa claro nesta frase: “A vida é feita de coincidências e conversas”.

            Fernando Lyra, ao lado de outros companheiros, como, inclusive, Roberto Freire, que esteve nessa luta - e me lembro dele desde quando éramos muito jovens; há 46 anos, já lutávamos juntos -, teve papel fundamental na conquista da democracia. Esteve entre os mais fundamentais da base de articulação que permitiu conquistar os votos necessários no Colégio Eleitoral para eleger Tancredo Neves.

            Fernando Lyra nunca perdeu a vibração e a resistência do nordestino. Talvez, fosse esse traço da sua personalidade que o aproximava tanto, por afinidades eletivas, da grande força política que foi Miguel Arraes de Alencar.

            Como revelou recentemente o Governador Eduardo Campos, Fernando Lyra foi um dos primeiros a encontrar Arraes no exílio, ainda na África, durante a ditadura. Segundo o Governador Eduardo Campos, filho do Governador Arraes, ele, o Lyra, era o portador de notícias para a parte da família que tinha ficado em Pernambuco, porque usava para isso a imunidade como Parlamentar, mas sabendo do fio tênue sobre o qual essa imunidade sobreviveria dentro do regime militar. Mesmo assim, corria o risco de cumprir esse papel, que, depois, foi fundamental na história do Brasil.

            Essa proximidade política e afetiva seria extremamente valiosa na negociação da campanha de Tancredo Neves para a Presidência, quando Fernando Lyra foi um dos principais agentes, ou mesmo o principal, da articulação. Ele foi a pessoa que trouxe Arraes para o lado da eleição de um Presidente civil no Colégio Eleitoral. E, ao trazer Arraes, ele trouxe a esquerda, ele trouxe, inclusive, o PCdoB - está aqui a Senadora Vanessa -, trouxe o próprio PCB, que, talvez, já tivesse a lucidez de vir. A vinda de Arraes foi determinante.

            Por isso, há políticos que apenas deixam votos e outros que deixam marcas. Há políticos que apenas circulam pela base da montanha das dificuldades nacionais, há outros que se jogam contra a montanha, mas há outros que enfrentam a montanha, encontrando caminhos alternativos para atravessá-la e chegar ao outro lado, e Fernando Lyra foi um desses. Em nenhum momento, ele deixou de ver o outro lado da montanha, que era o regime militar de chumbo, que nos impedia de ver a democracia. Mas também não foi daqueles heróis - temos de reconhecer o heroísmo deles, e aqui está o Deputado Genoíno que fez parte desses, e faço isso em homenagem - que se jogaram contra a montanha, nem por meio da luta armada, heróica, nem por meio das diretas necessárias. Ele percebeu, em certo momento, que, para chegar ao outro lado da montanha, era preciso reorientar o caminho a ser seguido. Ele sempre enfrentou a enorme montanha que, então, parecia intransponível.

            Por isso, muitos políticos que, até hoje, estão na ativa se acomodaram, preferindo caminhar na base daquela montanha, usando os pequenos benefícios que os bajuladores, em geral, recebem, e muitos deles se contentam com isso. (Palmas.)

            Fernando Lyra preferiu levantar sua voz forte contra a montanha intransponível e lutar para ir ao outro lado, o lado da democracia.

            No contexto da abertura controlada, o País vivia forte crise econômica, acompanhada do esgotamento político do regime. Do movimento popular que resultou na Lei da Anistia, na luta pelas Diretas Já e nos gigantescos comícios, a sociedade civil passou a exigir o retorno à normalidade democrática. Nem a frustração da derrota da Emenda das Diretas abalou Fernando Lyra, que, imediatamente, pôde vislumbrar a possibilidade das eleições diretas apenas cinco anos depois por meio da eleição indireta de um Presidente naquele momento. Essa capacidade de se antecipar, de olhar na frente e de encontrar caminhos é que faz de Fernando Lyra um político diferente.

            Mas há políticos que se prendem aos meios, outros que só pensam nos objetivos e outros que usam os meios disponíveis para chegar aos objetivos. Fernando Lyra foi um desses. Há políticos que limitam sua coerência à defesa e ao uso dos meios, perdendo de vista os objetivos.

            Foi assim quando muitos de nós, defensores e lutadores pela democracia, prendemo-nos à ideia da eleição direta para Presidente, como se esse fosse o objetivo, e não o meio, para implantar a democracia, e aí se transformar também em um objetivo: as diretas.

            Eu me lembro do discurso de Fernando Lyra aqui - a Márcia certamente deve lembrar -, na visita do Rei Juan Carlos, da Espanha, em que ele foi o orador, por alguma razão, em nome do Congresso ou da Câmara, e no seu discurso teve a coragem de dizer, em pleno regime militar, que o rei tinha a legitimidade da dinastia, e que no Brasil não haveria legitimidade para um presidente que não fosse eleito diretamente. Ele teve a coragem de dizer isso. Essa era a lucidez comprometida com o objetivo.

            Ele percebeu que as diretas também faziam parte do objetivo, que era a democracia, e não eram o objetivo por ela própria. E, imediatamente, a gente pode ver como ele foi capaz de entender que o objetivo era a democracia, e não transigiu com esse princípio fundamental, essa razão de ser da política, mas percebeu que as diretas eram um meio, e não a razão da política. E, ao perceber isso, teve a sabedoria e a coragem de enfrentar os meios para chegar aos fins, aceitar um outro caminho para atravessar a montanha do autoritarismo.

            Visto com a perspectiva da distância e da vitória, é difícil lembrar hoje como foi difícil convencer muitos coerentes companheiros que não abriam mão dos objetivos democráticos, mas que tampouco abriam mão dos meios até então utilizados, como se o propósito fosse o meio. Fernando Lyra sabia o que era o objetivo, sabia o que era o meio.

            Há políticos que, pelo interesse pessoal, transigem com os propósitos. Há outros que justificam qualquer meio para chegar aos fins. E outros que não transigem os propósitos, não maculam os meios que usam com sabedoria. Fernando Lyra foi um desses. Ele não abriu mão dos propósitos, e nem se maculou dizendo que os meios justificavam os fins. Ele não transigiu com os propósitos democráticos, não ficou com preconceitos que amarravam os meios, mas tampouco caiu na tentação de meios que poderiam se chocar com os objetivos. Não acreditava que os meios eram mais importantes do que os objetivos, nem que os objetivos justificavam os meios. Foi capaz de encontrar um caminho para atravessar a montanha pelo uso das eleições indiretas, mas não caiu na tentação, em que muitos caíram, de tentar conspirar por dentro, tentando um golpe militar para desfazer o golpe militar anterior.

            Sem abandonar seus propósitos pela democracia, conciliava, no mesmo momento histórico, a capacidade de articulação, a imaginação política e a impressionante capacidade dele de encontrar caminhos. O Senador Jarbas Vasconcelos falou aqui dessa capacidade de Fernando Lyra e da importância que ele teve na construção dessa grande articulação.

            Com coragem, sim, pois não foi fácil enfrentar a incompreensão de muitos companheiros e a pressão dos questionamentos sobre mudanças políticas, as quais, ao fim e ao cabo, mostraram-se as mais efetivas e realistas para o momento em que o País vivia, para que chegássemos ao resultado principal, ao alvo de todos: o fim do regime militar.

            Com a ampliação de suas atribuições na organização da candidatura de Tancredo Neves, Fernando adquiriu um protagonismo político destacado, credenciando-se a compor a equipe de governo. Muitas vezes, foi solicitado por Tancredo a amarrar composições no amplo e variado espectro da Aliança Democrática, integrada pelo PMDB e pela Frente Liberal. E ele soube fazer isso, com competência, sem abrir mão de nenhum dos princípios, mas atraindo, trazendo, usando essa capacidade de magnetismo que ele tinha para atrair as pessoas, mas atraí-las para as mesmas causas que tantos de nós defendíamos.

            Há políticos que seguiam pelo instinto; outros, por análises. Fernando Lyra foi um excelente analista, mas nunca deixou de ter e usar seu instinto. Era assim quando conversávamos sobre a realidade, e ele antecipava o que ia acontecer na realidade. E, no final, saía-se com uma estratégia que certamente era movida por um forte instinto. O instinto o guiava, mas havia uma análise prévia. Havia uma capacidade de entendimento do que estava acontecendo, no processo de acontecer. Nesse sentido, são tão importantes as palavras do Deputado, ex-Senador, Roberto Freire: “Ele faz falta neste momento”, para analisar como é que está acontecendo o processo nesses últimos anos (não só os da democracia), nesses vinte últimos anos de governos tão parecidos dentro de um modelo com base na estabilidade monetária, na democracia, na distribuição de renda e de um modelo econômico que ficou caduco, com base em commodities e indústrias mecânicas. Está-se esgotando esse modelo de vinte anos. Fernando Lyra faz falta, duplamente: no entendimento desse esgotamento, como houve o do regime militar e que teve que cair em pacotes econômicos para poder ter mais tempo e teve que cair também em artifícios legais para sobreviver. Isso é prova de um esgotamento.

             Fernando Lyra faz parte, ao usarmos aqui a sua capacidade analítica e o seu formidável instinto. Ele não perdeu a oportunidade, quando disse a Tancredo Neves que Tancredo era o seu candidato, e Tancredo disse: “Isso é loucura!” Ele disse: “Pode ser loucura, Dr. Tancredo, mas não me desminta”, como quem diz: “De fato, é uma lei meio absurda, mas vamos dar tempo para encontrar esse caminho”.

            Ali começou a relação que se estreitaria nos próximos anos, fazendo com que Fernando assumisse cada vez mais a condição de articulador político da candidatura de Tancredo Neves. Ele próprio revelou um dia, numa entrevista à Câmara: “Eu não escolhi ser coordenador; eu me transformei em coordenador por conta do processo”. Mais uma vez, a frase das coincidências e das conversas como caminho para um político deixar um marco na história. Há políticos que têm vitórias; outros que deixam marcas. Fernando faz parte deste grupo.

            Há pessoas - e eu termino - que, ao morrer, deixam saudades; outras deixam um vazio. Fernando Lyra foi uma destas. Não estamos apenas com saudades, nós sentimos falta, como outros aqui já falaram. Fernando nos deixa esse sentimento de vazio, de ausência, que só se sente na orfandade, porque a orfandade existe também na política. Os filhos não têm apenas saudades dos pais mortos; os filhos têm orfandade. É saudade e mais alguma coisa. Nós sentimos isso hoje, aqui, nesta sessão. Nós sentimos isso com Márcia, Patrícia, Renata, Juliana, João, Roberto, Angelice, Gilberto, Pedro, Fernanda, João, Caio e Luíza. Nós sentimos por sermos irmãos e sentimos porque vimos o que foi a vida de um político que não ficou apenas em busca de votos e vitórias, mas que quis usar os votos e as vitórias para servir ao País. Jamais deixou de querer enfrentar a montanha em frente, mas não necessariamente se jogando contra ela, e, sim, encontrando caminhos.

            Por tudo isso é que, hoje, estamos aqui, falando de Fernando, nessa orfandade política, histórica e de amizade que nós temos com essa enorme figura. Foi um dos privilégios da vida de cada um de nós tê-lo conhecido.

            Fernando nos deixa órfãos, mas a vida continua.

            Viva Fernando! (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DCN de 07/05/2013 - Página 1147