21/09/2023 - 4ª - Frente Parlamentar Mista Antirracismo

Horário

Texto com revisão

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O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS. Fala da Presidência.) - Bom dia a todos e a todas!
Declaro aberta a 4ª Reunião de 2023 da Frente Parlamentar Mista Antirracismo da 1ª Sessão Legislativa Ordinária da 57ª Legislatura, que se realiza neste dia, 21 de setembro de 2023, início da primavera, e também o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência.
Vamos em frente.
Até o momento, esta frente parlamentar conta com a adesão de 37 Senadores e 114 Deputados - uma das maiores frentes aqui do Congresso. (Pausa.)
A maior. A assessoria me informa que esta é a maior do Senado.
Informo aos Parlamentares que desejarem compor a Frente Parlamentar Mista Antirracismo que os termos da adesão estão disponíveis junto à Secretaria e na página da frente no site do Senado Federal.
Esta reunião destina-se a, item primeiro, fomentar o debate sobre racismo e o respeito à pluralidade religiosa.
Neste momento... Nós começamos, vocês vão ver, 15 minutos antes, porque hoje, depois, farei a abertura com um pronunciamento sobre o tema de hoje, mas, a pedido das pessoas com deficiência em todo o país, eu farei, aproveitando a nossa TV Senado, Agência Senado e Rádio Senado, um pronunciamento sobre o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, 21 de setembro, Lei nº 11.133, de 2005 - lei também essa, Frei David, de minha autoria.
Como eu estou aqui há muito, muito tempo, por isso é que eu tenho tantas leis aprovadas. Alguns me dizem: "Mas tudo isso aí é por que você é muito ligeiro e muito capaz?". Não, é porque eu sou mais idoso. (Risos.)
Sou o mais veterano daqui do Senado - devo ser. Deve ter um que acho que tem um pouquinho a mais de anos do que eu, mas Constituintes tem eu e o Renan, que estamos aqui desde a Assembleia Nacional Constituinte.
(Intervenção fora do microfone.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Isso. Eu continuo. Eu não saí nenhum dia daqui de dentro. Alguns dizem que eu devo ter alugado alguma peça aqui dentro já. (Risos.)
Mas, vamos lá, meus amigos.
Neste Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, 21 de setembro, queremos trazer dados e reflexões importantes.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad Contínua), realizada pelo IBGE em 2022, são 18,6 milhões de pessoas com deficiência no Brasil. Os números revelam a falta de acesso à educação, ao trabalho e, consequentemente, à renda e à qualidade de vida. Para as pessoas com deficiência, a taxa de analfabetismo é 19,5%; já entre as pessoas sem deficiência, vejam, a taxa é de 4,1%.
Outro importante dado é a taxa de ocupação em relação ao acesso à educação: cerca de 18,9% das pessoas com deficiência, sem instrução alguma ou com ensino fundamental incompleto, estavam na força de trabalho; para aquelas sem deficiência, esse percentual foi na ordem de 48% - vejam, 18,9% para 48%. Em relação às pessoas com nível superior, a diferença percentual foi semelhante aos dados anteriores: 54,7% para as pessoas com deficiência e 84,2% para as sem deficiência, ou seja, no mínimo 30% ou mais. Dessa forma, mesmo os níveis de instrução mais elevados são insuficientes para melhorar a taxa de emprego. Cerca de 55% das pessoas com deficiência ocupadas estavam na informalidade, enquanto que, para as pessoas sem deficiência ocupadas, esse percentual foi de 38,7%.
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Dados sobre o rendimento também revelam essa desigualdade e preconceito. Para as pessoas com deficiência, a média salarial é de R$1.860, enquanto que as pessoas sem deficiência recebem em média R$2.690, quase o dobro de uma para outra.
Dados das pessoas pretas com deficiência. Há uma equivalência maior ainda entre as pessoas de cor preta. Fizemos até uma audiência pública, nesta semana, nesse sentido, e ficou comprovada a situação das pessoas pretas com deficiência. Eles deram dados aqui, a equipe toda que veio, que nos deixaram muito preocupados, o que merece um carinho especial a esse tema. Então vou aqui aos dados. Dado de pessoas pretas com deficiência. Há uma prevalência maior entre as pessoas pretas com deficiência em relação às pessoas brancas. Eu vou ler aqui o número, mas é praticamente o dobro em percentual de pessoas pretas com deficiência em relação às pessoas brancas com deficiência. Os números. Há uma prevalência maior entre as pessoas de cor preta: 9,5%, contra 8,9% entre os pardos e 8,7% entre os brancos. As mulheres estão em maior número: 10,10% em relação aos homens, 7,7%.
O que as pessoas com deficiência mais esperam é ver respeitados seus direitos e acessá-los de maneira mais simples e uniforme. A queixa comum é de que, para acessar os vários benefícios, são exigidos laudos médicos diferentes, um para cada benefício. O laudo precisa ser atualizado e tem prazo de duração, mesmo que a deficiência seja permanente. Aí está a inovação representada pela avaliação biopsicossocial, que está sendo elaborada pelo Poder Executivo e que consta no Estatuto da Pessoa com Deficiência: a avaliação da deficiência será unificada e válida para todo o território nacional. E, o mais importante, não serão apenas os laudos médicos que atestarão a deficiência, mas também as consequentes dificuldades para a realização das atividades do dia a dia, tais como aquisição e aplicação de conhecimento, comunicação, mobilidade, cuidados pessoais, cotidiano doméstico, educação, trabalho, cuidado com as finanças, relações pessoais, vida comunitária, social, cultural e política. As barreiras também serão classificadas dividindo-se em produtos e tecnologia, ambiente natural e modificado, políticas, serviços e sistemas.
As atitudes devem ser fruto de escolhas conscientes e não de ações impensadas, nascidas do preconceito arraigado. A pior atitude é a diferença, e a pior barreira é aquela que é erguida pelo julgamento - ambas nascidas na falta de informação.
Todos têm uma história de vida, sonhos, desejos e contribuição a dar. Benefícios existem para reparar os abismos entre as pessoas; e políticas públicas, para oportunizar o exercício da cidadania. Entender que a deficiência é mais do que um corpo com alteração. Não é desprezar cuidados médicos, mas, sim, somar outros olhares ao conceito; identificar a necessidade de suporte, concedendo pleno acesso; promover a educação inclusiva e de qualidade; melhorar os níveis de emprego para essas pessoas, buscando estender as causas dessa disparidade.
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Os desafios são enormes. Mas identificar as causas da exclusão é urgente e necessário.
Para começar, há que se pensar na linguagem que utilizamos em nosso dia a dia, por exemplo, abandonando expressões como "fulano deu mancada". É uma forma de preconceito expressa na fala, às vezes, sem intenção, mas é uma forma de preconceito. "Fulano deu mancada" ou "fulano deu uma de joão sem braço".
Evitemos, então, essas comparações. Sejamos claros. Podemos dizer simplesmente "fulano errou" ou "cometeu um desvio", mas não pode ficar classificando a pessoa pelo defeito ou não que por ventura ela tenha - não é defeito, mas uma deficiência que ela tenha.
No segundo caso, podemos trocar a frase por "fulano foi negligente". Bom, foi negligente, mas não dizer que ele é "sem braço". É isso que é absurdo.
Na opinião de especialistas, uma linguagem adequada conduz a uma atitude mais consciente. Evitemos, assim, as falas preconceituosas e capacitistas que reproduzimos sem refletir.
Setembro é o mês da inclusão. É o dia 21 o Dia Nacional da Luta da Pessoa com Deficiência (Lei 11.133, de 2005, originária de um projeto de nossa lavra). A data também marca o início da primavera, renovação dos ares, renascer da esperança, transformação das pessoas.
Nesses dias, eu gosto de olhar no rosto de todos. Como é bom olhar o rosto de uma criança sorrindo, pois ela traz sempre um brilho nos olhos e uma vontade de estar de bem com a vida - todas as crianças, sem nenhuma distinção
Como é bom caminhar ao lado dos idosos. Eles trazem, sim, o peso dos anos, mas trazem também a força da sabedoria, a força do conhecimento, a força das estradas percorridas ao longo da vida.
Aqueles que trazem no peito a disposição para as lutas e a consciência do dever refletem o desejo da mudança e a coragem de buscar no outro, de se enxergar no outro, dando o melhor de si para o melhor de todos.
Não existe limites para o ser humano. Não existem corpos incapazes, nem barreiras impossíveis de ultrapassar.
Essa é uma fala que fiz, enaltecendo este dia 21 de setembro, Dia Nacional da Luta da Pessoa com Deficiência.
Só teve um dado aqui que eu quero atualizar. O dado atualizado foi-me fornecido pelos representantes dos ministros que estiveram nessa audiência nesta semana em que se discutiu sobre pessoas com deficiência pretas. Os dados, diferentemente do que está aqui neste documento, que para mim não está atualizado, foram atualizados pelo Governo. E eu disse no início, Frei David, é praticamente o dobro de pessoas com deficiência pretas em relação ao número de pessoas com deficiência brancas. Veio um dado atualizado que saiu ontem, e neste aqui o dado não estava...
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O SR. DAVID RAIMUNDO DOS SANTOS (Fora do microfone.) - Senador, qual é a fonte? Você tem aí?
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Aqui eu não tenho. Esse dado eu não tenho, mas eu te passo. Esse dado foi colocado ontem e nós resgatamos, só que ele não foi utilizado aqui. O dado é 9,5% contra 5,4%. (Pausa.)
Neste momento, eu vou formatar a mesa e, quando eu formatar a mesa, conforme combinado... São praticamente 10h, faltam três minutos. Agora estamos iniciando o tema de hoje, que é esse de debater... Já estão on-line. Está a Pastora Eliad, e quem mais? O senhor, querido amigo Hédio Silva. Grande Hédio, tem tempo que não te via. A pastora eu já tinha visto há pouco tempo, mas o Hédio fazia um bom tempo que eu não via.
A nossa audiência vai começar agora. Eu fiz apenas uma fala primeiro sobre o dia 21 de setembro, que é o Dia Nacional da Pessoa com Deficiência.
Então vamos, de imediato, formatar a mesa. Compõem a mesa... Vamos para a apresentação da composição.
O Deputado Federal Pastor Henrique Vieira. Ele não chegou ainda. É pastor, teólogo e escritor. Dizem que está vindo, não chegou ainda. É isso que a assessoria me informa.
Clédisson Júnior, cientista político, representante da nossa querida Dandara. Eu presido no Senado e ela preside essa Comissão na Câmara. Ela só não está aqui porque estava em uma viagem ao exterior com o Presidente Lula, na ONU. O Clédisson Júnior a representou já no debate que tivemos sobre a política de cotas, que foi muito importante. É importante a mobilização nacional para nós aprovarmos esse tema, como tenho dito, durante o mês de setembro, batendo palmas para a primavera e palmas também para a aprovação da política de cotas, que é o que eu pelo menos almejo com muita força e com muita emoção até.
Conosco também Mãe Gilda de Oxum - que está vindo, está vindo. O Plenário já respondeu rápido: ela está vindo.
Humberto Ramos de Oliveira Júnior, formado em Direito, Doutor em Sociologia, Coordenador de Otros Cruces no Brasil e corresponsável pela implementação do Observatório de Religião e Direitos Humanos, em parceria com a Conectas. Está chegando?
O SR. HUMBERTO RAMOS DE OLIVEIRA JÚNIOR (Fora do microfone.) - Aqui.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Então venha. Está convidado já. Vem para cá! Daqui para a frente, é com vocês. (Palmas.)
Humberto Ramos já está aqui conosco.
Depois, está aqui na lista o Frei David. Está aqui já, está bem colocado. Só um minuto, Frei David.
Pronto. Agora, neste momento, convidamos, com muita satisfação, o Frei David dos Santos, da Educafro. Eu vou ter que repetir aqui, Frei David: eu aprendi o valor das cotas, Frei David, no Cpers, Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Eu, sindicalista, muito metido na área sindical, fui convidado para ouvir o Frei David. Eu não era nem Parlamentar, então foi uns 40 anos atrás. E o Frei David veio explicar a importância da política de cotas. Nunca me esqueço de que o senhor botou no quadro, na parede, desenhou uma corrida de obstáculos. Lembra? Depois o senhor vai falar sobre isso, segura aí. Ele mostrou uma corrida de obstáculos: "Olha, por isso é que nós precisamos da política de cotas". Mas ele é que vai explicar, porque ele é que me ensinou. Eu quero que ele repita isso, depois, aqui.
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Então o Frei David já está conosco.
Thayná Yaredy, Assessora do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas. Está aqui.
Uma salva de palmas a todos os presentes, na figura da Thayná.
(Palmas.)
Sente-se aqui ao meu lado, por favor.
Seja bem-vinda, Thayná! (Pausa.)
Antes de passar a palavra aos nossos convidados, comunico que farei uma introdução ao tema, agora, porque antes só foi uma fala sobre o dia 21 de setembro. Eu farei essa leitura, e já informo a todos que esta reunião será interativa, transmitida ao vivo, e aberta à participação dos interessados por meio do Portal e-Cidadania na internet, no endereço www12.senado.leg.br/ecidadania, ou pelo telefone 0800 0612211, e que cada um dos convidados terá dez minutos, com a tolerância necessária, se assim for preciso.
Vou lembrar aqui que teremos também a participação remota do nosso querido advogado Hédio Silva Jr., Mestre e Doutor em Direito pela PUC de São Paulo, ex-Secretário de Justiça do Estado de São Paulo e Coordenador-Executivo do Idafro.
Teremos também a pastora Eliad Dias dos Santos, Mestre em Ciência da Religião e Bacharel em Teologia, pela Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo Campo.
Então, antes, Hédio, de eu te passar a palavra... O Hédio é um ícone, permita-me que eu diga, respeitado e conhecido, não só em nível nacional, mas em nível internacional, pela sua luta, pelo combate, contra o racismo, o preconceito e todo tipo de discriminação.
Mas, Hédio, com um pouquinho de tolerância, porque eu tenho que fazer isto, e farei, rapidamente, para situar a todos sobre o tema de hoje.
É uma iniciativa da Frente Parlamentar Mista Antirracismo, que a Dandara preside na Câmara e eu presido no Senado. Repito, de novo, ela só não se encontra aqui porque está numa viagem à ONU com o Presidente Lula.
Rapidamente.
O Brasil passou por sérias e graves transformações nas últimas décadas. Desde o processo de redemocratização, iniciado nos anos 80, e formalizado na promulgação da Constituição Federal de 1988, até os dias atuais, assistimos à complexidade das relações sociais, em decorrência do processo acelerado de urbanização da economia e, ao mesmo tempo, da precarização das relações de trabalho.
De 1990 até hoje, o Brasil saltou, de 150,7 milhões, para mais de 228 milhões de habitantes, acompanhando o processo de globalização. Sofreu a ampliação de uma diversidade cultural já existente, tornando-se culturalmente mais plural. A religião não esteve alheia a esse processo. Ao contrário, dele faz parte, não apenas contribuindo com sua consolidação, como também se beneficiando dela. Nesse cenário, como decorrência da celeridade das mudanças, do intercâmbio de valores e até mesmo do abandono dos costumes e tradições outrora arraigados, expressões reacionárias vimos florescer, infelizmente.
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Valendo-se de uma concepção estreita de religião como antídoto para a ausência de sentido decorrente das transformações sociais, grupos conservadores vêm ofertando uma forma de religião de orientação fundamentalista, em nome de um conceito tradicionalista de família e de preservação de valores cristãos, contrário ao direito de grupos subalternos e minorias. Esses grupos têm provocado importantes câmbios no contexto da sociabilidade e de políticas nacionais.
O maior desafio no que diz respeito ao recrudescimento do conservadorismo - esse é o objetivo, estou fazendo uma leitura rápida da contribuição que tive da lavra da Isabel, que está aqui - e às suas expressões religiosas tem se dado na esfera da garantia da liberdade de crença e religião de grupos historicamente oprimidos, cujo grau de representação política e social ainda se encontra debilitado.
Mais precisamente, as religiões de matriz afro-brasileira têm sido as principais vítimas da intolerância propagada por grupos ultraconservadores e fundamentalistas. A intolerância religiosa existe desde sempre no solo brasileiro e assume novos contornos nos dias atuais. Legado nefasto de um Estado que se ergueu pela exploração de corpos negros, o racismo não apenas se faz presente, como se manifesta das mais diversas formas.
É isso, Isabel? É isso?
Eu estou lendo e dizendo que você...
O SR. HUMBERTO RAMOS DE OLIVEIRA JÚNIOR (Fora do microfone.) - É a produtora.
A SRA. MARIA ISABEL SALES (Fora do microfone.) - Essa contribuição veio do Humberto.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Ah, então. Por isso é que eu fiz bem em citá-la, porque o Humberto foi o que deu essa bela contribuição para o pronunciamento da abertura dos trabalhos.
Muito bem.
Então, vamos em frente.
Agora...
O SR. HUMBERTO RAMOS DE OLIVEIRA JÚNIOR (Fora do microfone.) - É nossa.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - É de vocês dois.
Estou achando bem interessante, porque fez uma retrospectiva histórica e veio para o presente.
E o racismo religioso é um dos mais frequentes num contexto de diversidade e pluralidade em que adeptos da religião não hegemônica se encorajam para assumir publicamente sua fé. O exercício da liberdade religiosa, o preconceito e a discriminação colidem em praça pública.
Ao passo em que as minorias se organizam, estabelecem-se em coletivos organizações da sociedade civil, à medida que recorrem ao Judiciário e à política para a consolidação dos seus direitos. Também os grupos fundamentalistas se organizam e se movimentam, justamente na direção contrária.
Evidentemente, grupos e movimentos de atores religiosos progressistas também buscam o protagonismo nessa cena. Propõem um curso alternativo, fomentando o diálogo e a construção de uma cultura de paz.
Conquanto não sejam numericamente expressivos, são qualitativamente muito importantes, frequentemente é deles que vem o clamor para que o Estado, que é e deve se manter laico, intervenha em favor dos menos favorecidos, não elegendo grupos preferenciais, mas ministrando a justiça com equidade, proporcionalidade, razoabilidade e sabedoria, num mundo de paz e respeitando todas as versões de pensamentos religiosos.
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Isso implica que o Estado laico seja um Estado mediador, não meramente neutro, isto é, que atue ao invés de simplesmente dar as costas para essa questão - muito bom o fechamento. Um Estado que crie os instrumentos e mecanismos que favoreçam a defesa dos excluídos e, para além dela, a promoção de uma cultura de diálogo, paz e conciliação restauradora.
Vamos debater esse importante tema.
Muito obrigado pela contribuição do Humberto e da Mara. Obrigado a ambos.
Agora sim, vamos entrar diretamente na exposição.
De imediato, como ele é um bambambã - permita-me, bambambã não é bom -, como ele é uma das estrelas que brilham no firmamento e aqui no nosso dia a dia sobre esse tema, eu passo a palavra ao meu querido amigo, Advogado, Mestre e Doutor em Direito pela PUC de São Paulo, ex-Secretário de Justiça de São Paulo, Coordenador-Executivo da Idafro, o Dr. Hédio Silva Jr. (Pausa.)
Ele está na tela?
O SR. HÉDIO SILVA JR. (Por videoconferência.) - Senador, me ouve? Bom dia.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Estou te ouvindo bem. Agora sim. Perfeita a imagem também.
O SR. HÉDIO SILVA JR. (Por videoconferência.) - Eu quero te dizer que - há muito tempo eu não te via - é sempre muito alentador perceber que a passagem do tempo se torna melhor, sob todos os pontos de vista. Quer dizer, eu estava lembrando que eu conheci V. Exa. ainda quando Deputado constituinte e quero registrar aqui essa trajetória luminosa, digna, íntegra e que dignifica o Parlamento e o papel do mandato popular na defesa da democracia e da cidadania, meu querido amigo Senador Paulo Paim, a quem agradeço o honroso convite para participar desta audiência da Frente Parlamentar Mista Antirracismo, na pessoa de quem saúdo todos os integrantes da mesa, todos aqueles que nos acompanham pela TV Senado, pela internet, e vou buscar obedecer ao tempo, rigorosamente cumprir o tempo que nos foi destinado.
Eu começo, Senador Paim, com uma advertência feita recentemente pelo Secretário-Geral da ONU, Secretário António Guterres, em que ele demonstrava a preocupação das Nações Unidas com uma das principais ameaças das democracias contemporâneas, que diz respeito justamente à incapacidade de um ser humano conviver com outro ser humano. Quer dizer, no mundo da internet, no mundo em que a aviação é cada vez mais veloz e aproxima cada vez mais - a aviação e a internet, exatamente a internet em primeiríssimo lugar -, aproxima culturas, povos, civilizações, o grande desafio das democracias contemporâneas é precisamente um ser humano conviver com outro ser humano, porque esse ser humano é diferente, porque a cor da pele dele é diferente, porque ele tem uma religião diferente, porque ele tem um Deus diferente, porque ele tem um credo diferente.
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Quando o Secretário-Geral da ONU pauta esse tema, ele quer chamar a atenção da opinião pública pelo fato de que a intolerância religiosa é uma das formas mais atrozes e mais cruéis de violação da dignidade da pessoa humana, mas ele também quer chamar a atenção para o fato de que a intolerância religiosa compromete a harmonia social, a paz social. Isso é alguma coisa muito grave, e a isso nós estamos assistindo no Brasil.
Diferentes segmentos - inclusive os grupos de convicção filosófica, ateus, agnósticos - enfrentam violações de direitos no cotidiano em razão, no caso, da sua descrença. Adventistas do sétimo dia - eu já tive a honra, Senador Paim, de representar os adventistas do sétimo dia numa ação importantíssima deles no Supremo Tribunal Federal, sobre a guarda do sábado. Muçulmanos enfrentam ataques, sobretudo depois do episódio das Torres Gêmeas e a associação entre islamismo e terrorismo, como se o que definisse o caráter do indivíduo fosse a religião. É o contrário: é o caráter, a personalidade do indivíduo que define a integridade, a credibilidade da religião que professa, e não o contrário. Mas, certamente, entre os segmentos que enfrentam violações de direitos no cotidiano, as religiões afro-brasileiras - e todos os dados estatísticos comprovam isso -, lamentavelmente, são as que mais sofrem no cotidiano, e sofrem violações de toda ordem: ofensas pessoais, ataques físicos... Inclusive, aproveitando aqui a presença do nosso Frei David, quero lembrar aquele ato deplorável de um autodenominado pastor que chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Essa agressão física, que nós todos deploramos, lamentamos, repudiamos - e a suposta liderança religiosa sofreu todas as sanções que a lei prevê -, essa agressão, no caso das religiões afro-brasileiras, atinge pessoas. Pessoas são agredidas, pessoas são violentadas, há ataques aos templos.
No caso do Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense, eu estou inclusive propondo - e nós iremos encaminhar uma ação judicial neste sentido - que se responsabilize o Estado do Rio de Janeiro, porque eles são uma espécie, Senador Paim, de refugiado interno. Eles são deslocados internos. Eles são expulsos dos seus territórios, das suas casas. Normalmente é muito comum, nas religiões afro-brasileiras, que o templo seja anexo à residência - ou o contrário, a residência seja anexa ao templo. Eles são expulsos das suas casas, e tudo se passa como se o Estado, que deveria prover segurança para que isso não acontecesse, não tivesse nenhuma responsabilidade sobre o fato de ele perder a residência dele, que muitas vezes ele levou anos para construir - uma casinha, uma casa simples e ali o seu templo - e poder exercer um direito que a Constituição assegura, que é exatamente a liberdade de culto.
Eu quero caminhar para finalizar fazendo três apontamentos aqui.
Primeiro, eu me lembro bem de quando o Senador Paulo Paim, na Constituinte, com o Deputado Caó e a Deputada Benedita da Silva trabalharam intensamente para a criminalização do racismo, a consideração do racismo como crime imprescritível e inafiançável.
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Alguns dados merecem, talvez, nossa atenção no tratamento desse tema. O primeiro é que a abordagem desse tema com a legislação penal, na forma como ela vem sendo feita, tem se revelado absolutamente ineficaz.
Eu falava esses dias com o meu querido amigo Humberto Ramos, que também integra a mesa, que coordena um projeto belíssimo, o Projeto Crer no Plural, sobre a resposta penal, Senador, e eu aqui reitero o entendimento de que o Congresso deve, urgentemente, instituir uma Comissão Parlamentar de Inquérito, tal como fez a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro concluiu que, em um período de quatro anos, houve 10 mil ocorrências de violações de direitos sofridas majoritariamente por adeptos das religiões afro-brasileiras.
Qual é o problema? O problema está na porta de entrada do sistema penal. Não se sabe quantas dessas ocorrências foram transformadas em inquérito, não se sabe quantos inquéritos foram relatados, o Estado não sabe dizer, desses inquéritos, quantos se transformaram em denúncias e, dessas denúncias, quantas condenações. O fato é que hoje nós temos notícias de dois pastores, um do Rio de Janeiro e outro de Recife, que estão presos por racismo religioso. Dois pastores. Mas esse número nem remotamente reflete a frequência, o grau de arraigamento e de enraizamento dessas violações de direitos no cotidiano.
Então, nós temos que aprimorar o encaminhamento judicial desse tema, nós precisamos, e eu tenho dito, Senador, e, por favor, seja rigoroso no controle do meu tempo, eu tenho dito que a expressão "boletim de ocorrência" não é prevista em lei alguma, não existe previsão legal de boletim de ocorrência. Às vezes, e V. Exa. sabe da minha compulsão pela ironia, às vezes eu digo o seguinte: BO normalmente dá BO, porque você faz o BO... "Vamos fazer o BO!" E qual é o encaminhamento efetivo que aquilo tem?
Então, eu tenho, inclusive, nas palestras, nos cursos que faço para os jovens advogados, recomendado que se faça uma notícia-crime, até porque, agora, com a lei do juiz das garantias sendo ratificada pelo Supremo Tribunal Federal, a vítima vai passar a ter um papel mais proativo, Senador, nos crimes, inclusive nos crimes de racismo. Então é preciso uma atuação mais proativa, e nós precisamos qualificar melhor o encaminhamento judicial disso, mas também nós precisamos reconhecer que o Direito Penal tem limitações evidentes se nós pretendemos a superação do problema.
A sanção estatal, a punição incide sobre efeitos. Há a violação de direitos; quando isso é devidamente encaminhado, chega-se ao conhecimento do Poder Judiciário, há a jurisdição, e pune-se, ou não, o indivíduo ou a instituição com a sanção criminal ou com a sanção cível, mas isso é muito pouco. Por que é muito pouco? O Senador dizia que esse é um problema enraizado, arraigado.
Nós precisamos discutir dois problemas graves.
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Primeiro, o aparelhamento da máquina pública por facções religiosas neopentecostais. É um escândalo. É um escândalo! É um escândalo! Os conselhos tutelares, por exemplo... E eu enfrentei, Senador, recentemente, caso em que o Estado retirou guarda de filha - e é impressionante porque isso atinge mulheres -, o Judiciário fincou uma cunha numa relação que o direito considera absolutamente inexpugnável, intocável, que é a relação familiar. E vários juízes - não foi um nem dois - foram lá e retiraram a guarda, a convivência com a menina, da mãe, porque a mãe é da umbanda ou a mãe é do candomblé. E nós não somos uma minoria numérica. O dia em que o IBGE mudar a forma de fazer a indagação e o dia em que os praticantes das religiões, os adeptos das religiões de matriz africana não se sentirem intimidados diante do examinador, do IBGE... Nós somos milhões de brasileiros. No seu estado, Senador Paim, são 70 mil terreiros de batuque; 70 mil. Se nós consideramos que cada um tem, em média, 50 participantes, nós estamos falando que o Rio Grande tem 3,5 milhões de macumbeiros. Então, repare que isso é uma coisa... E tem uma dimensão no cotidiano absolutamente grave.
Bom, eu finalizo dizendo o seguinte: nós não vamos enfrentar esse tema sem pautarmos o discurso de ódio e sem pautarmos, a propósito do aparelhamento, o aparelhamento dos meios de comunicação...
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Ainda quatro minutos, só para situar.
O SR. HÉDIO SILVA JR. (Por videoconferência.) - Nós não iremos enfrentar com eficácia, com eficiência esse tema se não enfrentarmos o problema do discurso de ódio.
Segundo a Agência Nacional do Cinema, hoje o principal conteúdo, Senador, da TV aberta - isso é um dado da Ancine -, o principal conteúdo vinculado pela TV aberta hoje no Brasil são os programas religiosos. Há uma discussão sobre se isso é constitucional ou não, porque meios de comunicação social, por força da Constituição, constituem serviço público. Em sendo serviço público, mantido com o dinheiro de todos os brasileiros, eles podem ser privatizados por grupos religiosos?
Mas, afastando por hora essa discussão sobre se essa privatização da programação da TV aberta no Brasil por grupos religiosos é constitucional ou não, o problema é que, em vez de esses programas - uma parte deles, não vou generalizar; nós pretos sabemos bem os problemas de qualquer generalização -, não são todos, mas uma parte deles, em vez de fazer o proselitismo - porque o proselitismo significa o sujeito enaltecer a própria crença, enaltecer as qualidades, os predicados, os apanágios da sua religião -, não, as pessoas usam esses programas para atacar outras religiões e difundir a fé. Porque eles precisam da fé, porque uma parte - eu aqui não quero generalizar -, uma parte deles... E hoje, ainda hoje, a imprensa traz notícia de pastores presos, inclusive em Brasília, por golpes contra os seus fiéis. E eu não estou generalizando, mas o que eu estou dizendo é que isso virou um meio de vida, isso virou uma indústria. E, como a Bíblia é um texto volumoso, certamente alguns devem ter dificuldade para ler. Se tem um discurso que é fácil, é o discurso da demonização das religiões de matriz africana. Se nós não enfrentarmos o discurso de ódio, Senador... E este ano, o Idafro vai - e eu conto com o seu apoio -, nós vamos peticionar junto ao Conselho Nacional de Comunicação Social, que tem, do ponto de vista legal, a prerrogativa de fiscalizar a qualidade dos programas que são veiculados pela TV e pela radiodifusão no Brasil.
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Eu finalizo dizendo o seguinte: mesmo que nós avancemos no que eu chamaria de uma das bandeiras mais radicalmente democráticas no Brasil, que é a publicização da máquina pública - porque é assustador como a máquina pública no Brasil foi privatizada por facções religiosas -, além disso nós precisamos lançar mão de instrumentos de intervenção estatal preventiva. Nós precisamos ingressar em um sistema de valores, nós precisamos da publicidade, da indústria cultural, da educação escolar, porque, se nós não ingressarmos no sistema de valores, não vamos construir uma sociedade, no médio prazo, em que o sujeito conviva naturalmente com um dos maiores patrimônios da humanidade, que é a diversidade humana.
Obrigado, Senador, pelo convite. Desculpe eventual indisciplina no uso do tempo. Obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Ficou perfeito, dentro do horário. Quinze minutinhos.
Mais uma vez, meus cumprimentos ao Dr. Hédio Silva Jr., Advogado, Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP, ex-Secretário de Justiça do Estado de São Paulo e Coordenador-Executivo da Idafro, que mostrou a violência contra as religiões de matriz africana. Deu dados, números, apontou caminhos, sugestões, que esta Comissão há de adotar em parceria com todos vocês.
Vamos agora, de imediato... Antes de passar a palavra, eu quero registrar que, para a alegria de todos nós, já está aqui com a gente a Mãe Gilda de Oxum. (Palmas.) (Pausa.)
Passamos agora a palavra à Sra. Pastora Eliad Dias dos Santos, Mestre em Ciência da Religião e Bacharel em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo. Dez minutos com mais cinco. Só lembro que, nos dez minutos, a campainha toca, tem mais cinco. Aí quando bater ali 15 segundos, terminou. Aí tem que encerrar.
Por favor.
A SRA. ELIAD DIAS DOS SANTOS (Por videoconferência.) - O.k. Muito obrigada. Primeiramente, quero agradecer o convite para participar desta audiência pública, agradecer ao Humberto, à Mari, ao Senador Paim e seu gabinete pela promoção desse debate. Mesmo estando aqui em Roma eu continuo no Brasil, participando à distância da luta - e tristemente tenho que dizer "luta" contra os fundamentalismos, especialmente o fundamentalismo religioso.
Quero saudar os e as participantes desta audiência e dizer o quanto eu me sinto, como popularmente se diz, "na fila do pão" em estar com vocês neste momento importante da nossa caminhada e compromisso.
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Quero saudar os meus irmãos e minhas irmãs de religiões de matriz africana, pedir a sua bênção às mães presentes, porque eu estou saudando a minha ancestralidade, estou saudando os meus antepassados, os quais, infelizmente, eu não conheci, mas que sempre vejo através de vocês um pouco do que somos, um pouco do que éramos, antes de o cristianismo chegar ao continente africano. E, portanto, meu respeito, minha admiração e digo "amor", porque eu tenho uma grande amiga, que é a Mãe Adriana de Nanã, em São Paulo. Somos irmãs, porque somos mulheres negras e temos o mesmo Orixá também - também sou de Nanã. E só quero rapidamente contar que, num encontro ecumênico na USP, eu saudei a Adriana, a irmã Adriana, cantando "sou de Nanã ã, ããã...". E logo depois do ato religioso...
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Pode continuar cantando porque está todo mundo gostando. Pode continuar cantando aí, viu! (Risos.)
A SRA. ELIAD DIAS DOS SANTOS (Por videoconferência.) - Depois do ato religioso um casal da Igreja Batista que estava participando desse evento veio muito emocionado conversar comigo, porque eles estavam dizendo que se sentiam culpados, porque eles tinham uma irmã no candomblé - a irmã da mulher em questão, do casal -, e eles, batistas, tinham aquela ideia do pecado, porque a irmã estava pecando. E quando eu saudei a Adriana cantando como pastora, eles, sentindo que não era pecado algum respeitar, conviver, conversar com a irmã, que é julgada pela família como pecadora, por aderir à "religião do demônio"... Portanto, mais uma vez, muito obrigada.
Como pastora, desde 1990, eu sempre caminhei, fiz questão de caminhar com pessoas que, independentemente de religião e orientação sexual, tivessem, como eu, um projeto de vida de colaborar na construção de um país onde as pessoas possam viver dignamente como desejam, como querem, desde que esse desejo também respeite o desejo e a opinião de outras pessoas.
Eu nasci na Igreja Metodista, fui aluna de escola dominical e tenho muitos exemplos positivos - e, infelizmente, negativos - sobre o olhar dos evangélicos sobre outras religiões, e, especialmente, sobre a questão racista. Eu poderia passar a tarde falando de todas as situações de racismo que vivenciei na minha vida como pastora - e ainda vivencio.
E, quando a gente vai falar - o Dr. Hédio estava falando - sobre intolerância religiosa, eu já há muito tempo falo sobre o racismo religioso, já que os evangélicos, por exemplo, são simpatizantes do judaísmo - que não crê em Jesus Cristo como o Messias -, e os evangélicos, muitos deles, vão comer peixe cru. Falam sobre a matança dos animais nos terreiros de candomblé, etc., mas comem peixe cru nos restaurantes asiáticos, onde muitas vezes os proprietários são budistas, messiânicos, e não veem nada de mal nisso. Compram e frequentam restaurantes de comida natural ou vegana, e, em sua maioria, muitas vezes, os proprietários dos restaurantes são adventistas.
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O problema é racial, e as religiões de matriz africana são consideradas demoníacas. Um dos Deputados, que eu não vou citar o nome porque todo mundo conhece, mas eu não gosto de falar o nome dele, deu mau exemplo falando que os africanos são amaldiçoados por uma suposta passagem bíblica que fala que ser negro é uma maldição. Infelizmente eu também ouvi isso na escola dominical, quando eu era criança. Eu perguntei à minha mãe como eu fazia para ser branca, já que quando eu questionei a professora da escola dominical sobre de onde vieram os negros... Porque na escola dominical, especialmente no meu tempo, existia uma coisa chamada flanelógrafo, que ninguém deve saber muito o que é, e eram contadas histórias da Bíblia com figuras brancas, com um Deus branco, de barba branca, com um Jesus de cabelo longo e olhos azuis. Infelizmente, isso ainda não mudou. Eu estou aqui em Roma, onde as igrejas têm as pinturas que fizeram parte do projeto colonial na América Latina, no Brasil e mundialmente. São essas figuras que são mostradas como que fossem as figuras de Jesus, de Deus, dos discípulos etc.
Uma vez, também, eu fui advertida por um bispo por sair em uma fotografia, em um jornal, ao lado de um pai de santo, em um ato religioso. Aí eu questionei o bispo por que as pessoas reclamaram de eu estar ao lado de um pai de santo, mas não reclamaram de eu estar do lado do falecido Rabino Henry Sobel.
Então, eu gostaria de me deter, na minha fala, sobre soluções para o que eu tenho visto nesses anos que poderiam nos ajudar a pensar como poder mudar, construir e continuar esse processo de mudança. Também acredito que a mudança se faz com educação e com lei.
Recentemente, foi lançado um livro que se chama A Fé e o Fuzil, do Bruno Paes Manso. Eu não consegui ler ainda, mas eu consegui ver um resumo dele no YouTube. Tem muito material sobre a questão da fé e, como disse o Hédio Silva, sobre a questão do poder paralelo das igrejas não só neopentecostais, das igrejas evangélicas, mas do crime organizado. E eu falo em crime organizado porque essas igrejas, para mim, são facções religiosas. Não posso chamar de igreja se ela não segue Jesus Cristo, se ela não é seguidora do Evangelho. São pessoas que, infelizmente, sempre foram abandonadas na questão da vulnerabilidade e que acabam adentrando, simpatizando com o discurso da salvação, de que se você der cem, você vai ganhar mil, de que se você fizer isso, você vai ter tanta coisa de volta e com os ensinamentos de que, como já foi dito, você não pode servir a um Deus que não seja aquele que o quer bem, e o querer bem é ser capitalista ao extremo. E a Teologia da Prosperidade foi a resposta, infelizmente, para muitas pessoas que acreditam na questão do dízimo. Então, agora, a gente imagina um menino negro, uma menina negra, pobre, que estava esperando por uma revolução social que não chega na comunidade, que tem que ir para a escola, por exemplo, para receber o Bolsa Família, mas, muitas vezes, essa escola vai lhe tirar o sonho, porque esse menino e essa menina vão sentar no fundo da classe, vão ficar ali, porque o professor ou a professora entende que eles não têm muito futuro, a não ser que eles sejam MC, pagodeiros, dançarinos - não que tenha algum problema em ser isso, mas é difícil pensar em alguma outra coisa que não seja isso -, e muitos deles sabem que, infelizmente, muitos desses meninos, especialmente, não chegarão à fase adulta por causa dos assassinatos que ocorrem hoje no Brasil.
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Então, pensando nas possíveis soluções desses problemas que nós temos aí no Brasil, primeiro, quero pedir que a nossa carne não seja a mais barata sempre. Quando se vai pensar em acordos políticos para que se possa fazer algo, geralmente é a nossa carne que vai. Então, a gente não vai falar sobre aborto porque vai dar problema com os evangélicos, a gente não vai falar sobre a questão LGBT porque vai dar problema com os evangélicos ou com os católicos.
Graças a Deus, ontem, eu pude ver um pouco, na TV, a fala do Pastor Henrique Vieira enfrentando as pessoas que aí estão. Eu fico muito maravilhada com a paciência de vocês, especialmente com a do Pastor Henrique Vieira com os fundamentalistas da bancada da Bíblia.
Mas a minha proposta, que eu penso que poderia ajudar na solução, seria, realmente, como disse o Dr. Hédio, ter uma Comissão que pudesse contar com os evangélicos e as evangélicas que fazem parte dessa chamada minoria, que são as pessoas que estudaram para fazer teologia. Eu acho que a primeira coisa seria regulamentar as faculdades de teologia do Brasil, pois se abre faculdade de teologia, escola de teologia na esquina, na salinha da igreja, e essas pessoas saem de lá acreditando que têm a formação ideal para serem pastores e pastoras.
Na época em que a Damares se dizia pastora, infelizmente, muitas vezes, eu tinha que falar para as pessoas: "Gente, eu estudei. Estudei quatro anos, fiz vestibular, tive que estudar grego, hebraico, sociologia, aprendi sobre Max Weber, filosofia, tudo isso para poder ser pastora, para poder ter uma noção daquilo do que eu poderia fazer e falar". Então, regulamentar faculdade de teologia, exigir que essas faculdades sejam como as demais, seria o primeiro passo para que se pudesse coibir esse enorme volume de igrejas neopentecostais e igrejas evangélicas que estão se dizendo detentoras do saber e da verdade. Eu acho que essa seria uma primeira coisa a se fazer. Pode-se abrir igreja, pode-se ter uma faculdade, desde que tenha alguém com um diploma reconhecido pelo MEC, como é qualquer curso no Brasil. Eu não posso dizer que eu sou socióloga porque eu sou simpatizante da sociologia. Para eu dar uma aula de Sociologia, eu tenho que fazer um Curso de Sociologia. Eu não posso fazer isso. E eu penso isso no meu desespero - digo desespero - dessa teocracia que tem se ampliado aí no Brasil, em um momento em que crianças têm que ir com a sua guia escondida no uniforme porque as pessoas não podem saber que ela é de religião de candomblé; a partir do momento em que você vai fazer... Eu trabalhei participando de um projeto em uma escola de Diadema, e quando a gente fazia as oficinas, eu não podia acender uma simples vela porque eu não podia agredir as pessoas evangélicas. Se estamos em um Estado laico, não faz sentido nenhum que eu não possa fazer algo porque os evangélicos vão ficar chateados comigo, ou com alguma coisa. Vocês devem ter visto... Se não viram, são vídeos preocupantes da Polícia Militar e de pessoas que usam o uniforme do Exército para falar a respeito. Eu tinha mais coisas para dizer, mas a minha sugestão é que se faça isto, se faça cumprir a lei e que se coíba um Estado teocrático e se coíba que essa teocracia domine o Brasil, porque senão daqui a pouco a gente não vai poder fazer nada, nem falar nada, por conta disso tudo.
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Muito obrigada pela oportunidade e pela paciência, por poder contribuir e ser ouvida. Muito obrigada! (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Muito bem, Sra. Pastora Eliad Dias dos Santos, Mestre em Ciência da Religião e Bacharel em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo, que deu a sua contribuição falando do dia a dia, do mundo real, da realidade da nossa juventude. Aqui fizemos uma CPI da violência e ficou comprovado que, de cada dez jovens assassinados, oito são negros neste país. É por isso é que ela diz que muitos não chegam à vida adulta. O conteúdo dela é muito bom, mas ela enfatiza - e eu peço que a assessoria registre - a importância de regulamentar as faculdades de teologia. É uma contribuição importante para esta Frente Parlamentar Mista - Câmara e Senado - de combate ao racismo e a toda forma de preconceito.
Vamos agora à nossa mesa.
O Frei David pediu para falar neste momento porque ele tem outras agendas, mas já disse que volta de novo aqui na quarta. Vem nos visitar com alguns advogados. Permita que eu dê aqui a notícia.
O SR. DAVID RAIMUNDO DOS SANTOS (Fora do microfone.) - Com certeza.
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O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Nós vamos conversar com o Presidente da Casa, o Presidente Pacheco. Ele é muito, eu diria, generoso, muito respeitoso. E ele tem essa visão plural mesmo. Por tudo o que eu vi neste período, é um homem que combate o racismo, o preconceito e todas as formas de discriminação. Tenho certeza de que ele terá muita alegria de receber, você me falou, em torno de 30 advogados.
A palavra é sua, Frei David.
Só queria dar essa notícia, porque tenho certeza de que o Presidente Pacheco os receberá. E eu quero estar junto.
O SR. DAVID RAIMUNDO DOS SANTOS - Senador, primeiro é uma honra muito grande estar contigo nesta mesa, mais uma vez, entre várias, durante estes anos todos, e agora, você, como coordenador desta frente. É uma frente necessária e urgente. E demorou para vir, esta frente.
Segundo, sim, vamos estar aqui, quarta, quinta e sexta, com 30 advogadas e advogados afro-brasileiros recém-formados. E todos estão num processo de luta e aprendizagem, as duas coisas.
Essa presença, através das suas mãos, deles, diante do Presidente do Senado, vai ser de uma profundeza para o Senador Pacheco, para mim, para você e também para nossos irmãos advogados recém-formados.
Portanto, estamos cheios de esperança e expectativa.
Tenho certeza de que o Senador Pacheco e sua assessoria vão já agendar esse compromisso.
Terceiro ponto, antes de entrar direto no assunto, eu sou alguém assim muito entusiasmado. Eu não consigo ficar sem passar notícias boas, porque, para nós, notícias boas, povo afro-brasileiro e nós brancos solidários, são decisivas.
Parabenizo a AGU (Advocacia-Geral da União) e o MIR (Ministério da Igualdade Racial). Os dois programas estão lançando um plano de formação para advogados negros fazerem as provas na AGU. E, para concorrerem de igual para igual, eles vão ganhar R$3,5 mil limpos só para estudar e passar! (Palmas.)
Também quero parabenizar o TCU (Tribunal de Contas da União), que, ao ver o programa da AGU, também quer fazer um programa específico para afro-brasileiros advogadas e advogados também passarem na prova com qualidade e com luz!
Concluindo, quero puxar a orelha do nosso povo afro-brasileiro, em parte, em parte. Por quê? O MEC, através da Capes, abriu um programa de mestrado e doutorado para o Brasil e fora do Brasil e deu um prazo de inscrição. E a inscrição foi pequena.
A princípio, fiquei muito revoltado porque, em todo ambiente, eu divulguei esse curso. Depois, eu revi minha posição. As normas do Brasil e de fora do Brasil, para se inscrever em mestrado e doutorado, têm várias exigências. E o tempo que a Capes deu, do dia do lançamento do edital até o fechamento, botou de fora muita gente. Aí nós trabalhamos, dialogamos e conseguimos ampliar.
Lembro, pessoal do Brasil inteiro, o prazo vai até o dia 29, agora, do mês de setembro! Você homem e mulher negra que quer fazer o seu mestrado, que quer fazer o seu doutorado fora do Brasil ou no Brasil, com tudo pago pela União, porque estará a serviço da nação, urgentemente entre no site da Capes e se oriente!
Por favor, não sejam omissos! E outra: divulguem para o máximo de pessoas possível, porque isso é demais!
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Depois, também, quero dizer para vocês que ontem tivemos o dia inteiro, quase - ou melhor, a tarde inteira -, na Câmara Federal, na Comissão Especial, feita por Lira, da PEC nº 9.
Gente do Céu! Primeiro, quero elogiar os discursos dos Deputados e Deputadas super-honestos com o povo brasileiro. Discursos límpidos, honestos e sérios! Todo mundo devia assistir a audiência pública, que foi transmitida e está gravada no YouTube, sobre a PEC nº 9, que foi no dia de ontem, dia 20 de setembro. Mas, também, quero dizer que vários Deputados fizeram discursos... Eu tenho vergonha de dizer que pessoas como aquelas são Deputadas, tamanha a falta de qualidade do discurso, e a falta de seriedade, porque tem muita mentira na fala deles; mas, na verdade, estão em aprendizagem, eu prefiro pensar assim, que estão em aprendizagem e que vão mudar de posição.
A PEC nº 9, gente, o nome, não é PEC da anistia, de jeito nenhum, o nome é PEC do racismo. Volto a dizer, a PEC nº 9, o nome, não é PEC da anistia, é PEC do racismo!
Segundo, todos os Deputados, de direita, de esquerda - esquerda! - e de centro, que estão apoiando a PEC nº 9, eles fizeram de maneira surdina, descarada, safada, uma das piores coisas do Brasil, sem registrar, que é a frente nacional racista - frente nacional racista! Porque tudo o que a PEC nº 9 defende é para passar o cerol, passar a foice, no pescoço do povo afro-brasileiro.
Por favor, Deputados da esquerda, por favor, meus irmãos da direita e do centro, revejam o erro de vocês. Errar é até normal, mas permanecer no erro é atentado contra o Brasil. O que vocês estão fazendo contra negros e mulheres, eu acho que nem o demônio faria - o que vocês fazem contra negros e mulheres, nem o demônio faria.
Bem, eu, portanto...
Paim, por favor, não é possível isto. Não é possível isto. Deputados de esquerda falando o absurdo de que o Tribunal Superior Eleitoral, ao exigir seriedade na prestação de contas, está destruindo os partidos?! Pelo amor de Deus! O Tribunal Superior Eleitoral foi quem salvou as mulheres, criando normas, porque os Deputados foram omissos desde a Constituição de 1988. O Tribunal Superior Eleitoral foi quem salvou os negros, quando criou normas, quando os Deputados, omissos desde a Constituição de 1988, deram as costas para nós negros.
Então, agora, vocês Deputados, não sejam desonestos. Falar que o Tribunal Superior Eleitoral está sendo violento contra vocês é falar mentira descarada. Porque vocês estão fazendo uma coisa do demônio, que é desviar o dinheiro de mulheres e o dinheiro para eleger negros, que é verba eleitoral, para eleger brancos, ricos, agronegócio, fazendeiros, pastores, empresários e outras pessoas que já estão lotadas de dinheiro. Vocês tiram o dinheiro nosso e transferem para esses mesmos.
Eu ontem me senti, Senador Paim, como se eu estivesse sendo vendido, eu e meu povo, em mercado de negreiros. Porque, olhe só, meus irmãos Deputados, em quem eu acreditava, de esquerda, e irmãos Deputados de direita - e eu tenho muitos amigos Deputados de direita e de centro - estavam nos negociando. Todo mundo percebe que eles estão a favor da PEC 9 para agradar a direita, que está cheia de erros; compraram avião com o dinheiro das verbas eleitorais - compraram avião! -, compraram iate com esse dinheiro da verba eleitoral. Então, para proteger e ganhar o voto deles para outras demandas... Ou seja, nós somos vendidos, porque nós estamos sendo trocados por outras demandas do interesse da esquerda, e isso é desonesto.
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Lula... Por favor, Lula, nos ajude. Não deixe o PT aprontar. Tem um PT do bem, tem um PT perdido. Tem um punhado do pessoal do PT que está perdido; mas eu quero parabenizar o pessoal do PT do bem, que não está deixando a nós negros e a nós mulheres sermos estraçalhados, como se estivéssemos na mão de urubus.
Eu também quero elogiar os nossos irmãos do Senado. Gente do céu, eu nunca imaginei que o Senado fosse ter este momento bonito de poder discutir aqui a Lei de Cotas e tendo um nível alto de discussão, vendo a real necessidade do Brasil!
Está aqui, na mão dos nossos irmãos Senadores, o projeto de lei que renova a Lei de Cotas. Não é o melhor projeto, mas é o projeto possível, porque nós sabemos da realidade da composição da Câmara e do Senado, e é o possível.
Nesse ponto, eu quero...
(Soa a campainha.)
O SR. DAVID RAIMUNDO DOS SANTOS - ... dizer para o meu irmão Senador que talvez ainda não percebeu - não sei se é a palavra certa -, não sei por qual motivo, mas talvez influenciado pelos nossos países irmãos da América Latina, que não têm a palavra "pardo", só têm a palavra "mestiço", que pardo e mestiço é a mesma coisa. Quando o projeto de cotas para negro do Brasil se refere a pretos e pardos, automaticamente está botando no coração todos os mestiços do Brasil. Então, eu peço ao meu irmão Senador uma audiência especial com ele, para conversarmos com ele sobre essa visão. Não tem nenhum sentido.
Há outra coisa. Eu sei que alguns Senadores estão tendo dificuldade de entender heteroverificação ou heteroidentificação, que são a mesma coisa - heteroidentificação e heteroverificação. É um instrumento para evitar fraude, brancos dizendo serem negros.
Vou dar um exemplo: de cada dez vagas para negro na Medicina, nas universidades federais, seis vagas são ocupadas por brancos mentirosos, desonestos e de maneira canalha - opa, aqui falei... não posso falar uma palavra dessas. Eu sou padre, eu esqueci. Vou ter que ficar ajoelhado no milho. De maneira desonesta, os nossos irmãos reitores e o conselho universitário têm fechado o olho para a sua missão do bom trabalho administrativo.
Nós conseguimos que o Ministério Público do Rio de Janeiro atendesse o nosso pedido, e todos os médicos brancos formados com cota de negros pela Unirio, por exemplo, estão sendo chamados para fazer um TAC. O que é TAC? Termo de Ajuste de Conduta. Eles vão devolver todo o dinheiro que eles roubaram de nós negros, e esse dinheiro vai para um caixa da universidade para ações afirmativas - Bolsa Moradia e Bolsa Alimentação.
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Então, vamos puni-los desta maneira: a gente vai deixá-los serem médicos - o Brasil precisa de médicos, eles vão ser médicos -, no entanto, terão que devolver o dinheiro que roubaram de nós negros e da nação. Segundo, a universidade, por ter sido omissa, será obrigada a criar uma vaga para negros nova, para cobrir a vaga roubada, com a omissão da universidade, lá atrás.
Quero elogiar, portanto, os meus irmãos e irmãs do Ministério Público. É o lado bom do Ministério Público que está o certo.
Gente, é tanta coisa para falar que eu fico um pouco... Mas vamos lá, direto.
Primeiro, tudo o que o nosso querido Hédio Silva Jr. falou eu assino embaixo. Que limpidez de discurso! Eu vou até separar o discurso dele e divulgar em minhas redes, porque eu gostei demais. Então, não vou nem falar o que ele falou na defesa das religiões de matriz africana, porque está 100% o.k.
Como aqui é uma Frente Parlamentar Mista antirracista e o foco é racismo e religião, eu vou ser direto ao assunto. É o seguinte: as religiões cristãs todas estão sofrendo de uma doença grave chamada racismo, racismo estrutural, que elas não querem enxergar, tanto a Igreja Católica, a qual pertença, quanto as igrejas evangélicas.
Vou dar um exemplo da Igreja Católica. Para os jesuítas, para nós franciscanos e outras congregações do tempo colonial, para cada religioso que tínhamos em nossa congregação, Paim, tínhamos três escravos para servir os religiosos. Isso jamais Jesus teria permitido. Então, os meus irmãos religiosos do tempo colonial foram totalmente contra Jesus Cristo, levaram mais em consideração a instituição Igreja do que a intuição Jesus Cristo. A intuição Jesus Cristo é pureza, seriedade, honestidade, inclusão. A instituição Igreja se perde no poder, o poder é que manda.
"Frei, a Igreja Católica aprontou muito com os negros, mas o senhor vai dizer que os evangélicos aprontaram?". Infelizmente, também os evangélicos aprontaram. Como? Pesquisem aí. Quando, no Brasil, caiu a proibição de as igrejas evangélicas virem para o Brasil, os evangélicos norte-americanos se reuniram e lá decidiram - e lá decidiram. Olhem só, os evangélicos norte-americanos, ao se prepararem para mandar os primeiros evangélicos para o Brasil, os primeiros pastores, se reuniram e falaram o seguinte:
(Soa a campainha.)
O SR. DAVID RAIMUNDO DOS SANTOS -
Olhe, no Brasil, os negros são muito conscientes da missão deles, eles são mesmo escravos, são para servir os brancos, está tudo muito bem, ninguém reclama. Mas, aqui nos Estados Unidos, os negros são muito revoltosos, não aceitam servir os brancos. Então, para não contagiar os negros do Brasil com essa postura de lutar por seus direitos como é aqui nos Estados Unidos, nós não vamos mandar nenhum pastor negro para o Brasil, só vai pastor branco.
Então, eu desafio vocês, de qualquer igreja, que apresente uma igreja que tenha trazido aqui para o Brasil pastores negros norte-americanos e conscientes. Só trouxeram pastores brancos opressores. Isso é gravíssimo. Não pode continuar e temos que denunciar.
Nós hoje queremos dizer que as instituições católicas de ensino são violentamente racistas, Paim. Os meus irmãos que têm colégio de ensino fundamental, ensino médio e universidades, católicos e evangélicos, todos são altamente racistas. Por exemplo, aponte só um colégio católico que tem 5% de pessoas negras. Isso é um crime contra o Brasil! Isso é um crime!
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Então, nós exigimos que a Igreja Católica e as igrejas evangélicas que tenham ensino fundamental, ensino médio e ensino superior entrem no Brasil novo, que é o Brasil das ações afirmativas, que é o Brasil da reparação. Que as igrejas evangélicas e católicas determinem que, até janeiro de 2024...
Paim, se for possível sair um ofício conclamando a autoridade canônica dessas igrejas para ver qual é a dificuldade delas de fazer, de dar esse passo e de nós ajudarmos, enquanto Senado e organismo social ligado ao Senado, para que, até janeiro de 2024 todas as igrejas...
(Soa a campainha.)
O SR. DAVID RAIMUNDO DOS SANTOS - Desculpe. Todas as escolas de ensino fundamental, ensino médio e ensino superior das igrejas tenham, até janeiro de 2024, 20% de negros matriculados em seus estabelecimentos; até janeiro de 2025, cheguem a 30%; e, até janeiro de 2026, cheguem a 40% de negros nos seus colégios de ensino fundamental, ensino médio e ensino superior.
Concluindo, nós queremos dizer que a perseguição aos templos de matrizes africanas que acontece no Brasil inteiro de maneira vergonhosa, as perseguições, as destruições dos símbolos religiosos, dos orixás, nas praças, como aqui em Brasília, como na Bahia e em outros lugares, tudo isso é orquestrado por irmãos evangélicos que perderam a consciência evangélica.
(Soa a campainha.)
O SR. DAVID RAIMUNDO DOS SANTOS - É orquestrado por pastores evangélicos que perderam a consciência evangélica.
Por trás, está a omissão da polícia e a omissão do Ministério Público! Então, eu faço um apelo aos meus irmãos da polícia, que são autoridades e são pessoas do bem, e faço um apelo ao Ministério Público, que são pessoas do bem, que, por favor, revejam o trabalho de vocês na proteção às religiões de matriz africana. Como está, não pode continuar! A omissão de vocês brada aos céus! É grande, é escandalosa, é vergonhosa! Queremos ver a Polícia Militar, a Polícia Civil e o Ministério Público cumprindo minimamente a sua missão.
Concluo, dizendo que estou muito chateado. Pedi já quatro vezes audiência ao Conselho Nacional do Ministério Público.
Paim, pelo amor de Deus, na sua Comissão de Direitos Humanos, convoque uma audiência aqui com o Conselho Nacional do Ministério Público, que tem uma comissão de controle das atividades policiais.
(Soa a campainha.)
O SR. DAVID RAIMUNDO DOS SANTOS - O Conselho Nacional do Ministério Público tem, dentro ele, a comissão de controle das atividades policiais. Segundo o Procurador da República, se essa comissão funcionasse seriamente, 60% dos jovens negros assassinados não teriam sido assassinados. Então, essa comissão de controle das atividades policiais do Conselho Nacional do Ministério Público (Trecho editado nos termos do art. 48, inciso XXXI, e art.19, inciso I, do Regimento Interno.)! Estão com a mão suja de sangue!
Então, pelo amor de Deus, Senador Paim, que a Comissão de Direitos Humanos convoque essa comissão, aqui, a comissão de controle das atividades policiais do Conselho Nacional do Ministério Público, para dizerem por que continua essa omissão, por que não tem computadores para fazerem o trabalho certo, por que os programas que eles criam para toda a polícia do Brasil inteiro alimentar com as informações não funcionam e tantos outros absurdos.
Cinco reuniões, tivemos lá com eles. E, em todas as cinco reuniões, só vimos tudo, tudo, tudo malfeito, e a culpa, ou melhor, a consequência é a morte da juventude negra por falta de controle deles.
Conto muito com o Senado.
E um abraço. (Palmas.)
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O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Muito bem, Frei David, pela sua fala contundente, firme.
Eu sei que V. Exa. vai me entender e vai concordar, até pensando no senhor, pela liderança respeitadíssima que é, só o termo (Trecho editado nos termos do art. 48, inciso XXXI, e art.19, inciso I, do Regimento Interno.), eu vou pedir para... A responsabilidade é minha, mas eu peço que tire dos Anais e vou me comprometer, por outro lado, de convidá-los, para que venham a essa reunião para uma conversa. O.k.? Está colocado aí? (Pausa.)
Eu sei que na força de expressão, de nós todos, num momento de emoção, a gente avança às vezes o sinal, e é normal, isso é o coração, é a alma, é a indignação por tudo que está havendo. Por isso, sei que o Frei David entendeu o meu ponto de vista de só retirar a palavra (Trecho editado nos termos do art. 48, inciso XXXI, e art.19, inciso I, do Regimento Interno.) nesse caso, mas vou atender o seu pedido, que é o que importa, para que eles venham dialogar com o senhor aqui na Comissão.
O SR. DAVID RAIMUNDO DOS SANTOS - E agradeço porque você realmente percebeu a minha falha.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Esse é o Frei David, porque ele é Frei, viu? Logo, ele dá uma resposta para mim qualificada, à altura, reconhecendo que foi um pequeno equívoco na força de expressão aqui na tribuna do Senado. (Pausa.)
A assessoria lembra que, sobre a abordagem policial, nós temos uma data marcada de um projeto que aprovamos aqui no Senado. O projeto foi, acho, de minha autoria, e o Contarato foi o Relator. Esse projeto já está lá na Câmara dos Deputados para discutir a questão da abordagem policial e o conselho, nesse dia, poderá, inclusive, se manifestar sobre o projeto.
O SR. DAVID RAIMUNDO DOS SANTOS (Fora do microfone.) - Qual o número do projeto? Ou não tem aí?
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS. Fora do microfone.) - Não tenho aqui. (Pausa.)
O SR. DAVID RAIMUNDO DOS SANTOS (Fora do microfone.) - É 52...
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - É 5.231, de 2020.
O SR. DAVID RAIMUNDO DOS SANTOS (Fora do microfone.) - É 5.231, de 2020.
Muito bom.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - É bom dizer que a Coalizão Negra por Direitos ajudou muito na formação desse projeto que nós apresentamos.
O nosso amigo Sr. Hédio Silva Jr. já falou, advogado e mestre em Direito, mas ele apenas queria fazer uma pequena consideração em relação à regulamentação das universidades, que eu falei aqui, a pedido da pastora.
Por favor, Dr. Hédio Silva Jr.
O SR. HÉDIO SILVA JR. (Por videoconferência.) - Presidente, obrigado.
Na verdade, eu vou acrescentar um comentário rápido sobre essa proposição de V. Exa. e o apontamento que o Frei David fez sobre o controle externo da atividade policial, porque entendo que com o juiz de garantias, Frei David, a polícia agora vai ser obrigada a enviar, para o juiz de garantias, o famigerado auto de resistência, que hoje não tem nenhuma regulamentação.
Então, independentemente de o Legislativo vir a disciplinar essa matéria, hoje, pela via processual - e essa é minha leitura, eu estou publicando um livro sobre isso -, um auto de resistência, no prazo de 24 horas, tem que ser apresentado ao juiz de garantias, com a perícia do local do crime, com a perícia necroscópica, etc., porque não é possível você ter um ato tão importante como esse que não tem nenhuma forma de controle de sindicabilidade, nenhuma forma de controle por parte do Judiciário.
Coloco-me à disposição do Senador para contribuir, se assim entender oportuno.
São dois apontamentos.
Quero parabenizar...
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O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Já está convidado, Dr. Hédio.
O SR. HÉDIO SILVA JR. (Por videoconferência.) - Obrigado.
Quero parabenizar a Pastora Eliad Dias, pela proficiência da sua intervenção. Já tinha ouvido muito falar sobre a sua competência, o seu brilho, e foi um prazer ouvi-la.
Eu faria dois apontamentos. Primeiro, uma retificação. Como eu tenho problema grave de comunicação, pode ser que isso não tenha ficado explícito aqui. Eu estou publicando um livro, pela Saraiva, intitulado Racismo Religioso. Inclusive, utilizei essa expressão numa defesa que fiz, no Supremo Tribunal Federal, numa sustentação que fiz em defesa das religiões de matriz africana.
Mas eu entendo que uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que é o que eu estou propondo ao Senado, deve se debruçar sobre o fenômeno da intolerância. O fato determinado deve ser a intolerância, porque, a despeito da gravidade e da vitimização que incide, majoritariamente, de forma sanguinária, sobre as religiões de matriz africana, há outros segmentos que também enfrentam intolerância.
Muito bem.
E o último apontamento, também, porque o Senador pediu para que conste em ata. Quero lembrar que o direito internacional público assegura, a qualquer confissão religiosa, o direito de - ela, confissão religiosa - determinar como treina as suas lideranças. Então, há aquelas confissões religiosas que exigem, por exemplo, a formação em curso de teologia, mas nem todas as religiões exigem curso de qualquer natureza, a não ser os seus próprios modelos de treinamento e de educação, para formar os seus sacerdotes ou as suas sacerdotisas como as religiões de matriz africana.
Como o sacerdócio não é trabalho, Senador Paim, nem é profissão, sacerdócio é ofício, eu entendo que, sim, perfeitamente razoável que se discuta as faculdades de teologia, mas não que se exija, para o exercício do sacerdócio, a frequência a curso de teologia.
Muito obrigado.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Muito bem. Por isso é que ele é advogado, especialista, mestre e doutor em Direito pela PUC de São Paulo, o nosso querido Hédio Silva, que faz esse esclarecimento.
Nada contra o que propôs a Pastora, e eu pedi para registrar, desde que se mantenha a liberdade àqueles que não optaram também pela universidade de terem o seu espaço.
Muito obrigado - viu, Doutor Hédio? Já está convidado, por nós, para a próxima reunião.
Então, voltamos agora à nossa lista aqui, dizendo que já chegou, pelo que eu estou vendo, o Sr. Clédisson Júnior. Seja bem-vindo, Sr. Clédisson Júnior, cientista político, representante da Deputada Federal Dandara Tonantzin.
Eu vou pedir que a gente desse um jeitinho aqui na mesa, um ajuste aqui, para que se coloque mais uma cadeira. As cadeiras desta Comissão mexem.
Pode vir para cá... Que ele venha também para a mesa e faça uso da palavra no momento adequado.
Aqui, como é a liberdade total, quem quer usar a palavra agora? Pode ser você, Humberto? (Pausa.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Então, bem, vamos à palavra aqui.
Com a palavra o Dr. Humberto Ramos de Oliveira Júnior, formado em Direito, Doutor em Sociologia, Coordenador da ONG Otros Cruces no Brasil e responsável pela implementação do Observatório de Religião e Direitos Humanos em parceria com a Conectas.
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O SR. HUMBERTO RAMOS DE OLIVEIRA JÚNIOR - Bom dia a todos e todas. Inicialmente, eu agradeço ao gabinete do Senador Paulo Paim, à Frente Parlamentar Mista Antirracismo pela acolhida desta audiência. E agradeço aos convidados e convidadas para compor a mesa pela sua disponibilidade e também a quem compareceu, àqueles que estão acompanhando pela internet, especialmente alguns amigos e amigas que já estão até mandando mensagem aqui.
Bom, existem duas posturas igualmente extremas e, por isso mesmo, problemáticas em relação à religião: de um lado, a perspectiva preconceituosa, reducionista, que atribui à religião a causa da maior parte de mazelas existentes no mundo; por outro lado, a crença ingênua de que as religiões são inerentemente boas e pacíficas. Há um binarismo simplista, que só concebe duas posições: primeiro, a religião é algo necessariamente ruim; a segunda, a religião é algo necessariamente bom. Trata-se de uma visão maniqueísta, uma visão que desconsidera a complexidade do fenômeno. A religião é um construto humano e fruto da busca do ser humano de construir socialmente o mundo no qual ele se estabelece.
Como coisa humana, a religião porta as contradições próprias do ser que a constitui. Ela tanto pode contribuir para a manutenção de estruturas de dominação e opressão, como pode animar e inspirar movimentos de emancipação. E, no que tange ao nosso tema, a religião foi relevante tanto para os processos de justificação do racismo quanto para a luta contra ele.
Em outras palavras, num movimento contraditório, a fé, muitas vezes a mesma fé esteve dos dois lados dessa tensão, isto é, nutria opressor e vítima. Justificava algozes e rebeldes. Por isso, qualquer leitura da escravidão que desconsidere o papel da fé cristã na sua legitimação seria, no mínimo, inepta.
Como sabemos, todo o processo de colonização e escravização se deu sob engenhosa fundamentação teológica. A Bíblia converteu-se em fonte a partir da qual se justificou a existência e a manutenção de uma cultura escravagista profundamente cruel e desumana, mas eu quero trazer aqui alguns exemplos sobre esse caráter paradoxal da religião.
Uma história que eu gosto muito e eu acho que talvez seja um dos casos mais emblemáticos nesse sentido é a história do estadunidense Nate Turner, que foi criado num contexto em que proprietários de pessoas escravizadas eram cristãos, cristãos protestantes no sul dos Estados Unidos. E eram tão zelosos ao ponto de que todo mundo naquela fazenda recebia formação, inclusive as pessoas escravizadas.
Assim, Turner, como todas as pessoas naquela fazenda, cresceu como um cristão. Mais que isso, converteu-se empregador, anunciando as palavras de um livro que orientava os servos a se submeterem aos seus senhores, a tratá-los como se com Cristo se relacionassem. Textos obviamente imobilizadores, anestesiantes, que aplacavam a ira, produziam conformismo a partir da esperança de uma recompensa futura.
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Mas, um dia, Nate Turner passou por uma experiência espiritual em que Deus lhe fez notar os versos bíblicos que prometiam a redenção dos hebreus escravizados no Egito, em texto que anunciava o fim de toda a opressão e a esperança na vingança de Deus em favor dos humilhados e perseguidos.
A partir de então, o homem escravizado, conformado pela fé, converteu-se em um revolucionário, que, também pela fé, também inspirado por esse texto bíblico, incendiou mentes e corações a favor da luta pela liberdade, liderando uma das mais importantes revoltas de escravizados dos Estados Unidos.
Existem exemplos dessas contradições no mundo todo. Se a gente vai para a Ásia, se hoje temos aí o Primeiro-Ministro indiano Narendra Modi, que destaca-se como um ator causador de tensões e divisões, com o seu nacionalismo hindu, o mundo jamais deixará de pensar na Índia sem se recordar de Mahatma Gandhi e seu pacifismo radical.
Se, em Myanmar, há um triste histórico de intolerância e perseguições de uma maioria budista em relação a uma minoria islâmica, é possível recordar do exemplo de Thich Nhat Hanh, monge budista vietnamita que viajou o mundo pregando em favor do diálogo e da paz entre pessoas e povos.
Mas voltemos para o Brasil. O Brasil constitui-se como um Estado laico, desde 1890, entretanto a relação umbilical existente entre o catolicismo e o Estado, durante séculos, marcou profundamente as relações entre a res publica - a coisa pública - e a religião, de modo que, apesar da separação formal, a Igreja Católica permaneceu em estreita relação com as instâncias de poder, conservando privilégios e perpetuando a sua hegemonia.
A existência de privilégios para um grupo religioso resultaria, necessariamente, na ausência de igualdade no trato com os demais. Esse quadro, em um país erigido sob a sombra da escravidão, seria radicalmente mais dramático para as tradições religiosas herdadas dos povos africanos. E o desrespeito à liberdade religiosa não apenas contou com a conivência do Estado, muitas vezes foi liderada e conduzida por ele.
Entre 1937 e 1950, na Era Vagas, os cultos afro-brasileiros sofreram dura perseguição jurídico-policial: terreiros foram fechados, suas peças litúrgicas confiscadas - algumas ainda estão confiscadas e expostas em museus da polícia, até hoje, no Rio de Janeiro - e adeptos dessas religiões fustigados de diversas formas.
A perseguição assumiu contornos específicos em cada região e estado da Federação. A título de exemplo, no Estado de Pernambuco, o funcionamento de terreiros se subordinava à Secretaria de Segurança Pública e aos pareceres emitidos pelo Serviço de Higiene Mental. Em outras palavras, as religiões afro-brasileiras constituíam, aos olhos do Estado, ou um problema de polícia ou um problema de saúde mental, o que é impressionante.
Hoje, grupos cristãos fundamentalistas, frequentemente entre neopentecostais, protagonizam diversos discursos e ações de intolerância e violência contra praticantes de religiões afro-brasileiras. Evidentemente, não se trata de algo inerente ao protestantismo, ao contrário, isso mostra como esses grupos absorveram o racismo, ainda presente em nossa sociedade, e o manifestam a partir do discurso religioso. É parte do processo de aculturação desses grupos às estruturas da sociedade brasileira.
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Mas - porque a gente não pode ficar só na parte ruim, negativa ou pesarosa -, nesse cenário, também ocorrem as boas práticas. Coletivos, conselhos, fóruns e outras formas de organização social têm atuado em favor do diálogo inter-religioso e combate à intolerância e ao racismo, valendo dizer que muitos desses empreendimentos chegaram mesmo a ir além da participação exclusiva da sociedade civil, conquistando o apoio do poder público.
Das iniciativas protagonizadas pela sociedade civil, podemos destacar o Fórum Inter-Religioso, de Recife; a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, no Rio de Janeiro, que esteve, inclusive, na marcha, agora, na caminhada contra a intolerância, é uma das organizadoras; Casa das Religiões Unidas, em São Paulo e Bahia; Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso; Rede Ecumênica de Juventude; e tantas outras.
Das iniciativas que lograram alcançar a participação do poder público no âmbito dos estados, destaca-se o Fórum Inter-Religioso para uma Cultura de Paz e Liberdade de Crença, da Secretaria de Justiça e defesa da cidadania do Estado de São Paulo, que tem se multiplicado também pelos municípios - e eu tenho tido...
(Soa a campainha.)
O SR. HUMBERTO RAMOS DE OLIVEIRA JÚNIOR - ... a alegria de poder acompanhar isso de perto -; o Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir), da Secretaria de Estado da Assistência Social e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro; e, no âmbito nacional, nós tivemos o Comitê de Respeito à Diversidade Religiosa, que constituiu uma importante conquista no desenvolvimento de instrumentos para a promoção do diálogo e cultura de paz. Este Comitê, não obstante, enfraqueceu-se, após o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, em 2016, e teve seu fim na gestão Bolsonaro.
Para finalizar aqui com um apelo, para ser minimamente propositivo, levando-se em conta que o Governo Lula tem retomado projetos e medidas implementadas anteriormente, é razoável demandar que, nesta questão, também, o Governo, contando com o apoio dos Parlamentares e de representantes, assessorias de Parlamentares que estão aqui presentes, reconduza o tema da liberdade e diversidade religiosa a um lugar de atenção, buscando não apenas reeditar iniciativas passadas no âmbito do Governo, mas também favorecendo a criação de instâncias cujas bases institucionais sejam robustas o bastante para resistir a eventuais intempéries resultantes de mudanças de governo.
Eu sei que isso é muito difícil, é um pedido e tanto, mas, nesse sentido, será muito bem-vinda e oportuna a consecução da ação programática do Plano Nacional de Direitos Humanos 3, o PNDH-3, acerca do respeito às crenças, à liberdade de culto e à garantia da laicidade do Estado, que orienta: "Instituir mecanismos que assegurem o livre exercício das diversas práticas religiosas, assegurando a proteção do seu espaço físico e coibindo manifestações de intolerância". E também recomenda aos estados e ao Distrito Federal a criação de conselhos para a diversidade religiosa e espaços de debate e convivência ecumênica para fomentar o diálogo entre estudiosos e praticantes de diversas religiões. Prioritariamente, que o Governo se disponha a revisitar a experiência do Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa, considerando as experiências implementadas nos estados e municípios, como as aqui mencionadas, especialmente as que seguem ativas. Acreditamos ser fundamental, estratégico, que tais iniciativas frutifiquem no âmbito federal, pela sua capacidade de articular com os demais entes da Federação, e que se repliquem e multipliquem essas experiências. Acho que o Governo Federal tem essa capacidade, essa potência.
Deixamos, então, aqui este apelo, reiterando o nosso agradecimento pela oportunidade. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Muito bem! Meus cumprimentos.
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Esse foi o Humberto Ramos de Oliveira Júnior, formado em Direito, Doutor em Sociologia, Coordenador da ONG Otros Cruces no Brasil e responsável pela implementação do Observatório de Religião e Direitos Humanos - legal essa ligação - em parceria com a conectas. Fez uma retrospectiva histórica lá da escravidão e depois avançou dizendo que tem questões negativas, mas falou também no que avançamos, posteriormente, de positivo. Termina, inclusive, elogiando algumas iniciativas do Governo Lula que vão sendo retomadas devido ao que aconteceu - não vou falar - do ano passado para trás.
Mas vamos, de imediato, passar a palavra à Mãe Gilda de Oxum.
Por favor, Mãe Gilda de Oxum, o seu tempo é de dez minutos com mais cinco.
A SRA. MÃE GILDA DE OXUM - Bom dia a todos, todas e "todes".
Primeiramente, quero agradecer aos meus orixás, aos meus ancestrais, por poder estar aqui e vou fazer uma retratação.
Estou aqui como Coordenadora-Geral do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e a minha pasta é Liberdade Religiosa. Então é sobre isso que vamos falar, sobre liberdade religiosa, que, na realidade, é uma liberdade entre aspas.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Eu lhe confesso - depois eu dou seu tempo - que o pessoal que organizou... Eu disse: mas não tem ninguém aqui que fale por um Ministério do nosso governo?
A SRA. MÃE GILDA DE OXUM - Sou eu mesma.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - E ela agora disse que está representado o Ministério dos Direitos Humanos. Então olha, uma salva de palmas. (Palmas.)
A SRA. MÃE GILDA DE OXUM - Aqui estamos eu, o meu Diretor, Alex Vargem, e a minha Coordenadora. Estamos aqui pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. Esse é o nosso Ministério.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Então os cumprimentos. Ela não vem sozinha não, veio com a equipe toda. (Palmas.)
A SRA. MÃE GILDA DE OXUM - Vim com a minha equipe.
Primeiramente, quero também agradecer a fala da nossa Pastora, do nosso Frei, do Humberto e tomar a bênção de nosso querido Dr. Hédio, que deve estar me ouvindo. Ele é de lá de São Paulo, eu estou de São Paulo. Sou de São Paulo, hoje estou brasiliense - pelo período de quatro anos - e muito satisfeita com essa cidade e com o meu Ministério.
Então, vamos lá. Nossa Coordenação-Geral de Promoção da Liberdade Religiosa trabalha para que todas as minorias políticas, raciais e religiosas tenham sua liberdade de crença resguardada e respeitada.
O racismo estrutural brasileiro é característico de uma sociedade formada a partir da escravidão da população negra. Tem como consequência o racismo, o racismo religioso, ambiental, institucional e estrutural, que afeta todos, a maioria negra minorizada.
Nesse sentido, temos trabalhado com o objetivo de mapear a intolerância religiosa contra a comunidade de terreiro em todo o país. Estamos revisando o protocolo de denúncia do Disque 100, elaborando cursos e matérias de capacitação a fim de erradicar o racismo religioso e o discurso de ódio entre agentes de serviço público e na sociedade civil.
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Nesses últimos meses atendemos as comunidades islâmica - pois é, gente! -, judaica, diferentes etnias, indígenas, ciganos, Testemunhas de Jeová, católicos e evangélicos, bem como diversas outras denominações religiosas a fim de conhecer e auxiliar em suas atividades.
Quando se fala de liberdade religiosa, é isso, é liberdade religiosa em toda a sua etnia. Não é somente religião de matriz africana, não é somente a umbanda, são todas elas.
O Brasil é signatário de diversos compromissos internacionais que têm como objetivo prevenir e combater a discriminação por motivo de religião ou crença. Entre acordos estão, primeiro, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a Declaração sobre a Raça e os Preconceitos Raciais, a Declaração sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e Discriminação Baseadas na Religião ou Convicção; terceiro, Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas; quarto, Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, novamente acreditando que todos nós temos o direito de ir e vir. Dizem que o país é laico, e nós estamos fazendo de tudo para que ele seja de verdade. Então, temos que ter respeito por todas as etnias. Volto a dizer: minha pasta não é só porque é liberdade religiosa. Eu acredito de verdade na liberdade religiosa num todo.
Todavia, o fato alarmante é que a violência de natureza religiosa vem aumentando em nosso país. Além disso, há evidentes traços de racismo religioso, na medida em que são as religiões afro-brasileiras, que é o que nós mais sabemos, as comunidades de terreiro, as mais afetadas por manifestações de intolerância e discriminação, além dos quilombolas, os indígenas... Novamente, falo que não é somente religião de matriz africana.
O "Relatório sobre a Intolerância e Violência Religiosa", publicado pelo Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, relativo ao período entre 2011 e 2015 informa que os religiosos de matriz africana foram alvo 30% a mais dos crimes de intolerância religiosa identificados no país.
Nesse documento, chama a atenção a ocorrência da violência cometida por familiares, vizinhos, cônjuges e supostos amigos, os quais fizeram 53% dos agressores identificados. Professores ou diretores de escolas também aparecem como agentes, em torno de 11% sobre sua violação. Nós sabemos como é: "aquele pretinho do cabelo enrolado", "aquela pretinha com aquele black", "nossa, sua cor é diferente!" É muito difícil tudo isso, não é?
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Sobre o período entre os anos de 2019 e 2021, o "II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe", organizado pelo Centro da Articulação de Populações Marginalizadas e pelo Observatório das Liberdades Religiosas, com o apoio da Representação da Unesco para a educação, a ciência e a cultura no Brasil, demonstrou não apenas o aumento dos casos de intolerância religiosa, nos quais neste país, como novamente diagnosticou, são mais perversos sobre a religião de matriz africana, as mais atingidas por manifestações de intolerância.
Mais uma vez, ao se analisar os dados, estes revelam que, na maioria das vezes, os atos de intolerância religiosa foram cometidos por figuras masculinas de religiões evangélicas, em ambiente do cotidiano, que se torna uma relação parental ou de convívio - vizinhos -, contra figuras femininas adeptas da religião de matriz africana.
Então, vamos lá: "Nossa, por que você está usando branco? Você é médica? Nossa, esses seus colares aí são normais? Essa sua cor é diferente, não é? Você pode tomar sol? Você precisa usar creme? Eu fiquei sabendo que a sua cor não precisa ser protegida, não é? Não precisa, não. Nem o seu cabelo precisa usar xampu, porque não precisa, não é?" É muito triste tudo isso.
Mais uma vez, os dados analisados revelam que, na maioria das vezes, os atos de intolerância religiosa foram cometidos... Desculpa, essa parte já foi.
Assim sendo, o Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania se preocupa muito com as ações de educação e promoção. As políticas públicas do nosso ministério...
(Soa a campainha.)
A SRA. MÃE GILDA DE OXUM - ... se preocupam tanto em informar os grupos em situação de vulnerabilidade sobre os seus direitos e o caminho para acessá-los, quanto formar cidadãos capazes de celebrar a diversidade e combater a discriminação.
Estamos aí agitando, fazendo de tudo para que o Disque 100 funcione de verdade, viu gente? Um curso de capacitação... e vai, eu acredito que não é um sonho, vai ser uma realidade mesmo para 2024. Nós estamos, na realidade, numa forma de reconstrução. Nós pegamos esse ministério destruído e estamos fazendo de tudo para que... estamos tendo na realidade uma reconstrução. E toda reconstrução demora um pouquinho. Então, a gente pede paciência à sociedade civil, aos amigos e às pessoas, que eu acredito que tudo isso, em 2024, a gente consiga colocar a casa em ordem na realidade.
E por isso a Coordenação-Geral de Promoção da Liberdade Religiosa vai recriar ainda este ano, 2023, o Comitê Nacional de Respeito à Liberdade Religiosa...
(Intervenção fora do microfone.) (Risos.)
A SRA. MÃE GILDA DE OXUM - ... e realizar o primeiro fórum internacional... que é o quê? O primeiro fórum Inter-religioso nacional. Queremos construir política pública, claro, de combate à intolerância religiosa coletivamente, com ampla participação da sociedade civil.
Acreditamos que liberdade religiosa significa poder estar e expressar a nossa fé, na nossa ancestralidade e no nosso íntimo; expressar com tranquilidade a nossa crença ou a crença que também poderemos não ter, respeitando a liberdade religiosa de cada um.
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Poder usar nossas vestes, como eu já disse, nossas indumentárias com segurança sem sofrer discriminação nas ruas, nos estabelecimentos públicos ou privados, poder trajar o seu torço, o seu quipá e, assim, tudo o que for nosso de direito: o nosso torço, as nossas contas, o seu quipá, quem usa, as suas indumentárias, o seu terno e sermos felizes, porque, eu acredito que tudo começa em casa.
Eu digo que nenhuma intolerância... Nenhuma criança, eu falo sobre isso sempre, nasce intolerante e nem racista, ela se cria, e onde se cria? Em casa, porque é dentro de casa que começa toda a violência, a intolerância, o racismo e, para isso, nós precisamos ter, de verdade, amor. É falar de amor, é praticar o amor, eu acredito nisso.
"Ah, Gilda, isso é utopia". Não, eu estou com 61 anos, e essa é a fala que eu tenho desde que eu me vi como gente. Tenho uma família maravilhosa e, além disso tudo, também sou ministra religiosa, sou uma sacerdotisa de religião de matriz africana, tenho uma casa de candomblé maravilhosa em São Paulo, lido com a minha sociedade, com a minha comunidade, o que não é fácil, porque é periferia, e estou lá há 48 anos, então, para mim, tudo isso é maravilhoso.
No final dessa história toda, eu digo, assim, que acredito que o amor vence qualquer situação e, dessa forma, é pegarmos na mão um do outro, porque criticar é fácil, atirar pedra é fácil, o difícil é se unir para dizer "vamos nos unir e vamos nos organizar", porque com organização tudo funciona.
Um bom dia para todos. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Muito bem.
Parabéns, fiquei muito feliz porque a Mãe Gilda de Oxum representa o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e, ao mesmo tempo, fez uma exposição brilhante apontando, inclusive, encaminhamentos do Ministério em relação ao combate à intolerância religiosa. Deu diversos indicativos aí, que eu fiquei contente de ouvir, e quero mandar um abraço ao meu amigo - diga para ele que ele é meu amigo -, o Ministro Silvio.
Ele esteve aqui nesta Comissão e foi brilhante, como a senhora também foi hoje. O Ministro é uma referência, eu diria, não só nacional, mas tem hoje uma repercussão em âmbito internacional.
Vamos dar uma salva de palmas para o Ministro Silvio? Vamos, não é?
Gosto muito dele. (Palmas.)
Agora, vamos passar a palavra ao Sr. Clédisson Júnior, cientista político, representante da Deputada Federal Dandara, que não está aqui porque está em uma missão com o Presidente Lula.
Antes de você usar a palavra, Clédisson, me lembraram aqui que eu tenho três avisos para dar. Na verdade, são registros.
Registro de presença de Iyá Gilda, Coordenadora da Coordenação-Geral de Promoção da Liberdade Religiosa do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Seja bem-vinda.
Registro também a Sra. Alice Correia, representando aqui a Deputada Federal Carol Dartora, que é a Vice-Coordenadora da Frente Parlamentar Mista Antirracismo na Câmara dos Deputados.
Uma jovem Deputada que merece todo o nosso carinho. (Palmas.) Diga para ela que ela pegou o meu lugar, viu? Eu era o Vice antes, e ela chegou. Estou fazendo um carinho para ela, porque fiquei feliz de ela ter concordado em ser Vice na Comissão de Refugiados e Imigrantes. Ela assumiu o meu lugar, está fazendo um trabalho brilhante. Ela assumiu mediante parceria, nós combinamos, agora é a vez da Dartora. É uma jovem líder e tenho muita alegria em saber que você está aqui a representando. Mande um grande abraço para ela.
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Registro a presença também da Sra. Luiza e da Sra. Renata, representantes da comunidade Bahá'í, que estão aqui. Sejam todas bem-vindas. (Palmas.)
O nosso querido amigo - eu ia chamar de Senador, quem sabe? - Frei David dos Santos vai ter que se retirar agora, e pediu só para se despedir de vocês.
O SR. DAVID RAIMUNDO DOS SANTOS - Deixo um abraço grande para todos os que estão participando do debate online e para as pessoas presenciais, mas eu não podia sair sem fazer um elogio ao nosso querido irmão, Presidente Lula, porque ele agora é da ONU. Vocês todos sabem que a ODS vai até o número 17, da 1 até o 17, e o Lula, na fala dele na ONU, propôs a ODS Objetivo 18, e falou: "Se o mundo não assumir, o Brasil assume". A ODS Objetivo 18 refere-se a lutar incansavelmente pela igualdade racial. Para o Lula, uma salva de palmas! (Palmas.)
E aí, eu peço ao Lula que nós, Brasil, demos o exemplo. Com essa ODS 18, eu estou muito feliz de a gente estar divulgando. Eu quero dizer para ele que o Brasil tem que ser exemplo, e para ser exemplo, o Brasil tem que consertar o Decreto 30 (Decreto 11.443, de 21 de março de 2023). Ele assinou, em 21 de março deste ano, o Decreto 30 com um equívoco muito grave. Todo mundo sabe que um ministro, quando assume um ministério, todos os cargos de confiança ele preenche logo. Nesse decreto, Lula determinou que 30% dos cargos de confiança têm que ser ocupados por negros, ele deu prazo até dezembro de 2025 para os ministros preencherem isso. Isso é brincadeira. Lula, isso aqui é uma ofensa a nós, negros. Já vimos esse filme antes. Eu peço ao Lula que faça uma emenda a esse decreto, e peço ao Ministério da Igualdade Racial.... Leve para o Ministro Silvio, por favor, irmãzinha. Leve para o Ministro Sílvio, da Igualdade Racial, esse desafio...
Desculpe, Ministro Silvio, dos Direitos Humanos, esse desafio; e à Ministra Anielle, da Igualdade Racial, esse desafio. Queremos que o Lula faça um conserto nesse decreto dizendo o seguinte: que até outubro de 2023, agora, que todos os ministros cheguem a 20%; até outubro de 2024 cheguem a 25%; e até outubro de 2025 cheguem a 30%, no mínimo. Se ele fizer esse conserto, ele estará sendo sério e honesto na fala dele na ONU. Mas para mim, ele foi vítima da assessoria dele para soltar um decreto errado e equivocado como esse.
E também quero chamar o Lula para ele não permitir que o PT apoie a PEC 9. A PEC 9 é crime contra o Brasil e está dando um testemunho feio. Nós estamos redigindo uma carta em francês, em inglês... em oito idiomas e mandando para o mundo inteiro, dizendo da maldade da PEC 9 no Brasil. Então, se o Lula quer que o pessoal leve a sério a ODS 18, ele não pode deixar o PT fazer essa maldade com o povo negro.
Desculpe-me, irmão. Um abraço!
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O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Muito bem! Este é o Frei David: tapas e beijos. Isso, porque ele é frei. Ele deu um elogio para o Lula e, depois, uma cutucada.
No fundo, ele quis elogiar o Presidente Lula pelo destaque que ele teve na ONU. Repercutiu no mundo todo.
O SR. DAVID RAIMUNDO DOS SANTOS - No mundo inteiro.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - No mundo todo.
Vai ser muito importante ver a sua vinda aqui, na quarta. Quero registrar a sua iniciativa. O senhor me comunicou que viria e pediu para ver se eu conseguiria audiência.
Vai ser muito bom o Presidente Rodrigo Pacheco, que eu considero um homem que tem compromisso com esta luta de todos nós, poder recebê-lo. Acho que ele vai gostar, inclusive, muito.
Está bem?
Passo, de imediato, a palavra ao Sr. Clédisson Júnior, cientista político, representante da Deputada Federal Dandara Tonantzin.
O SR. CLÉDISSON JÚNIOR - Bom dia, todos, todas e "todes".
Eu queria trazer aqui um abraço e um pedido de desculpas da Deputada Dandara. Ela, infelizmente, não pôde estar conosco. Foi para os Estados Unidos acompanhar o Presidente Lula na Assembleia Geral da ONU.
Enfim, retornaria agora para o Brasil, mas acabou aparecendo uma agenda extemporânea. Ela segue nos Estados Unidos mais alguns dias, agora na cidade de Washington, travando diálogos com Parlamentares negros daquele país.
Segundo, quero agradecer a possibilidade de representá-la, mas também de, neste espaço, poder produzir um reencontro comigo mesmo. Durante o início da minha trajetória acadêmica, como estudante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, eu desenvolvi uma pesquisa sobre cosmopolítica a partir da Jurema Sagrada, uma religião afro-indígena brasileira muito encontrada no Nordeste brasileiro.
Tive o privilégio, a oportunidade de desenvolver uma etnografia num terreiro de Jurema, em Pernambuco.
Poder vir aqui neste espaço falar de racismo e liberdade religiosa é uma forma de trazer alguns encontros, de produzir alguns resgates do que me foi permitido participar, entender e, enfim, elaborar na experiência com a Jurema Sagrada, mas também de trazer um diálogo dentro do espaço em que a gente se encontra.
Como construir um debate sobre racismo e liberdade religiosa, falando aqui do Congresso Nacional, do Senado Federal, partindo aqui de uma ideia que nós, que estamos aqui, temos, enfim - digo isso porque sou servidor da Câmara dos Deputados -, uma responsabilidade na elaboração de políticas públicas mais eficientes, que dialogam com as demandas históricas de autonomia e da própria liberdade daqueles e daquelas que, ao professarem as suas religiões são cerceados desse direito que a própria Constituição garante.
Aí eu quero iniciar esta discussão reforçando aqui que a minha preparação, nos últimos dias, se deu muito em torno de como produzir um diálogo sobre racismo e liberdade religiosa tendo ao lado a contribuição de grandes atores, atrizes da agenda, do debate.
Aqui, faço o agradecimento por ter conhecido o Humberto, com quem tenho travado, nos últimos dias, um diálogo sobre a elaboração deste espaço; à Thayná, cujo trabalho conheço e sou um grande admirador; ao Frei David, que conheço desde muito tempo - eu era bem mais jovem e tive o privilégio, a oportunidade, de ter sido Conselheiro do CNPIR, em duas oportunidades, nos anos 1910 e depois 1915 -; enfim, à Mãe Gilda, que eu admiro bastante, e sou um grande entusiasta do trabalho que a senhora desenvolve no ministério, ministério esse que, na sua elaboração anterior, quando era o antigo SDH, no Governo Dilma, eu tive a honra de ser Secretário-Executivo do Conselho Nacional de Direitos Humanos; e, obviamente, por estar na mesma mesa, pela primeira vez, do Senador Paulo Paim, uma grande referência da luta antirracista no Brasil.
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O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Se me permitem, ele esteve conosco esta semana, tivemos um debate duro lá na Comissão de Justiça sobre as cotas e, como a nossa querida Dandara estava no exterior com o Presidente Lula, nossa Deputada Federal, eu indiquei o nome dele. E ele, de pronto, acatou e fez um belo pronunciamento lá, de alguém que trabalhou junto com a Dandara para construir aquele substitutivo que foi aprovado lá, por unanimidade. E nós queríamos muito... Eu faço até um apelo aqui, agora, a todos os Senadores e Senadoras, para que a gente possa aprovar essa matéria aqui, ainda no mês de setembro, para que o Ministério da Educação possa então regulamentar, em parceria com o dos Direitos Humanos, o da Igualdade Racial e o dos Povos Indígenas.
O SR. CLÉDISSON JÚNIOR - Senador...
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - O seu tempo vai voltar agora.
Não usei o seu tempo.
O SR. CLÉDISSON JÚNIOR - Eu queria dizer que a sua generosidade é sem limites.
Sou muito grato.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Você foi bem mesmo.
O SR. CLÉDISSON JÚNIOR - Mas, de fato, eu quero partir de um lugar que acredito seja comum, porque o racismo no Brasil é um mecanismo de manutenção das relações coloniais e que debruçar sobre uma dinâmica de compreensão sobre as heranças da colonialidade, na nossa sociedade, parte de um lugar importante, de concatenar, no meu entender, algumas dimensões que são referências de formulações teórico-políticas.
E aqui eu quero citar, porque acho que é importante citar, figuras que contribuíram para a minha formação, mas também que fazem parte hoje dessa dinâmica de pensar saídas para esse imbróglio em que nós estamos enrolados, há mais de cinco séculos, que é o racismo, enfim, como um todo, mas a sua dinâmica que cerceia a dimensão religiosa, e que cria uma dimensão imperativa de resolução. São os conceitos, como "amefricanidade", de Lélia Gonzalez; "contracolonialidade", de Nêgo Bispo; e a "linha cruzada", do Prof. José Carlos dos Anjos, Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que pensa no sentido de como responder a uma dinâmica de resistir, a partir dos espaços, para além de onde a sociedade que não ocupa a dimensão de poder - e aí vou falar como a Mãe Gilda apontou -, não só dos afrodescendentes, mas dos grupos politicamente minoritários na nossa sociedade e a interação que se dá no espaço de formulação de política pública, de tomada de decisão, como aqui o Congresso Nacional e o Poder Executivo ao lado.
É importante destacar, e eu defendo muito essa tese, que nós estamos fazendo, neste ano de 2023, dez anos da ascensão da Lei 10.639 que, ao meu ver, é de longe a mais ampla e importante iniciativa de descolonização da sociedade brasileira, mas que, infelizmente, não emplacou, exatamente pelo papel que tem. E sofre até hoje, dez anos depois, resistências de um conjunto muito grande de gestores públicos, enfim, Prefeitos, Governadores, tomadores de decisão que têm a prerrogativa de dar encaminhamento, de fazer valer a letra da lei, mas que não dá conta, não toca exatamente por reproduzirem nas suas tarefas enquanto gestores o racismo institucional.
Eu acredito muito que devemos...
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O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Clédisson, se me permite... É que nós estávamos esperando, e ele já está na sala.
Ele, como um bom líder, é tranquilo, chegou ali, sentou na lateral, mas eu queria convidá-lo já para a mesa.
Com alegria, recebemos aqui agora o Deputado Federal Pastor Henrique Vieira, pastor, teólogo, escritor e membro da Frente Parlamentar Mista Antirracismo. (Palmas.) Seja bem-vindo, Deputado. É um prazer recebê-lo.
O SR. CLÉDISSON JÚNIOR - Enfim, quero - Deputado, tudo bem? - centrar esforços na compreensão que devemos todos ter da dimensão estratégica da Lei nº 10.639.
Acredito que devemos investir na aplicação, na efetividade da lei enquanto essa dimensão de descolonização, de um elemento de contracolonialidade, que permite que possamos construir - não somente no imaginário da nossa sociedade, mas na ação prática da dimensão pedagógica da construção de cidadania da nossa gente, da nossa juventude, dos nossos adultos, ou seja, da cidadania brasileira - esse olhar da necessidade de rompermos com essa lógica que constrói a diferença enquanto um elemento de subtração e não de multiplicação.
É importante que entendamos que a diversidade, tal qual ela se constitui na sociedade brasileira, é um elemento importante, e ela é muito enriquecida quando você tem uma dimensão narrativa que aponta, que atende a debates que confluem numa lógica de negar ou invisibilizar o racismo, tal qual foram os debates feitos pela sociologia brasileira sobre não haver disputa, não haver conflitos raciais na sociedade brasileira.
Contudo, essa mesma diversidade é negada, é invisibilizada quando temos, por exemplo, a possibilidade de construirmos um novo momento; e não só isso, de construirmos novas maiorias políticas a partir da diferença das profissões religiosas, de como professamos a nossa fé. É um elemento que deveria ser aliado à ideia de uma diversidade positiva, a qual é o debate sobre o encontro das três raças, muito propalado pela sociologia brasileira, e isso não se transforma num debate positivo quando essas religiões se encontram. Aí há uma dimensão de subtração, de divisão...
(Soa a campainha.)
O SR. CLÉDISSON JÚNIOR - ... que desempodera a possibilidade de construirmos uma sociedade emancipada, autônoma, que respeita a diferença e que dialoga com o que a gente tem de mais caro, que é a capacidade de olhar para a frente tendo toda a tranquilidade de sabermos de onde viemos.
Isso, a dimensão da ancestralidade... Aqui eu não me refiro à ancestralidade somente como uma dimensão da religiosidade afro-brasileira, mas é importante destacar também que os irmãos cristãos também reivindicam essa dimensão como um elemento importante da tradição da construção de um cristianismo original, e que é fundamental para a ideia de uma sociedade empoderada a partir da lógica da diferença.
O Deputado insiste muito nessa lógica de pensar o Jesus negro, e eu gosto muito dessa referência porque nos permite olhar para uma poderosa dimensão de construção de unidade sem negar a própria diversidade do que é a dimensão de ser cristão em todo o mundo e cria um novo elemento de interface para o diálogo. E eu acho que é possível que nós possamos construir, a partir de formulações como essa, que se soma à própria formulação de contracolonialidade e à própria dimensão de linha cruzada... Aqui eu faço um parêntese: o Prof. José Carlos dos Anjos, que não é brasileiro, é nascido no continente africano, em Cabo Verde, e dá aula de Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, insiste muito na lógica de pensar os processos da construção de uma noção de identidade afro-brasileira que se empodera em um encontro.
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No Rio Grande do Sul, enfim, o Senador Paulo Paim pode dizer melhor do que eu, nós encontramos lá aquilo que nós chamamos de batuque, que é uma expressão religiosa própria do Estado do Rio Grande do Sul, que se professa a partir do encontro de outras experiências religiosas, também africanas, que, lá no Rio Grande do Sul, constrói-se a partir da diferença e que empodera a ideia de que é possível, na própria experiência do Candomblé, você ter, em um único terreiro, experiências, em momentos distintos da ritualidade, esse encontro que permite olharmos para a possibilidade de uma sociedade da diferença que produz uma unidade, que não significa ficar só na dimensão religiosa, mas também política.
Eu acho que essa experiência, enquanto dimensão de política pública, ganha intensidade, porque nós temos, sim, os instrumentos necessários para que essa discussão ganhe fôlego. Reforço: em que pese a possibilidade de constituirmos novos referenciais legais para debatermos a diversidade religiosa e a necessidade de respeitá-las, a Lei 10.639 cumpre esse papel, porque atua na ação de construir um novo imaginário de sociedade brasileira, com respeito à diferença, com legitimação das nossas próprias histórias, e aponta para a necessidade de um Brasil, cada vez mais, descolonizado.
Eu acho que é importante que o Congresso Nacional, o Senado, a Câmara dos Deputados, que os nossos representantes aqui nesta Casa possam se apropriar da agenda da contracolonialidade. É preciso que formulemos novas legislações que rompam com a lógica da herança que o colonialismo nos deixou. Isso passa desde repensarmos as representações históricas que nós homenageamos, nas nossas cidades, nas nossas estátuas, nos nomes das nossas ruas, as referências que nós usamos nas nossas pedagogias e nos livros de ensino, mas também na capacidade de pensar como superar a própria ideia de construir um Brasil novo, como refundar um Brasil de todos.
Obviamente que isso passa por imaginar como teria sido esse encontro mítico que temos entre o negro, o branco e o indígena, a partir de uma lógica não hierarquizada...
(Soa a campainha.)
O SR. CLÉDISSON JÚNIOR - ... horizontalizada, que respeita a diversidade e que trata, de igual, as dimensões e as contribuições que todas as raças que contribuem com a noção de raça brasileira trazem para a nossa sociedade.
Então, eu quero concluir, agradecendo a oportunidade de, minimamente, sintetizar a construção da elaboração da minha dissertação de mestrado, pois não a revisitava há muito tempo. Gostaria de dizer que, enquanto assessor da Deputada Dandara e contribuinte do seu processo de construção, na Câmara dos Deputados, nós vamos trabalhar, incessantemente, para construir maiorias políticas naquela Casa e para desenvolver, cada vez mais, legislações que apontem para uma descolonização da sociedade brasileira e para a formulação de um novo Brasil, de um Brasil refundado que aceita a diferença.
Muito obrigado. (Palmas.)
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O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Muito bem, Sr. Clédisson Júnior, cientista político, representante da Deputada Federal Dandara Tonantzin, que só não está conosco porque está em uma missão com o Presidente Lula.
Reafirmo o que disse: Clédisson, você foi importantíssimo na construção daquele substitutivo sobre o qual estamos debruçados agora no Senado. Existem algumas resistências na Casa, eu percebo, e isto é público aqui dentro, mas estamos trabalhando juntos, coletivamente, com os ministérios do nosso Governo Lula, que estão nos ajudando muito, estamos trabalhando aqui com as Lideranças de inúmeros partidos e, naturalmente, com o apoio da Maria do Rosário, da Dandara, da Reginete, da Carol e de todas as pessoas que ajudaram a fazer com que este momento acontecesse.
Nós todos sabemos como é importante nós aprovarmos de forma definitiva a política de cotas. É definitiva, mas tem que ser atualizada. E foi o que vocês fizeram lá muito bem.
Eu fui Relator há dez anos, mas que bom que essa nova geração - eu sou veterano, sou lá do passado - veio e já chegou fazendo acontecer. E eu quero também dizer que os reconheço muito, muito, inclusive pelo carinho com que me tratam, como você me tratou aqui, todos os jovens que estão chegando aí, com uma força enorme que faz as coisas acontecerem. Naquela noite histórica, eu estava lá na Câmara com vocês, de plantão. A Ministra Anielle também estava. Foi muito bonito.
Parabéns pela sua exposição também hoje!
Eu quero, com muita satisfação, passar a palavra neste momento ao Deputado Federal Pastor Henrique Vieira, pastor, teólogo, escritor e membro da nossa Frente Parlamentar Mista Antirracismo.
É um prazer recebê-lo aqui. (Palmas.)
O SR. PASTOR HENRIQUE VIEIRA (PSOL - RJ) - Muito obrigado.
Desculpem pela demora. Eu estava aqui ao lado, na sessão da CPMI dos atos golpistas, falei e corri para cá.
Obrigado por me receberem.
Bem, em primeiro lugar, existe uma tarefa intra-religiosa no caso do cristianismo que é pensar um cristianismo que questione o racismo do próprio cristianismo. Eu preciso reconhecer isso, porque, do ponto de vista histórico e hegemônico, o cristianismo, como sistema religioso, é estruturalmente racista e contribuiu com o projeto de colonização.
Reparem: eu não estou falando do Jesus de Nazaré, não estou falando da experiência do Evangelho, eu não estou falando do meu vínculo existencial com essa mensagem, porque isso me constitui, mas estou reconhecendo que, do ponto de vista histórico, o cristianismo, como sistema religioso de maioria, contribuiu e contribui com a produção e a reprodução do racismo. Isso está na leitura e na interpretação da Bíblia, na forma de organização da Igreja, na relação com outras religiões.
Posso dar um exemplo pessoal? Quando eu era criança, com cinco aninhos, tinha um livro de evangelização chamado Livro Sem Palavras, só por meio de cores. "O ser humano é pecador" falava-se lá. Qual cor vocês imaginam que aparecia para simbolizar? Preta. Daí, "Jesus deu a vida por nós". Virava a página e vinha a cor vermelha para fazer referência ao sangue, ao sacrifício de Jesus. E "uma vez você se convertendo a Jesus, você se torna uma nova criatura, uma pessoa melhor". Daí, virava a página e vinha a cor branca. Eu chegava a casa. Eu tenho um pai negro, de pele mais escura, e uma mãe branca. E eu dizia para a minha mãe, com cinco anos, muito por conta dessa lógica, que eu não queria ser parecido com o meu pai. Então, repare que a própria lógica da mensagem, para além da intencionalidade, porque o racismo é institucional, estrutural e estruturante, reproduz uma lógica racista.
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Eu, quando era adolescente - mais um elemento da minha vida pessoal -, se passasse, lá em Niterói, minha cidade de origem, em frente a uma igreja católica, por exemplo, era só uma igreja de uma outra religião, de uma outra denominação dentro do cristianismo. Mas eu, quando passava, por exemplo, numa esquina e tinha lá uma oferenda, sentia medo. Olhe só: de onde vem esse medo? Um medo que era produzido por uma determinada religiosidade estruturalmente racista. E, sem perceber, eu interiorizava aquilo, e parecia - eu quero chamar atenção para isso - quase involuntário; mas não é involuntário, é historicamente construído, porque o racismo é uma prática que violenta, ao mesmo tempo que é a construção do imaginário que naturaliza essa prática. Então, ele é violência objetiva e o significado que naturaliza essa violência.
O racismo não sobreviveria sem a produção do afeto racista. Ele é uma atitude e ele também promove e forja emoções e afetos. Então, como um adolescente evangélico da Igreja Batista passando por uma oferenda, eu sentia medo; sem entender, mas sentia. Eu precisei de tempo, precisei de - usando uma expressão da Igreja - quebrantamento e arrependimento, eu precisei decolonizar a minha experiência cristã para abraçar o Jesus negro e, então, ressignificar a minha visão de mundo e até a minha própria percepção como homem negro. (Palmas.)
Então, assim, eu não poderia falar sobre esse tema sem reconhecer, falo isso com dor e com tristeza, mas eu não poderia falar sobre racismo religioso sem dizer o papel protagonista que o cristianismo tem na produção desse racismo. Quando um terreiro é invadido, quando uma mãe de santo, um pai de santo sofre uma violência, essa violência muitas vezes começou no púlpito, no seminário, na música, na leitura da Bíblia, na forma de pensar o Cristo, e você vai criando o cenário de que a violência vai ser o resultado óbvio. Diante dessa teologia racista, a violência é o esperado. Por um lado, a violência direta, ou a indiferença diante da violência, digamos assim, "não tenho nada a ver com isso, só estou seguindo o meu Jesus aqui". Não, tanto a violência deliberada quanto o silêncio têm a marca de um cristianismo racista.
E eu não posso, como cristão, discípulo de Jesus e pastor, fazer qualquer fala que não considere esse lugar e a tarefa que nós temos aqui, dentro do cristianismo, de desautorizar esse modelo colonizador, de dar visibilidade às tradições que existem dentro do cristianismo, da teologia da libertação, da teologia negra, e até mesmo desse debate que eu tenho feito recentemente. Eu não, não é? Eu venho como fruto de uma tradição, que é denunciar que o embranquecimento epidérmico e ideológico de Jesus serviu a um projeto de colonização. Quando a gente fala que Jesus é negro, não é só porque um homem da Palestina do primeiro século com certeza não era branco. Mais do que isso, a experiência do Jesus de Nazaré é uma experiência vinculada à experiência do povo negro neste país. Foi um corpo alvo de estigma, de preconceito, de ataque por sua origem étnico-racial e territorial.
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Tem um teólogo chamado Ronilso Pacheco, não sei se vocês o conhecem, é brilhante, uma referência para minha vida. Ele fala que a Bíblia é um conjunto de livros negros, com uma interpretação historicamente branca. Daí eu faço a seguinte interpretação: é como se a Bíblia tivesse muito... É uma anacronia, mas é de propósito. A Bíblia tem experiência quilombola de luta, de terra, de emancipação, só que a interpretação da Bíblia é feita pela janela da casa grande. Jesus de Nazaré foi executado pelo Estado romano, certo? Quatro séculos depois, o cristianismo, que ele nem viu, tornou-se a religião oficial do Estado que o matou. Então, Jesus passa a ser interpretado pela lente que o executou, some o Jesus de Nazaré e aparece o Jesus de Roma, das Cruzadas, da colonização, do genocídio, do Deus acima de tudo, das armas. Eu prefiro ficar com a Estação Primeira de Mangueira: Jesus da gente, "rosto negro, sangue índio, corpo de mulher"; o que me escandaliza é Jesus com arma na mão, nisso que eu não vejo coerência com o testemunho do Evangelho. Porém, o Evangelho, há muito tempo, é lido pela lente do poder e do privilégio branco.
O que isso tem a ver com o que a gente está falando? Na minha opinião, é uma disputa civilizatória, é uma disputa de valores, é um enfrentamento ao fundamentalismo religioso, porque, por um lado, o fundamentalismo disputa valores na sociedade - e agora eu vou fazer um link com a dimensão institucional, está bom, gente? -, mas o fundamentalismo não é só, entre aspas, um "projeto" de valores na sociedade, patriarcal, misógino, racista. Ele agora, no Brasil, nos últimos anos, tornou-se um projeto de poder. Aí eu acho que tem tudo a ver com política pública, orçamento e legislação.
Está sendo votado na CPASF, ali da Câmara, um projeto para proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, não está mais no campo de a pessoa organizar a vida dela com essa concepção de mundo, ela quer organizar a sociedade via Estado pela regulação jurídica com essa composição e concepção de mundo. Aí é tarefa institucional, é em nome da laicidade, da democracia, da cidadania, de princípios constitucionais você ter políticas públicas e legislações que possam provocar um freio nessa sanha fundamentalista que não só organiza comportamentos em comunidades, quer organizar o poder político e a própria regulação jurídica. E tem projeto para conselho tutelar, tem projeto para questão de sexualidade, tem projeto...
(Soa a campainha.)
O SR. PASTOR HENRIQUE VIEIRA (PSOL - RJ) - ... em todas as áreas, gente. Aí precisamos de frentes públicas que possam afirmar valores da democracia, porque aí tem mais uma crítica ao cristianismo, que é que o cristianismo não sabe viver sem o privilégio historicamente, precisa se impor as outras experiências religiosas. É quase um ataque ao cristianismo quando ele é questionado.
E aí, não sei se vou ser bem interpretado pelos meus irmãos e irmãs de fé, mas é minha tarefa histórica: nós temos, para ter Estado laico.. Vou ao ponto: para ter Estado laico de verdade, só teremos tirando privilégios de quem sempre teve. O cristianismo vai ter que perder privilégio neste país. Pode parecer antipopular, mas eu prefiro olhar para o meu povo e dizer: não precisamos, não devemos ter o lobby do Estado, isso é contra a natureza do Cristo de Nazaré.
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Vamos criar uma arena pública, onde o diálogo, a síntese, o bem comum, o diálogo inter-religioso e o respeito à não crença religiosa... E diria mais, para concluir, porque acho que esse sino foi para concluir. Assim que funciona aqui no Senado também, não é?
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Depois que toca o sino, são mais cinco minutos. Você está dentro do seu tempo.
O SR. PASTOR HENRIQUE VIEIRA (PSOL - RJ) - Não fala isso para um pastor, não. O senhor se arrependerá. (Risos.)
Eu diria mais: para ter uma laicidade plena, pulsante, plural, democrática, do jeito que o Brasil é na sua diversidade real, não só o cristianismo tem que, como religião, perder privilégios. Experiências religiosas historicamente massacradas precisam de políticas específicas para a sua preservação e para a sua promoção, ou seja, tem que haver reparação do ponto de vista étnico-racial.
Eu debati isso sabe quando? Na semana passada, numa audiência com a Ministra Nísia, lá na Comissão de Saúde, em que os fundamentalistas estavam criticando muito uma resolução do Conselho Nacional de Saúde que coloca as religiões de matriz africana, pelo que eu entendi, como contribuição de saberes para a saúde. O.k.? Eles estavam: "Mas por que uma religião privilegiada em detrimento das outras?". Aí, eu fui, falei e defendi o seguinte: "Olhe, na minha opinião, está correto, porque, veja, se você tem um histórico de desigualdade e de opressão sobre uma experiência religiosa, o silêncio não é neutro. Ele passa a ser a reprodução dessa desigualdade e desse massacre. Só vai ter laicidade enfatizando mesmo as experiências que foram historicamente silenciadas". Essa linha está correta porque é falsa a ideia de que o silêncio vai fazer a reparação. A reparação é feita com política de reparação, ora. Você vai ter que dar relevo e ênfase a quem, na realidade, sofre desigualdade por conta do racismo. Aí eu defendi lá essa resolução. Então, o cristianismo como religião tem que perder privilégio e as experiências historicamente massacradas precisam de mais reconhecimento.
E eu estou aqui humildemente, com este mandato, na frente inter-religiosa, na frente antirracista. Faltam 26 assinaturas para recriar a frente quilombola. Eu pedi isso. O Bira do Pindaré me entregou essa tarefa, me reuni com a Conaq.
É isto que tem que se enfatizar:
Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati.
Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Muito bem. Muito bem, Pastor.
Eu confesso, Pastor, que eu ouvi a sua fala já e a sua forma didática, tranquila, firme, com coragem e com emoção lá na CPI. Eu não sou da CPI, mas eu assisto pela TV, vi você falando inúmeras vezes lá e percebi toda essa capacidade de comunicação.
Então, parabéns pela sua fala aqui. Tenho certeza de que recebeu os aplausos de todos, não só nossos, mas daqueles que estão em casa também. É importante vir à TV Senado ouvir o que você falou e todos os nossos convidados.
Muito obrigado, Pastor. É muito bom saber que o senhor está na Frente Parlamentar Mista Antirracismo. É muito bom.
Agora, passamos a palavra à Thayane Yaredy... Yaredy, agora eu acertei.
(Intervenção fora do microfone.)
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O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Thayná Yaredy, assessora do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas.
A SRA. THAYNÁ YAREDY - Gente, bom dia. Obrigada.
Antes de tudo, eu quero dizer que, além de assessora do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas, que é uma organização de direitos humanos, que vai se propor a fazer um trabalho relacionado à manutenção, à observação e à não violação de direitos, eu sou iaô, iniciada a Orixá Oxum, no Ilé Ojú Ayrá Àse Ògòdó, e com isso eu cumprimento a mesa, saudando minha mais velha Mãe Gilda, de quem eu tenho a grande honra de sentar ao lado, mas não o direito pela sua idade de santo. Então, eu quero agradecer seu respeito, seu carinho e sua existência e cumprimentar também a frente, na presença ilustre do Senador Paulo, que é um querido colega, parceiro de luta, para além de tudo, da manutenção de uma possível democracia neste país.
O nosso trabalho dentro da Conectas tem muito de vinculação com pensar e aprofundar formas de considerar um trabalho da perspectiva de acesso a direitos e justiça, a partir de temas que não são necessariamente de acesso de maiorias silenciadas e de populações que sofrem com discriminações transversais neste país.
Eu estudei nanorracismo para entender violência urbana, mas acabei entendendo que ele circunscreve vários pontos e trajetos das nossas vidas. E, ao longo da nossa caminhada, da nossa existência, a gente vai percebendo esses atravessamentos em lugares que a gente nunca podia imaginar que podiam ser iguais de um para o outro. E, com isso, com o trabalho, com o estudo, com o que a gente se propõe a fazer e estudar, nós entendemos que a liberdade religiosa é um direito humano nacional e internacional a que a gente acaba não tendo tanto acesso, já que a gente tem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Baseadas na Religião ou Convicção de crença, e a Declaração de Beirute sobre Fé pelos Direitos humanos que trazem todo um bojo que pode ser descrito como uma ferramenta que demonstra especificamente os nossos direitos de professar a nossa fé e a nossa religião, que não necessariamente vão ser cumpridos para determinadas existências, para determinadas fés, para determinadas crenças, que é o caso de religiões de matriz africana, de povos tradicionais da floresta, de populações indígenas ou afro-indígenas e outras correlações, como o povo cigano, entre outras manifestações de fé.
Nós temos pensado como o combate à intolerância religiosa, circunscrito ao racismo religioso existente atualmente, através de conflitos étnicos e religiosos, traz o rompimento do que significa a democracia, que é o que todos os meus queridos colegas de mesa já disseram, mas eu quero enfatizar.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Chegou aqui o Paulo Rocha, um grande Senador, um grande Deputado, um dos homens que mais combateu o racismo e, inclusive, o trabalho escravo, nessas décadas e décadas em que eu estou aqui no Congresso e ele também. (Palmas.)
Hoje ele está como representante do Governo Lula na liderança da...
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O SR. PAULO ROCHA (Fora do microfone.) - Lá na Amazônia, na Sudam.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Na Sudam.
Paulinho, espere aí que eu falo com você depois.
Vamos dar uma salva de palmas para ele. (Palmas.)
É um projeto dele que até hoje lidera a nossa luta contra o trabalho escravo no Brasil. Ele foi o grande articulador dessa PEC.
(Intervenção fora do microfone.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Não, porque nós... Paulinho, a PEC é lei. O problema é que está naquela maldita regulamentação que nós não conseguimos ainda, mas a PEC já é uma realidade, só que tem que regulamentar. Nós estamos tentando. Aprovamos aqui, agora está lá na Comissão de Assuntos Sociais, e eu sou o Relator lá. Vamos torcer para que a gente consiga aprovar de uma vez por todas.
Diz só o seguinte... a proposta do Paulo, transformada em emenda constitucional e está na regulamentação. Terra, seja no campo, seja na cidade, propriedade no campo ou na cidade, onde for encontrado homem ou mulher sob o regime de escravidão perde a propriedade o titular daquela terra ou daquele prédio.
É um projeto que acabaria, de uma vez por todas, com a escravidão do nosso povo neste país.
Por isso, uma salva de palmas não digo para o Paulinho, mas para o projeto. (Palmas.)
Que ele seja regulamentado definitivamente.
Volta.
Eu vou te dar o seu tempo agora que eu acabei pegando aqui.
A SRA. THAYNÁ YAREDY - Muito obrigada.
Eu espero não ser tão prolixa. Às vezes eu sou, viu, gente?
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS. Fora do microfone.) - Não é não, está indo bem.
A SRA. THAYNÁ YAREDY - Acredito que é muito bom sempre encontrar novas pessoas. Pessoas que são novas, mas nem tão novas, que chegam ao espaço, e são pessoas que vão se somando ao longo do tempo, ao longo da nossa luta, ao longo desse trabalho.
Porque eu acredito que deve haver o esforço também de a sociedade brasileira entender a importância de todas as pessoas se comprometerem com a pauta antidiscriminatória. Isso tem muito a ver com liberdade de religião e de crença, e tem muito a ver com o combate do racismo religioso neste país.
Eu acredito que, se a gente pensar na fala do Deputado Henrique, a gente consegue entender como que essas ferramentas de ensino de discriminação tornam muito comum o achar estranho de pessoas que vão praticar algo que seja discriminatório não compreender que todos têm direito a professar uma fé.
A partir desse lugar, a gente consegue fazer um esforço ético, moral e profissional de lutar e fazer a manutenção da coerência e da necessidade das pessoas compreenderem que todos nós que, principalmente, somos ligados à manutenção da justiça, à consolidação da democracia no Brasil, e em outros espaços, precisamos estar atentos à sedimentação, à materialização desses direitos dentro do Brasil e em outros lugares.
A intolerância religiosa é muito complicada para nós, e ela vai significar algumas outras manifestações de violência, como assassinatos, prisões, deslocamentos forçados, convenções forçadas, destruição de propriedades, de espaços, de materiais caros, raros e sentimentalmente religiosos para nós, mas que são consubstanciados com o que nós, no candomblé, chamamos de axé, entre outras violências ao redor do país e do mundo. E essa produção de violência vai gerar uma intersecção entre o racismo de religião, no contexto brasileiro, e outras manifestações de violência que vão acontecendo ao longo do mundo e principalmente no Brasil.
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Se a gente observar que o ISP (Instituto de Segurança Pública) do Rio de Janeiro, em 2021, fez um esforço de entender quantas ocorrências de crimes relacionados a racismo religioso ocorreram, só no Rio de Janeiro, a gente consegue entender que nessa pesquisa, eles encontraram 1.564 ocorrências, fora a consideração de que há quatro ataques por dia, pelo menos, em espaços de culto de religiões de matriz africana. E esse é um dado muito triste se a gente observar que a gente vive num possível Estado democrático de direito.
E eu digo "possível" porque eu não acredito que, sinceramente, como profissional e como pessoa, como uma praticante de religião de matriz africana, dê para a gente considerar que é possível dizer que a gente vive especificamente, empiricamente, materialmente, num Estado democrático de direito, já que nem todo mundo tem a possibilidade de usar as suas insígnias religiosas, já que nem todo mundo consegue ver os seus direitos sendo respeitados, já que, como o Ilê Omolu Oxum, junto com a Renafro, conseguiu levantar, em 2022, que 60% dos terreiros sofreram pelo menos um ataque em dois anos anteriores. E aí, em 2021 e 2020... Além disso, 80% dos sacerdotes que foram entrevistados nessa pesquisa relataram que as pessoas das suas comunidades já sofreram algum tipo de violência motivada por racismo religioso.
Dentro da minha casa, da minha casa de axé, eu tenho particularmente a oportunidade de ter outros colegas, outros irmãos de santo, outros amigos do axé e pessoas que são os representantes do nosso espaço de culto, que têm conhecimento suficiente para fazer frente a ataques que nós sofremos. Mas infelizmente eu não posso dizer que eu não sou uma signatária direta dessa violência, já que muitas das vezes em que eu estou na minha casa, e eu sou uma pessoa de axé realmente assídua, participo sempre, sempre que posso, do máximo do culto dentro da casa, sou uma das pessoas que sai na porta do terreiro para conversar com policiais que são chamados com denúncias sobre barulho, barulho esse que é muito complicado, já que a gente não utiliza, em religiões de matriz africana, normalmente microfone, caixa de som ou outros amplificadores de voz ou de som.
Mas essa construção, essa forma de lidar com as religiões de matriz africana é muito específica, já que eu, antes de ser de religião de matriz africana, quando era jovem, muitos anos atrás, fui católica, por exemplo, e eu nunca vi o Padre Caio, que era o padre da minha igreja, sair na porta da Igreja porque tinha duas viaturas lá dizendo que ele estava fazendo barulho. Eu nunca vi um vizinho da Igreja muito chateado porque ele estava tocando o teclado e louvando a Deus. E isso é muito importante, porque as pessoas precisam ter o direito de poder ter uma conexão profunda, espiritual com o que quer que seja que todo mundo acredite, já que a gente tem direitos nacionais e internacionais que nos ligam a essa possibilidade.
(Soa a campainha.)
A SRA. THAYNÁ YAREDY - No entanto, a gente tem diversas questões relacionadas a isso e a essa condução de normalidade, que o Deputado Henrique nos comenta, que a Mãe Gilda vai nos dizendo, que é essa construção de que é comum e possível a polícia vir e dizer que não é necessário um atabaque tocar dentro de um terreiro e levar o atabaque, que é algo consagrado, que é sagrado para nós, para fora do espaço de culto.
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Assim como é comum, infelizmente, a gente ver o rastro triste de notícias da morte da Mãe Bernadete, dentro da casa dela, com 22 tiros, 12 só no rosto, na frente dos seus netos, dentro de um espaço religioso, dentro de um espaço sagrado. Dentro de um barracão de axé existem inúmeros orixás. Aquele lugar nunca está vazio. É muito doloroso você ouvir que alguém, fisicamente parecido com você, que alguém que você respeita dentro do seu culto tradicional, dentro da sua religião e dentro da sua comunidade, principalmente quando essa pessoa é uma pessoa negra também, e é uma mulher, e é uma mãe, e é uma pessoa de luta, uma ativista, é signatária de um tipo de violência tão simbólica que é cravejar o rosto de uma senhora negra de bala. Isso é muito triste, para não dizer outra coisa. Mas eu acho que, com isso, a gente pode enfatizar o que é positivo dentro da nossa existência, da existência não só das pessoas de religiões de matriz africana, mas das pessoas que resolveram se aliar à luta antidiscriminatória e antirracista nesses espaços, que são as pessoas que se dão as mãos para lutar por direitos e garantias fundamentais, pelo que a Mãe Gilda disse, pelo direito à liberdade religiosa.
A gente tem ainda outras coisas para lembrar, como, por exemplo, a intolerância religiosa e o racismo religioso em relação às casas de reza e às comunidades Guarani-Kaiowá. Teve, inclusive, uma pesquisa, em 2022, e uma grande assembleia dessas mulheres, a partir do Observatório Kuñangue Aty Guasu - e me desculpem se eu não tiver lido corretamente -, mais a DPU, a Delegacia Regional de Direitos Humanos e o Nupir, que denunciaram incêndios criminosos nesses espaços sagrados de culto de povos tradicionais indígenas. Para além disso, o ex-relator especial da ONU para a liberdade religiosa e de crença, que é o Ahmed Shaheed, afirma, no relatório de 2019, a relação direta entre o respeito à diversidade e à pluralidade religiosa e a garantia da paz e da segurança no mundo. A gente não está falando só do que as pessoas querem individualmente. A gente está falando da possibilidade da manutenção da paz mundial, de todos os espaços conseguirem, com tranquilidade, professar suas fés.
Nós, na Conectas, também fazemos um trabalho que é feito a muitas mãos e isso me deixa muito feliz e grata, mas, sobretudo, orgulhosa, por saber que eu participo de um lugar, que eu faço parte de uma organização da sociedade civil que inclui e que compartilha conhecimento, e, sobretudo, compartilha a possibilidade de a gente dizer o que precisa ou não ser feito. E, com isso, eu quero contar algumas coisas que nós fizemos. Nós fazemos um trabalho de litígio estratégico, mas também um trabalho muito profundo de incidência internacional e, dentro desse trabalho, nós temos alguns parceiros, como o CEN (Coletivo de Entidades Negras), o IDMJR, o IDPN, a Ocupação Cultural Jeholu, entre outros. E fizemos alguns trabalhos, como um relatório relacionado a expor como é a questão da intolerância religiosa no Brasil para o Fórum Permanente de Afrodescendentes e para o Comitê de Eliminação da Discriminação Racial, que tem a sigla Cerd.
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Para além disso, na 51ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, nós compartilhamos um discurso a fim de expor e denunciar questões de discriminação religiosa e violência institucional religiosa por meio da parceria com o Jeholu, a voz do Baba Egbe Felipe Brito de Omolu, que é uma das pessoas que representa politicamente esse espaço e também é uma pessoa velha de santo e de culto tradicional de matriz africana que faz um trabalho sério e profundo relacionado a esse tema.
Com isso, nós entendemos a necessidade de compartilhar conhecimento a partir...
(Soa a campainha.)
A SRA. THAYNÁ YAREDY - Posso continuar falando, Senador?
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Tem um minuto.
A SRA. THAYNÁ YAREDY - Sim, vou ser mais rápida.
Nós fizemos um ciclo de encontros e construímos um e-book que chama Racismo Religioso: novas lentes às violações relacionadas à crescente tensão entre liberdade religiosa e liberdade de expressão e crença, com Criola, Portal Catarinas e Conectas.
Eu só quero reforçar e acredito que é muito importante que a gente tenha oportunidade para além da voz, mas a oportunidade da condução séria, profunda e coesa de espaços que consigam observar e consolidar políticas públicas, consolidar formas de construção de legislação, mas de uma troca institucional entre sociedade civil, organizações e coletivos que consigam fazer com que haja participação social profunda e permanente para a produção real da manutenção da democracia no Brasil.
(Soa a campainha.)
A SRA. THAYNÁ YAREDY - Muito obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Parabéns à Thayná Yaredy, Assessora do Programa de Enfrentamento a Violência Institucional da Conectas, que fez uma bela defesa das propostas encaminhadas e feitas pela Conectas e pela sua visão de combate ao racismo, preconceito e principalmente à violência religiosa que se abate sobre o nosso povo.
Olha, neste momento todos já usaram a palavra por 15 minutos e me pediram mais uma palavra, alguns aqui, mas, nessa altura, se eu abrir, vou ter que abrir para todos. Daí nós vamos amanhecer aqui. Então, vou fazer o registro.
O Sr. Edil Silva pediu a palavra, mas com o objetivo de cumprimentar o Deputado, o Pastor Henrique Vieira. Então, ficam aqui os cumprimentos dele, viu?
Também pediu a palavra e eu registro, neste momento, Elianildo Nascimento, representante do Comitê de Liberdade Religiosa do Distrito Federal. Ele está aqui? (Pausa.)
Está aqui. Então, fica aqui o nosso registro e nossos cumprimentos, porque a gente usa um padrão, o padrão é os convidados. Se a gente abre para o Plenário... tem dias que eu estou aqui com 100, 200 pessoas, aí 10, 20, 30 querem a palavra. Mas, na próxima, pode saber que eu peço à minha assessoria que o convide também, para ele estar entre os convidados para usar a palavra.
Também Mãe Leila Lima, da Rede Nacional da Diversidade Religiosa e Laicidade (Renadir). Está aqui também. Muito bem.
Uma salva de palmas para os dois. (Palmas.)
Sejam sempre bem-vindos.
E agora, pessoal, por dever de ofício, eu tenho que cumprir uma série de questionamentos e opiniões que vieram pelo e-Cidadania. Nem todos estão aqui, mas alguns foram escolhidos para que eu fizesse a leitura.
Rafael Ribeiro, do Rio de Janeiro: "Como serão as ações e instruções a inclusão sobre o respeito de pautas [...] [acerca do pensamento não religioso como o] ateísmo?".
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Leo Byrro, de Minas Gerais: "Os templos e igrejas receberão punições inclusive penais quando fizerem declarações racistas e/ou homofóbicas?".
Alexandre Sieira, de São Paulo: "Que medidas são tomadas para evitar que recursos públicos sejam usados para divulgar mensagens religiosas em violação do Estado laico?".
Petter Kraus, do Rio Grande do Sul: "Em espaços públicos, não é incomum encontrar símbolos religiosos. Não deveríamos deixar sem nenhum, por não poder colocar símbolos de todas?".
Tiago Carneiro, do Rio de Janeiro: "Uma educação religiosa inclusiva, falando sobre todas as religiões [...] não ajudaria a combater desinformação e racismo?".
Ruan Santos, do Maranhão: "No cenário [...] [em] que vivemos, há necessidade de [...] [se oferecer uma disciplina nas escolas a cerca do] combate à discriminação?".
Gustavo Strauss, do Rio de Janeiro: "Não podemos manter o ensino plural da religiosidade como forma de combater o preconceito às demais religiões?"
Marilia Bertolaso, de São Paulo: "[...] Quais medidas [...] [devem ser tomadas para] coibir a perseguição às matrizes africanas?".
E, por fim, Alberto Ricardo, do Rio de Janeiro: "Apesar de ser ateu, respeito as opções de fé. Esse respeito deve ser universal, não se permitindo qualquer preconceito".
O encaminhamento depois das perguntas é o seguinte: temos dois encaminhamentos possíveis, a depender dos nossos convidados. Um seria passar a palavra pelo tempo máximo de três minutos - agora faltam 20 minutos para as 13h, uma da tarde -, seria passar a palavra para cada um dos convidados para que eles possam fazer um comentário escolhendo alguma pergunta ou alguém fazer uma fala final em nome de todos os convidados.
Pelo que percebo aqui e pelo que alguns já me disseram no painel, a votação vai ser que cada um prefere... Nem que ele tenha um minuto ou dois para fazer uma consideração final.
Vamos por aí?
(Intervenção fora do microfone.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Então, está bem.
Vamos lá - o almoço fica para outra hora, nem todo dia a gente pode almoçar no mesmo horário; aqui não se almoça no mesmo horário. (Pausa.)
Vamos lá com a nossa lista maior. (Pausa.)
Olha, prevaleceu a minha... Não, não.
Deputado, pelo que eu percebi aqui você falaria como uma fala geral de encerramento - ele é membro da... Isso eu faço sempre, viu? Por que eu faço uma abertura que vai uns dez minutos. Eu falo ali... Agora, aqui você teria, então, por cinco minutos uma fala em nome de todos os convidados.
Fique bem à vontade.
O SR. PASTOR HENRIQUE VIEIRA (PSOL - RJ) - Eu vou falar menos.
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Eu agradeço a oportunidade de participar, vamos fazer cada vez mais essa incidência aqui no Parlamento.
Chamou a minha atenção a pergunta sobre educação religiosa, esse tema é tão instigante, não vai dar para abrir para debate, mas vou colocar o meu ponto de vista.
Eu entendo que as religiões, atenção à formulação plural...
(Soa a campainha.)
O SR. PASTOR HENRIQUE VIEIRA (PSOL - RJ) - ... devem ser abordadas pelas disciplinas já existentes, história, sociologia, filosofia. Esse é o meu entendimento.
Eu sei que tem bons professores na área com uma perspectiva laica e plural, mas conhecendo a história do nosso país e o privilégio cristão, ensino religioso tem grande tendência de ser apagamento de outras experiências religiosas e reprodução do privilégio cristão. A formulação que eu tenho até hoje é a de que eu acho melhor não ter e, a partir das outras disciplinas, abordar a beleza da diversidade religiosa como um fenômeno cultural presente na história. Eu prefiro essa abordagem, mas não sei se posso falar em nome de todos que aqui compõem a mesa.
No mais, vamos juntos - juntas e juntos - numa agenda antirracista, porque democracia pulsante e verdadeira não combina com racismo, então, uma coisa tem necessariamente a ver com a outra...
(Soa a campainha.)
O SR. PASTOR HENRIQUE VIEIRA (PSOL - RJ) - ... democracia pulsante só com a superação histórica do racismo.
Muito obrigado e um fraterno abraço. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Muito bem.
Esse foi o Deputado Federal Pastor Henrique Vieira, pastor, teólogo, escritor e membro desta Frente Parlamentar Mista Antirracismo, que fez uma síntese em dois minutos, que, eu entendo, olhou rapidamente, nessa sua fala, a maioria das perguntas, porque sintetizou.
Então, encerramos agora.
Antes de encerrar, proponho a dispensa da leitura e a aprovação da ata que será composta pela lista de presença e pelas notas taquigráficas.
As Sras. e os Srs. Parlamentares e convidados que aprovam permaneçam como se encontram. (Pausa.)
Aprovada.
Cumprida a finalidade, agradeço pela presença e declaro encerrada esta reunião.
Antes, quero convocar todos vocês para tirar uma foto aqui na frente porque vai para a minha biografia e para os Anais do Senado. (Palmas.)
(Iniciada às 09 horas e 45 minutos, a reunião é encerrada às 12 horas e 43 minutos.)