Notas Taquigráficas
| Horário | Texto com revisão |
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| R | O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS. Fala da Presidência.) - Havendo número regimental, declaro aberta a 3ª Reunião da Comissão Mista Permanente sobre Migrações Internacionais e Refugiados da 3ª Sessão Legislativa Ordinária da 56ª Legislatura. A presente reunião destina-se à realização de audiência pública sobre o tema "Cais do Valongo, Patrimônio Mundial da Humanidade". Irão participar da nossa audiência, de forma remota, os seguintes convidados: Dra. Mônica Lima e Souza, Coordenadora do Laboratório de Estudos Africanos (LeÁfrica) do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - seja bem-vinda, Dra. Mônica; também o Dr. Milton Guran, Antropólogo Pesquisador vinculado ao Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi) da Universidade Federal Fluminense (UFF) - bem-vindo, Dr. Milton; Dra. Rita Oliveira, Coordenadora do Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União (DPU) - bem-vinda, mais uma vez, Dra. Rita, que tem nos ajudado muito; também o Dr. Sergio Gardenghi Suiama, Procurador da República e Procurador Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro. Amigos e amigas, convidados, telespectadores, internautas, esta audiência pública será interativa, transmitida ao vivo pela TV Senado e todo o sistema de comunicação do Congresso e aberta à participação dos interessados por meio do portal e-Cidadania, na internet, em senado.leg.br/ecidadania, ou pelo telefone da ouvidoria: 0800-612211; poderão interagir. De acordo com as normas regimentais, cada convidado fará a sua exposição por dez minutos; em seguida, abriremos a fase de debate, interpelação, perguntas àqueles que tenham interesse. Também informo que, ao final, aqueles que desejarem fazer uso da palavra devem solicitar sua inscrição por meio da função "levantar a mão" no aplicativo ou registrando seu pedido no bate-papo da ferramenta. Como é de praxe, eu farei uma introdução da matéria que vamos debater. Algumas perguntas que forem chegando eu as farei para os convidados depois da fala de todos. Esta audiência pública foi fomentada pelo Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União, por meio de sua coordenadora, Dra. Rita Cristina de Oliveira, e também por integrantes da comissão de juristas constituída pela Câmara dos Deputados. A audiência tratará da proteção do patrimônio histórico, cultural, material e imaterial da região do Cais do Valongo, no Município do Rio de Janeiro. No dia 28 de maio deste ano, apresentamos o PL nº 2.000, de 2021, para garantir essa proteção. |
| R | A Conferência de Durban destacou a importância de os países que se beneficiaram da escravidão negra reconhecerem as contribuições culturais, econômicas e científicas dos descendentes de africanos e admitirem a persistência da discriminação racial ainda nos dias atuais. O Rio de Janeiro, pela área portuária conhecida como Cais do Valongo, foi a porta de entrada de 60% dos 4 milhões de africanos escravizados que foram trazidos ao Brasil ao longo de quase quatro séculos de tráfico transatlântico. Cerca de 1 milhão desembarcaram na cidade, servindo ainda como o maior porto distribuidor de pessoas escravizadas para outros Estados do Brasil e para a própria América Latina, o que, segundo pesquisadores, lhe confere o título de maior porto escravagista da história da humanidade e o segundo maior porto de origem de navios negreiros depois de Liverpool, na Inglaterra. Em razão disso, o Estado brasileiro tem responsabilidade, internacional inclusive, de ser protagonista em processo de justiça global e de transição para a reparação histórica e cultural à população negra. Sobre a importância do patrimônio arqueológico do Cais do Valongo, em sua dimensão material e imaterial, a arqueóloga Rosana Najjar descreveu ao GTPE/DPU: A arqueologia foi a pedra de toque para o desvelamento, em vários sentidos, do Cais do Valongo do século XXI, [...] como ciência que estuda a trajetória da Humanidade através da sua cultura material confeccionada ou apropriada pelo homem, e a diversidade existente entre culturas reflete diretamente na cultura material de cada uma delas. Sendo assim, os objetos arqueológicos têm diferentes formas e funções de uso prático e simbólico. Ainda segundo a arqueóloga, as diferenças são características da trajetória cultural da humanidade e sua atenta e minuciosa observação permite ao arqueólogo, a partir de sólidas bases teórico-metodológicas, produzir conhecimento sobre o passado e apresentá-lo às sociedades atuais. Entretanto, engana-se quem pensa que a Arqueologia se limita a desvelar a materialidade das coisas ou que magicamente transporta o passado para o presente. O passado passou e não volta mais, o papel da Arqueologia é o de interpretar, a partir de um olhar atual, o contexto dos vestígios de um passado fragmentado e, consequentemente, sempre incompleto. Podemos afirmar, portanto, que a Arqueologia estuda e constrói uma versão atual da trajetória da humanidade a partir da observação do contexto dos artefatos estudados, expondo seus aspectos materiais como também os imateriais. Sendo assim, torna-se fundamental a participação da comunidade nos processos de pesquisa, difusão e preservação do Patrimônio Arqueológico. A pesquisa realizada pela arqueóloga Profa. Dra. Tania Andrade Lima (Museu Nacional/UFRJ) trouxe para a atualidade testemunhos contundentes do cais e uma coleção de mais de 500 mil peças associadas à diáspora africana. |
| R | Esses artefatos arqueológicos merecem, por si sós, atenção especial por nos permitirem o acesso a muitas informações sobre os costumes, a vida cotidiana, o simbolismo religioso e a resistência dos africanos escravizados ao sistema que lhes era imposto. A importância do Sítio Arqueológico Cais do Valongo para a cidade do Rio de Janeiro e para o planeta é inquestionável, tanto que o sítio foi cadastrado como patrimônio ecológico brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2011, Lei 3.924/61, e elevado a Patrimônio Mundial pela Unesco em 2017. O antropólogo Milton Guran, que atuou como membro do Comitê Científico Internacional do Projeto Rota do Escravo, da Unesco, e consultor do Iphan, diz: "Apresentada à Unesco em 2014, essa candidatura foi, sem dúvida, o mais importante ato do Estado brasileiro, no plano internacional, a favor da matriz africana do País desde que o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu desculpas à África, na Ilha de Gorée, no Senegal, em 2005". As trajetórias que dão significado ao Cais do Valongo como patrimônio têm o papel também de lembrar que, assim como toda a beleza e poder da criação, a dor é parte da herança deixada por nossos antepassados africanos. Indo para o final, quando eu recebi essa contribuição para a minha introdução, eu a achei tão interessante que eu resolvi apresentá-la, mas fala muito pouco. Essa dor que atravessa a memória dos descendentes é reforçada pelo racismo e fez do trauma da escravidão um elemento de base na formação de identidades no pós-abolição. Preservar e tornar conhecido esse lugar de memória no Brasil não é apenas uma forma de ressaltar o sofrimento e o sentimento de injustiça trazidos pela nossa história, é investir na resistência e nas lutas que se constroem por meio do conhecimento, além de promover um resgate da força das nossas relações com África, reconhecendo e reparando com justiça o nosso povo. A proteção do sítio arqueológico e seu patrimônio material e imaterial deve compreender um conjunto de ações a serem orientadas e fomentadas pelo Estado brasileiro voltadas à sua conservação e dos imóveis de valor histórico-cultural na zona de amortecimento. Essa proteção também diz respeito à requalificação e promoção do sítio e seu entorno de modo a divulgar o seu valor global excepcional para o público em geral e para o Brasil. Segundo Harriet Tubman, abolicionista que nasceu escrava e conseguiu resgatar mais de mil seres humanos: "Todo grande sonho começa com o sonhador. Lembre-se sempre que você tem dentro de você a força, a paciência e a paixão para alcançar as estrelas para mudar o mundo". |
| R | Agora é com vocês. Eu fiz a minha introdução. Se parei um pouquinho, foi um pouquinho daquela emoção que todos nós temos, não há como não ter. Por isso que, em certos momentos, eu até travava ou mudava a leitura para fazer um comentário... Era para segurar um pouquinho dessa história tão bonita - bonita e triste - e da importância dela. De imediato, dez minutos para cada um dos nossos convidados. Começamos com a Dra. Mônica Lima e Souza, Coordenadora do Laboratório de Estudos Africanos (LeÁfrica) do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). (Pausa.) O seu microfone está fechado. (Pausa.) Enquanto ela abre o microfone... A SRA. MÔNICA LIMA E SOUZA - Muito obrigada. O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Abriu. O.k., Dra. Mônica. A SRA. MÔNICA LIMA E SOUZA (Para expor.) - Olá! É porque alguém havia de abrir meu microfone. Muito obrigada! Excelente fala - excelente fala -, Senador Paulo Paim! Eu também me comovi com as suas palavras e assinaria todas as suas considerações como minhas próprias. Muito obrigada! Começo parabenizando pela iniciativa, parabenizando as organizadoras e organizadores deste importantíssimo encontro, que louvo - louvo muitas vezes. Estamos tratando de um processo que é o mais longo processo de migração forçada da história da humanidade: o tráfico atlântico de africanos escravizados. Ele é fundamental para a formação da identidade brasileira e é fundamental que discutamos sobre o Cais do Valongo, seu entorno e sua importância, porque nos posicionamos como favoráveis ao seu reconhecimento completo e pretendemos uma atitude antirracista - mais do que condenarmos o racismo, como já foi dito, sermos antirracistas com as nossas atitudes. O Cais do Valongo, como foi lembrado pelo Senador Paulo Paim, é um lugar de sofrimento, e por isso ele foi reconhecido como um sítio arqueológico histórico de caráter sensível e se compara, nessa sua qualificação que foi reconhecida internacionalmente e pelo Conselho do Patrimônio Mundial, que o colocou na lista da qual hoje ele faz parte, comparável aos sítios históricos de Auschwitz e Birkenau, na Alemanha, vinculados ao holocausto, e comparado à Robben Island, na África do Sul, na qual esteve encarcerado Nelson Mandela por mais de 25 anos. É um lugar de dor e sofrimento, é um lugar de reflexão, é um lugar também de afirmação, e que merece, por tudo isso, um profundo respeito da nossa parte e do Estado brasileiro, que se comprometeu em preservá-lo e que se comprometeu em tornar esse patrimônio verdadeiramente conhecido no Brasil. A história do Cais do Valongo diz respeito também, como já foi assinalado, à história do Rio de Janeiro, sim, mas à história do Brasil como um todo - o Rio de Janeiro era um porto de entrada e dali partiam esses africanos escravizados para diferentes partes do País -, diz respeito à história das Américas. Os africanos escravizados que desembarcavam no Valongo muitas vezes eram transportados por navegação costeira em direção à América do Sul, à cidade de Montevidéu e à cidade de Buenos Aires. |
| R | Portanto, essa história se desdobra pelo nosso continente, diz respeito à história das Américas negras, todo esse continente que foi povoado por essa migração forçada de africanos para atuarem como trabalhadores, fundamentais na construção da história de todo o continente americano; diz respeito profundamente às áfricas, de onde foram retirados e de onde trouxeram todas estas heranças - heranças materiais, heranças imateriais - em termos de conhecimento, em termos de afirmação, que dizem respeito a toda a humanidade, que não deve esquecer esse longo processo de migração forçada de seres humanos retirados de suas terras e construindo a riqueza, que não foi igualmente compartilhada. Portanto, trata-se assim de uma dimensão realmente mundial. E, quando o Estado brasileiro assume, ele está assumindo também e deve assumir um protagonismo nesse processo, não é? - assumir a sua identidade, a sua própria identidade, e assumir perante a humanidade esse protagonismo, esse lugar de frente. E o Cais do Valongo simboliza todas essas possibilidades. Por isso, ele exige de nós posicionamento. Por isso é que o Cais do Valongo e o seu entorno exigem de nós atitudes, atitudes no sentido de garantir a sua integridade, que é um compromisso que foi assinado por ocasião da apresentação do dossiê de candidatura ao Patrimônio Mundial, no qual estivemos diretamente comprometidos, com o antropólogo Milton Guran, aqui presente, a arqueóloga Rosana Najjar, citada, e o arquiteto José Pessôa, como o grupo que redigiu o dossiê de candidatura. A história do Cais do Valongo desaguou nesse dossiê de candidatura. E algo de que eu gostaria de falar, na reflexão final dessas minhas rápidas palavras, é que o processo de patrimonialização do Cais do Valongo foi um processo que teve uma característica central: ele foi um processo participativo. A comunidade do entorno participou, ela esteve presente, ela recebia, a cada passo de elaboração do dossiê de candidatura, o volume de ideias e de informações, para que pudesse nos dar o retorno e assim seguíssemos elaborando esse dossiê dessa maneira. Esse processo participativo de elaboração de um dossiê de candidatura a Patrimônio Mundial foi, da forma como foi conduzido, inédito no nosso País, reafirmando também um tempo em que acreditamos - e em que acreditávamos - que esse é o caminho para se trabalhar com algo tão importante quanto o direito à história e o direito à memória, direitos inalienáveis dos humanos. E a apresentação do dossiê de candidatura na interlocução, com lideranças dos movimentos sociais, do movimento negro, associações locais e a própria comunidade, conseguiu fazer com que isso desse corpo a esse material, que foi tão bem recebido pelas autoridades internacionais, que desse dossiê extraíram o reconhecimento do cais como Patrimônio Mundial. São essas as breves reflexões que eu trago, e, como sempre, me coloco à disposição, pois sigo pesquisando e trabalhando sobre esse tema. E agradeço o interesse e a atenção de vocês. |
| R | O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - São muitas emoções no dia de hoje, porque essa história é uma história, como eu falava antes, triste, de muita dor, como a Dra. Mônica agora falou, mas que o Brasil tem que ouvir. E ela vai rodar na TV Senado, vai para o sistema de comunicação, na internet. Fiquei também emocionado com a sua fala, viu? Isso é a história negada, que nós estamos colocando, cada vez mais, para não ver - desculpem-me, eu estou falando até demais. Eu vi esta semana quando um senhor jovem, com uma criança de um ano e meio, em São Paulo, foi espancado por dois seguranças, jogado no chão - é aquela velha história do joelho no pescoço -, enquanto a criança berrava - berrava, tenho que dizer - desesperada, gritava. Essa criança nunca mais vai esquecer isso. E as pessoas próximas... Tudo isso passou nos canais todos, e as pessoas dizendo: "Não, não façam isso. Olhem a criança. Esperem, vamos ver o que aconteceu". Felizmente, debates como este ajudam a combater o racismo, infelizmente enraizado, estrutural, e a maldade dos fatos que a gente vê. Mas vamos em frente. Eu quero só registrar - já por questão de que eles já estão, de fato, presentes - a presença do Senador Zequinha Marinho, que entrou conosco já; do Deputado Túlio Gadêlha, que é o Relator desta Comissão e está fazendo um belíssimo trabalho, o nosso querido Relator; e do Senador Mecias de Jesus. Quero também dizer que a Vice é a nobre Deputada Bruna Furlan. Ela e a Mara Gabrilli foram as grandes articuladoras para se criar, inclusive, esta Comissão permanente no Senado. De imediato, passo agora, então, para o Dr. Milton Guran, antropólogo e pesquisador vinculado ao Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi), da Universidade Federal Fluminense (UFF) Dr. Milton, por favor. O SR. MILTON GURAN (Para expor.) - Muito bom dia. Muito obrigado, Senador Paulo Paim. Muito bom dia aos colegas, aos Senadores, Parlamentares. Bom, Senador, em primeiro lugar, eu queria parabenizá-lo pela sua introdução. A sua introdução realmente deu o roteiro de tudo o que nós podemos reforçar aqui. Eu praticamente poderia ficar calado depois da sua introdução e da apresentação da problemática pela minha colega Mônica Lima, mas eu quero aproveitar estes poucos minutos para reforçar alguns aspectos importantes, porque nós estamos dentro de uma luta política. Não é apenas uma questão cultural ou patrimonial. Nós estamos numa disputa política de narrativas centrais da identidade brasileira. O Iphan demorou décadas para reconhecer o Patrimônio Cultural de Matriz Africana e ainda teve, assim, a capacidade de tombar... O primeiro tombamento feito pelo Iphan foi das peças de religiosidade apreendidas pela polícia. Quer dizer, fruto da violência policial, essas peças foram nomeadas como Museu da Magia Negra, para estigmatizar definitivamente a cultura de matriz africana, e assim ela foi conhecida, essa coleção, até entrar no Museu da República, no ano passado. E agora está ressignificada como a Coleção Nosso Sagrado. |
| R | Então, é contra essa narrativa institucional, estruturada com base no racismo em toda a administração pública e na mentalidade de amplíssimos setores da população, que nós nos batemos. Então, eu queria enfatizar que a candidatura do Cais do Valongo a patrimônio mundial foi apresentada ao Comitê do Patrimônio Mundial por um governo inclusivo, e esse governo já respondeu a toda uma ação cultural, social e política da sociedade civil e dos meios acadêmicos. Não foi uma ideia que surgiu do nada. Foram os habitantes da região do Valongo, foi o Movimento Negro, foram as entidades da sociedade civil que se organizaram e que pressionaram junto com a academia para que o cais ficasse aberto à visitação pública, porque eles queriam passar o asfalto em cima, e para que essa candidatura fosse apresentada. Essa candidatura vicejou dentro da Unesco e no Patrimônio Mundial sobretudo porque ela é o principal ato simbólico da Década Internacional dos Afrodescendentes, que a ONU instituiu, de 2015 a 2024. Então, ela fez parte, foi uma ação política articulada para, como disse a minha colega Mônica muito bem, colocar o Brasil na centralidade, com protagonismo central, na discussão da diáspora. E isso porque o Rio de Janeiro, como o senhor disse, é o maior porto escravagista da história da humanidade. O Brasil só existe como nação do jeito que ele é porque contou com a enormidade de braços africanos na sua construção, e nós simplesmente, enquanto país, enquanto Estado, funcionamos como avestruz. Então, a proposta do Cais do Valongo teve esse empuxo transformador, e isso foi absolutamente sabotado; foi sabotado pela administração municipal anterior a esta atual e foi, sobretudo, sabotado pelo governo central, que continua sabotando. A Professora Mônica chamou atenção para o aspecto central mesmo da candidatura, que é a articulação com a sociedade civil e a participação da sociedade civil organizada, da academia e de todos na construção dessa candidatura. Essa construção, essa participação da sociedade civil se consolida numa coisa chamada comitê de gestão, e eu acredito que outras pessoas, a Dra. Rita e o Dr. Sergio, vão tratar disso com mais propriedade no campo jurídico e tudo. Mas eu quero ressaltar que a Unesco estabelece como regra básica de gestão e proteção do patrimônio mundial a participação da comunidade interessada, da comunidade pertencente a esse bem cultural, na sua gestão, através de um comitê de gestão. E, neste momento que nós vivemos, o Iphan, apesar de haver uma decisão judicial para obrigá-lo - e os senhores, Defensora e Procurador, provavelmente vão trazer isso melhor -, apesar dessa decisão, o Iphan insiste em retirar a sociedade civil do comitê de gestão para fazer o que ele bem entende com isso, e está fazendo gestões junto à Unesco. É muito importante que isso seja denunciado. Eu até resolvi incluir isso na minha fala quando o senhor chamou atenção para o fato de que isso seria difundido pela televisão e da importância que isso tem. |
| R | Então, eu acho que esse processo de esvaziamento do poder transformador do Cais do Valongo é o resultado explícito e natural do racismo estrutural brasileiro. Daí a importância do seu projeto de lei, que foi muitíssimo bem recebido por todos nós, porque o senhor reforça uma coisa que, a rigor, nem precisaria reforçar. Existem os compromissos internacionais, mas, em razão da maneira astuciosa, negativamente, que a administração pública e o poder político utilizam para esvaziar esse poder transformador do Valongo, faz-se necessária uma ação importante e contundente, como foi o seu projeto de lei. Eu o parabenizo e lhe agradeço muito. Para concluir - o senhor citou Durban e a Mônica também -, trata-se de um crime contra a humanidade, e esse crime se prolonga no tempo, ele se perpetua nas suas consequências absolutamente abusivas. Então, o Valongo, a candidatura do Valongo, a patrimonização do Valongo é um passo no sentido de reparar isso de alguma maneira. A minha colega foi bastante enfática: é um direito fundamental o direito à memória, o direito à história, o direito a pertencimento identitário. E é esse direito à memória e à justiça da sua trajetória que o Valongo representa. Então, eu acho que é, sobretudo, uma ação de reparação que o Brasil deve a mais da metade da sua população e que só será completa quando nós conseguirmos instituir o Museu Nacional do Valongo, em que toda essa história vai ser ressignificada, vai ser pensada e vai ser apresentada de forma digna, para que mais da metade da nossa população possa realmente sentir orgulho de ter construído esta Nação. E eu vou enfatizar o que a Professora Mônica disse: não é uma questão só da população negra; é uma questão de todos os brasileiros. E quem não é negro?! Eu não sou negro, mas o meu pai era, e assim são todos os brasileiros. Muito obrigado, Senador Muito obrigado pela atenção. O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - (Falha no áudio.) ... Oral e Imagem (Labhoi), da Universidade Federal Fluminense, que coloca, com muita, muita precisão a importância até deste debate aqui, para que o Brasil saiba a verdade dos fatos. Percebi também, na sua fala, aquilo que a gente não sente no Parlamento. É por isso que eu gosto muito de audiência pública. Aqui as pessoas falam com o coração e estão falando o que elas foram convocadas para falar e de causas que elas dominam como ninguém e que muitos sentiram na história pessoal e na dos antepassados, na carne, no sangue, enfim, tudo o que aconteceu para cerca de 118 milhões de brasileiros. |
| R | E quero só terminar com a sua frase, viu? Muitos não entendem que esse debate, essa história, essa construção e esse conhecimento interessam a todos, brancos e negros, a todo o povo brasileiro. Um dia eles vão entender, um dia eles vão entender. Obrigado, Dr. Milton. Dra. Rita Oliveira, Coordenadora do Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União (DPU), que tem nos ajudado muito, porque sobre muitas coisas que nós apresentamos ela pode falar, são sugestões que ela traz para nós. O tempo é seu, Dra. Rita. A SRA. RITA OLIVEIRA (Para expor.) - Obrigada, Senador Paulo Paim. Eu sempre fico bastante emocionada quando estou na sua presença porque V. Exa. tem uma importância muito grande para este País, e acho que as pessoas precisam conhecer mais, com detalhes, a sua trajetória como Parlamentar, porque é de uma contribuição tão absurda que nos emociona realmente. Na Comissão de Juristas da Câmara, nesses meses de trabalho ao longo deste ano, eu tenho visitado alguns projetos de lei e as discussões a respeito desses projetos e me deparo, frequentemente, com os registros da sua atuação parlamentar, e realmente é pouco dizer que V. Exa. contribuiu historicamente para assentar os pilares civilizatórios da nossa sociedade. E eu tenho certeza de que a gente ainda vai ter uma obra que registre todo esse histórico de V. Exa. Eu realmente queria lhe agradecer por isso, da Constituinte ao Estatuto da Igualdade Racial, à Lei de Cotas e a projetos tão importantes como este que a gente está discutindo aqui hoje. Então, eu quero agradecer muito a V. Exa. pela oportunidade de nós estarmos debatendo hoje esse tema que é tão importante para nós - e aqui, quando eu falo nós, eu não só me refiro aos meus parceiros que estão aqui hoje nessa luta, o Milton, a Mônica, o Sergio, mas também às pessoas que estão nessa luta historicamente, nessa luta de resistência, e que estão ali naquele local, naquela região de memória e que são as pessoas para as quais a gente trabalha, o nosso serviço é prestado para elas também. Então, são todos os representantes das entidades e movimentos que são ali da região e que têm lutado também para a preservação dessa história, dessa memória, dessa cultura. Então, refiro-me ao Quilombo da Pedra do Sal, ao Cemitério dos Pretos Novos, à Casa da Tia Ciata, aos conselhos estaduais e municipais dos direitos dos negros, enfim, não vou conseguir falar todos porque o tempo é um pouco curto, mas eu quero registrar aqui que nós não estamos sozinhos, embora tenhamos aqui um momento um pouco limitado de exposição, estamos com todas as pessoas que lutam com a gente para a preservação do cais. Eu tenho pouco a dizer sobre questões históricas porque tudo isso já foi colocado muito bem pelo Milton e pela Mônica, mas a gente sabe que esses remanescentes arqueológicos do sítio do Cais Valongo, que foram ali redescobertos em 2011, durante as obras de reurbanização da Zona Portuária do Rio de Janeiro, têm uma importância fundamental. Durante algo em torno de sete décadas, o cais foi a porta de entrada de quase um milhão de africanos escravizados trazidos ao Brasil, e isso, como já foi dito aqui, lhe conferiu o reconhecimento como o maior porto escravagista da história e o segundo maior porto de origem de navios negreiros depois de Liverpool, na Inglaterra. |
| R | E o espaço ali, Senador Paim, sofreu inúmeras alterações durante o tempo e, em especial, com o fim do tráfico, desenvolveram-se muitas lutas e resistências e formações culturais que tornaram aquele espaço um importante centro urbano que foi nomeado como Pequena África brasileira. O valor desse lugar para a memória, para o reconhecimento da formação da identidade nacional, como a Mônica enfatizou muito bem, para efeito de reparação histórica e cultural da população afrodescendente, é inestimável e único para o Brasil e para o mundo. E é por isso que essa discussão é tão importante. Ali também, é preciso registrar, o primeiro engenheiro negro do Brasil, um dos grandes líderes do movimento abolicionista, André Rebouças, construiu o prédio Armazém Docas Dom Pedro II, para cuja obra ele exigiu que não se empregasse, de forma alguma, mão de obra escravizada. Então, esse prédio, Senador Paim, também guarda uma grande importância simbólica para a memória da resistência do povo negro em sua luta por liberdade. E, não por outra razão, esses vestígios arqueológicos e todos esses registros materiais e simbólicos que compõem a região fizeram com que a Unesco reconhecesse o sítio como patrimônio mundial da humanidade, e isso se deu, como também já foi registrado aqui, depois de um longo e dialogado processo de construção do dossiê de candidatura, que foi finalmente aprovado pelo Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco em 2017. E, em razão disso, o Estado brasileiro assumiu diversas obrigações de proteção, de conservação, de revitalização e de gestão com participação social do cais. Em 2018, depois de um processo também dialogado com a sociedade, foi editada uma portaria que constituiu o Comitê Gestor do Cais, como o Milton se referiu. E esse comitê foi constituído conforme diretrizes da Unesco, com ampla representação social, com atribuições consultivas e deliberativas na gestão do patrimônio. Só que, infelizmente, também como o Milton já enfatizou aqui, em 2019, em razão de um famigerado decreto que extinguiu diversos conselhos e comitês com participação social, o Iphan passou a entender que o comitê estaria extinto. E esse comitê, que mal tinha se reunido, teve então o seu funcionamento abortado, e o Governo brasileiro passou a deixar clara a sua intenção de deixar a sociedade civil de fora da gestão do patrimônio do cais. E, seguindo essa mesma postura, também passou a adotar uma posição de abandono em relação ao patrimônio, tocando projetos de conservação e concepção de revitalização dos espaços, como o prédio Docas, sem o menor apreço aos conceitos de reparação e sem base nas expectativas da comunidade envolvida, sem contar com especialistas em patrimônio afro-brasileiro, em saberes tradicionais e bens de matriz africana, com distorções apontadas por técnicos e, pior, sem observar as diretrizes pactuadas com a Unesco. Então, o Estado brasileiro, através do seu Governo atual, passou a colocar em risco a manutenção do título. No centro desse imbróglio, dessa confusão, nós temos também um contexto ideológico muito hostil à valorização da cultura e da história afro-brasileira, materializada aí, nós sabemos, na figura do atual Presidente da Fundação Cultural Palmares, que insiste em afrontar e aviltar a cultura afro-brasileira. |
| R | Por essa razão, Senador Paulo Paim, a DPU se aliou ao Ministério Público Federal, em especial ao Procurador Sergio, do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, para manejar uma ação civil pública e nos socorrermos do Poder Judiciário para frear essas investidas do Governo Federal, através do Iphan, e conseguimos obter uma decisão liminar que acatou os nossos pedidos e determinou que o Iphan e a União observem as diretrizes pactuadas com a Unesco, estabeleceu que fosse apresentado um plano de gestão, um cronograma de ações e execução do plano, a instalação e o funcionamento do comitê gestor nos moldes pactuados. Mas, como já foi dito aqui também pelo Milton, o Projeto de Lei de V. Exa. nº 2.000, de 2021, seria um reforço muito importante a essa obrigação do Estado brasileiro porque contempla em lei específica diversas diretrizes para a devida gestão do bem e, mais importante que isso, positiva mecanismos de sustentabilidade através da previsão de fontes de recursos. É um grande passo para que a Pequena África e todas as entidades e movimentos culturais envolvidos na região tenham a devida valorização e proteção do Estado, sobretudo para frear esse processo de necromemória que infelizmente nós temos vivenciado tão fortemente. É muito emblemático disso que, mesmo diante de fartos elementos históricos, nós, como já foi dito aqui, sejamos a maior população negra depois da África e não tenhamos um museu nacional da história afrodescendente de mesma magnitude de outras iniciativas do mundo, como de Washington, de Joanesburgo, de Liverpool. A importância, Senador Paim, desses processos judiciais e legislativos que buscam reduzir essa interdição civilizatória em relação à preservação da nossa história reside justamente nas possibilidades de desenvolvimento de um verdadeiro projeto de país - o Milton também já tangenciou essa questão. Esta semana eu vi um vídeo da escritora Chimamanda, numa conferência em Berlim, em que ela defendeu a devolução das peças sagradas dos povos africanos, enfatizando que a memória que tem sido negada a esses povos nos ajuda a vencer a cegueira sobre o nosso passado. E é disso que se trata. Um país sem memória, Senador Paulo Paim, é um país que não reconhece as suas raízes, é um país sem alma, é um país que desconhece as suas entranhas, é um País que não aprende com seus erros e suas atrocidades, que não é capaz de estabelecer laços sólidos de solidariedade com e entre o seu público, que é aprisionado por falsas memórias e por processos miméticos, processos de imitação inventada de uma história que não é a sua, e que nos limites da geopolítica capitalista, fica sempre predestinado a fazer do seu povo uma experiência de terror colonial constante. |
| R | Esta semana nós tivemos a divulgação do relatório da CPI da covid. E isso demonstra o quanto nós precisamos repensar o nosso projeto de País, porque essa lógica de terror colonial constante tem a ver com isso, com o não conhecimento da nossa verdadeira história. Queria agradecer demais a oportunidade de fala, pedir desculpa se eu passei um pouquinho do tempo. E tenho certeza de que o Sergio vai complementar muito bem aí a minha fala. Muito obrigada. O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Eu que agradeço, querida Dra. Rita Oliveira, Coordenadora do Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União (DPU). E, realmente, a história do povo negro é sempre negada. E, olha, não quero levar para mim um pedaço da sua fala, permita-me que eu diga isso, porque, se eu pudesse, eu levaria. Pegaria para mim e botaria na minha biografia, que um dia eu vou escrever, não é? Mas eu percebo que a história de todas as figuras do movimento negro são... Se puder, eles apagam tudo, seja quem for. Até do Abdias querem apagar. Eu fico a dizer que a nossa história é Zumbi lá atrás e muito do Abdias no presente. Porque eu era um menino quando cheguei à Constituinte. Digo um menino, tinha trinta e poucos anos, fui eleito da fábrica para Deputado Federal constituinte. E eu saía da Câmara para ouvir o Abdias. Eu ficava empolgado com a fala daquele homem, como eu digo, de cabelos brancos e com aquela garra, com aquela força. Cheguei a escrever uma poesia: "Abdias, um homem além do seu tempo". É por isso que tudo que vocês estão falando aí, e resgatar nossa história... Eu vou para uma pergunta que vou fazer no final, porque eu não entendi até hoje por que é que acontece isso. Não entendi; eu entendi, mas quero que vocês falem, não é? Mas é uma pergunta que eu vou colocar no final. Enfim, muito obrigado, Dra. Rita, é muito bom saber que nós haveremos um dia de resgatar a história de toda a nossa gente, não é? Nas dimensões adequadas e como deve ser feito. Então, agora, com satisfação, eu passo a palavra para o Dr. Sergio Gardenghi. O Dr. Sergio Gardenghi Suiama é Procurador da República e Procurador Regional dos Direitos do Cidadão do Rio de Janeiro. O tempo é seu, Dr. Sergio. O SR. SERGIO GARDENGHI SUIAMA (Para expor.) - Bom dia a todas e todos. Bom dia, Senador. Gostaria de saudá-lo inicialmente pela iniciativa desta audiência e também do projeto de lei. Queria saudar e dar um abraço virtual grande nas pessoas aqui dessa Mesa, que são colegas, militantes e pessoas muito relevantes nessa causa - não é, Professora Mônica Lima, Professor Milton Guran, minha colega Rita Oliveira? -, também aos Parlamentares aqui presentes, virtualmente também, nesta audiência. |
| R | Bom, eu sou responsável, no Ministério Público Federal, por acompanhar, em um inquérito civil, as ações do Estado brasileiro referentes ao Cais do Valongo. Eu já acompanho este assunto, este inquérito há sete anos - é um procedimento de acompanhamento. Então, já estamos, há sete anos, neste inquérito, nesta luta pela conservação e pela valorização do Cais do Valongo como patrimônio mundial. É importante ressaltar que nessa condição de patrimônio mundial da Unesco... Ele foi incluído na lista de patrimônio mundial, e, portanto, o Estado brasileiro, ao pleitear a candidatura e a Unesco reconhecer o Cais do Valongo como patrimônio mundial, se comprometeu a um conjunto de obrigações internacionais junto ao órgão do Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco. Infelizmente - esse reconhecimento foi feito em 2017 -, nesses últimos quatro anos, é necessário reconhecer que não houve por parte do Estado brasileiro o cumprimento devido das obrigações assumidas, então, junto à Unesco. Eu queria ressaltar, rapidamente, cinco pontos. Eu acho que a minha contribuição para esta audiência e para o projeto de V. Exa. é apresentar cinco pontos que dizem respeito, então, aos problemas que hoje nós vivenciamos aqui no Rio de Janeiro em relação à gestão e à conservação desse importantíssimo sítio de consciência, sítio de memória da herança da diáspora africana. Bom, esses cinco pontos, então, são: primeiro, problemas de conservação do sítio. O sítio não está devidamente... Não é feita a devida limpeza desse sítio. Não há hoje - quem for até lá hoje vai verificar - nenhum tipo de iluminação especial. A iluminação toda é voltada para a rua e não voltada para o sítio. A última placa foi vandalizada. Colocaram uma placa hoje... A única informação sobre o sítio hoje é uma placa de plástico, muito malfeita ali, com poucas informações e que, realmente, não faz jus a um patrimônio mundial. Se a gente for ao Coliseu, de Roma, ou ao Panteão ou a qualquer outro desses sítios, certamente a gente vai obter muito mais informação e muito mais conhecimento sobre esse sítio do que propriamente o que acontece no Cais do Valongo. O segundo problema diz respeito ao acervo arqueológico. São 1,3 milhão de peças hoje desse acervo que foram resgatadas em 2011. Então, já são dez anos que se passaram e esse acervo arqueológico, infelizmente, ainda não está disponível para pesquisa. Então, vejam, nós perdemos já dez anos de pesquisa acadêmica por conta da inação da Prefeitura e por conta da inação do Governo Federal em relação a esse patrimônio arqueológico. A Prefeitura deveria ter feito um laboratório aberto de arqueologia urbana e esse laboratório aberto não foi feito. Essas peças estão acondicionadas e agora estão sendo transferidas para o galpão Docas André Rebouças e, certamente, irão aguardar mais alguns anos até que sejam disponibilizadas. Um pequeno acervo dessas peças foi transferido para a UERJ e está disponível para a pesquisa, mas isso só aconteceu este ano. Então, nós perdemos dez anos de pesquisa importantíssima desse acervo arqueológico de 1,3 milhão de peças resgatadas na região, contando, então, a história material e imaterial dessas pessoas escravizadas que aqui chegaram no século XVIII, século XIX. O terceiro problema diz respeito ao Centro de Interpretação do Cais do Valongo. A minha colega Rita já mencionou que nós entramos, em 2018, com uma ação civil pública para obrigar o Estado brasileiro a instalar o Centro de Interpretação do Cais Valongo naquele local, em conformidade com o que diz a deliberação da Unesco. |
| R | Passados três anos, nós verificamos que ainda não houve sequer a posse formal do imóvel por parte da União. A ONG Ação da Cidadania, que ocupa hoje o imóvel, está de saída, e, então, a União vai tomar posse agora desse imóvel, que foi construído pelo engenheiro André Rebouças sem mão de obra escravizada, e, a partir daí, está sendo feito esse processo de reforma. Como a minha colega Rita disse, está sendo feito um projeto de... Foi contratada pelo Iphan a elaboração de um projeto executivo de reforma do imóvel, mas esse projeto ainda não foi concluído e foi feito sem nenhum tipo de participação ou de escuta da sociedade civil em relação a esse projeto, que altera a própria configuração desse imóvel, também tombado, projetado pelo André Rebouças. Então, estamos cobrando que não há recursos hoje assegurados, nem em âmbito federal, para a continuidade sequer dessas obras que estão sendo então projetadas. Então, não se tem garantia de que será feita uma licitação breve para a reforma desse imóvel. Então, serão mais anos que nós vamos aguardar, certamente, para que haja a instalação do Centro de Interpretação do Cais Valongo. O quarto ponto diz respeito aos benefícios do patrimônio mundial para a comunidade. A Unesco determina que todos os bens integrantes do patrimônio material e imaterial reconhecidos pela organização internacional devem ser geridos, conservados e valorizados de forma a garantir o benefício cultural e o benefício econômico para a comunidade do entorno. Infelizmente, nós também verificamos que não há nenhum tipo de medida pública hoje, em âmbito federal ou em âmbito local, que busque garantir a partilha adequada do valor econômico e do valor cultural gerado pelo bem integrante do patrimônio mundial. Então, é preciso também que haja algum tipo de medida voltada para essa partilha adequada do patrimônio mundial da Unesco. E, por último, nós temos esse grave problema de gestão, que está por trás, talvez, de todos esses outros problemas. Nós temos, hoje, esse grave problema de gestão, ou melhor, da falta de gestão. Não há, hoje, um órgão responsável por gerir o patrimônio mundial do Cais do Valongo. Essa gestão deveria ser feita por um comitê de gestão, que, como a Rita disse, foi criado em 2018, reuniu-se duas vezes e, depois, em 2019, foi extinto unilateralmente por um decreto presidencial. Nós ingressamos com essa ação civil pública. Duas semanas atrás, nós tivemos uma audiência de conciliação. Durante quatro horas houve debates, e a posição do Iphan, infelizmente, é uma posição lamentável em todos os aspectos, na medida em que busca mudar a regra acordada com a Unesco no meio do jogo. Já depois de garantido o título, eles querem então alterar a regra e negar - isso, para nós, é o mais grave - a participação da sociedade civil nesse comitê gestor. Eles querem reformular esse comitê gestor de forma a excluir qualquer tipo de participação da sociedade civil. Isso, além de não ser correto do ponto de vista técnico, é ilegal na medida em que implica justamente uma modificação unilateral de um compromisso assumido com uma organização internacional por ocasião do reconhecimento do Cais do Valongo como patrimônio mundial. |
| R | Ontem mesmo, saiu a decisão da Justiça ordenando que o Iphan reconstitua o comitê em 30 dias, o Iphan tem mais 60 dias para apresentar um cronograma de trabalho a respeito das outras obrigações relacionadas à Unesco e 180 dias para apresentar um plano de gestão do bem, que também não existe. Então, não há comitê gestor e não há plano de gestão. A falta desses instrumentos, que são os instrumentos legais determinados pela legislação patrimonial a respeito desses bens, conduz a esses outros problemas que nós estamos verificando de conservação, de falta de acesso ao acervo arqueológico, de falta de centro de interpretação e da falta dessa partilha econômica do valor cultural por parte da comunidade. O Ministério Público vai continuar lutando, incansavelmente, aqui no Rio de Janeiro, para o cumprimento das obrigações assumidas junto à Unesco, não só porque nós reconhecemos como uma obrigação legal do Estado brasileiro, mas também porque nós reconhecemos o valor cultural inestimável de um bem como o Cais do Valongo, que é não só um ponto de chegada de quase 1 milhão de pessoas escravizadas, mas também um ponto de partida dessas pessoas escravizadas, que constituíram a nossa sociedade e que constituíram, então, a identidade brasileira como uma identidade formada também pela contribuição intelectual e da mão de obra de toda essa população africana escravizada que produziu a cultura da diáspora. Muito obrigado pelo convite. Estou à disposição para debater outros aspectos. Muito obrigado. O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - (Falha no áudio.) ... Procurador da República e Procurador Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro. V. Exa., inclusive, traz uma série, eu diria, até de denúncias da gravidade da falta de organização, de investimento, de cuidado com esse patrimônio, que é um Patrimônio da Humanidade. Eu acho que nós teríamos que, uma hora dessas, ver algo via - eu me disponho a ajudar no encaminhamento - Comissão de Direitos Humanos ou via esta Comissão que eu presido agora, a de refugiados, migrantes e imigrantes, para nós tentamos aprovar, inclusive, alguma emenda parlamentar coletiva para que ela vá para o Orçamento, para tentar contribuir nesse sentido. Percebo que muitos movimentos para outras áreas são feitos, mas, quando é para a cultura negra, para a história do povo negro, para manter viva a chama da liberdade mediante a dor de um passado, tudo é dificultado, mas eu me disponho, com a Dra. Rita, que está mais lá, enfim, com todos os senhores e senhoras que estão aqui, a tentar ver no que a gente pode contribuir. Agora, com alegria, eu vi o nosso querido Deputado Federal Relator desta Comissão, um cidadão engajado nesta luta. Eu estou muito feliz, Túlio, por tudo que você tem proposto na Comissão, de convocar, inclusive, o Ministro de Relações Exteriores em relação à questão dos refugiados e reuniões como esta - mais duas que você já programou. Eu já disse, inclusive, que, se depender de mim, eu farei a abertura, mas você vai presidir essas reuniões, porque, assim, estamos ampliando com certeza o trabalho do Túlio, o trabalho da Mara Gabrilli, o trabalho da nossa querida Bruna Furlan, que é a nossa Vice-Presidente, e de outros Senadores que estão colaborando. |
| R | Túlio, a palavra agora é sua - senão, daqui a pouco, eu estarei falando por você aí. O SR. TÚLIO GADÊLHA (PDT - PE. Como Relator.) - Senador Paim, primeiro, eu agradeço a sua presença aqui, a sua Presidência nesta Comissão tão importante para o Brasil. A cada dia mais, eu vejo o quanto é importante esta Comissão, o quanto é importante a gente se aprofundar nesses debates, nessa pauta. Não adianta a gente discutir a questão da migração para hoje apenas. A gente precisa olhar para o futuro, mas também mudar, na nossa sociedade, a forma como a gente tem olhado para o passado. Discutir temas como este é justamente isto: a gente mudar essa perspectiva de olhar que nós temos para o nosso passado, para os erros que cometemos, para que nós não possamos cometê-los novamente. Eu fico decepcionado com o poder público municipal, estadual e federal, quando vejo que não parte do poder público o exemplo que poderíamos dar à sociedade. Eu fiquei estarrecido com a fala do Dr. Sergio aqui. E quero agradecer também aos demais convidados - a Dra. Mônica Souza, o Dr. Milton, a Dra. Rita Oliveira. Eu quero dizer, Paim, que a gente, nesta Comissão, vai ter muito trabalho. E a gente precisa depois discutir para prorrogar os trabalhos desta Comissão, se for possível. Nós estamos planejando apresentar outro relatório agora, no final do ano - está dentro do nosso planejamento -, mas, de fato, precisamos ouvir muita gente ainda para construir um trabalho amplo. Eu queria, antes de concluir esta breve participação aqui, Senador, dizer que, da mesma forma que o Senador corria para assistir à fala do Abdias Nascimento, no final dos anos 80, início dos anos 90, hoje somos nós que corremos para ouvi-lo, com muito orgulho. E queria dizer aqui também que são poucas as Comissões em que eu fico até nervoso na hora de falar, porque aqui eu sei que há a sua presença, que intimida a todos nós jovens Parlamentares, mas intimida no bom sentido, pelo que você representa hoje para o Parlamento brasileiro. Então, Paim, eu queria deixar isso bem claro aqui. Todas as vezes em que eu venho fazer uma fala de improviso, eu me atrapalho aqui quando vejo o Senador Paim, mas é dizer, de coração, que é uma figura que nos inspira e que tem muito a inspirar ainda os jovens brasileiros que sonham em ocupar uma cadeira no Parlamento. Obrigado. O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Meu querido amigo, eu diria, Deputado e Relator desta Comissão, Túlio Gadêlha, é claro que você fala com o coração - disso eu gosto, Túlio! Deixe de lado muita coisa e fale com o coração! Você assim se expressou, mostrou as suas preocupações e a importância desta Comissão. É uma Comissão que a nossa querida Bruna Furlan presidiu, mas, devido à pandemia e ao fato de que depois ela teve bebê, praticamente eu assumi, com o apoio do Túlio. Há dois meses que nós estamos, não é, Túlio? Eu estou como Presidente, e a Bruna, então, disse: "Olhe, agora, eu vou para Vice". O que o Túlio está lembrando é nós ampliarmos para o ano que vem, sendo que o nosso mandato, em tese, termina no fim do ano. E nós sabemos que temos muito, muito por fazer. Fizemos o que deu nesse período, mas temos muito, muito por fazer ainda, com a importância desta Comissão. Eu queria agradecer muito a você, Deputado Túlio Gadêlha. Você é uma das referências da nossa juventude. A gente sempre fala que o futuro do Brasil está nas mãos da juventude e que o futuro é amanhã. Eu digo aos jovens, como você, e a tantos outros que estou vendo que estão chegando que o futuro não é amanhã, que o futuro é hoje, pelo trabalho de transformação que a gente pode fazer. |
| R | Túlio, fique tranquilo no momento em que você fala, na presença de todos esses ícones aqui - todos são ícones já - desta luta que nós estamos trazendo ao palco, porque você fala igual a nós ou até melhor do que nós. A sua expressão, nesse improviso, foi qualificadíssima. Então, estamos felizes que você conseguiu entrar e deu uma bela contribuição. A gente lembra sempre que há um momento de algumas perguntas, devido ao nosso tempo aqui. Então, eu vou passar a algumas perguntas que eu recebi - são seis perguntas -, e vocês decidem se vão responder ou se vão usar os cinco minutos para fazer suas considerações finais. A gente programa para levar a reunião até o meio-dia - está mais ou menos calculado. Então, primeiro, eu vou ler as perguntas. Renan Torres, do Paraná: "Quais são as medidas efetivas que estão sendo tomadas para a preservação de patrimônio [desse patrimônio]?". Então, ele está mostrando preocupação e queria saber isso de nós todos - podemos ver nos encaminhamentos, inclusive, no final. Geova Chagas da Costa, de Minas Gerais, faz duas considerações, que, na verdade, são muito mais um apoio à luta de todos nós. Ele diz: "Parabéns pela atenção dada a este patrimônio inestimável". Depois, há outra consideração que ele também faz: "A preservação do Cais do Valongo é primordial para a preservação da nossa história". E há mais duas que me chegaram aqui - vieram pelo WhatsApp - e de que eu tomei nota. Eu vou falar devagar para vocês poderem anotar - falei muito rápido até. Uma: "Qual é a importância da história para o Brasil e para o mundo [dessa história que nós estamos aqui falando neste momento, que é uma das tantas histórias]?". Eu digo: um dia eu vou querer discutir também - por que não dizer? - a chaga do Almirante Negro João Cândido. Eu vou querer discutir a chaga de todos de que nós já falamos aqui e que são referências para nós, mas que ficam meio escondidos. Há muitos nomes que nós poderíamos discutir, perguntando: por que esses nomes nunca foram lembrados para estar entre os Heróis da Pátria? Porque não. Alguns eu lembrei. Esta aqui acho muito interessante - e eu falei que ia fazer antes, ela havia chegado... E eu estou sempre com ela, digamos, na ponta da língua, mas não sei como fazer esta coisa acontecer. Ela fala da Lei 10.639, de 2003 - já é lei -, alterada pela Lei 11.645, de 2008, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-brasileira e Indígena", a ser contada na sala de aula, e aqui também ela quer saber como é que essa história deve ser contada, porque tem que estar lá o Cais do Valongo. |
| R | Aí vem algo que eu deixo para a reflexão de vocês - quem puder responda. Eu tenho clareza na minha cabeça, sinceramente, com os anos de vida já. Quando eu viajo no tempo e vou lá para o meu tempo de colégio... Tudo bem que eu era presidente de grêmio, presidente da sala de aula, presidente de tudo, de ginásio noturno para trabalhadores, tudo isso eu fui. Agora, por que a verdadeira história cultural afro-brasileira e indígena não é contada na sala de aula? As informações que eu recebo ainda, no momento, são de mais ou menos 20% a 30%, no máximo, de escolas no Brasil que aprofundam este tema, para contar a verdadeira história. O porquê até nós sabemos - e vocês também sabem -, mas eu queria ouvir de vocês, enfim, o que nós podemos fazer, porque isso já é lei. É só aplicar e fazer acontecer. Eu sempre digo que é a educação que faz a grande transformação - e não sou só eu, todos nós dizemos -, mas começa lá do jardim de infância. É impossível que o cara nunca tenha ouvido a história dos negros, dos indígenas na formação do povo brasileiro, se forma advogado, doutor, e não sabe nada disso. Essa história, para mim, deve ser contada do jardim de infância à universidade, dentro da pontuação adequada. Há que se falar desses temas. Obrigado, Dr. Milton, que... Eu falei de coração aquilo que está dentro de mim, porque, em todo o tempo em que eu estudei - e eu cheguei a entrar na universidade -, nunca vi nada da verdadeira história do povo negro e indígena também. O indígena, na história que contaram e que não preciso repetir aqui, era considerado preguiçoso, e o negro, muito rebelde, porque fugia e ia para os quilombos, aquela história toda. Bom, tinha mais é que fugir, não é? Se eu tivesse lá, eu sou rebelde agora, calculo naquele período. Eu quero só que contem a verdadeira história, mais nada. E alguém diz: "Há que se contar, então, a verdadeira história do italiano". Que contem, meu Deus do céu! Alguém é contra aqui que se conte a história do povo italiano? Ninguém é! Do polaco, de sei lá, do japonês, mas não escondam a história do povo negro na formação do povo brasileiro! Por isso, eu vou terminar com isto aqui, aqui é quase a minha fala. Ontem, me perguntaram por que, no Congresso em Foco, havia tão poucos negros e negras premiados - um ou outro. Eu estava lá, claro, todos os anos, estou lá; fui um dos premiados. Houve uma índia e também, se não me engano, uma mulher negra. Por que tão poucos, num universo tão grande de prêmios? Eu digo: o culpado não é o Congresso em Foco, é que não há negros e negras no Parlamento, com raras exceções! Por que eu falo isso? Pela importância da participação política, de termos mais Vereadores, Prefeitos, Senadores, Deputados Federais. Fica, aqui, a minha homenagem ao Congresso em Foco. Bom, se não há, como é que eles vão premiar quem não está lá? O problema vem da origem do debate cultural que nós estamos fazendo aqui, para mudar este quadro de termos mais negros e negras no Parlamento e no próprio Executivo. Por fim, a última pergunta: "Existem algumas pesquisas dos impactos econômicos e financeiros que o reconhecimento do Cais [que estamos aqui discutindo] como Patrimônio da Humanidade trará para a economia, para o turismo local?". Enfim, há algum estudo, de que vocês possam falar, nesse sentido? Essas são as principais perguntas. Há mais, mas eu quero deixar o tempo agora para vocês falarem. Se quiserem cinco, são cinco. Depois, no encerramento, já podem fazer a sua despedida. |
| R | Se tiverem que usar dez, vão usar dez. É um assunto que emociona a todos nós e é gratificante, porque isso vai ficar nas redes sociais. Esta audiência de hoje é daquelas que têm que entrar para a nossa história. Voltaremos de novo à lista dos nossos convidados. Como eu sempre faço, Dr. Sérgio, os últimos são os primeiros e os primeiros são os últimos. Então, agora, nós vamos para o Dr. Sergio Gardenghi, para que ele faça os seus comentários, responda a alguma pergunta que ele entender, e aí depois eu faço um pequeno encerramento de um, dois minutos. Dr. Sergio Gardenghi, com o senhor. O SR. SERGIO GARDENGHI SUIAMA (Para expor.) - Pois não, Senador. É ruim ser o primeiro, não é! Eu só fiquei pensando um pouco em relação a este ponto - eu não sou historiador, e temos aqui a Professora Mônica Lima -, da importância histórica desse sítio arqueológico. Eu acho que é muito importante lembrar que é o único sítio arqueológico que representa, nas Américas, em todas as Américas, a chegada das pessoas escravizadas, de africanos escravizados. É o único vestígio material que nós temos de um porto de chegada aqui nas Américas. Então, só esse fato me parece que já dá a ele uma importância fundamental, como um lugar de memória, especialmente considerando que, no caso do Cais do Valongo, o Cais do Valongo foi o principal porto de chegada, em todas as Américas, de pessoas da África, no século XIX. Isso dá a ele uma importância histórica - e quem sou eu para falar diante das pessoas, diante da professora e tudo?! -; isso dá a ele, segundo a própria Unesco, uma característica única, simbólica e fundamental. Como eu disse, a gente estava fazendo esse seminário ontem - eu acompanhei também com a professora esse seminário sobre musealização da diáspora e tudo -, e me parece que tem um caráter simbólico muito grande, pelo fato de ser um cais, pelo fato de ser um porto, porque, como eu disse, na minha primeira intervenção, esse porto é um ponto de chegada de muitas histórias, de pessoas que sofreram uma violência profunda e um crime contra a humanidade: o fato de terem sido retiradas da sua terra, escravizadas e vendidas como coisas, levadas a um outro país, misturadas suas línguas, e tudo isso com o intuito comercial. Mas, também - esse eu acho que é o grande caráter simbólico do porto, do cais -, ele é um lugar de partida, no sentido de que, a partir dessa chegada, novas histórias foram criadas, histórias da diáspora e histórias que ressignificaram muitas coisas e que serviram, então, para a formação da nossa cultura afro-brasileira e da cultura brasileira. E, particularmente essa região, a região da Pequena África, é uma região - o senhor sabe melhor do que eu - fundamental do ponto de vista da cultura imaterial, do patrimônio imaterial da cultura afro-brasileira. Não por acaso, lá é onde nasceu o samba, pelo menos o samba carioca. O samba da Bahia... Mas pelo menos o samba carioca nasceu naquela região. Então, eu acho que em tudo isso, quando a gente passa a trabalhar e a estudar sobre esse assunto, a gente percebe que há um significado simbólico, muito além das pedras pisadas ali do cais que formam esse sítio arqueológico. Eu acho que é isso que motiva muito a atuação do Ministério Público para além da nossa atribuição; para além não, mas como parte da nossa atribuição jurídico-constitucional de defesa do patrimônio material e imaterial brasileiro e afro-brasileiro. |
| R | Então, eu só queria fazer essa pequena observação, saudar o Deputado Túlio Gadelha. Já tive oportunidade, também, de participar de outras audiências com ele. A militância e a atuação sempre muito competentes nessas questões e em outras de direitos humanos. Muito obrigado. O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco/PT - RS) - Parabéns, Suiama, que é Procurador da República e Procurador Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro. Sem querer, deu uma pinceladinha no João Cândido, quando lembrou as pedras pisadas do cais, aquela música cantada pela Elis Regina. O SR. SERGIO GARDENGHI SUIAMA - Exatamente. O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco/PT - RS) - A ele só restaram as pedras, uma homenagem às pedras pisadas no cais. É um debate que estou travando no Congresso. Eu trato isso em alto nível, é não negar a história. Como algum de vocês já falou, houve em outros países a luta contra a escravidão. Por que não lembrá-la? Alguém quer manter... Ele foi o líder da Revolta da Chibata. Foi a luta dele que acabou com a chibata em cima dos marinheiros. Por que não reconhecer isso e não fazer a justa homenagem? É vida que segue, não é? Não vamos conseguir ressuscitar os nossos heróis do passado, mas pelo menos não vamos negar a história. Como eu diria aqui no meu Rio Grande - permitam-me essa frase: a história dos lanceiros negros é uma história linda, de sofrimento, dor e massacre, mas é proibido falar. Você não pode falar nos lanceiros negros no Rio Grande do Sul. Bom, vamos em frente porque esse é um assunto para uma outra audiência pública. Passamos de imediato, agora - seguindo a orientação de que eu havia falado, de inversão -, à Dra. Rita Oliveira, coordenadora do Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União (DPU). A SRA. RITA OLIVEIRA (Para expor.) - Obrigada, Senador. Vou tentar ser precisa aqui no tempo e responder a algumas perguntas. A primeira pergunta que eu anotei aqui é sobre as medidas de preservação do patrimônio. Como o Sérgio colocou na sua fala primeira, a gente tem um problema histórico de não realização de medidas de preservação em várias esferas - municipal, estadual e, sobretudo, na esfera federal. O que nós estamos fazendo, agora, através dessas ações judiciais é justamente tentar fazer com que essas medidas sejam cumpridas e que, inclusive, sejam objeto de um planejamento, conforme já pactuado pelo Unesco e que esse planejamento seja monitorado judicialmente, com um cronograma de ações, com a apresentação do plano de gestão e, sobretudo, com o funcionamento do comitê gestor. O que temos até hoje são medidas muito precárias e que, efetivamente, como o Sérgio colocou, não dão conta da preservação do patrimônio A segunda pergunta é: qual a importância para o Brasil e para o mundo? Bom, isso também já foi tangenciado aqui, tanto pela Mônica quanto pelo Milton; o Sérgio acabou de falar novamente. É uma importância única. A própria Unesco reconhece como um sítio arqueológico único. Por conta disso, o nosso medo, o nosso receio, com relação a essa política hostil, é o de que a gente tenha uma perda inestimável com essa postura de abandono e, inclusive, de destruição mesmo dessa memória material e imaterial. |
| R | Então, é muito importante que a gente neste momento agora tenha um olhar vigilante para as questões que estão sendo postas no Judiciário em relação à proteção do Cais do Valongo. Nós sabemos que a União já está junto com o Iphan manejando um recurso em relação a essa decisão liminar que nós obtivemos. Nós tivemos uma audiência muito dura de tentativa de conciliação em que a postura da União e do Iphan foi extremamente hostil à participação social, estão tentando realmente mudar a pactuação no curso das obrigações que deveriam estar cumprindo, e isso revela um problema de fundo que é ideológico no sentido de negar a história afro-brasileira, no sentido de negar o valor dessa história. E nós precisamos resistir a isso, porque são obrigações, como nós sempre dizemos, do Estado brasileiro - não são obrigações de um governo ou de governos locais, são obrigações do Estado brasileiro - e elas precisam ser cumpridas, estão pactuadas internacionalmente, estão protegidas não só pelo pacto com a Unesco em si, mas por outros pactos internacionais a que o Estado brasileiro se obrigou. Inclusive, eu queria até, no ensejo dessa pergunta, provocar aqui a Comissão para um problema em relação à Convenção Interamericana Contra o Racismo, porque nós não tivemos ainda a devida promulgação pelo Presidente da República; embora tenha anunciado a ratificação, nós não tivemos a prorrogação. E mais do que isso: tanto o Ministério Público Federal quanto a DPU instaram o Ministério das Relações Exteriores para que informasse sobre essas tratativas, inclusive pela indicação de uma entidade, de uma instituição que faria o controle das obrigações da convenção e não obtivemos resposta. Então, fica aí também uma sugestão de requerimento de informações ao Ministério das Relações Exteriores em relação a isso, porque isso é muito grave. Em relação aos impactos econômicos para o turismo e para a atividade econômica na área, é inegável que a gente teria impactos econômicos muito importantes e que seriam salutares para o Brasil, especialmente neste momento de recuperação que nós esperamos ter pós-pandemia. Então, o turismo histórico-cultural é um turismo que cada vez mais cresce no mundo inteiro, e integrar essas iniciativas no Brasil, que deveriam estar sendo objeto de extrema prioridade pelo Governo Federal, seria fundamental para a gente ter uma recuperação econômica, especialmente na atividade para o turismo e em todas as atividades que estão no entorno do turismo. Então, a valorização do Cais, a revitalização e a implementação de projetos de memória naquela área seriam algo fundamental para a recuperação da economia do País. Por fim, em relação à Lei de Diretrizes e Bases da Educação, nós entendemos que um projeto robusto de memória histórica e cultural na região do Valongo seria um instrumento muito importante para a implementação da Lei de Diretrizes e Bases no que toca ao ensino de história e cultura afro-brasileira, porque seria capaz de disponibilizar projetos educativos e culturais presenciais e de multimídia a respeito da temática para estudantes da educação básica e para a sociedade em geral. Além disso, seria possível: propiciar a criação de um espaço singular para auxiliar as escolas de ensino fundamental e médio sobre a cultura e história afro-brasileira e indígena também, em conformidade com a Lei de Diretrizes e Bases; fornecer ferramentas conceituais, acadêmicas, pedagógicas, que também entendemos que seriam muito importantes para o ensino e aprendizagem desses temas; promover a formação e capacitação dos professores, dos docentes, dos intelectuais para incorporar o estudo da escravidão e da contribuição histórica e cultural negra nas instituições educacionais e, em especial, no que toca, como já foi dito aqui, à pesquisa científica, porque todos esses achados arqueológicos têm um potencial enorme de trazer aí um centro de referência internacional para estudos sobre o tráfico transatlântico, a escravidão e a diáspora africana e, portanto, contribuir enormemente para a história e cultura africana e afro-brasileira. E, por fim, um projeto de museu nacional, como o Milton colocou, que também é uma luta nossa - o Senador sabe disso -, promoveria aí um intercâmbio com outros países e com entidades internacionais, por meio do Ministério das Relações Exteriores e com o apoio de organismos internacionais, em especial a própria Unesco, para realizações de pesquisas, estudos e eventos relativos à história e à cultura dos povos negros. |
| R | Por fim, Senador Paulo Paim, eu acho que a importância, enquanto projeto de país, do reconhecimento da nossa identidade nacional é fundamental, como já foi dito aqui. Eu coloco até um exemplo pessoal. Foi estudando a história do Valongo que eu comecei a buscar registros da minha história familiar. Eu sou de uma família de pessoas negras, que, enfim, tem uma história de vivência ali na região de Rocha Miranda, no Rio de Janeiro, e foi vendo esses processos migratórios ali em torno e a partir da pequena África que eu comecei a reconhecer muitos registros culturais que eu via na minha família, quando eu estava crescendo, na minha infância, e vendo e sentindo. Então, isso é o poder transformador de espaços de memória, que é no sentido de nos aproximar da nossa história, interditar essa cegueira sobre o nosso passado que nos é imposta a partir de histórias inventadas, histórias fetichizadas, inclusive, da população negra. Então, é muito importante também para a formação de todos nós, inclusive para enfrentar o racismo na sua poderosa estrutura, o racismo que se dá nas pequenas relações, nas grandes relações, nas relações institucionais. Esse projeto realmente tem uma importância fundamental para nós enquanto sociedade. Eu agradeço muito e espero que não tenha passado muito do tempo. E quero, mais uma vez, agradecer a V. Exa. pela oportunidade e dizer que é realmente uma oportunidade inestimável poder colaborar com o seu mandato num projeto tão importante como esse. E conto aí com a sua força de sempre para a gente continuar nessa luta. Muito obrigada. O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Eu que agradeço, Dra. Rita Oliveira, repito, Coordenadora do Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União (DPU), que, a exemplo, inclusive, do Dr. Sergio Gardenghi, deixou aqui uma série de contribuições de encaminhamento, que nós estamos compilando, tudo, depois da audiência, para fazer os encaminhamentos adequados. E responderam a grande parte das perguntas. Muito, muito obrigado. |
| R | Passo a palavra agora ao Dr. Milton Guran, Antropólogo e Pesquisador vinculado ao Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi) da Universidade Federal Fluminense (UFF). O SR. MILTON GURAN (Para expor.) - Muito obrigado, Senador Paulo Paim. Bom, com relação à importância da história, da questão do ensino da história da África e da cultura afro-brasileira, eu não vou me atrever a dizer nenhuma palavra, porque nós temos o privilégio de contar com uma das maiores especialistas no assunto aqui. Então, eu me encolho e aguardo a Professora Mônica falar sobre isso. Vou me atrever apenas, nesse mesmo campo, com relação à história do Brasil, à falar algo sobre a importância do Valongo para a história do Brasil e para a história do mundo. Eu tenho certeza de que a Professora Mônica vai abordar isso, mas - é apenas uma questão técnica -, para chegar a ser patrimônio mundial, o bem tem que ter um valor excepcional. Esse valor excepcional é explicitado, construído, demonstrado num dossiê desse tamanho... (Risos.) ...que nós constituímos, e o Comitê do Patrimônio Mundial avalia justamente isso. "Existe um valor excepcional?" "Ah, existe." Então vai. O simples título de patrimônio mundial já responde a essa pergunta. Mas eu tenho certeza de que a Mônica, que já falou nisso, pode se aprofundar um pouco. Eu queria fazer uma pequena observação sobre as medidas efetivas para a preservação do sítio. O Dr. Sergio já falou nisso muito bem, mas eu quero enfatizar: não foi feito nada, absolutamente nada. Muito pelo contrário, o Cais foi abandonado pela administração municipal anterior, mas abandonado a ponto de ter morador de rua lá dentro. Eu fui dar entrevista para uma televisão francesa e notei que, no meio da entrevista, o cinegrafista filmava do meu lado, e eu disse assim: "Desculpe, o que é que o senhor está filmando?" Ele disse assim: "Tem um cidadão defecando nas pedras pisadas do Cais". Eu parei a entrevista. Bom, negociamos que isso nunca mais fosse ao ar, mas aconteceu, não é? Alaga. Não tem guarda. A ação da cidadania no Docas Pedro II fazia festas de rave, alugava - alugava o patrimônio histórico! - para fazer festa de rave, e as pessoas jogavam latas de cerveja e urinavam no Cais. Isso, agora, depois de ser patrimônio mundial! E a estrutura racista parlamentar fez tudo o que pôde para impedir que o Docas Pedro II passasse a integrar o Complexo do Valongo, numa questão... Eu não vou dar nome porque, também, não é o caso, todo mundo sabe qual é essa estrutura que está aí. Então, agora, a gente vive uma situação um pouquinho diferente, porque a administração municipal atual é a administração que descobriu, desvelou o Valongo e contribuiu muito para que ele fosse patrimônio mundial. Foi o mesmo Prefeito que nós temos hoje que convidou o Comitê Científico Internacional da Rota do Escravo para se reunir no Rio de Janeiro, na Academia Brasileira de Letras, o que permitiu ao acadêmico, historiador e Embaixador Alberto da Costa e Silva pedir formalmente ao Governo brasileiro que encaminhasse a candidatura do Cais do Valongo, e isso que está aí foi decisivo. Então, com esse novo Governo, que já tem esse histórico, a prefeitura começa a se movimentar. Agora, que fique bem claro: a prefeitura pode varrer, iluminar, mas ela não pode fazer mais nada, porque o Iphan barra. Inclusive todas as possíveis melhorias de conservação que podiam ser feitas no Cais e que foram financiadas pelo Fundo dos Embaixadores dos Estados Unidos da América e pelo governo chinês, através do State Grid, estão paradas no Iphan porque eles não aprovam o projeto. Então, tem dinheiro, US$1 milhão, tem projeto, tem equipe, e o Iphan não aprova. Existe esse problema que está aí. |
| R | Se existem projetos financeiros, estudos para aproveitamento, economia sustentável, economia criativa etc. e tal, o Dr. Sergio, talvez por excesso de modéstia, tenha se esquecido de citar todos os estudos que ele tem feito. Ele é Mestre em Patrimônio, e esse mestrado dele em Patrimônio permitiu que ele transformasse o Valongo num estudo de caso. E eu tive o prazer e o privilégio de participar, por 15 dias mais ou menos, de uma reunião promovida pelo Dr. Sergio e pelo Dr. Jaime na Procuradoria-Geral da República em que essa questão da economia criativa, do turismo sustentável não predatório etc. e tal no Cais do Valongo, ou seja, todas as oportunidades de negócio foram apresentadas magistralmente pelo Dr. Sergio na sua condição de Mestre em Patrimônio. Isso foi discutido com a comunidade, coisa que o Iphan não faz. Estava lá todo mundo da comunidade, inclusive aqueles que foram membros do conselho consultivo da candidatura do Valongo quatro anos atrás estavam lá; eu também estava, então, dou este testemunho. E, de minha parte, eu também estou trabalhando num projeto de turismo sustentável e desenvolvimento da região e existem outros por aí, então, a coisa não está parada. E foi dito - eu não sei se vai se realizar - que a Prefeitura do Rio vai criar no Valongo um distrito cultural exatamente para desenvolver essas atividades econômicas e, segundo o Secretário de Cultura do Município do Rio de Janeiro, Marcus Faustini, isso deve acontecer entre o primeiro e o segundo semestre do ano que vem. Eu vou aproveitar os minutinhos que me restam, com a generosidade do Senador Paulo Paim, para tocar num assunto que me é muito caro e que eu acho que é o pano de fundo e a questão central do racismo estrutural e do País que a gente não construiu e que a gente precisa brigar para construir. |
| R | Por que a história da presença africana e do trabalho africano aqui não é contada? Não é contada como a história dos indígenas não é contada, como a contribuição do povo não é contada. Mesmo as contribuições das elites intelectuais são esvaziadas e não são contadas. O Brasil não é um projeto de nação no sentido do humano. O Estado brasileiro se construiu como uma espécie de subsidiário da Companhia das Índias Ocidentais. Inclusive, o Brasil é o único país do mundo praticamente, tirando Camarões, que tem o nome de um produto de exportação, que é o pau-brasil. O Brasil nasceu espoliando as suas riquezas naturais, vendendo a sua madeira principal. Eu quis comprar um pau-brasil para plantar num terreninho que eu tinha e não acho! É complicado isso. É complicado, não é? Então, veja o caso atual. Eu não posso pegar de 1500 até agora, nem tenho competência para isso, mas pegue o caso atual. Qual é a grande economia do Brasil? Vender, exportar agricultura feita aqui. Voltamos ao ciclo do açúcar... (Falha no áudio.) Não tem problema voltar ao ciclo do açúcar, nem do fumo. O problema é a mentalidade dessa exportação. Os valores obtidos com essa exportação não se revertem para a construção do País, revertem-se para o enriquecimento de uns poucos e a corrupção de uma... Desculpe falar isso numa reunião do Parlamento, mas a percepção do cidadão que está do outro lado é de que um enorme esquema de corrupção com dinheiro público está sendo montado para sustentar um projeto que vende ouro, invade área indígena para vender ouro, que vende madeira, que vende as riquezas minerais. Nós estamos andando para trás. As conquistas civilizatórias e de construção de nacionalidade que nós fizemos ao longo desse século que passou, os 18 do Forte, os Constituintes de 1946, os Constituintes de 1988, tudo isso está indo para o ralo! Nós temos um País construído para uma minoria de 20% ou 30% e, toda vez que aparece um projeto nacional para incluir a população, esse projeto é derrubado pelas forças racistas e entreguistas deste País. E nós estamos vivendo a radicalização desse processo. Todas as vezes... "Quem é Paulo Freire?" "Não é nada." Este País foi mantido na ignorância durante 300 anos, para não dizer 400, quase 500, para que o povo não participasse das decisões. Primeiro, só podia votar quem era rico; depois, quem era alfabetizado. Nós nunca conseguimos fazer um projeto de alfabetização descente neste País, porque manter analfabeto é um projeto de Estado para esses 20 que nos governam. Não vamos esquecer que o Rei de Portugal veio para o Brasil e, quando ele foi embora... Ele trouxe os colonizadores para cá, a elite colonial portuguesa se instalou aqui sob o beneplácito da potência imperialista da época, que eram os Estados Unidos, e, quando ele foi embora, ele deixou aqui a elite. É essa elite que fez um arremedo de independência, um arremedo de república e que nos trouxe até aqui agora. |
| R | Então, respondo ao colega que perguntou aí, cujo nome eu não sei, por que essa história não é contada: ela não é contada porque esse é um projeto de poder de um setor mínimo da Nação brasileira e, toda vez em que a gente tem uma proposta de realmente construir uma nação inclusiva, essa proposta é derrubada. E nós vivemos a radicalização desse processo de negação da nacionalidade. Por isso, os Lanceiros Negros... (Pausa.) Essa é a mais horrível vergonha que um país pode ter! O Estado brasileiro prometeu liberdade aos escravizados que combatessem na Guerra do Paraguai. Os Lanceiros Negros combateram. Terminada a guerra, pediram que entregassem as armas para serem condecorados e aposentados pelo império. Pediram que se deslocassem até uma outra cidade, onde as autoridades iam conferir a comenda, e, no trajeto, eles foram massacrados pelo exército imperial, assassinados, todos! Eu pergunto: como esta Nação pode se construir sem um monumento à memória desses lanceiros de terras gaúchas? Olha, aqui no Rio de Janeiro, nós conseguimos fazer um monumento ao Almirante Negro. Ele ficou escondido atrás de uma estação do VLT. Como eles não conseguiram impedir que se construísse uma estátua do Almirante Negro, eles esconderam a estátua! Como eles não conseguiram impedir a candidatura do Valongo, porque, quando eles assumiram o poder, o jogo estava jogado, a candidatura já estava pronta, já estava oficiosamente até integrada à Década do Afrodescendente, o patrimônio saiu, mas eles o esvaziaram, o sabotaram. Então, meu companheiro, a você que perguntou aí por que a história não é contada, eu respondo: é porque é um projeto de poder dessa elite que nos domina e isso só vai mudar quando a gente acordar. Enquanto a gente ficar aí dormindo em berço esplêndido, vai ser desse jeito aí. Desculpe, Senador, eu me excedi. Eu não... Me desculpe. O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Não há o que desculpar. Só temos que agradecer. E, se eu pudesse, eu lhe confesso que pegaria um lenço e iria aí enxugar suas lágrimas com um abraço. (Pausa.) Isso é alma, é coração! É a vida, não é? Você retratou aí tudo isso. Sabe que - me permita que eu diga isso, já que você aprofundou - eu entrei com dois pedidos de Heróis da Pátria: para os Lanceiros Negros e para o Almirante Negro João Cândido. |
| R | Está uma guerra porque eu entrei com os pedidos - só entrei com os pedidos... Claro que já faz alguns anos, e não vota. Principalmente o Almirante Negro, que foi há mais tempo. Com o João Cândido eu entrei, arquivaram, eu entrei de novo. Os Lanceiros Negros, não é? Mas é isso que você retratou aí com muita clareza. Parabéns, Dr. Milton Guran, antropólogo, pesquisador vinculado ao Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi) da Universidade Federal Fluminense (UFF). A sua emoção, pode saber, contaminou todos aqueles que estão assistindo. Eu espero que outros milhões de brasileiros assistam a esta audiência pública, porque ela vai ficar nas redes do Congresso na internet. Passo a palavra, agora, à Dra. Mônica Lima e Souza, Coordenadora do Laboratório de Estudos Africanos (LeÁfrica) do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A SRA. MÔNICA LIMA E SOUZA (Para expor.) - Bom, eu estou aqui certamente inspirada pelas palavras de todas e todos e pela emoção que a fala do Dr. Milton Guran trouxe a este momento, uma emoção necessária, uma emoção e uma indignação necessárias, porque eu partilho da opinião de que não se constrói conhecimento sem a força da paixão, sem a força das nossas almas, dos nossos espíritos, sem a nossa força vital. É essa nossa força vital que nos move e que nos possibilita aprender verdadeiramente e compartilhar esse conhecimento. Eu acho que essa emoção é fundamental para que a gente possa entender melhor as coisas. Ao contrário do que pensam alguns, a emoção não turva a nossa visão; ao contrário, ela ilumina a nossa visão, ela nos dá a percepção daquilo que, simplesmente vedados por uma pretensa neutralidade, poderíamos deixar de ver. Obrigada, obrigada, Dr. Milton Guran, por este momento também e obrigada, Senador Paulo Paim, por ter propiciado e por ter acolhido essa nossa fala e essa nossa emoção. Bom, vou às perguntas, feliz com elas. Quero agradecer a essa audiência que trouxe essas questões para nós. O que se pode sentir pelas perguntas é uma audiência também comprometida, preocupada, interessada. Qual a importância dessa história para a história do Brasil e para a história do mundo? Eu começo pela história do mundo. Ainda que vários de nós tenham falado - a Dra. Rita Oliveira fez uma excelente ponderação a respeito -, eu gostaria de acrescentar alguns pontos. Ao olhar uma história como essa, ao conhecer e ao compartilhar uma história como essa, estamos enfrentando estruturas de poder, e uma dessas estruturas é o pensamento eurocêntrico, é o pensamento que nos fez aprender e, muitas vezes, ensinar uma história pautada na história europeia, com os marcos de uma história europeia, com as referências de uma história europeia e que, cada vez mais, se faz uma história distante das histórias do povo brasileiro, das histórias do povo das Américas, da história dos povos de África e de Ásia. Ou seja: o que estamos pleiteando, ao colocar uma história dessa no seu devido grau de importância, é uma história que entre em todos; é uma história de uma humanidade que se olhe completa, inteira; é uma história de uma humanidade que entenda que os povos longamente subalternizados não devem continuar a ser longamente subalternizados. |
| R | Então, é uma importância, uma enorme importância política e que vai para além das nossas fronteiras, uma enorme importância política que nos coloca como cidadãos do mundo e como pessoas que entendem que as fronteiras nacionais não conseguem explicar as grandes desigualdades. Então, estamos enfrentando as grandes desigualdades no seu nascedouro, ou seja, onde nasceu a ideia de que alguns grupos e povos têm mais importância do que outros, que são mais dignos do que outros de serem chamados de humanos. Então, é isso. Estamos reivindicando, com essa história, um outro olhar sobre a humanidade. E, no caso brasileiro, especialmente estamos iluminando aspectos da nossa história, do nosso passado que vão nos permitir nos entender melhor e, portanto, nos colocar melhor no presente e no futuro. Já sabemos, já foi dito também pela Dra. Rita de uma forma brilhante, que quem não consegue se ver não sabe quem é e não vai saber para onde vai. Então, o povo brasileiro precisa se conhecer para saber quem é, ter orgulho desse passado. Trata-se de uma herança, não a herança dos escravistas, não a herança dos traficantes de pessoas escravizadas. Mas tudo aquilo que esses nossos ancestrais trouxeram - trazidos à força do continente africano, mas trouxeram -, conseguiram produzir os verdadeiros milagres de fé aqui no extremo Ocidente. O que trouxeram de conhecimento, de saberes, de tecnologias, de ideias, de humanidade, de musicalidade, de força vital, tudo isso são heranças que nos pertencem a nós, povo brasileiro, e, portanto, apropriarmo-nos dessa herança vai permitir que nos enriqueçamos como nação. Então, isso, vamos dizer, é o que eu gostaria de acrescentar. Não posso deixar de falar da Lei 10.639 e da Lei 11.645, de 2008, essas leis que alteraram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. São leis que não apenas modificaram algum aspecto, mas são leis que promovem, que pretendem promover uma alteração nas grandes estruturas de conhecimento. Essas leis ainda não estão devidamente implementadas. E para isso é necessário, sim, vontade política na formação de professores e que as redes públicas de ensino exijam que as escolas realmente implementem essa legislação, que é a nossa LDB. Republicanamente falando, não podemos fugir disso. Essas leis precisam combater o preconceito desde de educação infantil. O senhor tem toda razão, Senador Paulo Paim: da educação infantil ao ensino universitário, passando por diferentes áreas do conhecimento. Essa verdadeira história brasileira, essa história precisa ser conhecida, precisa ser contada e precisa ser conhecida. Temos que utilizar os espaços, todos os espaços, e garantir novos espaços públicos para produção e disseminação do conhecimento. Daí a importância do museu, daí a importância desse grande museu nacional, contando a história, a história das nossas relações com o continente africano, que, para além da escravidão, nos trouxe muitas riquezas, mas que é uma história marcada pela dor e sofrimento e pela injustiça, uma injustiça histórica que precisa ser reparada. Essa história precisa ser contada porque temos que reparar: há uma injustiça histórica. |
| R | E, bom, finalmente, trata-se de um dever de memória. Eu falei do direito de memória na primeira fala e estou falando agora de um dever de memória. É um dever do Estado brasileiro. É um dever trazer à memória essa história. Trata-se de um pacto com a cidadania. Por isso tanto reivindicamos instituições participativas, processos participativos, pois acreditamos que é só em diálogo com as pessoas que a gente vai construir um caminho que seja digno de contar a história desses nossos ancestrais. E digo nossos ancestrais independentemente de sermos não negros ou negros. São nossos ancestrais tão longamente invisibilizados. Trata-se de um compromisso com a luta antirracista, que é fundamental para a gente construir uma sociedade mais justa, para sermos mais felizes, porque o racismo faz mal a todo mundo, faz mal a todo mundo, envenena a sociedade brasileira. Que bom! Eu termino com uma louvação. Eu comecei e termino com uma louvação a um encontro como este, a um espaço como este, à existência desse diálogo. Que bom saber que a gente tem, na nossa Casa Legislativa, o Senador Paulo Paim, o Deputado Federal Túlio Gadêlha e tantos outros aqui citados e também aqueles que não foram citados e que também estão nessa história! Que bom saber que o nosso Poder Judiciário conta com a Dra. Rita Oliveira, com o Dr. Sergio Suiama, com o Dr. Jaime Mitropoulos, que trabalha com ele aqui no Rio de Janeiro. Que bom saber que nós temos também isso, apesar de tantas outras ausências no campo mais geral. E que possamos seguir juntos, lembrando daquele velho, não por isso ultrapassado, provérbio africano: se nós queremos chegar mais rápido, vamos sozinhos; mas se queremos chegar mais longe, vamos juntos. Que possamos seguir juntos! Obrigada. O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Muito bem, Dra. Mônica Lima e Souza, Coordenadora do Laboratório de Estudos Africanos (LeÁfrica) do Programa Pós-Graduação em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro. V. Exa. fez um fechamento. Usou um tempo, digamos, um pouco maior - e foi bom! - e fez o fechamento. Já ao mesmo tempo homenageou todos os nossos convidados. Eu vi que o Túlio, inclusive, voltou ali. Acho que ficou também muito empolgado e emocionado com a fala. Se o Túlio quiser falar ainda alguma coisa. Túlio? O SR. TÚLIO GADÊLHA (PDT - PE) - Presidente, estou muito satisfeito aqui com a fala dos colegas. Estou muito bem representado. A gente tem mesmo é que ouvir. Muito obrigado. O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. PT - RS) - Valeu, Túlio! Dra. Mônica, então, muito obrigado. Muito obrigado mesmo! Eu só posso agradecer a todos. Para mim um momento como este é muito rico. Vocês podem crer que é um ensinamento para mim. Eu tenho já uma idade avançada. Já estou perseguindo a terceira dose da vacina. Ainda não chegou a hora, mas parece que, na semana que vem, eu vou fazer a terceira dose. Mas um momento como este para mim aqui é um momento mágico. Permitam-me que eu diga isso. Ouvir esse acúmulo que vocês têm, com a presença do meu relator, o Túlio. E permita-me que eu diga meu, Túlio. É meu porque é da Comissão, é o nosso Relator, o Túlio aqui. Tudo que vocês falaram é uma aula para o Brasil. Eu me sinto um privilegiado, porque eu pude perguntar para vocês e vocês aprofundaram. Então, eu só posso agora é agradecer. Obrigado, Túlio, nosso querido Deputado Túlio Gadêlha. Bruna Furlan, que sei que está nos acompanhando, muito obrigada. Agradeço a todos os convidados neste momento: obrigado, Dra. Rita Oliveira; obrigado, Dr. Milton Guran; obrigado, Dra. Mônica Lima; obrigado, Dr. Sergio Suiama. |
| R | As palavras que eu mais poderia dizer talvez fossem algumas que eu gosto de dizer e já disse em alguma oportunidade. Vendo vocês aí na tela - Túlio, Mônica, Rita, Sergio e Milton -, eu gosto muito de dizer isto: é muito bom saber que, no mundo - porque direitos humanos não têm fronteira -, existem pessoas iguais a vocês. Eu tenho certeza de que há muita gente no mundo igual a vocês. E termino na linha do que vocês falaram. Uma frase é do Nelson Mandela - são duas frasezinhas curtas - e tem tudo a ver com aquilo tudo que nós falamos: cultura, saber e educação. Disse Nelson Mandela: "A educação é a arma [a arma] mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo". A arma, olhem bem! Estou me referindo a Nelson Mandela para dizer que o instrumento mais poderoso que nós podemos usar para mudar o mundo é a educação, o saber, o conhecimento de que aqui vocês falaram com muita competência e muita grandeza. A segunda frase - aí eu termino - é um provérbio africano também, Dra. Mônica, que eu guardei para o encerramento e diz o seguinte: "O sol caminha devagar, mas atravessa o mundo". Que sigamos nossa caminhada pela humanidade, pelas políticas humanitárias. Axé para todos! Um abraço! Eu me levanto, porque me perguntaram: "O que está escrito na camisa aí?". Dá para ler? "Diga não ao racismo; diga sim ao amor". É isso que está na minha camisa. Eu tenho umas 50 camisas que eu vou ganhando e vou guardando, e essa eu quis trazer aqui nesse momento. "Diga não ao racismo; diga sim ao amor". Muito obrigado a todos vocês. Estamos juntos nessa caminhada. (Iniciada às 10 horas e 02 minutos, a reunião é encerrada às 11 horas e 59 minutos.) |

