Fala da Presidência durante a 186ª Sessão de Debates Temáticos, no Senado Federal

Abertura da sessão destinada a debater o Projeto de Lei do Senado nº 280, de 2016, que define os crimes de abuso de autoridade e dá outras providências.

Autor
Renan Calheiros (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AL)
Nome completo: José Renan Vasconcelos Calheiros
Casa
Senado Federal
Tipo
Fala da Presidência
Resumo por assunto
LEGISLAÇÃO PENAL:
  • Abertura da sessão destinada a debater o Projeto de Lei do Senado nº 280, de 2016, que define os crimes de abuso de autoridade e dá outras providências.
Publicação
Publicação no DSF de 02/12/2016 - Página 5
Assunto
Outros > LEGISLAÇÃO PENAL
Indexação
  • ABERTURA, SESSÃO, OBJETIVO, DEBATE, PROJETO DE LEI DO SENADO (PLS), OBJETO, DEFINIÇÃO, GRUPO, CRIME, ABUSO DE AUTORIDADE.

    O SR. PRESIDENTE (Renan Calheiros. PMDB - AL) – Declaro aberta a sessão.

    Sob a proteção de Deus, iniciamos os nossos trabalhos.

    A presente sessão, como todos sabem, destina-se a debate temático sobre o Projeto de Lei nº 280, de 2016, que define os crimes de abuso de autoridade e dá outras providências.

    Eu tenho a satisfação de convidar, para compor a Mesa, o Presidente do Tribunal Superior Eleitoral e Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. (Pausa.)

    Tenho igual satisfação de convidar, para compor a Mesa, o Exmo Sr. Juiz Federal titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, Sérgio Moro. (Pausa.)

    Convido para compor a Mesa o Exmo Juiz Federal titular da 10ª Vara Federal Criminal de São Paulo, Silvio Luís Ferreira da Rocha.

    Convido para compor a Mesa o Exmo Senador Roberto Requião, que é o Relator do PLS 280, de 2016, do Senado Federal. (Pausa.)

    Senhores convidados, Srs. Senadores, Srªs Senadoras, como expressado, em meu nome e em nome do Senado Federal, o sincero agradecimento aos eminentes juristas que, em uma demonstração de elevado espírito público e desprendimento, aceitaram interromper suas árduas rotinas profissionais para colaborar com o processo legislativo e com o Brasil, expondo suas ideias e sugestões e, sobretudo, qualificando este debate.

    O objetivo desta sessão temática é, como todos sabem, debater o abuso de autoridade. A legislação que se pretende aprimorar foi editada sob os influxos de um regime ditatorial, violento, que perdurou por 20 anos e que, nesse período, recusou a assinar pactos internacionais de proteção aos direitos humanos.

    As sessões temáticas foram instituídas pela atual Mesa do Senado Federal para proporcionar o adensamento dos debates sem as limitações temporais do Regimento Interno da Casa. Aqui, senhores convidados e Srs. Senadores, foram debatidas as mudanças na Petrobras, na legislação político-eleitoral, na terceirização; na semana passada, foram discutidas a PEC do teto dos gastos públicos e, também, o abuso de autoridade. Nós fizemos uma primeira sessão temática, em que debatemos o abuso de autoridade, e, hoje, realizamos a segunda sessão temática.

    A minha segunda palavra, Exmo Juiz Sergio Moro, é de reflexão. O consenso supera o confronto, a concórdia prevalece sobre o dissenso, a compreensão e o entendimento afastam a discórdia. As soluções negociadas para as divergências são sempre possíveis, por mais distantes que possam parecer. Nas mais variadas vertentes da vida, existe espaço para a convergência de opiniões e de interesses, e é justamente o diálogo, sempre preferível à hostilidade, que nos permite identificá-lo. Não são, como todos sabem, os homens que brigam, mas as ideias, como gostava de repetir o grande político brasileiro que foi Tancredo Neves.

    Como afirmei na sessão temática realizada no dia 23 de novembro, a atividade de fazer leis talvez seja uma das mais difíceis e complexas da vida jurídica. Norberto Bobbio, a cujos ensinamentos não cansamos de recorrer, dizia que é preciso lutar muito para fazer descer a democracia do céu dos princípios para a terra onde se chocam adensados interesses.

    A história da humanidade gira em torno da dominação. A barbárie, porém, foi substituída por relações civilizadas entre os detentores do poder e aqueles que são seus destinatários sob a disciplina de uma ordem jurídica que preserve os direitos individuais fundamentais. O mesmo povo do qual emana o poder, conforme está explícito logo no pórtico da nossa Constituição, é aquele que demarca as fronteiras de proteção aos seus direitos essenciais.

    Geraldo Ataliba nos ensinou que as liberdades públicas inscritas na Constituição são as mais expressivas balizas ao poder do Estado. Configura usurpação, constitui-se na mais grave violação constitucional o exercício, seja pelo Legislativo, seja pelo Executivo, seja pelo Judiciário, de ato de poder de todo tipo ou de qualquer ato de força voltado contra os cidadãos ultrapassando essas mesmas barreiras. Esclarecia o eminente professor que a força desamparada do direito é mais repugnante em um Estado democrático do que em qualquer outro. O Estado tem a força que os cidadãos lhe conferem. O seu uso contra o cidadão deve ser, portanto, repelido. O bem jurídico tutelado pela legislação que pune o abuso de autoridade é constituído pelos direitos fundamentais do cidadão cuja liberdade individual, intimidade e domicílio são invioláveis. Sua importância é tanta que possui status de cláusula pétrea.

    Para Heleno Cláudio Fragoso, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão afirmava a existência de certos princípios superiores imutáveis que se impõem em todo os tempos a todos os povos. Tais princípios os homens deveriam ter sempre diante dos olhos: os legisladores para lhes servir de guia, os cidadãos, de salvaguarda. Porém, não basta declarar – como todos sabem –, é preciso garantir, tornar efetiva a proteção.

    A preocupação mundial, Srªs Senadoras e Srs. Senadores, é produzir um sistema legal que, efetivamente, assegure os direitos fundamentais e as liberdades públicas. Nelson Mandela, um dos maiores líderes políticos de todos os tempos, advertiu que não há caminho fácil para a liberdade.

    A prevenção do abuso de autoridade é compromisso do Estado democrático de direito e dever essencial do Poder Público. Trata-se de ilícito grave, repreendido nas esferas penal, civil e administrativa. Na esmagadora maioria dos casos envolve relações entre pessoas simples e esferas inferiores ou intermediárias de poder.

    O abuso de autoridade surge da apropriação dos centros de dominação para servir aos desejos pessoais, fragilidade a qual todo ser humano está sujeito. E nenhum de nós, absolutamente nenhum de nós, está imune aos sistemas de controle legalmente instituídos.

    O ilícito pode advir do indevido uso de algemas, passando pela detenção de desafetos por motivos pessoais, interceptações telefônicas, ambientais e telemáticas clandestinas, até prisão sem as cautelas legais ou quebra de sigilo de jornalista para violentar o princípio constitucional do sigilo da fonte. Não quero mais citar aqui, para não delongar essa apresentação, o caso da jornalista Andreza Matais, nem o caso do repórter da revista Época, pois já o fiz ontem.

    Tenho visto na mídia algumas associações externarem preocupação com a eventual interferência que a legislação do abuso de autoridade poderia ter na independência da magistratura ou para inviabilizar investigações policiais. Respeitosamente, quero, de pronto, declarar que não vejo assim. O projeto abrange os servidores públicos dos três Poderes que ultrapassarem os limites de suas atribuições para fazer o que a lei veda ou constranger alguém a fazer algo que a lei não manda em detrimento dos direitos fundamentais, ao contrário do que vem sendo indevidamente propagado – e nem poderia – de que seria iniciativa para embaçar a Operação Lava Jato ou qualquer outra investigação legalmente constituída.

    Eu tenho dito e aproveito esta oportunidade para repetir que eu considero a Operação Lava Jato sagrada – sagrada. A Operação Lava Jato definiu alguns avanços civilizatórios e precisa, sim, ser estimulada para que, com ela e com outras que possam ser conduzidas na mesma direção, possa colaborar com a diminuição da impunidade no Brasil, que é uma grande chaga.

    Apenas serão punidas as autoridades que, livre e conscientemente, fizerem mau uso dos seus poderes. O julgamento é feito pelo Poder Judiciário, que se orienta e age segundo a lei. Eu sigo acreditando no Judiciário. E duvidar da aplicação dessa lei, em outras palavras, significa duvidar do próprio Poder Judiciário.

    No caso dos magistrados e membros do Ministério Público, eventual punição por abuso de autoridade decorreria necessariamente de acórdão de um tribunal, haja vista a prerrogativa de foro que constitucionalmente lhes é consagrada. O Ministério Público tem, portanto – e é bom que todos fiquem atentos –, a blindagem do Procurador-Geral da República, de cuja vontade depende a continuidade de investigação contra qualquer de seus membros – um privilégio, mas tem essa blindagem.

    Acho ilusório supor que mero projeto de lei versando sobre abuso de autoridade, aliado e compatível com as legislações de outros países democráticos, possa colocar em risco a atividade de juízes e de procuradores, dotados que são de prerrogativas que asseguram sua independência funcional. As funções no serviço público são exercidas por seres humanos que, como tais, são sujeitos a desvios de caráter e suscetíveis de praticar excessos pelo fascínio causado pelo poder que ostentam. A Constituição da República não confere a ninguém o regime da irresponsabilidade, nem se compraz com imunidade absoluta.

    É bom reiterar que o texto do projeto foi elaborado por uma insuspeita comissão de juristas da mais elevada qualidade técnica e moral. O amadurecimento do projeto teve, como todos sabem, a colaboração do Comitê Gestor do II Pacto Republicano e efetiva participação do Poder Judiciário. O Poder Executivo foi ouvido em várias oportunidades, por intermédio do Ministério da Justiça. Assim, Srs. Senadores, Srªs Senadoras, é equivocado navegar nas águas das teorias conspiratórias, passando a falsa imagem de que o projeto teria por objeto a intimidação de autoridades no exercício regular de suas funções. Aliás, no estágio civilizatório atual, com técnicas e equipamentos avançados de investigação, bem como com a qualificação profissional de policiais, promotores, juízes, lançar mão do abuso de autoridade para desvendar crimes só se justifica por pura maldade, preconceito ou grave psicopatia.

    Tenha-se a santa paciência! Não se pune a autoridade, mas o abuso, exatamente para garantir a autoridade.

    A meu ver, Ministro Gilmar Mendes, diante da majestade do bem jurídico tutelado, os direitos fundamentais e as liberdades públicas, o projeto ainda é ameno, bastante ameno. O tema é, seguramente importante, tanto que, em 1985, mereceu da Organização das Nações Unidas uma resolução sobre os princípios fundamentais de justiça relativos às vítimas da criminalidade de abuso de poder. Por isso, os agentes públicos e aplicadores da lei, envolvidos na persecução penal, estão sujeitos a limites na sua atuação.

    Essas fronteiras estão postas na Constituição Federal e são do conhecimento de todos, especialmente dos que integram ou integraram bancas examinadoras de concursos públicos.

    Outro dia, um aluno do curso de Direito me falava que, na faculdade, estava estudando a parte das garantias e direitos individuais da Constituição de 1988 e não entendia como seria possível, nos tempos de hoje, tolerar o abuso de autoridade e, pior, que as pessoas esclarecidas o defendessem, ainda que por via oblíqua.

    O Senado Federal, instituição da democracia, foi vítima, como todos sabem, de excessos de juízes que, usurpando competência do Supremo Tribunal Federal, determinaram diligências reservadas exclusivamente à Corte Constitucional. Protestamos, em algumas oportunidades, de maneira até muito enfática, mas buscamos o restabelecimento da ordem no Poder Judiciário percorrendo o caminho institucional.

    A reapresentação do projeto de 2009, atualizando a Lei de Abuso de Autoridade, foi às claras. A sua discussão acontece mais uma vez numa sessão temática, como os senhores estão vendo, a céu aberto, com a honrosa participação de todos.

    O Congresso Nacional está, Ministro Gilmar, Juiz Sérgio Moro, receptivo ao diálogo e permeável às críticas e sugestões para corrigir eventuais falhas na proposta legislativa em debate, é claro. Só não pode o Congresso Nacional ser omisso neste momento histórico, nem de conivência com atentados contra as liberdades públicas, às quais tenho o dever de proteger.

    Nessas colocações iniciais, agradeço a todos pela atenção que dispensaram a essas palavras e renovo aqui, com sinceridade, as justas homenagens aos eminentes juristas que certamente, não tenho nenhuma dúvida, vão enriquecer esse debate com suas luzes e experiências, ajudando a aprimorar essa lei e ajudando, sobretudo, a melhorar o Brasil.

    Como todos sabem, nós vamos ter a primeira parte.

    Vamos conceder a palavra a cada um dos convidados por 20 minutos. Se for necessário um tempo maior, nós o concederemos com satisfação, em benefício da profundidade do debate.

    Esta Sessão Temática foi recriada para tentar, sem a limitações regimentais, devolver, Ministro Gilmar, ao Senado Federal os grandes debates, as grandes discussões, para que possamos fundamentalmente, da melhor forma possível, cumprir o nosso papel legislativo, qualificar o processo legislativo e entregar à sociedade, depois de exaustivamente discutidas, as melhores leis, as leis que são exatamente cobradas pela sociedade.

    Concedo a palavra, com muita satisfação, ao Exmo Sr. Sílvio Luís Ferreira da Rocha, Juiz Federal Titular da 10ª Vara de São Paulo.

    Se desejar, pode falar daqui mesmo ou, se quiser, pode ir à tribuna.

    Por favor.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 02/12/2016 - Página 5