Discurso durante a 176ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Preocupação com o descaso do poder público na prestação de serviços e com o não atendimento das demandas sociais manifestadas recentemente nas ruas do País.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ADMINISTRAÇÃO PUBLICA.:
  • Preocupação com o descaso do poder público na prestação de serviços e com o não atendimento das demandas sociais manifestadas recentemente nas ruas do País.
Publicação
Publicação no DSF de 11/10/2013 - Página 71200
Assunto
Outros > ADMINISTRAÇÃO PUBLICA.
Indexação
  • CRITICA, ATUAÇÃO, GOVERNO, MOTIVO, AUSENCIA, INVESTIMENTO, OBRAS, INFRAESTRUTURA, IMPORTANCIA, MANIFESTAÇÃO, POPULAÇÃO, PRECARIEDADE, SERVIÇO PUBLICO.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Apoio Governo/PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, Srªs Senadoras, faz muito tempo que não apenas eu, outros também, sobretudo economistas, trabalhamos a ideia do custo da omissão. É o custo de não fazer uma coisa. Em geral, a gente calcula o custo de fazer, não calcula o custo de não fazer.

            Lembro-me bem de que uma vez, inaugurando uma escola, quando eu era governador, um jornalista ou uma jornalista me perguntou quanto custou fazer a escola. E eu disse: quanto custou você pergunte ao engenheiro, eu vou lhe dizer quanto custaria se não fosse feita. Aí me sentei com ela, peguei o número de alunos e calculei o que seria gasto em assistência social por eles não estudarem. Imaginei uma percentagem dos que cairiam no crime para poder sobreviver e quanto custaria mantê-los presos. E fui analisando, analisando. No fim, o custo de construir a escola é uma fração pequena do custo de não fazer uma escola.

            Isso vale para água e esgoto. Fica muito mais caro cuidar das doenças do que colocar água e esgoto. E o senhor, Presidente, como médico, deve imaginar isso. E o custo de organizar um trânsito, inclusive definindo o número de automóveis que podem circular, em vez de ter esse custo absurdo dos engarrafamentos.

            Mas agora eu não venho falar do custo da omissão, Senador Simon; eu venho falar é do custo do descaso. O descaso é um passo adiante no sentido negativo da omissão, ou seja, é um passo talvez atrás da omissão. Omissão que levou a essa manchete hoje do Correio Braziliense, a manchete da dor de uma família diante da morte de uma filha de seis anos de idade, chamada Geovana Moraes Oliveira.

            Essa menina de seis anos, cuja foto está aqui também embaixo, morreu por causa do descaso. Ela morreu afogada dentro de um ônibus, passando por baixo de um viaduto, pelo descaso do Governo do Distrito Federal em não limpar corretamente as vias de drenagem da água. Não fizeram o dever de casa na drenagem da água; a água encheu ali aquela parte mais baixa; o ônibus escolar em que ela ia ficou preso na água; a água subiu; as outras crianças conseguiram subir no ônibus; quando ela foi recuperada para subir, já era tarde.

            Uma das cenas mais dramáticas que já vi na televisão é a de um bombeiro que estava passando por ali, em cima do ônibus, fazendo massagem para ver se essa criança ressuscitava.

            De vez em quando a gente vê cenas de médicos, paramédicos fazendo massagem para o coração voltar a funcionar em adultos, mas, em crianças, a dor é muito maior. É o descaso. Descaso que a gente, neste caso, tem até estatística.

            Sr. Presidente, o Governo do Distrito Federal tem este ano uma dotação de R$45 milhões para reestruturação do sistema de drenagem pluvial: R$45 milhões. Sabe quanto gastou? Zero. Zero. Tem a dotação de R$45 milhões, a despesa autorizada de R$43 milhões e gastou zero. Foi por não gastar um pedacinho desse naquele exato lugar que a Geovana morreu.

            Esse é o custo do descaso. Que não é só esse. Esse é um visível, claro. Mas nós estamos atravessando descasos por todos os lados quando analisamos o Brasil, por todos os lados. Esse descaso aí toca diretamente os pais, os irmãos e os colegas e até nós que assistimos a isso.

            E o descaso nosso que permite que o Brasil ainda tenha 3,5 milhões de crianças que em vez de estudar estão trabalhando? É fruto do descaso. É óbvio que essas crianças não nasceram para trabalhar, que não estava no DNA, que não é uma questão natural, que não foi Deus que colocou essas meninas e meninos trabalhando. Não é uma fatalidade natural.

            É descaso com a alimentação correta dessas crianças, quando elas eram bem pequenas. É descaso com os pais delas, que não têm dinheiro suficiente para sobreviver e que põem as crianças para trabalhar. É descaso desse Governo que vem desde o governo Fernando Henrique, de Lula e Dilma, governos a que chamo de progressistas, que não criaram até hoje, Senador Simon -- e tantos de nós defendem isso, insistem, dão ideia --, um personagem encarregado de erradicar o trabalho infantil no Brasil. Não existe.

            O Brasil tem, em cada Estado, um secretário encarregado da Copa. E não tem um secretário encarregado de lutar contra o trabalho infantil. Não tem.

            Por que a Copa justifica um secretário e o trabalho infantil não justifica? Não precisa mais ministério, mas alguém que fique ali ao lado do Presidente encarregado de, em cinco, seis anos, dizer: No Brasil, não há trabalho infantil.

            Já pensou como seria bonito, agora, na Copa, termos uma faixa bem grande dizendo: “O Brasil é um país onde não há trabalho infantil; o Brasil é um país onde não há adulto analfabeto.” Não vamos poder, pelo descaso. E o pior é que a Copa vai aumentar o número de crianças trabalhando. Isso aí até as pessoas especializadas internacionalmente, que lutam contra o trabalho infantil, já anunciaram: “O trabalho infantil vai aumentar.”

            E, mais grave, vai aumentar um dos trabalhos, se não o trabalho infantil mais degradante, que é a prostituição de menores. Vai aumentar com a Copa. Pode até aumentar pouco, se fizermos um trabalho muito sério, mas pode aumentar muito.

            Não se esqueçam de que esses torcedores são homens jovens e alguns vêm para a gandaia. Em alguns lugares a propaganda já é bola e corpo como atração para os turistas que virão para a Copa. Isso é fruto do descaso; do descaso de muitos anos, não só do Governo atual, mas que o Governo atual continua provocando.

            Quer descaso mais visível do que ao que a gente assiste na televisão no atendimento à saúde do nosso povo? Quer descaso maior do que o que se vê nos hospitais, nos corredores, com doentes um enfileirado no outro, alguns no chão, alguns na cadeira ao invés da cama, alguns na maca, porque não há cama, e a maca deixa de servir para carregar o doente que chega? Isso é descaso, gente. E o descaso tem um custo muito grande sobre o futuro do País.

            Não apenas pelas vidas ceifadas, como a da Geovana; não apenas pelo futuro ceifado de uma criança que trabalha; não apenas pela tortura que é viver em estado de analfabetismo num mundo onde a letra domina tudo. Não. É um descaso com o futuro do próprio País.

            O Brasil é um grande Geovana, que, talvez, não esteja se afogando, mas está se degradando, está se apequenando, está deixando de ser aquilo com que a gente sonha.

            Quando eu vi a notícia da morte dessa menina, eu pensei: todos nós somos pais dela; todos nós somos um pouquinho ela. E o Brasil é essa família. É essa família pelo lado do sofrimento -- ou deveria ser --, mas, sobretudo, é essa família pela perda que nosso País tem por causa do descaso.

            São 100 mil mortos por ano de violência: 50 mil no trânsito e 50 mil nas balas. E isso é fruto de um descaso constante, repetido, sistemático, que a gente não leva em conta.

            Os hospitais são resultado dessa omissão geral, dessa situação de descaso com que nós fazemos o nosso dever de casa de líderes deste País. E o descaso sempre cobra um preço. Felizmente, além desse preço todo que a gente vem pagando, surgiu agora um novo preço, que são as manifestações de rua cobrando o que nós não fizemos.

            Essas manifestações são resultado do descaso. E todo mundo se pergunta: por que essas manifestações de rua de repente arrebentaram? Por duas razões: uma é técnica, a internet, que permitiu a mobilização; a outra, política e moral: o povo descobriu o descaso de nós, políticos, em relação à construção do Brasil de que se necessita. O povo descobriu que nós fomos capazes de fazer um País rico, mas não fomos capazes de distribuir essa renda, ou não quisemos distribuí-la. Que fomos até capazes de fazer com que este País fosse democrático, mas não fomos capazes de acabar com a corrupção na democracia.

            Eles até entendem que nós, políticos dessa nossa geração, fomos capazes de inventar programas de transferência de renda que praticamente acabaram com a fome, mas não fomos capazes de construir uma porta de saída para que as pessoas deixassem de necessitar das bolsas que são distribuídas.

            Nós, com o nosso descaso, despertamos o povo. Vamos -- e eu concluo, Senador -- evitar o pior dos descasos, talvez, que é não ver, não ouvir o que o povo está nos mostrando e dizendo. Esse é um descaso que poderá ter consequências de produzir muitos e muitos outros descasos, e, inclusive, muitas outras Geovanas.

            O descaso de não ouvir que o povo cansou, que o povo exige, que o povo quer e que o povo tem direito, e nós temos a obrigação de ouvir, de ver, de entender e de fazer o que é preciso. Não é difícil saber o que é preciso, gente. Não é difícil! Desde a reforma da Constituição para mudar a política, não é difícil! A porta de saída do Programa Bolsa Família é conhecida, é uma escola boa para os meninos. Eles não serão mais dependentes de bolsa. A gente sabe o que fazer para resolver o descaso. E o Brasil tem dinheiro para fazer isso, embora não de repente, embora não de um dia para o outro, embora não por milagre. Mas há recursos, se forem aplicados de maneira correta e sistemática ao longo de alguns anos.

            Vamos sofrer pelo descaso que matou Geovana. Vamos sofrer pelo descaso que mata tanta gente num precário sistema de saúde, num precário sistema de transporte. Vamos sofrer pelo descaso que compromete o futuro das crianças por um precário sistema educacional, mas não vamos sofrer por termos esquecido, ignorado, não escutado os gritos do povo. Ainda há chance de pelo menos nesse ponto não termos de pedir desculpas amanhã: o descaso de não ter escutado. Pelo menos esse descaso a gente não precisa ter.

            É hoje, é neste momento: é ouvir o que o povo está gritando, é entender que o povo está cobrando a fatura de políticos como nós todos, endividados com o que eles querem. E, se não formos portadores do descaso, nesse aspecto de ouvir o povo, vamos poder dar um salto neste país, vamos poder tomar as medidas para dar o salto que vai acabar com todos os outros descasos, com todos os outros custos da omissão, e nunca mais uma criança vai morrer porque um governo deixou de fazer a limpeza, a drenagem da água pluvial do lugar onde passava o ônibus escolar que a carregava.

            É isso, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 11/10/2013 - Página 71200