Discurso durante a 75ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Manifestação pela rejeição do Projeto de Lei nº 508, de 2013, que agrava a punição para atos coletivos de vandalismo.

Autor
Humberto Costa (PT - Partido dos Trabalhadores/PE)
Nome completo: Humberto Sérgio Costa Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
LEGISLAÇÃO PENAL, MANIFESTAÇÃO COLETIVA.:
  • Manifestação pela rejeição do Projeto de Lei nº 508, de 2013, que agrava a punição para atos coletivos de vandalismo.
Publicação
Publicação no DSF de 21/05/2014 - Página 744
Assunto
Outros > LEGISLAÇÃO PENAL, MANIFESTAÇÃO COLETIVA.
Indexação
  • DEFESA, REJEIÇÃO, PROJETO DE LEI, REFERENCIA, AUMENTO, PENA, HIPOTESE, UTILIZAÇÃO, VIOLENCIA, MANIFESTAÇÃO COLETIVA, MOTIVO, VIOLAÇÃO, LIBERDADE DE EXPRESSÃO, DIREITO, REALIZAÇÃO, MANIFESTAÇÃO.

            O SR. HUMBERTO COSTA (Bloco Apoio Governo/PT - PE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, telespectadores da TV Senado, ouvintes que nos acompanham pela Rádio Senado.

            Sr. Presidente, amanhã, a Comissão de Constituição e Justiça desta Casa voltará a se debruçar sobre um tema importantíssimo para todos os brasileiros e para o qual eu gostaria de chamar a atenção de toda nossa sociedade.

            Retomaremos, na sessão dessa quarta-feira, a discussão do Projeto de Lei nº 508, de 2013, que tipifica, como crime de vandalismo a promoção de atos coletivos de destruição, dano ou incêndio em imóveis públicos ou particulares, equipamentos urbanos, instalações de meios de transporte de passageiros, veículos e monumentos.

            Quero registrar aqui o respeito e a admiração que tenho pelo autor da proposta, o Senador Armando Monteiro, e pelo Relator, o Senador Pedro Taques, mas não posso deixar de me manifestar como divergente do espírito, dos fundamentos e da redação dessa matéria.

            Sei que esse projeto de lei é fruto do trabalho e da inteligência de autor e do Relator, mas, por uma questão de princípio, manterei meu enfrentamento contra ele, o projeto, seja na Comissão, seja neste plenário, porque entendo que os seus dispositivos tolhem direitos individuais e são um risco para o exercício de direitos coletivos.

            Ele nasceu da nossa consternação e da nossa indignação com os episódios de violência ocorridos no contexto das manifestações acontecidas em todo o País a partir do segundo semestre do ano passado.

            No mais trágico desses episódios, assistimos à morte do repórter cinematográfico da Band, Santiago Andrade, atingido, enquanto trabalhava na cobertura de um protesto, por um rojão criminosamente lançado por alguns indivíduos.

            Obviamente, essas cenas chocaram todos os brasileiros, em razão da completa desconexão entre a essência legítima das manifestações e o envolvimento deletério de gente que se misturou aos eventos com a única finalidade de praticar atos criminosos.

            No entanto, não é razoável que nós legisladores, sob um clima de forte comoção social, como o que se instalou no País após esses atos, tentemos dar uma resposta açodada à população, por meio da qual solaparemos direitos constitucionais invioláveis, como o direito à reunião e à associação e o direito à livre manifestação do pensamento.

            Ou seja, a pretexto de punirmos os atos criminosos de alguns indivíduos, não podemos aceitar investir contra os direitos e as garantias fundamentais das coletividades.

            O Brasil não pode retroceder. Assim como não queremos o retrocesso político, também não podemos permitir que o Brasil passe por um retrocesso legal e democrático. Essa mordaça à qual estávamos submetidos há apenas 30 anos ainda está muito viva na nossa memória para nos lembrar todos os dias de que esse é um tempo que não queremos que volte mais.

            Não pode uma lei pretender dar caráter de qualificadora criminal ao exercício de uma condição absolutamente inerente à democracia, que é a participação em manifestações. A reunião de pessoas, de acordo com o que já é previsto e regulado nas nossas leis, não pode ser vista de maneira diferente de outros atos que nos são próprios e rotineiros e não pode ser considerada um fato anômalo e atípico, que mereça controle adicional e superveniente. Esse é o exercício de um direito que cabe a todo cidadão, e somente isso já deveria bastar.

            Tentar associar diretamente o crime de vandalismo às manifestações é um imenso risco à democracia. Há aí muitas lacunas no tipo penal, das quais autoridades do Estado podem se valer para criminalizar e punir arbitrariamente movimentos sociais. Com isso eu não posso concordar.

            Está extremamente aberta, por exemplo, a caracterização do encontro de pessoas. Elas podem ser manifestações imensas, mas também podem ser a comemoração de um simples aniversário em um restaurante.

            Então, somente pelo fato de ser uma concentração de pessoas, isso autoriza o Estado a aumentar sensivelmente as penas previstas no Código Penal para os crimes que especifica e que possam ocorrer nesses locais?

            Uma pessoa mascarada em uma festa de carnaval deve, automaticamente, ter sua pena aumentada por isso se for denunciada em razão de uma confusão que resultou em prejuízo ao patrimônio do clube onde ocorria a festa?

            Se um enfrentamento ou danos ao patrimônio público e privado acabarem ocorrendo em meio a um grande protesto, isso pode ser justificativa para o Estado agravar a pena daqueles que julga envolvidos?

            Os bons doutrinadores do Direito ensinam que toda e qualquer tentativa legislativa de criminalizar movimentos sociais e protestos ou de conceber tratamento mais gravoso para os que deles tomem parte deve ser veementemente rechaçada por padecer de inconstitucionalidade em sua gênese, uma vez que não respeita o conteúdo essencial dos direitos fundamentais.

            Todos aqui nos lembramos do que ocorreu nos Estados Unidos, que posam como o farol da liberdade para o mundo, depois dos episódios de 11 de setembro. Com o argumento de zelar pela segurança nacional, o Governo americano suprimiu e violou uma série de direitos com a chancela do Legislativo americano.

            O que vimos foi uma série de intervenções em outros países desautorizadas pela comunidade internacional, agressões à liberdade política, aos direitos civis, julgamentos de exceção, torturas e ações que, como, recentemente, descobrimos, chegaram até mesmo à espionagem de empresas e governos estrangeiros, como o caso brasileiro.

            Ou seja, sufocar direitos para, pretensamente, proteger outros nunca se mostrou uma boa política. Machado de Assis, no começo do século XX, já ironizava esse tipo de comportamento das elites brasileiras quando escreveu: "serve-se muita vez a liberdade parecendo sufocá-la". Mentira. À liberdade só se serve com mais liberdade. É assim que uma sociedade vai amadurecendo e uma democracia vai se aperfeiçoando.

            Em razão disso, eu me somo a outros colegas, como os Senadores Lindbergh Farias e Randolfe Rodrigues, e a entidades expressivas da sociedade civil, como a Anistia Internacional e o Greenpeace, na luta contra esse projeto.

            É nosso desejo que ele seja arquivado amanhã pela Comissão de Constituição e Justiça porque não se coaduna com a nossa Constituição e nem com a nossa democracia. Não precisamos, no Brasil, de leis mais duras; precisamos que as leis existentes sejam cumpridas.

            As leis que já criminalizam os atos de depredação de patrimônio público ou privado, as agravantes de homicídio e tantas outras são suficientes para conter atos criminosos que aconteçam em qualquer lugar, em manifestações públicas, em concentração de pessoas, na calada da noite, onde quer que isso aconteça.

            O que nós precisamos, na verdade, é de um aparelho policial que investigue, que tenha capacidade de desenvolver trabalhos de inteligência adequados, de um Ministério Público que denuncie de forma adequada e de um Poder Judiciário que seja célere nas suas decisões. É disso que nós estamos precisando; e não de leis que, muitas vezes, são marcadas pela subjetividade e que podem servir a interesses diversos daqueles a que, em princípio, se propõem.

            Reconheço aqui a boa intenção do autor e do relator, mas não temos que nos preocupar com intenções; temos que nos preocupar com os fatos objetivos, e os fatos objetivos apontam para que essa proposta de lei seja, ainda que sem intenção, um atentado à nossa democracia.

            Agora, causa-nos espécie o silêncio de uma parte expressiva da sociedade: as entidades do movimento sindical, os sindicalistas, os trabalhadores organizados, que podem ser vítimas dessa legislação, os movimentos de trabalhadores sem terra, os movimentos de trabalhadores sem teto, os movimentos populares de bairros. Uma lei como essa pode, tranquilamente, ser aplicada aos movimentos de ocupação de terrenos vazios, às desocupações promovidas pela polícia a partir de indicativos judiciais.

            Portanto, espero que, no dia de amanhã e ao longo desses dias, essas instituições expressem o seu posicionamento contrário a essa proposta, que, do meu ponto de vista, em nada contribui para aperfeiçoar a democracia e muito menos para conter aqueles que utilizam a violência, participando de manifestações.

            Se, de fato, há a infiltração do crime organizado, que os órgãos policiais utilizem a inteligência para desmontar essas instituições criminosas. Se há organizações políticas que defender um caminho não democrático para o Brasil e que estimulam essas manifestações...

(Soa a campainha.)

            O SR. HUMBERTO COSTA (Bloco Apoio Governo/PT - PE) - ... que elas sejam identificadas e sejam punidas com o rigor da lei. Mas nós não podemos fazer com que exista uma lei que pode ser aplicada para alguém que não teve a intenção de delinquir.

            Portanto, Sr. Presidente, não creio que nós possamos aprovar, nesta Casa, uma lei que venha a servir de instrumento a agentes de espírito autoritário, para que possam investir contra aquilo que temos de mais sagrado: a nossa liberdade.

            Muito obrigado pela tolerância, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/05/2014 - Página 744