Discurso durante a 68ª Sessão Especial, no Senado Federal

Destinada a reverenciar o transcurso do centenário de morte do Sr. Francisco José do Nascimento (conhecido como Dragão do Mar), nos termos dos Requerimentos nºs 77 e 216/2014, de autoria do Senador Eunício Oliveira e outros Senadores.

Autor
Inácio Arruda (PCdoB - Partido Comunista do Brasil/CE)
Nome completo: Inácio Francisco de Assis Nunes Arruda
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM, DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • Destinada a reverenciar o transcurso do centenário de morte do Sr. Francisco José do Nascimento (conhecido como Dragão do Mar), nos termos dos Requerimentos nºs 77 e 216/2014, de autoria do Senador Eunício Oliveira e outros Senadores.
Publicação
Publicação no DSF de 13/05/2014 - Página 9
Assunto
Outros > HOMENAGEM, DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • COMEMORAÇÃO, CENTENARIO, MORTE, PERSONAGEM ILUSTRE, MUNICIPIO, REDENÇÃO (CE), ESTADO DO CEARA (CE), COMENTARIO, IMPORTANCIA, ANTECIPAÇÃO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, ANALISE, HISTORIA, DIREITOS, CIDADANIA, GRUPO ETNICO, NEGRO.

            O SR. INÁCIO ARRUDA (Bloco Apoio Governo/PCdoB - CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, senhores presentes à Mesa, Senador Eunício Oliveira, Senador Pimentel, o nosso Ricardo Falcão, Diretor Presidente do Conselho Nacional de Praticagem, o nosso Secretário Executivo da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, Giovanni Harvey, o Vice-Presidente da Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas, nosso conterrâneo cearense Sr. Francisco Honório Pinheiro Alves, em nome das entidades de classe do setor patronal aqui no nosso País, o nosso amigo, o Sr. Hilton Cobra, Presidente da Fundação Cultural Palmares, e o nosso companheiro José Maria da Silva, que é representante da Coordenadoria Especial de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial no Estado do Ceará, também seja bem-vindo!

            Sr. Presidente, senhoras e senhores, ao homenagear Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar, por ocasião do centenário do seu falecimento, homenageamos também todos aqueles valorosos brasileiros que, na dureza do seu trabalho, cultivaram o seu amor pela liberdade e pela justiça.

            Os jangadeiros cearenses, os jangadeiros nordestinos... O jangadeiro representa, junto com o vaqueiro, uma das figuras mais emblemáticas da civilização nordestina, um singrando os verdes mares bravios; o outro desbravando os sertões.

            Em seu livro Jangada, que é hoje um clássico da etnografia brasileira, publicado originalmente em 1957, Luís da Câmara Cascudo aproxima as vidas e as aspirações desses dois tipos humanos aparentemente tão dessemelhantes.

            É nesse exercício cotidiano da liberdade e na consciência da dignidade do trabalho que ele propicia que Câmara Cascudo encontrará a motivação profunda do engajamento dos jangadeiros nas lutas pela abolição da escravatura.

            Diz ele:

Por toda campanha contra a escravidão, o pescador foi um elemento de simpatia abolicionista ou ostensivamente ligado aos que combatiam a continuação do escravo no Brasil.

            Ele exemplifica essa assertiva justamente com a narrativa da luta do nosso Chico da Matilde.

            Diz ele:

"Em plena campanha abolicionista, os jangadeiros de Fortaleza, a 30 de janeiro de 1881, chefiados por Antônio Napoleão e Francisco José do Nascimento, prático da barra e cognominado "Dragão do Mar", recusaram-se a embarcar escravos pelo porto. No porto do Ceará não se embarcam mais escravos!"

            Teria dito.

            E cumpriram fielmente a consigna. O "Dragão do Mar" viajou para o Rio de Janeiro em março de 1884 e recebeu festas apoteóticas dos cariocas, medalhas, discursos, diplomas, poemas, aclamações. A jangada, que tinha o nome de "Liberdade", foi carregada triunfalmente pelo povo e entregue ao Museu Nacional. Depois, já no Museu da Marinha, desapareceu.

            A solidariedade dos jangadeiros ao movimento da Abolição foi um dos elementos mais expressivos para vitória da causa.

            Por sua participação destemida na luta abolicionista, Francisco José do Nascimento garantiu seu ingresso no panteão dos grandes heróis revolucionários cearenses. Ao seu lado, encontram-se, por exemplo, a republicana Bárbara de Alencar, que, por sua destacada participação na Revolução Pernambucana de 1817 e na Confederação do Equador, ganhou o honroso título de primeira prisioneira política do Brasil, e o filho de Bárbara de Alencar, Tristão Gonçalves, um dos líderes máximos do movimento revolucionário no Ceará, brutalmente assassinado pelas forças imperiais, teve o seu corpo esquartejado e tornou-se um dos grandes mártires da causa republicana em nosso País. Uma das praças mais famosas da cidade de Fortaleza leva exatamente o nome de Praça dos Mártires.

            Em 1º de janeiro de 1883, a Vila Acarape, no Ceará, torna-se a primeira cidade do Brasil a abolir a escravidão e ganha um novo nome: Redenção. Em reconhecimento a esse fato histórico, Redenção foi escolhida, em 2009, para sediar a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), criada pelo Presidente Lula com a missão de promover a integração do Brasil e dos países africanos irmãos no âmbito acadêmico. E é bom que se registre que, hoje, quando aqui fazemos essa comemoração em homenagem ao centenário do Dragão do Mar, está sendo inaugurado um novo campus da Unilab, agora em São Francisco do Conde, na Bahia. É uma extensão da Universidade da Integração de Redenção, no Estado do Ceará, até São Francisco do Conde, na Bahia, um Estado irmão de todos os brasileiros, porque por lá começa parte dessa história recente desta região do mundo, a América.

            Em 25 de março de 1884, é a vez de o Ceará tornar-se a primeira província brasileira a decretar a abolição da escravatura em seu território, quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel. A luta pela abolição no Ceará vinha de há muito tempo, e os anais da história cearense guardam os nomes de muitos homens e mulheres que participaram dessa luta e que representam todos os heróis anônimos que tornaram possível a abolição.

            Cito palavras do nosso colega Deputado Lula Morais, que fez uma belíssima homenagem na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará a Dragão do Mar e é autor da lei que tornou 25 de março a data magna do nosso Estado, o Ceará:

O 25 de março foi o coroamento de uma luta renhida que contagiava todo o Território nacional.

No Ceará, a historiografia registra revoltas e tentativas de revoltas de escravos em diversos locais: em Sobral; em Lavras da Mangabeira [terra do Senador Eunício Oliveira]; em Iracema, em tantos outros lugares. Quilombos e mucamos se reorganizaram no interior do Estado, homens e mulheres se batiam bravamente para que o horror da escravidão tivesse fim. [...]

Com a decisão dos jangadeiros, em janeiro de 1981, a luta abolicionista do Ceará entrou em uma nova fase, com maior e mais ampla participação do povo. [...]

            O 25 de março de 1884, assim, foi o coroamento de uma luta de décadas. Foi a luta do povo cearense. Foi a luta de José do Amaral, de José Albano, José Marrocos, João Cordeiro, João Carlos Jataí, Cândido Maia, Bezerra de Menezes e tantos outros. Foi a luta das mulheres cearenses, tão bem representadas por Dona Maria Tomásia, abolicionista, mulher à frente do seu tempo. Foi a luta dos negros e mulatos, de José Napoleão, de Pedro Artur Vasconcelos e de Francisco José do Nascimento - o Chico da Matilde -, apelidado pelo escritor e jornalista Aluísio Azevedo de Dragão do Mar.

            Francisco José do Nascimento, o Chico da Matilde, o Dragão do Mar, faleceu em 5 de março de 1914, após uma longa vida de muitas lutas e grandes vitórias. Seu espírito renasceria muitas vezes a partir de então.

            Vinte e sete anos após sua morte, em 1941, quatro jangadeiros cearenses embarcariam na jangada São Pedro, iniciando uma jornada até o Rio de Janeiro, sem bússola e sem astrolábio. Guiavam-nos as estrelas e a sua vasta experiência, transmitida de pais para filhos ao longo das eras.

            Seus nomes: Raimundo Correia Lima, o “Tatá”; Manuel Pereira da Silva, o “Mané Preto”; Jerônimo André de Souza, o “Mestre Jerônimo”; e Manuel Olímpio Meira, o “Jacaré”. Seu objetivo: chamar a atenção do Brasil para as difíceis condições de vida e trabalho dos jangadeiros do Ceará e exigir providências efetivas do Governo Federal. Mais uma vez, como nos tempos do Dragão, tratava-se de defender o direito dos trabalhadores a uma vida livre e digna.

            Os quatro jangadeiros foram recebidos pelo Presidente Getúlio Vargas no Palácio do Catete. Como Chico da Matilde, receberam inúmeras homenagens na Capital da República. Sua façanha assombrou o mundo e foi cantada em prosa e verso. O cineasta norte-americano Orson Welles viria ao Brasil no ano seguinte para registrar em filme aquela grande aventura e a dura vida dos jangadeiros e pescadores cearenses. Era o tempo da Segunda Guerra, e os Estados Unidos desenvolviam a chamada política da boa vizinhança, para garantir a boa vontade dos seus vizinhos latino-americanos. O filme nunca foi terminado.

            De volta a sua terra, os jangadeiros descobriram que as promessas feitas na Capital não se materializavam do modo esperado na província distante.

            Uma nova viagem de jangada seria feita dez anos depois sob o comando do mestre Jerônimo - e sem a presença de Jacaré, falecido em 1942 -, para cobrar a responsabilidade do Governo Federal. Era 1951, e Getúlio Vargas era novamente o Presidente da República, dessa vez eleito democraticamente.

            Na década de 70, nos tempos mais difíceis da ditadura, foi na figura de Chico da Matilde, em quem, como já foi dito, os compositores João Bosco e Aldir Blanc buscaram inspiração para compor sua obra-prima O Mestre-Sala dos Mares, que homenageia outro herói do povo brasileiro, o marinheiro João Cândido, líder da Revolta da Chibata.

            Dizem os primeiros versos da música:

Há muito tempo nas águas da Guanabara

O Dragão do Mar reapareceu

Na figura de um bravo marinheiro

A quem a História não esqueceu

O Dragão não se cansa de reaparecer

            Em 2012, a Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras) lançou ao mar o navio João Cândido. Em 14 de abril último, houve a cerimônia de lançamento do navio Dragão do Mar. Chico da Matilde e o Almirante Negro voltam a singrar os mares brasileiros, dessa vez associados à maior empresa nacional, patrimônio e fruto da luta incansável dos brasileiros e brasileiras. 

            É muito importante ressaltarmos, neste centenário de morte do Dragão do Mar, a luta cotidiana dos negros e abolicionistas à época da escravidão e as lutas contemporâneas, dos nossos dias, para se garantirem as conquistas dos negros libertos por Dragão, do movimento abolicionista, com a participação de intelectuais em todo o Brasil, poetas, escritores, militares e muitos filhos de fazendeiros que terminaram se envolvendo na causa da abolição, que teve como berço e força, exatamente o quilombo, a resistência dos negros, a sua persistência na luta.

            É muito importante nós adotarmos, neste centenário, as máximas presentes da luta, para garantir que a nossa universidade, as nossas escolas, os nossos tribunais superiores, o nosso Ministério Público, a Academia Brasileira recebam os negros como uma conquista do nosso País.

            São muitas as lutas ainda presentes no nosso País, e no próprio Governo, à medida que muitos colegas Parlamentares, na Câmara e no Senado, respondendo ao movimento social, têm colocado, na Ordem do Dia da discussão do Congresso Nacional, uma política que examine o que tem sido feito no Brasil.

            Hoje, ainda grassa na periferia das grandes cidades brasileiras a marginalização dos pobres e entre os pobres, dos negros no nosso País. Os meios de ascensão social criaram, ao longo desse período, período já da abolição, período do negro livre, barreiras enormes para que os negros pudessem ascender socialmente.

            E essas dificuldades exigem de nós, hoje, não só a quebra do preconceito, a luta para liquidar, de uma vez por todas, o preconceito que, como disse o Senador Eunício Oliveira, ainda se materializa entre os ditos civilizados, entre os lordes europeus, de se fazer chacota pela diferença da cor.

            Às vezes, sem jogar muita bola, quem diria ou quem poderia olhar para um branco e, simplesmente, chamá-lo de branquicela, ou de ameba, ou coisa do tipo, buscando criar um preconceito com os brancos. Isso não existe, mas continua existindo com os negros.

            Nos principais estádios de futebol dos chamados países mais civilizados, estão os tais civilizados, que escravizaram os negros, porque não foram os brasileiros que escravizaram os negros - é bom que se diga -, foram os europeus civilizados, essa gente digna, essa gente fina que fala em direitos humanos, que faz tabela de direitos humanos para os outros, são eles que, até hoje, fazem chacota dos negros brasileiros, dos negros africanos, o que, por consequência, exige de nós o repúdio permanente e firme aqui, em nosso País.

            Que a nossa Copa seja a Copa, também, de se dizer não ao preconceito, de não se aceitar o preconceito, de não se permitir o preconceito, não só em nosso País, mas em qualquer parte do mundo.

            Para quebrar o nosso, nós temos a obrigação, nós temos o dever de manter as políticas afirmativas que permitem não só aos pobres, porque são o principal contingente de necessitados do País, mas as cotas que permitem aos negros ascender para poder ter o seu posto, o seu lugar na história do País, nos pontos mais elevados e mais destacados da nossa história.

            Basta olhar os cursos de formação superior, as turmas formadas dos cursos de Medicina, de Odontologia e, às vezes, até dos cursos de Direito, onde já há mais participação dos negros. Fiquemos nos mais simbólicos, olhemos esses mais simbólicos para nós vermos onde está a discriminação. Olhemos as composições dos tribunais, o funil que é chegar a juiz federal ou estadual, ou mesmo a promotor público no nosso País. Esses postos ficam inacessíveis. São as barreiras que se criam na história, e nós temos de rompê-las.

            Por tudo isso, esta homenagem, Senador Eunício, se reveste de grande atualidade, de grande importância. Chico da Matilde se mantém entre nós, vivo, forte. Ele é parte da vida nacional.

            Como diria o nosso colega e acadêmico Darcy Ribeiro, existe um povo brasileiro, e, no meio desse povo, está o sangue do negro de forma permanente na nossa história. Nós temos de responder exatamente a essa máxima. Esse povo é, também, um povo formado pelos negros que para aqui vieram e ajudaram a construir esta Nação contemporânea.

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, convidados, a vela branca e os seis paus de piúba das jangadas cearenses se metamorfosearam nos poderosos motores e nas gigantescas estruturas metálicas dos navios petroleiros.

            Os navios transportam o petróleo. Esse petróleo, há pouco tempo, nós transformamos também num insumo importantíssimo de libertação, depois de uma luta muito importante para convencer Governo, povo e Congresso Nacional de que o dinheiro do petróleo, em grande parte, deveria ser destinado à educação como símbolo também de libertação e de garantia de acesso de todos os setores à formação no nosso País. O espírito indomável, portanto, do Dragão do Mar nos guia hoje, como ontem e como sempre.

            Um abraço e parabéns pela belíssima sessão, Senador Eunício Oliveira. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 13/05/2014 - Página 9