20/11/2023 - 87ª - Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa

Horário

Texto com revisão

R
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS. Fala da Presidência.) - Bom dia, amigos e amigas.
É uma satisfação abrir, neste momento, a audiência pública de hoje, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.
Assim, declaro aberta a 87ª Reunião, Extraordinária, da Comissão Permanente de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal da 1ª Sessão Legislativa Ordinária da 57ª Legislatura.
A audiência pública de hoje será realizada nos termos do Requerimento de nº 88, de 2023, de minha autoria e de outros Senadores e Senadoras. O debate será sobre uma Constituição antidiscriminatória e antirracista.
A reunião será interativa, transmitida ao vivo e aberta à participação dos interessados, por meio do Portal e-Cidadania, na internet, em senado.leg.br/ecidadania, ou pelo telefone da Ouvidoria 0800 0612211.
Seguindo aqui o rito organizado pela própria Comissão e com os convidados, teremos, no primeiro momento do debate sobre uma Constituição antirracista e antidiscriminatória, Marina Andrade, cantora, compositora e integrante da Frente de Mulheres Negras do DF, que declamará para nós todos e para o Brasil, pela TV Senado, Rádio Senado e Agência Senado, o poema Vozes-Mulheres, de autoria da escritora, poetiza, romancista e ensaísta Conceição Evaristo.
Então, eu passo a palavra, de imediato, à nossa querida convidada, a quem eu dou uma salva de palmas, Marina Andrade, cantora e compositora. (Palmas.)
A SRA. MARINA ANDRADE (Para expor.) - Bom dia a todos.
É um prazer estar aqui neste dia tão especial.
Vou trazer um poema muito reflexivo da Conceição Evaristo.
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
R
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
Conceição Evaristo, Vozes-Mulheres. (Palmas.)
Obrigada.
Que a Constituição antirracista, antidiscriminatória reverbere nas vozes de nossos filhos, filhas, vivos de preferência.
Muito obrigada.
Bom dia e boa audiência. (Palmas.)
Obrigada.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Depois de ouvirmos essa brilhante compositora, cantora (Fora do microfone.)...
declamar uma poesia que toca as nossas vidas, a gente olha para o passado - avós, bisavós -, para nossos filhos. E, neste momento, lembramo-nos aqui, claro, do grande Zumbi dos Palmares, de Dandara e tantas lutadoras e lutadores que escreveram essa história; e de que nós estamos, neste momento, avançando - entendo eu -, apesar de todas as dificuldades que temos no Brasil até hoje.
Vamos de imediato, agora, chamar a primeira mesa.
Douglas Pinheiro, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Doutor em Direito, Estado e Constituição.
Seja bem-vindo, Dr. Douglas. (Palmas.)
Convidamos o Dr. César de Oliveira Gomes, Defensor Público Federal, doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, Mestre em Direito Público pela Unisinos, Rio Grande do Sul - "Rio Grande do Sul" não estava aqui, mas eu já peguei.
Valeu, amigo, seja bem-vindo. Sente-se aqui. (Palmas.)
Deixe essa papelada aqui toda que eu vou me organizando.
Convidamos agora o Wallace Corbo - está certo? -, Doutor e Mestre em Direito Público pela Uerj.
Seja bem-vindo, doutor. (Palmas.)
Convidamos a Dra. Vera Lúcia Santana Araújo, Advogada, Coordenadora da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, membra da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno. (Palmas.)
Convidamos também... Ela está vindo. Segundo me informou a Isabel, que está aqui na assessoria desta sessão, Lívia Sant’Anna Vaz, Promotora do Estado da Bahia, também está chegando. Ficam aqui já os cumprimentos para ela também. (Palmas.)
R
Gostaria de dizer à artista Marina Andrade que, se você permitir, eu vou botar, na minha biografia, exatamente como está aqui, com o seu nome e o dia em que você declamou essa bela poesia que encantou a todos nós. É que estou escrevendo a biografia, e ninguém vai ficar de fora, viu? Vai estar a foto de vocês lá também, claro, se vocês autorizarem.
Agora, nós vamos dar a seguinte sequência: primeiro, antes mesmo de fazer a fala aqui da Presidência, eu vou fazer uma breve fala sobre a situação do Rio Grande do Sul, porque o que eu digo aqui serve também para o Paraná e Santa Catarina, devido às enchentes. Já tivemos um ciclone muito, muito forte. Você conhece muito bem o que aconteceu e, agora, nos últimos dois dias, de novo, tudo outra vez, atingindo, praticamente, as mesmas cidades. Então, eu vou fazer uma rápida fala para situar tudo o que está acontecendo.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS. Para discursar.) - Chuva no Rio Grande do Sul. Mais uma vez, o Rio Grande do Sul pede socorro. Fortes chuvas voltaram a castigar o estado. Até o momento, foram registradas quatro mortes e dois desaparecimentos; outras 64 vítimas tiveram ferimentos; há mais de 7,5 mil desalojados; 194 mil pessoas foram afetadas por chuvas, vendavais, inundações e soterramentos, desde a noite do dia 15.
A situação é de desespero. As regiões da metade norte da Serra foram as mais atingidas e estão praticamente isoladas. Quem estava na capital não conseguia chegar à região da Serra, e a cidade, inclusive, em que eu nasci - eu conheço bem a Serra - é Caxias do Sul. Houve avalanche, água tomando conta das BRs e das cidades também.
Por exemplo, Santos Fagundes, que é meu Coordenador do gabinete do Rio Grande do Sul, é deficiente visual e trabalha comigo, há quase 26 anos, e me disse que, na cidade em que ele mora, que é no Caí, no Rio Caí ali, eles nunca viram algo semelhante, em toda a história da cidade do Caí. Inclusive, o pessoal que é sindicalista tinha uma área lá que eles compraram - um terreno comum -, na qual fizeram a sede dos sindicatos. Disseram que não escapou nenhuma delas: foram 2m de água dentro da sede. Aí perderam carro, documentos, perderam a organização dele nos computadores, foi tudo, tudo inundado. Ele está lá agora e me deu o relato agora de manhã.
Inúmeras cidades suspenderam as aulas e rodovias federais e estaduais estão bloqueadas, essas que eu citei aqui, tão rapidamente. A nossa solidariedade é total, mas, igualmente, é fundamental o comprometimento de todos - do Governo Federal, estadual, claro, municipal -, com ações concretas e rápidas de ajuda e de proteção. Já foi feito isso no último ciclone. Agora, nós estamos só fazendo um apelo. É claro que a Defesa Civil, o Governo do estado, os Prefeitos estão se mobilizando e o Governo do Presidente Lula também está dando todo o apoio à situação dos que, mais uma vez, foram impactados por esse segundo ciclone, dá para dizer.
R
Vou fazer outra fala aqui em nome da Presidência, e depois passo a palavra aos nossos convidados.
Hoje é dia 20 de novembro. É uma data de resistência, de memória e de luta para o Brasil, em especial para os movimentos negros do país e os brancos comprometidos com essa luta. Eu sou daqueles que dizem que nós temos que nos somar, negros, brancos, índios, quilombolas, LGBTQIA+, na mesma luta no combate a todo tipo de preconceito.
O dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, foi criado no Rio Grande do Sul, por jovens militantes do movimento negro, como o Dr. Antônio Carlos Côrtes.
Eu me lembro do Côrtes porque seguidamente ele fala comigo.
Tudo surgiu com o poeta Oliveira Silveira e também com os Srs. Ilmo da Silva, Vilmar Nunes, José Antônio dos Santos e Luiz Paulo Assis Santos, pois não reconheciam eles, jovens ainda na época, estudantes, não reconheciam o 13 de maio como vitória para a população negra, uma vez que, ao abolir a escravidão, o Estado brasileiro deixou a população negra à margem da sociedade, sem nenhuma política pública que os amparasse.
Eu sei que aqui vocês vão aprofundar.
No ano de 2021, em plena pandemia, o Senado Federal aprovou mais de 16 matérias de combate ao racismo, entre elas o PL 482 de 2017, de autoria do Senador Randolfe Rodrigues, de que eu fui o Relator, que torna feriado nacional o dia 20 de novembro, Dia Nacional de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra.
É bom lembrar que, nos Estados Unidos, a data, que é feriado nacional, é o Dia de Martin Luther King, numa homenagem àquele líder lá, e para nós, Zumbi. Até antes que o projeto deles fosse aprovado lá, nós já tínhamos entrado duas, três vezes, mas fomos derrotados, e agora conseguimos aprovar no Senado e está na Câmara dos Deputados. Seria um dia para discutir todo tipo de racismo e preconceito. A simbologia é Zumbi, mas é um preconceito contra a mulher, contra o deficiente, contra os LGBTs, enfim, todos.
Eu só não cumprimentei a senhora... (Pausa.)
Enfim, é importantíssimo. Eu tinha a esperança de que aprovássemos ainda este ano. Quem sabe cheguemos lá.
A matéria simbólica tramita na Câmara e não traz nenhum ônus financeiro ou orçamentário. Vamos fazer de tudo para aprovar a proposição, porque todos ganham se combatermos toda forma de racismo e preconceito. Aprovar esse feriado nacional é também, na prática, implantar as Leis 10.639 e 11.645, que incluíram no currículo da rede de ensino a disciplina História e Cultura Indígena e Afro-Brasileira. Ressaltar a importância do dia 20 de novembro, como estamos fazendo aqui - e no Brasil todo está se fazendo hoje este debate, e eu, naturalmente, vou falar no Plenário também à tarde -, é construir também uma Constituição antidiscriminatória e antirracista, tema que a nossa audiência pública de hoje vai aprofundar.
Em conversa com assessores, o Dr. César de Oliveira Gomes, Defensor Público da União, e o Dr. Douglas Pinheiro, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília - estou aqui citando já o que nós vamos conversar; a minha assessoria conseguiu incluir na agenda de vocês a presença aqui, hoje, neste evento -, propuseram um debate muito importante e necessário: os desafios de um constitucionalismo antidiscriminatório e antirracista, que é o tema de hoje.
R
A nossa Constituição Cidadã celebrou, no mês de outubro, seus 35 anos. Eu estava lá, fui Constituinte, e aqui no Senado Federal e na Câmara fizemos um importante debate naquele dia. O Senado Federal aprovou a renovação da Lei de Cotas para estudante: foi aprovada primeiro na Câmara, depois nós aprovamos aqui no Senado. Dandara foi a Relatora, Maria do Rosário, lá, a autora, junto com a Benedita da Silva, e aqui eu fui o Relator. Conseguimos aprovar - votos contra, mesmo, não chegaram a meia dúzia -, bom, a renovação da Lei de Cotas sociais para estudantes de escolas públicas, pessoas com deficiência, brancos, pretos, pardos, indígenas e quilombolas acessarem as universidades e institutos federais.
Trinta e cinto anos! E os 35 anos, claro, são da Constituinte. O que nós estamos lembrando aqui - e podem ver que eu usei primeiro o termo "branco", porque alguns acham que cota é só para negro -, o que eu estou lembrando é que nas cotas são contemplados brancos, negros, repito, indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência, pessoas que, pela renda, são consideradas vulneráveis. Aqueles considerados vulneráveis eram os que ganhavam um salário mínimo e meio; passamos para um, mas ninguém... Aqueles que estão nos assistindo agora, não pensem que quem ganha a renda per capita de um e meio também não poderá ser contemplado - vai ser contemplado, sim -, mas vamos dar sempre preferência para os que ganham menos.
Discutir a nossa Constituição Federal com o olhar para a promoção da igualdade racial é promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de racismo ou preconceito aqui, e reforçar a aprovação de matérias como a Lei de Cotas sociais, que transforma vidas e propicia a mobilidade social e educacional para o povo brasileiro. Você pode ter visto aqui que a assessoria colocou "cotas sociais", porque elas não deixam de ser cotas sociais - alguns dizem que é cota só racial, para tentar diminuir a abrangência dela. Sim, tem o critério: quilombola, negro, negra, deficiente, mas ela é social, porque ela abrange todos os pobres, todos os vulneráveis que, porventura, possam chegar a fazer o teste. Então, é também reforçar a aprovação de matérias como a Lei de Cotas sociais, que transforma vidas e propicia a mobilidade social e educacional para o povo brasileiro. Antes da implementação da Lei de Cotas às universidades, por exemplo - eu tenho citado muito esse dado -, nós tínhamos em torno de 6% de pobres, vulneráveis, indígenas, negros e pessoas com deficiência nas universidades. Depois da política de cotas, que foi aquela que eu relatei 11 anos atrás, esse número, se olharmos hoje, ultrapassou os 40%. Saímos de 6% para mais de 40%.
Leio aqui nota do Prof. Douglas, diante da importância de debatermos o tema:
O constitucionalismo moderno ocidental nasceu majoritário. Contrapondo-se ao arbítrio das monarquias absolutistas, os atores que promoveram as revoluções inglesa e francesa nos séculos XVII e [também] XVIII constituíam uma maioria heterogênea que congregava, para além de burgueses, distintos estratos sociais insatisfeitos com o poder ilimitado do governante. Porém, depois que tais movimentos vitoriosos gradativamente redesenharam o Estado sob a forma de democracias, governos representativos da soberania [...] [nacional], o constitucionalismo passou a ter uma nova expressão - e, agora, de proteção aos grupos minoritários e vulneráveis.
R
Só para dizer que este texto é do Prof. Douglas, que não pôde estar aqui e mandou para nós. (Pausa.)
Ah, está aqui. Então eu não precisava ler o texto do senhor, não é? Não entendi... Quem é que lê o texto, eu ou ele? Tudo bem, eu não vou fazer crítica à minha assessoria. Se o texto é do Dr. Douglas, é mais do que legítimo. Porque tem outro Douglas de São Paulo, que também é um baita quadro do movimento sindical, do movimento social brasileiro, e o senhor pode se orgulhar dele também. Conhece o Douglas, não é? (Pausa.)
Douglas Belchior, que esteve diversas vezes também aqui.
Não vou ler todo o texto, porque é um longo texto. Continua aqui, oito páginas! Doutor, o senhor vai improvisar porque, se ler tudo isso aqui, ninguém vai conseguir. Então o texto de abertura está perfeito, eu peço que incorporem como se eu tivesse lido o seu texto, porque é um texto histórico que, neste momento, você nos apresentou aqui.
Bom, já falei da abertura, já falei da enchente que tomou de novo conta do Rio Grande do Sul, neste momento nós vamos então aos nossos convidados. De imediato, Adilson José Moreira, Doutor em Direito Constitucional Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard e Doutor em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG. Ele é o primeiro que vai entrar online? Nós vamos trocando, um online e um presente, um online e um presente.
Dr. Adilson, já está na tela?
DOCUMENTO ENCAMINHADO PELO SR. SENADOR PAULO PAIM.
(Inserido nos termos do art. 210 do Regimento Interno.)
Matéria referida:
- Texto encaminhado pelo Prof. Douglas Pinheiro, da Universidade de Brasília.
O SR. ADILSON JOSÉ MOREIRA (Para expor. Por videoconferência.) - Sim, estou. Vocês me ouvem?
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Perfeito, Dr. Adilson. O senhor está abrindo a nossa sessão de hoje do Dia da Consciência Negra.
O SR. ADILSON JOSÉ MOREIRA (Por videoconferência.) - Em primeiro lugar, bom dia para todos e para todas.
Eu quero agradecer o convite para participação nesta audiência pública, Senador Paim, muito obrigado por estar aqui.
É certamente muito importante que nós desenvolvamos algumas reflexões sobre a Constituição Federal neste momento histórico, ou seja, pós-1988. A Constituição tem sido tradicionalmente pensada como um conjunto de normas que têm um objetivo bem específico: estabelecer limites para o exercício do poder estatal. Dentro dessa concepção de Constituição, notoriamente de inspiração liberal, a Constituição tem normas que estabelecem critérios para o exercício do governo, as funções das instituições estatais e também um conjunto de direitos fundamentais, que devem ser observados por atores públicos e também por atores privados.
Essa concepção de Constituição foi sendo paulatinamente superada e hoje, quando nós vivemos em um paradigma constitucional comumente chamado de Estado democrático de direito ou então de constitucionalismo transformador, a Constituição tem sido pensada, analisada, como um programa de transformação social.
R
Então a Constituição parte de uma realidade que consideramos que insatisfatória, incompatível com os propósitos de um regime democrático e estabelece propósitos, parâmetros voltados para a construção de uma sociedade igualitária e inclusiva.
Bem, para que esses objetivos sejam alcançados, a Constituição, essa Constituição antidiscriminatória e antirracista, atribui um papel importante ao Estado, às instituições estatais. O Estado deve operar como um agente de transformação social. O Estado, as instituições estatais não operam apenas como árbitros entre interesses privados. A Constituição da República, especialmente nos seus quatro, cinco primeiros artigos, estabelece propósitos políticos para a nossa sociedade.
E um desses propósitos está lá presente no art. 3º, a construção de uma sociedade igualitária, empenhada na luta contra a discriminação, empenhada na luta pela inclusão. Ora, esse objetivo só pode ser alcançado se a Constituição, ou seja, se o nosso sistema político estabelece um compromisso para a eliminação de práticas discriminatórias responsáveis pela reprodução das hierarquias sociais presentes na nossa sociedade.
Isso significa algo que geralmente é intencionalmente ou estrategicamente ignorado por muitos atores sociais. O compromisso estatal com a promoção da inclusão de grupos tradicionalmente discriminados não é uma opção para o Estado. Não é algo que o Estado pode fazer ou não fazer. Isso é uma obrigação estatal. É uma obrigação estabelecida pela nossa Constituição.
A Constituição deve ser vista, portanto, como um sistema protetivo de direitos que tem o objetivo de garantir a realização da dignidade humana. Quando nós falamos em dignidade humana, pelo menos dentro da minha fala, nós estamos afirmando o compromisso constitucional contra a violação de direitos.
E violações de direitos fundamentais podem assumir a forma de práticas discriminatórias. Práticas discriminatórias que restringem a igualdade, práticas discriminatórias que restringem o exercício da liberdade, práticas discriminatórias que restringem, impedem o exercício da dignidade humana.
Violações de direitos humanos, de direitos fundamentais que restringem a igualdade, a liberdade e a dignidade produzem danos, produzem uma pluralidade de danos. Produzem danos materiais porque as pessoas são impedidas de terem acesso, por exemplo, a oportunidades profissionais por causa da raça, do gênero, da classe, da sexualidade.
R
Produzem danos morais porque, quando indivíduos são discriminados, têm a sua integridade aviltada, o senso de dignidade desses indivíduos é atacado. As violações de direitos humanos também promovem danos psicológicos e danos existenciais. A experiência sistemática de discriminação faz com que muitas pessoas desenvolvam o que psicólogos chamam de "desamparo aprendido", ou seja, a ideia, a percepção de que os indivíduos não têm controle sobre aspectos básicos das suas vidas, a percepção de que as pessoas estabelecem propósitos para as suas vidas, elas criam planos de vida, mas eles não serão desenvolvidos, não serão alcançados em função da submissão de práticas discriminatórias. Isso que nós chamamos, portanto, de "desamparo aprendido" é um impedimento para que as pessoas tenham a integridade psíquica, para que as pessoas tenham o senso de dignidade que é necessário para que elas possam alcançar os seus propósitos, alcançar os seus objetivos.
Portanto, nós devemos entender a Constituição como um sistema protetivo de direitos contra práticas discriminatórias, mas a Constituição também tem um caráter positivo, um caráter eminentemente positivo, e isso significa que a luta contra a discriminação implica também a adoção de uma série de medidas governamentais e também por atores privados voltados para a inclusão social. Essa inclusão social não se restringe apenas a políticas distributivas, a políticas de distribuição de renda. É também importante que a nossa sociedade esteja empenhada na eliminação da reprodução de estereótipos que reproduzem a ideia de que negros, de que mulheres, de que indígenas, de que asiáticos não são atores sociais competentes.
Então, a luta contra a discriminação significa não apenas a luta contra atos materialmente discriminatórios, não apenas contra manifestações de discriminação direta, mas também o combate de toda uma reprodução da ideia de que grupos racialmente subalternizados não são atores sociais competentes.
É importante nós levarmos em consideração o fato de que o racismo não é apenas animosidade contra pessoas não brancas. O racismo é um sistema de dominação que tem dois propósitos fundamentais: garantir vantagens competitivas para pessoas brancas e garantir que a respeitabilidade social seja um patrimônio, um atributo exclusivo de pessoas brancas.
R
Para que pessoas brancas continuem tendo acesso a oportunidades sociais pelo simples fato de serem brancas, a sociedade precisa ser continuamente convencida de que só elas são atores sociais competentes. E é por isso que nós precisamos - isso obviamente encontra base na Constituição - impedir que toda essa constelação de estereótipos que, ao longo da história, tem reproduzido a ideia de que negros e indígenas são naturalmente inferiores, seja eliminada.
Nós precisamos combater as práticas discriminatórias presentes dentro das escolas, nos meios de comunicação, no espaço político.
Eu assisto à TV Câmara e vejo frequentemente Deputados e Senadores reproduzindo uma série de estereótipos que tem como objetivo exatamente legitimar a violência física, simbólica, social contra grupos minoritários. Essa inclusão, portanto, exige a criação de medidas positivas para fomentar a inclusão, por meio da eliminação de representações culturais que reproduzem a noção de que membros de grupos minoritários não são atores sociais competentes.
Nós precisamos combater o racismo recreativo, nós precisamos combater o racismo sexista, o sexismo racista. Nós precisamos criar meios para que membros de minorias sexuais, especialmente pessoas que são negras e homossexuais, negras e transexuais, tenham a sua dignidade protegida porque são as pessoas mais vulneráveis a problemas de ordem psíquica, são as pessoas mais vulneráveis à ideação suicida e também ao suicídio.
Pessoas negras, especialmente pessoas negras LGBT, estão lá no topo das pessoas que mais praticam suicídio no Brasil. E isso está diretamente ligado a todos os processos discriminatórios que essas pessoas enfrentam em todos os âmbitos da vida social.
Portanto, falar de uma Constituição antirracista, de uma Constituição inclusiva, significa permitir, criar os meios, criar o nível de solidariedade cívica que inclua tanto uma solidariedade inter-racial como também uma solidariedade intrarracial.
Nós precisamos formar alianças. Nós, que somos membros de grupos minoritários, precisamos formar alianças com outros grupos, mas também precisamos fomentar a luta contra a discriminação que existe dentro dos próprios grupos: entre pessoas negras, heterossexuais e homossexuais, entre homens negros e mulheres negras, entre pessoas negras cristãs e pessoas de matriz africana, entre outros.
Muito obrigado pela atenção de todas vocês e de todos vocês. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Meus cumprimentos, Dr. Adilson José Moreira, que é Doutor em Direito Constitucional Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard e Doutor em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG.
Meus cumprimentos pela visão ampla. Abriu com muita categoria - eu diria -, com muita competência. Ele abraçou todo tipo de racismo e preconceito mostrou que o dia que nós conseguirmos, neste país, acabar com o racismo e os preconceitos... E claro que no dia 20 de novembro, começa o racismo contra o povo negro, não é? Mas nós não deixaremos de falar de todos os outros setores que são discriminados na sociedade. E fez exatamente o que o Dr. Adilson fez. Meus cumprimentos, Dr. Adilson.
R
Agora, com muita satisfação, eu passo a palavra ao Dr. Douglas Pinheiro, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Doutor em Direito, Estado e Constituição.
Dr. Douglas, é com o senhor a palavra.
O SR. DOUGLAS PINHEIRO (Para expor.) - Obrigado, Senador Paulo Paim, especialmente pela sensibilidade desta audiência pública. É um momento muito importante de nós demarcarmos, nesta data, em que eu saúdo as demais e os demais integrantes da mesa.
Eu gostaria de começar apontando duas categorias.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Dr. Douglas...
O SR. DOUGLAS PINHEIRO - Perfeito, fazer o registro. Ótimo.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - É que ele vai ter que sair, eu sei, para outra atividade. Vai ficar o tempo possível aqui, mas ele é um companheiro nosso de longa jornada, da Anfip, me ajudou muito na CPI da Previdência, combate também. Negro, ele não é, mas combate todo tipo de racismo, já é bom sinal. É nisso que eu acredito, quando brancos e negros caminharem juntos, com o mesmo objetivo.
Então quero registrar a presença do Vilson Romero, Presidente da Anfip e Presidente da Pública Central dos Servidores do DF e Diretor da Associação Rio Grandense de Imprensa. Aí, pela tua história bonita, eu peço uma salva de palmas. (Palmas.)
Ele fez questão de estar aqui no dia de hoje. Dr. Douglas, é com o senhor, volto o seu tempo original.
O SR. DOUGLAS PINHEIRO - Obrigado, Senador. É sempre importante que a gente faça esses registros.
Eu gostaria de começar retomando duas categorias que integram a cena originária da modernidade, que é a plantação e a floresta. Por plantação, eu me refiro especificamente a um sistema de produção econômica, agrícola imposto pelos Estados colonizadores aos povos colonizados, caracterizado por um grande latifúndio, envolvendo a subordinação de escravizados para com o senhor, com o intuito de produzir um item agrícola que fosse vendido ao mercado mundial. Em resumo, a plantação se sustentava como empreendimento lucrativo às custas da utilização dos corpos escravizados como fonte de energia, o que Mbembe chama de corpo minério, corpo de extração. Esta é a primeira categoria.
A segunda categoria, floresta, a que me refiro com Dénètem Bona, ao conjunto de toda a malha vegetal que oferecia aos escravizados que conseguissem fugir da plantação um refúgio, uma cidadela, um local de vida digno. Floresta é um termo mais amplo que se refere a todos esses locais que, naquele momento, permitiam essa possibilidade de refúgio. Vegetação densa e impenetrável, pântanos e manguezais labirínticos, caatingas áridas e agressivas, morros íngremes cobertos de vegetação.
Percebe-se assim, originariamente, que essas duas categorias nos lembram que a plantação era o espaço da vigilância, da visibilidade destinada ao controle, da legibilidade autoritária, o espaço do poder de indexação, de classificação do outro. E a floresta era o espaço da opacidade, da esquiva, da fuga, da resistência territorial. O que o próprio Bona chama de espaço de não direito. Isso mesmo. A floresta, que era o espaço da vida digna das pessoas escravizadas, era o espaço de não direito. Logo, o espaço do direito era o espaço da plantação, o espaço da dominação. O campo jurídico reforçava o campo da exploração do corpo negro.
R
Não sem motivo, um autor como Carl Schmitt, um teórico da Teoria da Constituição, jurista do nazismo, vai afirmar que a origem do nomos, a origem do ordenamento jurídico, repousava em quatro ações: a apropriação de um território, a divisão e partilha desse território, depois a produção - a plantação desse território - e a publicidade e visibilidade daquilo que havia sido apropriado.
Como o direito se colocou a serviço da plantação, que eu vou chamar agora de plantocracia, durante muito tempo, a saída para as populações negras foi a estratégia da opacidade, do desaparecimento, da esquiva. Butler nos lembra que o povo não se produz apenas por demandas vocalizadas, mas pelas condições de possibilidade de seu aparecimento visual, por suas ações visíveis. O direito de aparecer é fundamental para a democracia. O direito de vir a público sem sofrer discriminação, reprimenda, perseguição, não é só um direito individual, é um pressuposto do Estado democrático de direito.
Com isso, o desafio de um constitucionalismo antirracista é o desafio de criar uma visibilidade contra-hegemônica, não aquela da plantação, uma visibilidade contra-hegemônica que não sirva mais à plantocracia, para que ela exerça o seu poder autoritário. É o desafio de permitir que a pretitude possa apontar outras possibilidades normativas que não se baseiem na apropriação de todo o território, muito menos do corpo território negro.
O desafio de um constitucionalismo antirracista é permitir a existência de vidas negras nos espaços de direito e não apenas nos espaços de não direito. E como isso pode ser pensado em termos de intuições práticas? O Prof. Adilson mesmo falava de nós pensarmos primeiro o constitucionalismo longe daquela perspectiva monocultora do constitucionalismo liberal dos Estados Unidos, um constitucionalismo transformador.
A consequência prática de admitir um constitucionalismo transformador é pôr fim, por exemplo, ao consequencialismo jurídico, ou seja, aquela verificação das consequências práticas de decisões administrativas e judiciais que consideram sempre a solução menos onerosa para o erário, ao invés de promover a erradicação da marginalização e de não promoção das formas de discriminação. Além disso, uma atuação jurisdicional que avance na proteção das populações marginalizadas. Isso não pode ser considerado ativismo judicial, isso é uma atuação própria do poder dentro de uma lógica de constitucionalismo que não se baseia na perspectiva liberal dos Estados Unidos, mas dentro de uma perspectiva transformadora.
Outra intuição, quando nós pensamos no momento Constituinte, já que falamos de 35 anos da Constituição, é pensar que, neste momento Constituinte, sempre houve uma assincronia entre os representantes e os representados. É normal, nem todos conseguem estar presentes, não é uma democracia direta, é representativa. Mas isso tem que nos lembrar também que, neste momento contratual, normalmente é comparado como se fosse um grande contrato. É engraçado, é trágico, na verdade, pensar que é um grande contrato quando, historicamente, há grupos que sempre foram tratados como contratantes e outros grupos que sempre foram tratados como mercadoria e objeto de contrato. Para os grupos que pretensa e historicamente eram contratantes, interessa essa ideia de que a Constituição era um grande contrato e que, portanto, só vale a intenção daqueles contratantes originários, aqueles que estavam em 1987, 1988. A consequência prática é a superação da idealização dessas leituras originalistas que impedem a realização dos objetivos fundamentais da Constituição. Direitos sociais, uma outra intuição prática. Direitos sociais. Normalmente, há uma hierarquização dos direitos individuais que sempre faz com que, em tempos de crise, os direitos sociais é que sejam limitados. Se os direitos sociais se inserem na ordem do cuidado especificamente das populações mais marginalizadas, nós temos que mudar essa perspectiva se queremos construir uma sociedade não só livre, mas também justa e solidária. A consequência prática é uma paridade de ênfase em direitos individuais e sociais, interpretando-os de maneira articulada, a fim de que a liberdade individual não seja um obstáculo para uma legislação e políticas públicas de inclusão.
R
Uma última intuição, antes de partir para o meu final é a interpretação constitucional, e quando eu falo em interpretação estou pensando, como Häberle, na sociedade, toda a sociedade como pré-intérprete daqueles enunciados da Constituição, uma forma social ainda escravista que processualmente se manifesta em um racismo não só estrutural, mas paraestrutural, que se manifesta pelas vontades e práticas dos agentes de poder, sempre que há oportunidade para isso, e margem institucional; nós precisamos ter uma transparência positiva que indique os parâmetros adotados por agentes públicos, ao decidir questões similares que envolvam grupos étnicos raciais distintos, como a distinção entre usuário e traficante de entorpecente, que é sempre muito particular, dependendo do grupo, de pessoas que são detidas.
É preciso que essa fundamentação dessa ação seja motivada. Nós precisamos inverter o ônus argumentativo para o agente público é que demonstre não ter agido de maneira discriminatória, e não para aquele que foi vítima ter que lutar contra todo o aparato institucional e demonstrar a discriminação de que foi vítima.
Indo para a minha finalização, Grada Kilomba tem um livro incontornável chamado Memórias da Plantação. Os testemunhos de racismo ali descritos não são fatos do passado, como o termo "memórias" talvez leve a crer, isso porque o racismo parece operar fora do tempo, uma atemporalidade que atualiza ainda hoje o processo de discriminação não superado - como nos diz Denise Ferreira da Silva -, além de fechar a possibilidade de futuridades mais inclusivas.
Retomando àquela categoria inicial a que eu me referi, planta, plantação, plantocracia e floresta, a plantocracia continua fazendo com que atualmente pessoas brancas possam livremente acumular capital jurídico, político e econômico, ao passo que resta a pessoas negras a acumulação negativa.
(Soa a campainha.)
O SR. DOUGLAS PINHEIRO - Uma acumulação de processos de exclusão econômica e alienação jurídica, escravidão, segregação e encarceramento em massa.
No dia 4 de outubro de 1988 - lembrando, 35 anos atrás -, véspera da promulgação da Constituição Cidadã, os membros da Assembleia Nacional Constituinte foram convidados a plantar, cada qual, uma muda de árvore na área próxima daqui, conhecida como Bosque dos Constituintes. À ocasião, Ulysses diria: "Amanhã vamos plantar a árvore da Constituição. Vamos regá-la sempre". De uma vez por todas, é preciso que a árvore da Constituição supere a plantação escravocrata.
R
Obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Muito bem!
O Dr. Douglas Pinheiro, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e Doutor em Direito, Estado e Constituição nos deu aqui uma verdadeira aula, fez uma retrospectiva e, no encerramento, ainda eu me senti ao lado dele, plantando aquela árvore, por orientação exatamente de Ulysses Guimarães.
O meu filho, que agora já está com mais de 50 anos, estava comigo lá. Eu acho que ele estava com uns 12, 13 anos e estava comigo. Nós temos uma foto plantando ali a árvore da nossa Constituição Cidadã.
Parabéns, Dr. Douglas Pinheiro, que me fez viajar no tempo!
Passamos a palavra agora ao Defensor Público Federal César de Oliveira Gomes, Doutorando em Direito, Estado e Constituição, pela Universidade de Brasília, e Mestre em Direito Público, pela Unisinos, Rio Grande do Sul.
Eu estou dando dez minutos; se necessário, mais 5 minutos, para todos.
O SR. CÉSAR DE OLIVEIRA GOMES (Para expor.) - Bom dia.
Senador Paulo Paim, na sua pessoa, cumprimento os demais integrantes e as demais integrantes dessa mesa, tanto aqui no presencial como na modalidade virtual.
Eu agradeço-lhe e o parabenizo pela iniciativa, por este espaço e por esta audiência pública, para debatermos um tema essencial para pensarmos democracia e, acima de tudo, direitos humanos.
Eu pretendo aqui lhe agradecer e cumprimentá-lo também pela contribuição no seu mandato com a Lei 14.532, que atualiza a nossa Lei Caó. É sobre ela que eu me propus a falar brevemente nesta audiência pública, destacando a sua importância, porque - e aí já indo ao encontro das palavras do Prof. Adilson e do Prof. Douglas - nós temos nessa lei algumas categorias que já vinham sendo amplamente trabalhadas pela doutrina e pelos movimentos sociais e os conceitos que dialogam com a ideia de racismo sistêmico, um racismo enquanto uma estrutura de dominação.
Então, nós temos a Lei 14.532, que traz o racismo esportivo, o racismo recreativo, o racismo religioso, dimensões do racismo estrutural, e que, a partir disso, desafia os intérpretes, os juristas a repensarem paradigmas tradicionais que vêm sendo consolidados de como encarar os crimes contra o racismo e como pensar o racismo no Brasil.
Então, eu dividi brevemente a fala em três momentos: no primeiro momento, um breve histórico da legislação antirracista; no segundo momento, algumas reflexões sobre como o Supremo Tribunal Federal vem já reconhecendo o racismo estrutural; e, por último, a necessidade e os caminhos que nós podemos adotar para uma mudança de paradigma, para sair de uma concepção formalista do direito para uma postura emancipatória, uma interpretação emancipatória antirracista e antidiscriminatória.
R
Então, num primeiro momento, revendo o histórico da legislação antirracista no Brasil, a gente tem uma primeira linha. Claro que, nesse tema, se começarmos a retroceder, a gente vai muito atrás no tempo, mas eu fiz um recorte histórico para a gente compreender melhor, também dada a exiguidade do tempo. Nós temos, num primeiro momento, a Lei Afonso Arinos, que definiu o ato de discriminação racial como contravenção penal, isso lá em 1951. Àquela época se tinha uma referência do conceito de racismo numa perspectiva que olhava, mirava muito os sistemas segregacionistas, o apartheid na África do Sul, a própria segregação racial nos Estados Unidos e, paralelo a isso, a construção do mito da democracia racial, e esse é um tema chave para nós discutirmos, na contemporaneidade, a forma como o sistema de justiça ainda pensa as questões raciais. Tinha-se uma ideia de que no Brasil não existia racismo, o racismo era uma questão privada, episódica, então não deveria merecer, dos poderes constituídos, nenhum tratamento complexo. Não se tem registro de nenhuma condenação com base na Lei Afonso Arinos.
Nós avançamos posteriormente, aí, sim, com uma mudança de paradigma, que considera os crimes de racismo uma questão de ordem pública, na Constituição de 1988, uma conquista dos movimentos sociais, uma conquista dos trabalhos da Constituinte - V. Exa. estava lá também e sabe bem a luta que foi para nós inserirmos a questão racial na Constituição da República. A partir disso se tem uma ideia do racismo como um crime inafiançável e imprescritível. Então o Estado brasileiro reconhece a relevância do tema e dá ao tema uma construção constitucional que leva ao debate público.
Consequentemente, no ano seguinte, o Parlamento traz para nós a Lei Caó, que prevê os crimes contra o racismo. O que nós verificamos anos depois, numa reflexão mais madura, observando como o sistema de justiça se relacionou com a Lei Caó, conseguimos apurar que ela não atendeu aos anseios que foram pensados, que foram sonhados quando de sua promulgação, isso porque o sistema de justiça brasileiro, a formação jurídica brasileira tem uma concepção de racismo que é aquela mesma da Lei Afonso Arinos, de 1951, o racismo como ato de exteriorização de um preconceito, impondo um ônus à vítima de demonstrar que a intenção do agente foi efetivamente de discriminar. A Lei Caó tem uma série de descrições normativas, uma série de crimes que exigem essa postura ativa, essa restrição ao direito.
R
E aí nós temos o debate da questão da injúria racial, que foi superado pelo Supremo e também, posteriormente, pelo Parlamento, mediante a contribuição do seu mandato, equiparando a injúria racial ao crime de racismo. Mas nós ainda temos o desafio, dentro do sistema de Justiça, de disputarmos essas categorias, esses critérios interpretativos que mantêm o sistema de Justiça ainda com um olhar distante para o tema.
E, já indo para a segunda parte da minha fala, a gente tem observado que o Supremo Tribunal Federal... O senhor falou, no início, na abertura da audiência pública, que houve avanços, e penso que sim, que temos avanços muito significativos. E, no âmbito do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal, desde a ADPF 186, de 2012, que tratou da condicionalidade do sistema de cotas nas universidades, vem considerando o racismo estrutural como uma chaga do nosso processo histórico, da nossa sociedade. Posteriormente, ratificou isso na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 41, que discutiu a possibilidade da implementação de cotas para pessoas negras e pardas no âmbito da administração pública federal, e vem reiterando essa construção. E aí, já dialogando com a Lei 14.532, eu cito também - mais recente - o Habeas Corpus nº 154.248, que equiparou o crime de injúria racial ao crime de racismo, no ano de 2021.
Nesse precedente, nós podemos observar várias categorias e várias reflexões que nos convidam, enquanto juristas, a repensar esse modelo tradicional de interpretação do que vem a ser o crime de racismo no Brasil. Vejam que, separando alguns trechos desse precedente, e todas as categorias que posteriormente foram consolidadas na Lei 14.532, o Relator, Ministro Edson Fachin, reconhece; começa o voto dizendo que: "Há racismo no Brasil. É uma chaga infame que marca a interface entre o ontem e o amanhã". E, ao dizer isso, ele reconhece também que há um contínuo: na verdade, o que está por trás dessa afirmação é que a abolição restou inacabada, ela tem um efeito contemporâneo, ela permanece.
(Soa a campainha.)
O SR. CÉSAR DE OLIVEIRA GOMES - E, então, ele fala também - já aqui dialogando para o fim - da história do tempo presente, que nada mais é do que contar a história do próprio tempo, e menciona que essa pesquisa depende de duas questões. O que é a história do tempo presente? São as perguntas que o passado me faz no presente e as perguntas que, no presente, eu faço a partir das fontes históricas. E ele vai além: "É imperativo constitucional, por conseguinte, não eclipsar a memória de eventos traumáticos pós-escravidão, ainda não finalizados, contra a população negra no Brasil, reconstituída especialmente com testemunhos oculares de experiências, negações e sobrevivências".
R
Tomam parte desses processos, além dos historiadores, no plano de suas atuações, atores sociais e instituições que se inserem na constituição dessa história do tempo presente.
Então, a partir disso, o Supremo Tribunal Federal reconhece o papel das instituições, dos historiadores, e reconhece também que a questão da abolição é algo presente. E isso vai exigir dos juristas uma nova interpretação, com caráter emancipatório, para pensar medidas antirracistas, um constitucionalismo antirracista e antidiscriminatório.
Na Lei 14.532, e aliás, no parecer de sua relatoria, V. Exa. destacou o problema da interpretação da lei até então, que nós identificamos. No art. 20-C, trazido pela Lei 14.532, está previsto que: "Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência".
Dessa forma, discutir novos paradigmas interpretativos me parece ser um ponto de partida, a partir do momento em que nós já temos, mesmo para aqueles juristas, aqueles intérpretes com uma formação mais positivista, mais dogmática, nós já temos aqui, a partir da Lei 14.532, algumas categorias que nos permitem pensar e dialogar a partir de uma dimensão estrutural do racismo.
E, para finalizar, eu cito aqui o Prof. Adilson Moreira, no seu Tratado de Direito Antidiscriminatório, que traz - ele falou um pouco disso na sua exposição - a hermenêutica do oprimido: que as instituições jurídicas têm o compromisso de, para fins de reforma social, de combate à desigualdade, levar em consideração o contexto e o histórico de dominação a que foram submetidos alguns grupos na sociedade. Os juristas não partem de um lugar de privilégio, ou melhor, partem de um lugar de privilégio.
Então, qualquer discussão que caminhe no sentido de termos um sistema de Justiça que combata o racismo e qualquer forma de discriminação deve partir da ideia - e aí, já aqui citando também a obra dos Profs. Philippe Almeida, Wollace Corbo e Adilson Moreira, Manual de Educação Jurídica Antirracista - de uma pedagogia engajada, comprometida com o antirracismo. E isso começa, sobretudo, nos bancos acadêmicos.
Por isso, mais uma vez, saúdo e agradeço pela sua iniciativa com esta audiência pública e um debate tão importante.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Nós que agradecemos, Dr. César de Oliveira Gomes, Defensor Público Federal, doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, Mestre em Direito Público pela Unisinos, do Rio Grande do Sul.
Interessante a sua lembrança da Lei de Injúria. A Lei de Injúria foi uma briga de muitos e muitos anos aqui, viu? Como eu estou aqui há 35 anos, eu participei de todas as confusões e brigas aqui dentro. E participei, porque eu sabia; era um absurdo. Qualquer crime de racismo era injúria. E o que era injúria? Paga com cesta básica, ou paga com uma retratação, ou com duas, três horas de trabalho. "Ah, é? Então, tá." Fomos, brigamos, brigamos; conseguimos aprovar um projeto aqui em que a injúria se tornava, então, crime de racismo, inafiançável, que não prescreve etc.; e foi para Câmara. Lá, nós tivemos uma Comissão de Juristas do mais alto nível. Eles analisaram com calma, aprofundaram, eu diria, aprimoraram o projeto e mandaram para nós, mandaram para o Senado. Aí eu fui o Relator, de novo. Aí o Rodrigo Pacheco disse: "Não; você vai ser o Relator". Daí, o que eu fiz? Peguei tudo aquilo que eu entendi que era um avanço em relação ao projeto que eu mandei para lá e resgatei tudo aquilo que eu achava que também era importante e que estava no projeto antigo. Aí, construímos, então, mediante um grande entendimento - ficam aqui o meu carinho e o meu abraço a essa Comissão de Juristas -, e então foi aprovado. E hoje nós temos, de fato, uma lei que foi construída coletivamente, com o trabalho aqui no Senado com os consultores e, claro, com a nossa experiência, eu vou dizer, de quase 40 anos já. Enfim, está aí o resultado, e o Presidente Lula o sancionou. Agora nós temos uma lei que, de fato, deixa claro que crimes de racismo e de injúria se complementam, são uma coisa só: são crimes raciais, e fim de papo - é cadeia, é prisão -, e não prescrevem; isso foi importante.
R
Eu só vou lembrar aqui também que a política de cotas estava lá no Estatuto de Igualdade Racial, 20 anos atrás, mas não teve jeito. Para aprovar aqui no Congresso o Estatuto de Igualdade Racial, tivemos que tirar duas coisas: a política de cotas e o fundo para combater todo tipo de racismo; tivemos que tirar os dois. Depois, houve um debate no Supremo. Daí, o Lewandowski - a pronúncia do nome do Ministro é Lewandowski mesmo? Os intelectuais já me ajudam na pronúncia aqui - realizou uma audiência pública e disse: "Ó, me manda para cá" - no bom sentido; eu vou simplificar. Advogados tem bastante, dos dois lados. Claro, os advogados do Governo Lula estavam lá, prontos para fazer o debate, e negros comprometidos. E aí pediram um Senador negro e um branco. Aí disseram: "Mas por que foi o Paim de novo o escolhido?". Porque só tinha eu de negro. Como é que iam fazer? Só se me pintassem. (Risos.)
Só tinha eu de negro. Lá vou eu. E, felizmente, ganhamos lá.
O Frei David estava lá, o Joel Zito, também, que filmou tudo e transformou no filme Raça, depois. Felizmente, graças ao nosso corpo de advogados, altamente competentes, e ao nosso depoimento, de um homem negro que está no Senado, ganhamos. Felizmente, então, a cota se torna constitucional a partir daí, em cima, inclusive, de artigos do estatuto. Os nossos advogados negros disseram: "Não, Paim, nós vamos usar os próprios artigos do estatuto que abrem porta para que as cotas sejam constitucionais".
Então, tudo isso que você falou aqui fez com que eu também viajasse no tempo. Não é que eu esteja falando mais da minha participação; é que eu estou aqui e sou mais velho do que as pedras, viu? As pedras envelhecem, e eu estou mais velho do que as próprias pedras aqui no caminho.
Mas vamos em frente.
Parabéns, Doutor!
Agora, por sugestão inclusive do Dr. Douglas, nós vamos passar a palavra, neste momento, para a Dra. Vera Lúcia Santana de Araújo, Advogada, Coordenadora da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, membra da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno.
Dez minutos, com mais cinco, se necessário.
A SRA. VERA LÚCIA SANTANA ARAÚJO (Para expor.) - Bom dia a todas, a todos, a "todes" aqui presentes, à nossa plateia e à parceria de mesa também virtual.
R
Muito obrigada, Senador Paim, por esta possibilidade.
Antes, eu comentava um pouco com companheiras ali da frente e com o Prof. Douglas que eu acho que, na última vez que eu tinha estado numa audiência convocada por V. Exa., estávamos num momento de muito tensionamento democrático. O agora Presidente Lula, à época ex-Presidente Lula, já estava preso, e discutíamos representatividade negra, processo político, os partidos, enfim, discutíamos democracia, democracia racial, e eu, realmente, sucumbi, tive uma crise de choro em plena mesa. Mas, hoje, como estamos num outro momento, prometo não chorar; e, se o fizer, vai ser por alguma celebração, mas, enfim...
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS. Fora do microfone.) - Permita-me que eu diga só: se chorar também... Eu, por exemplo... Aquela história de dizer que homem não chora... Não chora se não tem sentimento, se não tem emoção, se não tem história. E isso tudo você tem. Pode chorar! (Palmas.)
A SRA. VERA LÚCIA SANTANA ARAÚJO - Obrigada.
Quero abraçar a mesa na pessoa da minha conterrânea querida, Lívia - que, embora não sejamos primas, é também Sant'Anna. Então, é uma honra estar com vocês neste momento.
Eu já reformulei a minha intervenção algumas vezes, algumas linhas, porque toda essa história me evoca, por demais, uma participação ativa como uma militante democrática, uma militante antirracista, que, naturalmente, computa muitos ganhos, muitas grandes vitórias, mas também senta a esta mesa, neste 20 de novembro, contabilizando muitas dores, muitas mortes.
Os estudos apresentados, publicizados na semana passada, que dão conta da matança de negros em nosso país, revelam, sem nenhuma tergiversação, que, antes e acima de tudo, o Brasil está longe de se constituir uma nação. Nós temos um território, nós temos Estado, nós temos um povo, mas não temos sequer unidade nacional. Eu não posso falar que há uma unidade nacional se eu pensar que o Estado vive precipuamente para negar direitos, fazer dos nossos territórios de hoje, como bem situava o Prof. Douglas, ainda um grande território de não direitos para a maioria da população brasileira.
No Distrito Federal, a Capital da República, onde, inclusive, há um percentual mais elevado que o índice nacional, nós somamos 57% de negras e negros. E o que somos como representação? Se pensar que a representação, que o Estado democrático de direito não pode excluir suas maiorias, não é razoável dizer que temos uma nação brasileira. Então, eu tenho me cuidado e me policiado para usar, cada vez menos, esse termo, porque eu não posso pensar que temos uma nação genocida. Posso até saber que tivemos governos genocidas, mas eu não posso pensar que esta nação é genocida. Então, eu prefiro dizer que a gente ainda não tem uma nação. A gente precisa construir um projeto de nação que nos eleja, que nos coloque no patamar da igualdade para o pleno exercício dos direitos.
Uma outra evocação, que o Prof. Dr. Douglas me trouxe, é sobre todo esse iter no debate acadêmico, no debate normativo, entre a injúria racial e o crime do racismo.
R
Com muito orgulho, naturalmente, o precedente judicial criado para culminarmos nessa equalização normativa foi um caso em que eu atuei na assistência ao Ministério Público. Porque as nossas instituições que, em tese, do ponto de vista da organização do Estado e nessa dimensão do constitucionalismo transformador, deveriam ser as instituições pilares do Estado democrático de direito, sobre as quais a nossa Constituição se ergue e se monta e se gesta, são instituições que cotidianamente se transmutam como fontes muito pesadas de opressão e de criminalização da própria negritude. O ser negro, o existir negro é criminalizado por todos os entes que compõem o sistema de Justiça.
Então, quando eu atuei no caso - e naturalmente não é um processo que tivesse qualquer reserva de sigilo -, o caso Heraldo Pereira versus Paulo Henrique Amorim, que veio a ser o precedente jurídico que, depois, no outro caso, ganhou a repercussão geral, e aí fomos nesse crescente jurisprudencial, normativo, discursivo e, hoje, legislado, positivado, era o quê? Esse grande embate entre a injúria e o racismo. Porque, na verdade, Senador - e, como cidadã, eu vivi muito ativamente o processo constituinte -, eu penso que muitas das vitórias que inscrevemos na nossa Carta Constitucional ainda hoje não expressam o pensar da sociedade brasileira. O Brasil continua sendo uma sociedade, um povo que não abre mão de poder ter seus privilégios assentados na hierarquização racial. Esse é o nosso grande desafio. Nós temos um patamar normativo que nos coloca numa condição de equidade. O nosso patamar Constituição, a Constituição Cidadã, nos coloca nesse patamar de equidade. No entanto, não há um aspecto da vida nacional, um recorte sobre o qual a gente se debruce que não desvele, que não desnude a profunda hierarquia com que a sociedade e o Estado brasileiro se reproduzem e replicam muito fortemente.
Então, essa foi mais uma evocação trazida pelo Prof. César.
Também, eu me lembrava das críticas e dificuldades no cumprimento, na efetividade da Lei 7.716, a nossa Lei Caó, que talvez tenha sido o primeiro caso que chegou ao Superior Tribunal de Justiça, uma representação que, à época, fiz como Coordenadora do Movimento Negro Unificado no DF, que dava conta de um racismo odioso por um jornalista que era o colunista social do maior jornal do DF, enfim, e que envolvia a já Deputada Federal Benedita da Silva, na época candidata à Prefeitura do Rio de Janeiro. Esse processo chegou ao STJ - pela primeira vez, tivemos um feito que tenha chegado ao STJ - e depois virou, inclusive, um caso de estudo sobre formação de ativistas negros para manejo do sistema internacional de proteção aos direitos humanos.
R
Então, assim, eu percebi que já reformulei algumas vezes, porque toda essa fala, assim como traz para o Senador Paulo Paim tantas e tantas memórias, porque Parlamentar desde o processo de redemocratização do país, a mim também me traz, porque eu também, desde esse tempo, como ativista, como cidadã, jamais saí dos tribunais, das ruas ou mesmo de algum assento em debates dessa natureza, inclusive nesta Casa, sempre trazida por V. Exa.
(Soa a campainha.)
A SRA. VERA LÚCIA SANTANA ARAÚJO - Bom, então eu acho que esse constitucionalismo transformador, como bem pontuou o nosso mestre Adilson Moreira, nos provoca e nos conclama a essa vigília permanente, a essa vigília ativa em todos os espaços. Nós não podemos pensar que o sistema de Justiça de um Estado democrático de direito somente seja eficaz na sua política de encarceramento, porque essa política de encarceramento começa na ronda do guardinha, da dupla do Cosme e Damião, como temos aqui em Brasília, muitas vezes, em que os olhares dos policiais, muitos negros inclusive, somente vem os corpos negros porque o pressuposto do crime já está cometido. Nós negros e negras vivemos num estado permanente de flagrante, nós somos o crime de per si, o resto, aí sim, é o consequencialismo jurídico, porque facilmente o Ministério Público nos processa e muito facilmente o Judiciário sentencia e nos condena. Mesmo hoje, a nossa Defensoria Pública, robusta que já está, tem muito ainda a construir, é um instituto, digamos, novo em relação às demais instituições que compõem o sistema de Justiça, temos já, mas ainda é insuficiente, e temos especialmente uma advocacia profundamente elitista, seletiva, com uma organização, a partir da própria OAB, que nos alija e que nos exclui. Então você tem um novelinho, um encadear - e aí sem paralelismo - que só nos deixa um espaço de ocupação, o único em que nós somos, sem titubear, a maioria do funcionamento do Estado, que é, na prática, seletiva, condenatória do sistema de Justiça. E não somente para encarcerar, para julgar a menor toda e qualquer postulação que seja levada a juízo por uma pessoa negra. Por exemplo, se você faz estudos - e já há estudos nessa linha -, nas indenizações por danos morais, a moral branca é sempre mais valorada que a moral negra, mesmo que seja numa relação consumerista, ou seja, você paga o mesmo preço numa passagem aérea, mas a indenização a uma pessoa negra que aciona o sistema de Justiça com base no Código do Consumidor, a indenização por danos morais, é menor do que a de qualquer pessoa branca.
R
Então, são muitos os nossos desafios. Eu realmente fui provocada aqui, nesta mesa, hoje, a reformular em muito e fazer um pouco de um depoimento mais ou menos autoral, porque é também muito importante a gente não perder o fio histórico de que, dialeticamente, o que nos faz crescer, o que nos mobiliza e que nos garante hoje alguns espaços de poder está muito distante. E o que eu tenho dito? Viver sem racismo é partilhar poderes, é isso que a gente busca e é por isso que a gente segue em luta.
Muito obrigada, Senador Paulo Paim. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Parabéns.
A SRA. VERA LÚCIA SANTANA ARAÚJO - E nem chorei.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Não chorou, mas foi muito bem, falou com emoção, com sentimento, falou com o coração.
Essa foi a nossa querida advogada Vera Lúcia Santana de Araújo, que é Coordenadora da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, membro da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno.
Você falou com um linguajar firme, claro, corajoso e direto e me fez lembrar de uma frase que todos vocês conhecem, que eu ouvi e que meu velho pai dizia: "Quando você sair, leve documento, tenha todo o cuidado". Tinha que ter uma prevenção e não era para ir... Era praticamente para atravessar uma rua, ir para o colégio à noite, por exemplo. E uma frase que eu ouvia, naquele tempo, dizia mais ou menos o seguinte: "Negro parado é suspeito, correndo é culpado; toca-lhe bala nele", era mais ou menos isso. Quer dizer, é triste ter que me lembrar disso, mas eu ouvi muito essa frase e todo cuidado a gente tinha.
E eu contei acho que uma vez aqui, mas eu vou contar em 30 segundos: um filho meu, parado, dentro do shopping, olhando alguma coisa para comprar, foi interpelado como suspeito - olhando para comprar -, e o guri tinha dinheiro, eu já era Deputado no mínimo, eu já era Deputado naquela época. Aí, felizmente, um genro meu que estava perto, quando viu, foi em cima, parou tudo - parou tudo - e tranquilizou. Mas veja o absurdo que é isto: ele estava olhando um tênis para comprar. Claro que não compraram naquela loja e deram um estouro lá. (Risos.)
Mas você tem toda a razão. A sua análise mostra essa história triste que, inclusive, ainda acontece até hoje. Eu estou falando isso já há 20 anos, mas acontece até hoje.
Muito bem, vamos agora para videoconferência.
Sr. Philippe Oliveira de Almeida, Professor Adjunto de Filosofia do Direito na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ; Pós-Doutor pelo Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina e pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
Por favor, Dr. Philippe.
O SR. PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA (Para expor. Por videoconferência.) - Bom dia. Bom dia a todas, todos, "todes".
Eu gostaria de agradecer imensamente ao Senador Paulo Paim pelo convite e parabenizá-lo pela iniciativa desta audiência pública, em especial num país no qual corpos pretos seguem sendo sistematicamente silenciados.
Eu gostaria de cumprimentar o meu amigo Adilson Moreira e também os Profs. Douglas, Dr. César, Dra. Vera e dizer que é uma honra participar de uma audiência pública do Senado, a Casa do Povo, o pilar da democracia no Estado democrático de direito. Não há democracia sem Parlamento.
R
Eu não poderia deixar, ocupando um espaço como este, de homenagear a memória do grande Abdias do Nascimento, Senador, escritor, artista plástico, professor universitário e autor de duas obras seminais na discussão sobre racismo e raça no Brasil: O quilombismo e O genocídio do negro brasileiro, dois textos pioneiros na tarefa de denunciar a opressão vivida por afrodescendentes no Brasil.
O nosso país viveu décadas seduzido pelo mito da democracia racial, que foi largamente fomentado pelo estado novo e pela ditadura militar e incutiu em muitos brasileiros e brasileiras a crença de que o Brasil não é um país racista, pois não teve, depois do fim da escravidão, políticas explícitas de Apartheid. Mas vale sempre a pena lembrar que a aparente neutralidade das nossas instituições sempre camuflou a violência cotidiana contra a população preta. Como os meus colegas que me antecederam bem destacaram, a guerra às drogas é o melhor exemplo de um racismo silente, um racismo que tem medo de dizer o próprio nome, mas que tem efeitos muito concretos na vida da população negra.
Um ex-Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, cidade na qual eu atualmente trabalho, disse uma frase há muitos anos que me chocou pela franqueza. Ele disse: "Tiroteio na favela da Coreia é uma coisa, tiroteio em Copacabana é outra". Ele deixa muito explícito como corpos diferentes, corpos brancos e negros, são valorados de formas diferentes, como é que eu posso, muito confortavelmente, colocar em risco a vida de famílias pretas sem que isso cause qualquer escândalo, qualquer incômodo para boa parte da população.
Não é à toa que a guerra às drogas produziu no Brasil a terceira maior população carcerária do mundo, majoritariamente afrodescendente. Vale a pena, para quem duvida, dar uma olhada nos trabalhos de duas grandes intelectuais brasileiras: a Profa. Ana Flauzina e a Profa. Carla Akotirene, que têm, há muitos anos, mostrado exatamente em que medida o nosso Poder Judiciário, marcado pela seletividade penal, se tornou (Falha no áudio.)...
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - A tela está pequena porque a internet dele está com dificuldade, agora a voz também sumiu.
O SR. PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA (Por videoconferência.) - (Falha no áudio.)... da população parda.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Nós não o estamos ouvindo, praticamente não estamos ouvindo. A partir de uns... Faz um minuto que não o ouvimos mais e nem o vemos agora na tela.
O SR. PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA (Por videoconferência.) - Melhorou?
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Vai falando, vamos ver.
O SR. PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA (Por videoconferência.) - (Falha no áudio.)...
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Continua igual, cortando muito, muito, e a sua imagem sumiu totalmente.
O SR. PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA (Por videoconferência.) - Caramba!
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Podemos fazer o seguinte, passamos para outro convidado e você volta em seguida, pode ser? (Pausa.)
Já caiu.
Então, vou passar agora para a Dra. Thula Rafaela de Oliveira Pires. A Dra. Thula Rafaela de Oliveira Pires é Doutora e Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. (Pausa.)
R
Estamos com dificuldade. A imagem está reduzida, e não estamos ouvindo a Dra. Thula, que é Doutora e Mestra em Direito Constitucional e Teoria do Estado da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A SRA. THULA RAFAELA DE OLIVEIRA PIRES (Por videoconferência.) - Bom dia!
Vocês conseguem me ouvir agora?
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Agora melhorou. Agora melhorou. Perfeito.
A SRA. THULA RAFAELA DE OLIVEIRA PIRES (Para expor. Por videoconferência.) - Bom dia a todos!
Bom dia, Senador!
Bom dia a todo mundo que está aí presente!
Eu queria estar participando desta audiência em outras circunstâncias, mas, em razão do temporal do último sábado, algumas áreas ficaram sem energia, sem luz, como o lugar onde eu moro, que fica na periferia também, e, para piorar, quando eles restabeleceram a luz, eles restabeleceram de todo o entorno, menos a rua do morro, menos a rua da comunidade, que é a rua onde eu moro. Então, a gente estava em manifestação pacífica aqui na via principal, e, mais uma vez, o setor público, ao invés de fazer pressão junto à Enel, junto à empresa que deveria prestar o serviço de energia, só mandou a polícia, a Polícia Militar e a Guarda Municipal.
Então, peço desculpas pelo atraso, por não ter podido ouvir as outras pessoas, mas, se a gente está aqui para discutir um constitucionalismo antirracista, é preciso que a gente não discuta essas questões em abstrato, é preciso que a gente entenda que, para além dos muitos avanços que foram conquistados por muita luta dos movimentos negros e de mulheres negras, ainda há uma série de barreiras que impedem o exercício da cidadania para pessoas negras neste país.
Acho que eu não poderia deixar de entrar. Eu estou aqui numa clínica que fica na rua principal, que deixou eu entrar, que me emprestou o espaço para que eu pudesse participar, porque da minha casa é impossível, eu não posso participar.
Eu também queria aproveitar para dizer que esta semana a gente foi surpreendida por decisões do Supremo Tribunal Federal numa ação importante, que é a ADPF 973, que deve discutir o racismo como um status, coisa inconstitucional no Brasil, e a gente teve a inabilitação de uma série de entidades negras como amicus curiae nesse feito.
Então, a gente vem de uma semana...
Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal, junto com outros tribunais superiores, abriu o primeiro Fórum pela Equidade Racial. Em tese, a gente deveria entender aí que há um momento em que há uma sinalização para um comprometimento com o enfrentamento ao racismo de todos os tribunais superiores junto com o CNJ e, portanto, imaginávamos, de boa parte da magistratura brasileira, mas, na semana seguinte, na mesma semana, na verdade, quando o Relator de uma ação como essa analisa a possibilidade de quem tem a capacidade ou não de participar do debate público para pensar quais são os efeitos do racismo no acesso ao Estado democrático de direito, há uma inabilitação de uma série de entidades negras extremamente relevantes no debate público nos últimos anos, mas não o suficiente para registrar como relevante para o Supremo Tribunal Federal e o Relator Luiz Fux.
R
Entre essas organizações, eu cito o Criola, que é uma organização de mulheres negras de mais de 30 anos que tem produzido dados, pesquisas e intervindo diretamente no debate sobre o racismo patriarcal cis-heteronormativo e que não foi considerada, uma entidade que participa de outras ações junto ao Supremo nesses debates, vinculando o racismo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos; a ABPN, que é a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros também não foi, e outras entidades importantes que também não foram.
Então, infelizmente, eu começo este debate, que deveria ser um debate para a gente, obviamente, pensar no que ainda precisa ser feito, mas também ter a possibilidade de comemorar os dados, os passos que demos nos últimos 35 anos, eu começo fazendo essas duas denúncias, porque entendo que não há possibilidade de a gente avançar no debate sobre um constitucionalismo antirracista se a gente continuar naturalizando os entraves que são colocados para a participação da população negra nas mais diversas esferas da vida.
Então, eu começo com essas duas denúncias que falam de lugares muito diferentes, mas que têm um ponto em comum. É o racismo que impede tanto que uma comunidade periférica tenha acesso a serviços de luz e, sem luz, vai ficar sem água, porque no morro só sobe água se ligar a bomba, e a gente vai ver idosos, crianças, recém-nascidos e outros grupos sociais alijados de serviços básicos. E vamos também falar de uma outra esfera, na ponta, da elite, na discussão jurídica de relevância nacional sobre o racismo enquanto estado de coisas inconstitucional, também somos alijados. Então, independentemente de onde estejamos, independente da roupa que a gente veste, independente dos títulos que a gente reúne, o racismo continua sendo um grande entrave para a participação cidadã de pessoas negras no Brasil. E isso a gente certamente não coloca tudo na conta da Constituição de 88, a Constituição de 88 de fato tentou criar mecanismos para que a gente tivesse um outro tipo de participação, mas fato é que a gente não consegue ainda transpassar essas barreiras.
A gente tem um novo marco constitucional para lidar com o racismo, principalmente a partir da constitucionalização da Convenção Interamericana contra ao Racismo. Então, desde pelo menos 2022, a gente tem aí, com estatura de norma constitucional, uma série de dispositivos que, uma vez constitucionalizados, nos permitem avançar em algumas discussões que ainda tinham muito mais resistência no âmbito do sistema de justiça.
Estou falando, por exemplo, do reconhecimento normativo das violências múltiplas ou interseccionais e também das violências indiretas. Então, a gente tinha algum tipo de possibilidade de coibir atos de racismo quando ele se manifestava de forma direta, o que não é algo que a gente possa, com alguma facilidade, diante do modelo de racismo e dinâmica do racismo que a gente tem, que é de racismo por denegação, conforme interpreta Lélia Gonzalez, configurar, e nunca é suficiente para o sistema de justiça brasileiro reconhecer que o racismo aconteceu diretamente, mas todos os efeitos indiretos do racismo para os quais a gente não tinha mecanismos normativos expressos para conseguir coibir, agora já temos.
Então, contamos com o Senado, contamos com esse mandato, contamos com o compromisso coletivo para que essa constitucionalização, que contou certamente com a participação fundamental tanto da Câmara quanto do Senado para sua internalização com estatura de norma constitucional, a gente conta para que ela se faça realidade, para que nos 40 anos da Constituição de 88 a minha participação possa ser festiva, que eu não tenha que começar a fazer essa discussão por denúncias, que a gente tenha possibilidade de discutir tecnicamente avanços tanto normativos quanto na aplicação do Direito para que a gente efetivamente construa uma sociedade equânime, uma sociedade democrática, uma sociedade que não trate pessoas negras com a desumanização que nos trouxe até aqui.
R
É mais um 20 de novembro em que, em vez de a gente acordar para conseguir festejar os espaços de liberdade que conseguimos construir a duras penas e com muito suor, a gente acorda lembrando que a sociedade brasileira, que as instituições públicas brasileiras, nos lembram quem somos, onde estamos, que é a zona do não ser.
Sinto por não poder fazer uma participação em outro sentido, mas se a gente quer discutir uma Constituição antirracista, ela precisa ser discutida em concreto, ela não pode ser discutida em abstrato.
Agradeço a atenção de todos vocês.
Obrigada.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Muito bem, Dra. Thula Rafaela de Oliveira Pires, Doutora e Mestre em Direito Constitucional e Teoria de Estado. Ela é da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e usou o seu tempo fazendo uma série de denúncias legítimas e importantes que não têm reflexão, só falando, como ela disse, de alguns projetos que nós todos conseguimos aprovar aqui e que, poderíamos dizer... Fizemos até algumas coisas importantes, mas temos muito, muito, por fazer. Essa foi a fala dela na linha da denúncia daquilo que está enfrentando nesse momento ainda.
Muito bem, doutora.
Agora vamos para... Não sei se o Philippe Oliveira de Almeida conseguiu voltar.
O SR. PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA (Por videoconferência.) - Bom dia.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Pronto, Philippe. É com você.
O SR. PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA (Por videoconferência.) - Tudo bom, Senador?
Bom, vou retomar, então, a minha fala do início, se possível.
Vocês me ouvem bem?
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Estamos ouvindo.
O SR. PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA (Por videoconferência.) - Ah, perfeito.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Dez minutos mais cinco, se for preciso.
O SR. PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA (Para expor. Por videoconferência.) - Bom dia a todos, todas e "todes".
Eu queria agradecer novamente ao Senador Paulo Paim pelo convite, parabenizar pela iniciativa desta audiência pública, em especial em um país no qual corpos pretos seguem sendo sistematicamente invisibilizados e silenciados.
Eu preciso cumprimentar o Prof. Douglas, o Dr. César, a Dra. Vera, e, em especial, a Profa. Thula Pires e o Prof. Adilson. Quero dizer que é uma honra participar de uma audiência pública no Senado, que é a casa do povo, o pilar da democracia. Não há democracia sem Parlamento.
Eu não poderia falar neste espaço sem aproveitar o ensejo para homenagear a memória do grande Abdias do Nascimento, Senador, escritor, artista plástico e autor de duas obras que são seminais na denúncia da opressão vivida por afrodescendentes, que são O quilombismo e O Genocídio do Negro Brasileiro.
O Brasil, durante muitas décadas, viveu seduzido pelo mito da democracia racial, sistematicamente fomentado pelo Estado Novo e pela ditadura militar, que difundiram a crença de que o país não seria racista por não ter políticas explícitas de apartheid. Mas vale sempre a pena destacar como é que essa aparente neutralidade das nossas instituições sempre camuflou a violência cotidiana contra a população negra. E, talvez, a maior expressão disso seja a guerra às drogas, que os professores que me antecederam, a Profa. Thula, por exemplo, destacaram muito bem. Um ex-Secretário de Segurança do Rio de Janeiro dizia impunemente que uma coisa é começar um tiroteio na Favela da Coreia e outra é começar um tiroteio em Copacabana, o que mostra muito claramente como para as nossas instituições, para o nosso Poder Judiciário, para as nossas forças policiais, alguns corpos, em especial pretos e pobres, são matáveis, são descartáveis. É isso que produziu no Brasil a terceira maior população carcerária do mundo, que é majoritariamente afrodescendente. Então, eu sigo pedindo que todos leiam as Profas. Ana Flauzina e Carla Akotirene, e também a Profa. Thula Pires, que têm sistematicamente denunciado o papel da seletividade penal em um país no qual o racismo tem medo de dizer o próprio nome. A gente vive esse cenário de racismo por denegação, como a professora Thula bem destacou, e que produz efeitos muito concretos na vida de pessoas negras.
R
Por esses fatores é que é tardio o reconhecimento institucional de que o Brasil é um país racista, um Brasil que não revisou o legado da escravidão, um país que não trabalhou para inserir a população afrodescendente no mercado de trabalho, e - uma questão que é absolutamente essencial - que não se mobilizou para efetuar a reforma agrária, que é crucial para a democratização no campo. Duas grandes teóricas já disseram isso, com muito mais talento do que eu, que foram as grandes Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento.
Vale a pena destacar que, apesar de a Lei 10.639 já ter definido a obrigatoriedade de as escolas de ensino fundamental e médio ensinarem história e cultura afro-brasileira nas escolas, o fato é que ela segue sendo sistematicamente ignorada, o que é um sintoma do quanto as nossas instituições continuam insistindo em invisibilizar o sofrimento ao qual a população negra é sujeita. Embora seja a maioria da população, o negro segue sendo sub-representado nos nossos espaços decisórios. (Falha no áudio.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Não estamos lhe ouvindo mais.
O SR. PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA (Por videoconferência.) - E agora, estão me ouvindo?
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Voltou.
O SR. PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA (Por videoconferência.) - Ótimo.
Bom, existe um lema muito caro às mobilizações políticas contemporâneas, que é: "nada sobre nós sem nós". A gente precisa levar esse lema muito a sério ao pensar em políticas de inclusão voltadas à população negra, que segue sendo sub-representada nos espaços de decisão, inclusive no Poder Judiciário, no Poder Legislativo e no Poder Executivo. A Constituição de 1988 - como a Profa. Thula bem destacou, o Prof. Adilson também - é um ponto de partida, mas não um ponto de chegada na luta por uma sociedade comprometida com a diversidade étnico-racial, e nós precisamos de mecanismos para tornar de fato efetivos os princípios constitucionais relativos à igualdade, à liberdade e à dignidade humana.
Há vários juristas que há anos têm impugnado para que nós fortaleçamos o compromisso da nova República, fundada em 1988, com a justiça racial e com a luta contracolonial. Os coletivos negros sempre tiveram um papel proeminente nessa luta. Eu queria citar duas juristas em especial: a Profa. Eunice Prudente e a Profa. Dora Bertulio, que vale destacar, deveriam estar ocupando cadeiras no STF. O Brasil merece uma jurista negra e comprometida com a efetivação das premissas básicas da Constituição no STF.
R
O reconhecimento pelos Três Poderes da importância de políticas de ação afirmativa tem pouco mais de uma década, e ainda assim esse reconhecimento contrasta com várias estratégias feitas para mitigar os efeitos das políticas de inclusão em todas as esferas, tanto públicas quanto privadas.
E, para finalizar, nós falamos de constitucionalismo moderno e da importância do constitucionalismo para realização de uma sociedade justa e igualitária e nós sempre pensamos na Revolução Americana e na Revolução Francesa, mas acho que mais importante do que isso é a gente voltar os olhos para a mais importante revolução moderna, que é a revolução do Haiti (Falha no áudio.)... essa revolução...
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Está difícil, não dá para entender quase nada do que ele fala.
Se você ficar só no som, acho que fica melhor. Esquece a imagem e fica...
O SR. PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA (Por videoconferência.) - Melhorou?
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Vamos lá.
O SR. PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA (Por videoconferência.) - Eu estava dizendo que a gente precisa, primeiro, de uma mulher preta no STF. Acho que é mais importante do que nunca garantir a representatividade de juristas comprometidas com a verdadeira efetivação da justiça racial, em transformar os programas da Constituição de 1988 em um projeto genuíno de nação, como diria a Dra. Vera.
Quando a gente fala em Constituição, em constitucionalismo, a gente sempre pensa no papel da Revolução Americana e da Revolução Francesa, mas é crucial que a gente volte nossos olhos, num dia como o de hoje, para a revolução do Haiti, a primeira revolução de independência nacional que foi capitaneada por ex-escravizados. Há vários autores que falam sobre isso, Marcos Queiroz, Deivide Ribeiro, Rodrigo Portela, a revolução do Haiti segue sendo um símbolo para um constitucionalismo emancipatório, soberanista e comprometido com a justiça. Dito isso, acho que a gente precisa reconectar a nossa leitura da Constituição de 1988 a essa tradição, a várias pessoas negras que contribuíram para que o constitucionalismo chegasse ao patamar de debate e engajamento político no qual se encontra hoje.
Só para encerrar, eu gostaria de convocar todos a lerem pessoas negras, ouvirem pessoas negras, verem pessoas negras, em especial mulheres negras. Talvez esse seja o primeiro degrau para que a gente pense em estratégias verdadeiramente coletivas de enfrentamento ao racismo.
É isso. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Muito bem. Obrigado, Philippe Oliveira de Almeida, Professor adjunto de Filosofia do Direito na Faculdade Nacional de Direito UFRJ, Pós-doutor pelo Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina e pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Meus cumprimentos por toda sua fala, muito conteúdo, mas eu não poderia deixar de lembrar o início, em que você fez uma citação do Abdias. E nós estamos aqui no plenário com o neto do Abdias, estou certo ou estou errado?
(Manifestação da galeria.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Neto do Urbano, que vai fazer uma homenagem ao Abdias. (Palmas.)
R
Muito bem.
Dá um abraço aqui. A homenagem é ao Abdias... (Palmas.)
... mas eu é que ganho o presente.
Vem cá, vem cá. Diga aí, você é neto...
O SR. JOÃO PEDRO VILLELA (Para expor.) - Bom dia.
Sou neto do Urbano Villela. Meu avô é artista plástico aqui da Casa, ele teve um grande apreço ao Senador Abdias e hoje resolveu presentear ao Senador Paim, nosso conterrâneo lá do Rio Grande do Sul, esse retrato a óleo.
Obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Eu é que agradeço, viu?
(Manifestação da plateia.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Pegue toda a mesa aí. (Pausa.)
Muito bem.
Muito obrigado.
Vou falar um pouquinho aqui, rapidamente, sobre o Abdias.
Eu era Deputado Federal, eu saía lá da Câmara e vinha assistir ao discurso do Abdias. Eu ficava impressionado com a coragem, a valentia, a firmeza, o conhecimento. Um homem, como eu digo, de cabelos prateados, na tribuna, falando praticamente com o público - naturalmente, pela TV Senado - e falando para mim, no Plenário, porque poucos ouviam. Eu ficava ali sentadinho, mas emocionado com a valentia daquele homem, e ele se tornou uma referência para todos nós.
Quando pedem para mim: "Qual é a sua grande referência do movimento negro?", que me desculpem todos aqueles, porque são inúmeros lutadores, mas eu olho para o passado e lembro o Zumbi, e, mais no presente, bem próximo, o Abdias.
Eu convivi com ele aqui dentro. Ele foi Senador, ele foi Senador da República, e eu vim assistir aos pronunciamentos do nosso querido Abdias.
Um dia me deram a oportunidade - o Lula que me deu -, uma homenagem para o Abdias no Itamaraty, e pediu que eu falasse em nome da Casa, enfim, da instituição. E eu fui falar e fiz uma poesia chamada Abdias, um homem além do seu tempo. Essa poesia, eu a tenho comigo hoje, eu a coloquei em livros que publiquei. A viúva dele, recentemente, em Porto Alegre, em um gesto muito bonito, fez uma exposição do Abdias e botou um poeta a declamar essa poesia.
Eu vou lhe dar uma cópia da poesia, viu? É uma poesia que eu mesmo... Naquele dia, eu declamei. Ele estava, eu acho, com 92 anos, de cadeira de rodas no Itamaraty. Eu escrevi de noite, e ali, naquele momento, eu a declamei - mas, claro, lendo. Eu não tenho a memória. Eu fiz, escrevi e tive que ler, mas li com muita emoção, com muita coragem.
Depois me pediram qual era a grande referência. Eu digo: não tem como. Eu olho para o mundo, vejo a imagem do Mandela. Porque eu estive lá, quando o Mandela estava no cárcere ainda - a Folha de S. Paulo até fez uma matéria nesse sentido hoje. Eu fui com o Caó, com o Edmilson e com a Benedita - que era a bancada negra -, Domingos Leonelli e João Herrmann, que já faleceu. Fomos lá entregar uma carta da Assembleia Nacional Constituinte, mas estava se concluindo o processo. Tanto que, no fim daquele ano, ele foi liberto, virou Presidente da África do Sul e voltou ao Brasil. Nós tivemos a alegria de recebê-lo também aqui no Brasil.
Permita-me aqui uma homenagem ao Nelson Mandela, porque eu ouvi uma frase - esteve também no Brasil - do Bill Clinton. Ele disse: "Entendam vocês: em qualquer ambiente em que o Mandela entrar, ele não precisa falar. Só a presença dele, quando ele entra, todo mundo fica em silêncio, como que encantado". Não era porque ele era bonito, ou era feio, se era alto, ou se era magro. Era a energia que ele transmitia.
R
Essa frase eu nunca mais esqueci, que nós ouvimos sobre o Nelson Mandela.
(Manifestação da plateia.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Nelson Mandela presente.
Martin Luther King presente.
Todos os nomes podíamos lembrar aqui, dos grandes...
Zumbi presente.
E, como você já disse antes, o do Abdias.
Dandara também, que nós acabamos citando antes, presente.
Mas, falando em Dandara, eu vou aqui dizer. Saiu uma entrevista minha grande, vocês vão acabar pegando, Folha de S.Paulo, de página inteira, sobre a questão racial por ser um dos poucos negros que chegou ao Senado e está vivo ainda. Porque chegou a Benedita, chegou o Abdias e cheguei eu, desse período de tantos anos. Aí perguntaram para mim, da Folha de S.Paulo, vocês vão ver lá - e falo aqui em homenagem às mulheres -, o que eu acho desse movimento que está sendo feito por negros e negras e brancos de termos uma mulher no Supremo Tribunal Federal. Eu disse, com todo o carinho e respeito que tenho pelo Presidente: É claro que eu gostaria de ver uma mulher negra lá no Supremo Tribunal Federal, mas quem escolhe é o Presidente. Ele tem autoridade para escolher. E eu sei que aqui tanto a Lívia como a Vera são pré-candidatas. Mas foi essa a resposta que eu dei, que eu gostaria muito de ver uma mulher negra no Supremo Tribunal Federal.
Então, deixei ali a minha posição clara, mas eu digo: Olha... E uma vez eu dei uma resposta quando alguém questionava o Lula: Eu tenho o maior carinho pelo Lula naturalmente, sabem disso. E ali fala que, inclusive, quando eu vim do Rio Grande do Sul para ser Constituinte, eu morei alguns meses com ele e com o Olívio aqui numa república e, depois, eu me desgarrei. Como sempre digo, eu sou um homem do mundo. Eu me desgarrei e fui... E continuei aqui. E, naquela oportunidade, eu me lembro de que nós falávamos sobre a questão racial e da importância da Constituinte e de qual era a tendência de nós outros todos... Do Lula eu tenho certeza, eu me lembro, de que ele ia ser Presidente da República. E isso se concretizou. O Lula foi Presidente da República e está sendo esse homem aí que todo mundo, eu digo o mundo hoje rende homenagens a ele. E não vou comentar aqui agora a questão da Argentina.
Mas o que eu ia falar no final, para não fugir do assunto das mulheres do Supremo, eu disse o seguinte. Uma vez eu ouvi o Lula dizer uma frase de forma muito respeitosa e carinhosa. Queriam pressioná-lo a tomar uma posição e ele disse: "Olha, a minha posição eu vou tomar no momento adequado. Agora, se alguém quiser tomar posição no meu lugar, é fácil: candidate-se e se eleja. Daí você toma a posição que você quiser". (Risos.)
Eu achei uma resposta... Porque ele é muito carinhoso. Com muito carinho, ele respondeu dessa forma.
Então, vamos esperar, mas eu tenho certeza de que vai chegar o momento em que teremos mulheres negras no Supremo Tribunal Federal - não é, Lívia? Não é, Vera? Não sabemos o momento, mas que vamos, vamos chegar. (Pausa.)
Exatamente.
Muito bem. Agora só falta... (Pausa.)
Está bom.
Então, agora, Dra. Lívia Sant'Anna Vaz, Promotora de Justiça do Estado da Bahia.
R
A SRA. LÍVIA SANT’ANNA VAZ (Para expor.) - Muito bom dia a todas, a "todes", a todos. Senador Paulo Paim, é uma imensa honra estar mais uma vez nesta Casa, a convite de V. Exa., para uma audiência pública, sempre pensando a nossa democracia.
Eu digo que a questão do racismo nem é um tema, é uma questão sobre a nossa... talvez não democracia, porque estamos num processo de construção democrática no país, mas falar sobre uma Constituição antidiscriminatória e uma Constituição antirracista passa por retomar a ideia de constitucionalismo negro, também colocada pelo Prof. Samuel Vida, meu conterrâneo, Professor da Universidade Federal da Bahia, porque o constitucionalismo negro, que é antidiscriminatório e é antirracista, não se limita à pauta da questão racial, ele não se encerra nem se limita no texto da Constituição, mas o inspira e deve continuar inspirando esse texto. E é muito importante, quando falamos em constitucionalismo negro, retomarmos as nossas referências para a construção desse constitucionalismo. E, como o Prof. Philippe lembrou a Revolução Haitiana, que resulta na Constituição haitiana de 1805, que nós, por conta do epistemicídio, acabamos não conhecendo e não celebrando e não festejando, eu quero lembrar: antes da Revolução Haitiana, da Revolução de Palmares, parece-me que a população negra brasileira nunca vivenciou democracia, salvo em Palmares, cujo território abraçou, por um século, gerações de pessoas negras, livres em pleno regime escravocrata. E, se nós temos um constitucionalismo negro que nos precede, que nos permite estarmos nesta Casa hoje, é preciso reverenciar as pessoas que construíram esses caminhos, porque, afinal de contas, os nossos passos vêm de muito longe e de muito antes do processo escravocrata.
Palmares, assim como muitas outras iniciativas de constitucionalismo negro e dos movimentos negros, gerou reações duras, violentas, cruéis. Porque Palmares, José Ribamar, era justamente a antítese do que se queria em termos de manutenção da hegemonia branca no Brasil. Se o nosso sistema político escravocrata prezava uma monocultura da terra, que desgastava o solo, grandes latifúndios, Palmares prezava uma policultura. E eu sempre digo: quando não dava mandioca, dava um aipim; se não desse o milho, dava o arroz, dava o feijão. E nós somos isso, essa multipotência, essa possibilidade de diversas dimensões de construção constitucionalista, inclusive. E era em Palmares que homens e mulheres, lado a lado, em igualdade de condições, lideravam a defesa de sua propriedade coletiva.
Então, nós temos muito a beber dessa fonte que foi e que é o constitucionalismo de Zumbi dos Palmares, celebrado no dia de hoje, 20 de novembro, para dizer que, se Palmares não vive mais, nós faremos Palmares de novo, estamos fazendo Palmares de novo todos os dias. E é preciso lembrar de Zumbi, mas também de Dandara, de Zeferina, de Acotirene, de Zacimba Gaba, de Maria Felipa e de tantas outras personalidades negras que nos permitiram, de fato, continuar avançando. Eu não posso me esquecer de Lélia González, Beatriz Nascimento, Luiza Bairros, queridíssima e saudosa Luiza Bairros, a nossa Ministra Matilde Ribeiro, a nossa Ministra Nilma Lino.
R
Lembrando Nilma Lino, eu preciso falar de uma concepção tão importante que ela traz do movimento negro educador. O movimento negro no Brasil é educador, segundo Nilma Lino, porque, na luta emancipatória por liberdade e emancipação, vai educar a sociedade brasileira, o Estado brasileiro, mas vai educar também a si própria. E é por isso que os movimentos negros não são identitários num termo pejorativo que querem imputar, afinal de contas, pessoas brancas também têm identidade de gênero, de raça, cor, territorial e outras tantas. É por isso que é tão importante pensarmos que o movimento negro nunca lutou apenas contra o racismo, mas contra o sexismo, a LGBTfobia, o genocídio da juventude negra, o capacitismo, o etarismo. Portanto, de fato, o movimento negro segue nos educando para construirmos cotidianamente essa Constituição antirracista e antidiscriminatória.
Por isso, no livro A Justiça é uma Mulher Negra, que escrevi em coautoria com a Dra. Chiara Ramos, defendo, Senador Paulo Paim, a interseccionalidade como um princípio constitucional, como um metaprincípio, como um princípio método de aplicação e interpretação da nossa Constituição e da nossa legislação, de modo que todas as pessoas sejam enxergadas pela Justiça. Ensinaram-nos a pensar na imagem da Justiça como uma mulher branca - de origem grega, inclusive - de olhos vendados. E eu digo que nós precisamos de uma Justiça de olhos abertos, de olhos muito atentos a todas as desigualdades que se perpetuam na sociedade brasileira, para que ela possa corrigir essas desigualdades.
E, se eu falei dessas referências tão importantes, eu tenho que dizer que a presença de Congressistas negros nesta Casa foi fundamental para que nós chegássemos até a essa legislação antirracista que temos hoje.
Quero lembrar, por óbvio, Abdias Nascimento; lembrar um projeto de lei de 1983, que, se hoje estivesse em pleno vapor, nós teríamos uma outra sociedade, porque Abdias, visionário que era, já pensava em medidas de compensação para a população negra, inclusive indenização para descendentes de pessoas escravizadas. Abdias falava na ocupação efetiva de todos os órgãos públicos com uma reserva de vagas de 20% para mulheres negras e de 20% para homens negros. O que é isso senão a visão interseccional das políticas públicas? Daí a necessidade desse instrumento fundamental para que nós possamos desenvolver a democracia no nosso país?
E não podemos deixar de falar na Benedita da Silva, essa mulher que tanto nos representa e que dedicou uma vida inteira à igualdade racial e à democracia brasileira.
Mas eu queria, Senador Paulo Paim, neste momento, lembrar a trajetória de V. Exa., porque é em vida que a gente tem que festejar as pessoas, celebrar as pessoas. O senhor falou do seu filho, mas, no fim das contas, o senhor acaba sendo também pai de todas as pessoas negras e antirracistas e da democracia brasileira. É uma pessoa que dedicou... (Palmas.)
Uma salva de palmas mesmo, em agradecimento, Senador Paulo Paim, porque V. Exa. é uma pessoa que dedicou a sua trajetória e a sua vida não a conquistas individuais, individualistas, mas à repercussão coletiva dessas conquistas. Isso a gente aprende em Palmares, isso a gente aprende com o nosso povo.
Então, quando... (Palmas.)
Eu agradeço ao senhor hoje. Já agradeci em meu nome, mas eu agradeço também em nome da nossa ancestralidade, em nome das minhas filhas e das futuras gerações.
R
E eu ouvi uma frase muito bonita recentemente, que eu não tinha elaborado ainda, embora sentisse. Quando nós nos colocamos nesse lugar de transcender a individualidade para alcançar o coletivo com justiça, equidade e democracia, nós não curamos apenas a nós; nós curamos e libertamos os nossos ancestrais, que não tiveram condições de ser libertados e de ser curados. (Palmas.)
Então, isso me anima a continuar.
Mas pensar a nossa Constituição de 1988 é pensar a grande participação dos movimentos negros educadores na Constituinte, porque, se não fossem os movimentos negros educadores, nós não teríamos o princípio do repúdio ao racismo, que deve ser considerado sistematicamente em todo o texto constitucional. O legislador Constituinte se antecipa ao legislador infraconstitucional e já diz que o racismo é crime imprescritível e inafiançável.
Mas não é apenas isso: nós temos a primeira Constituição que vai pensar as terras quilombolas e indígenas, territórios sagrados de resistência do nosso povo, que não podem ser desrespeitados. Nós temos a primeira Constituição que irá trazer como valor fundamental...
(Soa a campainha.)
A SRA. LÍVIA SANT’ANNA VAZ - ... o princípio da igualdade material. Nós não podemos ter uma igualdade apenas no papel. Isso precisa se concretizar na prática.
Eu vou lembrar a fala da Dra. Thula Pires, a quem cumprimento, se estiver ainda online, quando fala da Convenção Interamericana contra o Racismo. Eu me recordo de que, em 2020 ou 2021, foi criada uma comissão de juristas negras e negros pela Câmara dos Deputados, justamente para revisar a legislação de racismo. Eu tive a honra de participar dessa comissão, presidida pelo Ministro Benedito Gonçalves, cuja relatoria coube ao Ministro Silvio Almeida, que trouxe um relatório de quase 500 páginas, muito bem elaborado, pensado e construído, justamente para que chegássemos a essa Constituição democrática. E, hoje, essa Convenção Interamericana é apenas o terceiro tratado de direitos humanos internacional que tem status de norma constitucional. Nós não podemos esquecer isto: é norma constitucional, é texto da nossa Constituição e traz concepções e normativas importantíssimas para nós, como a discriminação racial indireta, o racismo institucional.
Mas aqui eu quero me fixar no Artigo 9 da Convenção Interamericana contra o Racismo, que traz como obrigação dos Estados - e o Brasil não só assina e ratifica, mas traz como texto constitucional essa norma - garantir, manter a diversidade étnico-racial em seus sistemas político e jurídico. Então, nós temos, de fato, um estado inconstitucional de coisas, se pensarmos que é uma obrigação do Estado ter essa diversidade étnico-racial em todos os espaços. E deixo a reflexão aqui sobre o que vamos fazer para garantir essa diversidade, especialmente nos sistemas político e jurídico no nosso país, que são espaços transformadores.
Eu vou partindo para o final, lembrando que Ulysses Guimarães chamou a nossa Constituição não só de Constituição Cidadã, mas de Constituição Coragem: uma Constituição que ousou defender a democracia, uma democracia que nós ainda estamos por construir.
E eu vou invocar a Revolta dos Búzios, ou a Conjuração Baiana, de 1798, trazendo para vocês a memória de que, no dia 12 de agosto de 1798, as igrejas e prédios públicos em Salvador amanheceram com a seguinte mensagem: "animai-vos, ó povo bahiense, que está para chegar o tempo feliz da nossa liberdade, que está para chegar o tempo em que seremos todos irmãos".
E Gilberto Gil diz que: "A felicidade do [povo] negro é uma felicidade guerreira!" - a felicidade do povo negro é uma felicidade guerreira. Que nós tenhamos essa felicidade guerreira para seguir defendendo a nossa Constituição e para reorientar a nossa democracia e a nossa sociedade.
R
Se pode chorar, eu acho que eu posso terminar com uma cantiga bem curtinha.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS. Fora do microfone.) - Deve! Você tem três minutos ainda.
A SRA. LÍVIA SANT’ANNA VAZ - Vamos lá. Que não toque esse sino antes de eu terminar!
É muito curtinha, é uma música de Luedji Luna que se chama Cabô - mas vou cantar só um pedacinho -, que diz assim: "Quem vai pagar a conta? Quem vai contar os corpos? Quem vai catar os cacos dos corações? Quem vai apagar as recordações? Quem vai secar cada gota de suor e sangue? Cada gota de suor e sangue. Cabô."
Que nós tenhamos a capacidade, como nação, de secar cada gota de suor e sangue do nosso povo.
Obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Muito, muito bem. Bela exposição! E nos brindou aqui - como é que a gente fala? - com uma palhinha. Mas podia continuar cantando, nós queríamos que você continuasse. Quando para mim pedem "Paim, canta!", digo que "o máximo que eu faço é ler e tentar declamar", mas pedir para eu cantar... Aí alguém no Plenário diz: "Olha, eu soube que ele é até um bom Senador, mas nunca será um bom cantor. Então, não vamos constrangê-lo".
Mas, olha, parabéns, Dra. Lívia Sant'Anna Vaz, Promotora de Justiça do Estado da Bahia, pela sua exposição.
E você lembrou aqui esse projeto do Abdias. Deixa eu... Quero dar o mérito a quem de direito. O Governo do Presidente Lula está trabalhando com essa ideia desse projeto. Mas, como o Abdias não está mais aqui, e eu ainda estou, e como eu apresentei o projeto do Abdias, em outras palavras, eles vão atualizar o projeto - essa é a ideia -, mas com o espírito do projeto do Abdias. Eu ficarei bem feliz se um dia for dito que essa lei foi inspirada na lei do Abdias. (Palmas.)
Essa é a intenção.
O Contarato é o Relator, e ele está com essa visão também, conforme a orientação do Palácio: "Olha, vamos pegar o projeto do Paim, que vai na linha, e vamos atualizar pelo projeto de lei do Abdias". E o Contarato também é simpático à ideia. Eu não estou entrando no detalhe porque eu não fui autorizado a falar como é que vai ser, mas esta é a ideia: a ideia é olhar a proposta apresentada pelo Abdias, atualizar em cima do projeto que já está tramitando e está na mão do Contarato. Eu achei uma bela iniciativa do Presidente Lula e que você aqui lembrou muito bem.
Vamos torcer. Eu gostaria que se aprovasse este ano ainda, não é? Mas a lei que existe hoje da cota no serviço público - é disso que nós estamos tratando - vai até junho; até lá, a gente pode fazer com que seja uma homenagem ao Abdias. Porque a lei que eu apresentei é fruto de um projeto dele que ficou aqui, e eu, naturalmente... Não que eu seja herdeiro dele, mas tudo aquilo de bom que ele apresentou ao Brasil e ao mundo, se a gente puder representar, estamos cumprindo o nosso papel também, não é?
A SRA. LÍVIA SANT’ANNA VAZ (Fora do microfone.) - Lei Abdias Nascimento, não é?
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Lei Abdias Nascimento. Vamos trabalhar com essa ideia. Essa é a intenção. E você agora aqui carimbou. Diz lá para eles.
R
E você agora aqui carimbou. Diz lá para eles.
A SRA. MARINA ANDRADE (Fora do microfone.) - Foi a iniciativa também comentada pela Dra. Lívia, Senador.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Ela falou aqui agora. Ela falou aqui agora sobre isso, por isso que eu entrei no gancho. Ela falou isso agora, deu até o ano. Qual o ano que você falou aí?
A SRA. LÍVIA SANT’ANNA VAZ (Fora do microfone.) - A do projeto do Abdias? 1983.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - 1983.
(Intervenções fora do microfone.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Você que me provocou então? Eu nem sabia. Eu sei que me apresentaram a ideia. Disseram: "Olha, quem sabe você apresenta esse projeto?". (Palmas.)
Então, mais uma vez, meus cumprimentos à Dra. Lívia e com a sugestão de Lei Abdias, se nós conseguirmos chegar lá. Parabéns, Doutora.
Agora vamos, então, para o Doutor e Mestre em Direito Público pela Uerj, Dr. Wallace Corbo.
O SR. WALLACE CORBO (Para expor.) - Bom dia a todos. Bom dia, Senador Paulo Paim, que cumprimento por esta iniciativa. Fico muito feliz em estar aqui na Comissão de Direitos Humanos neste dia 20 para celebrar, mas, como disse a Profa. Thula Pires antes de mim, não pode ser uma celebração desconectada da realidade, que vem com tantas dificuldades.
Eu queria começar pensando sobre o título desta nossa audiência pública, porque é um título muito provocativo: "Uma Constituição antidiscriminatória e antirracista". E nós temos uma Constituição antidiscriminatória e antirracista. Quer dizer, a Constituição de 1988, no seu texto original, determinou a promoção do bem de todos sem qualquer forma de discriminação, determinou a punição de toda forma de discriminação na forma da lei, determinou um princípio de vedação ao racismo nas relações internacionais do Brasil, criminalizou o racismo como crime inafiançável e imprescritível, como já trabalhado e mencionado anteriormente. Então, não existe dúvida; para além de outros momentos em que a Constituição vai tratar dos povos indígenas, de pessoas quilombolas, não existe dúvida de que o texto constitucional, muito por atuação também do Senador Paulo Paim, traduziu o que uma Constituição é, porque uma Constituição não é só um conjunto de regras ou um conjunto de princípios, até porque muitas pessoas sequer leram esse conjunto de regras ou princípios, e nem por isso deixam de ter Constituição. A Constituição é um repositório das nossas aspirações e dos nossos sonhos; sonhos que foram sonhados muito antes de nós, sonhos que foram traduzidos em palavras em 1987 e 1988, sonhos de que a gente ainda está um tanto longe de concretizar.
Essa distância de concretizar os sonhos - eu vou aproveitar para direcionar a minha fala um pouco para essa última discussão que foi trazida aqui -, essa dificuldade de concretizar esse sonho vem, em larga medida, porque essas aspirações traduzidas na Constituição, em outras normas jurídicas, encontram resistências constantes no campo dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Basta nós pensarmos no caso da criminalização do racismo. A Constituição diz claramente que o racismo é crime inafiançável, cria-se a Lei Caó, estabelecem-se os tipos de racismo, e a primeira coisa que nós temos no campo da jurisprudência é que, veja bem, insultos racistas não são racismo. Então, este Congresso Nacional, inclusive por iniciativa e relatoria do Senador Paulo Paim, cria novos tipos penais, incluindo a injúria racial, para deixar claro que injúria racial também é uma forma de crime. E o que diz a jurisprudência? "Não, mas, veja bem, não está dentro da lei do racismo, não está no Código Penal, portanto não é imprescritível e não é inafiançável". Daí precisamos de mais 20 anos depois da última reforma da Lei Caó para fazer uma nova reforma e, aí sim, criar o tipo injúria racial, deixar claro que a injúria racial é racismo. E veremos o que a jurisprudência vai fazer a partir daqui. Isso pensando em criminalização do racismo, mas poderíamos pensar também na questão das cotas.
R
Nós tivemos dificuldade de criar as cotas. De fato, o Estatuto da Igualdade Racial não conseguiu estabelecer porque, se não, não passava. Não conseguiu estabelecer as cotas. As cotas foram estabelecidas. Eu tenho muito orgulho de ser professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a primeira universidade do Brasil a estabelecer política de cotas... (Palmas.)
... por iniciativa e liderança também da nossa grande Benedita da Silva, que era Vice-Governadora à época, Governadora em exercício no Estado do Rio de Janeiro e capitaneou essa legislação. Uma lei que foi impugnada também no Estado do Rio de Janeiro. A primeira Lei de Cotas no Rio de Janeiro foi suspensa pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Depois teve que ser reeditada.
Então, criamos a Lei de Cotas, e o que vimos imediatamente? Discussão judicial porque rapidamente, quando se cria a Lei de Cotas, surge aquela discussão sobre se existem negros no Brasil, se alguém é negro no Brasil. Na hora do benefício, na hora do acesso, não existem mais negros. Existem negros só no momento da dura policial, no momento de ser preso, no momento de ser considerado traficante no lugar de usuário de drogas para fins de legislação penal.
Então, o espaço institucional no Brasil tomou essa constituição, que estabelece uma série de dispositivos notadamente antirracistas, por mais que pudesse ter dito mais, mas disse já o suficiente, e constantemente desmantelou ou tentou desmantelar - essas diferentes instituições tentaram desmantelar - esses avanços constituintes ou esses avanços legislativos, enfraquecendo a legislação antidiscriminatória, a ponto de precisar o Supremo Tribunal Federal dizer - o que deveria ser evidente - que as cotas são compatíveis com a Constituição, confirmando, portanto, a atuação tanto executiva quanto legislativa na matéria.
Daí, portanto, que, se nós queremos pensar um futuro em que nós possamos, como provocou com muita clareza a Profa. Thula Pires, se nós queremos daqui a cinco anos fazer uma celebração apenas comemorando nossas vitórias - e foram muitas vitórias, muitas vitórias de quem nos antecedeu -, nós precisamos pensar também como é possível minar esses obstáculos que são colocados por instituições postas, instituições que não necessariamente têm compromisso antirracista e que não entenderam as esperanças depositadas na Constituição.
E eu queria colocar duas provocações aqui apenas, no campo legislativo, portanto, que permitiriam avançar um constitucionalismo antirracista para além dos necessários debates filosóficos e teóricos que nós temos a esse respeito.
A primeira diz respeito à educação jurídica. Eu tenho algum tipo de desconfiança na capacidade de a educação jurídica por si só, ou seja, o mero acesso à universidade, seja ela pública, seja privada, de qualidade, por si só, ser suficiente para gerar uma mudança de pensamento, porque o pensamento jurídico brasileiro ainda é um pensamento que tem dificuldade de lidar com esses ditames antirracistas. Mas, se nós pensarmos no campo da formação dos saberes jurídicos, existe um espaço aqui de atuação necessária que vai além da legislação de cotas nos serviços públicos. Não conheço essas iniciativas mais recentes, mas certamente poderão se valer desse tipo de reflexão, que é o fato de que, se nós pensamos em formação do saber, nós estamos pensando especialmente no espaço do corpo docente das instituições de ensino. E, no âmbito do corpo docente das instituições de ensino, nós temos uma completa inefetividade da legislação de cotas. Por uma razão muito simples, a Lei de Cotas vai reservar 20% dos cargos abertos para pessoas negras, e não existe concurso público para professor com mais de duas, três, quatro vagas. Muito raro. Existem alguns professores que ingressaram pelo sistema de cotas, mas isso é quase impossível. De modo que furar o cerco é muito difícil. Abre-se uma vaga, duas vagas; se são cinco vagas, então, você fraciona o concurso em cinco vezes.
R
Então, nós precisamos pensar também, no campo das políticas de ações afirmativas, como que nós podemos permitir ou evitar esses tipos de fraude à lei de cotas como forma de assegurar um corpo docente mais plural, porque, quando o corpo docente é mais plural, isso modifica não só o corpo docente, mas também os horizontes dos alunos.
Eu ingressei na UERJ como professor no ano passado e eu sou o segundo professor negro da UERJ hoje, ou seja, existem dois professores negros na instituição. E eu não consigo contar quantos alunos por dia me procuram, alunos negros me procuram para dizer como que eles estão absolutamente impactados pelo fato de que eles nunca tiveram professores negros, me fazendo parar para pensar que eu também nunca tive professores negros no ensino superior - eu tive no ensino básico, mas não no ensino superior.
Se nós não tivermos professores negros pensando o direito, junto com os movimentos sociais, revendo as nossas premissas epistemológicas e epistêmicas, a interpretação jurídica e construindo o saber jurídico, nós não conseguiremos avançar para além de simplesmente declamar que somos contra o racismo. Como disse a Profa. Thula Pires: se nós não temos juristas negros pensando o direito e tornando esse pensamento um pensamento difundido, o que nós fazemos hoje a duras penas, nós teremos interpretações formalistas do direito que fazem com que - eu não tinha a informação ainda - movimentos sociais que representam pessoas negras sejam facilmente colocados de fora das discussões que tratam do racismo estrutural, seja no Executivo, no Legislativo, seja, neste caso, no âmbito do Poder Judiciário.
Então, o primeiro ponto que eu queria levantar diz respeito a essa necessidade de revisar as políticas de ações afirmativas também no corpo docente das universidades para que nós possamos promover saberes negros liderados também por pessoas negras nesse espaço intelectualizado e elitizado do ensino. Isso num campo.
Num segundo campo, é preciso também que nós pensemos em como efetivamente transformar a própria formação...
(Soa a campainha.)
O SR. WALLACE CORBO - ... do corpo burocrático, do corpo institucional, do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Vejam, é evidente que, no campo das políticas de ações afirmativas, existe um aspecto reparatório, existe um aspecto distributivo de eu assegurar acesso de pessoas negras a espaços que são condição para ter dinheiro, para ter renda, para ter uma vida boa, mas a maior transformação que uma política de ações afirmativas pode gerar é efetivamente transformar a forma pela qual o Estado funciona, se eu estiver falando de ações afirmativas no Estado, quer dizer, é a pessoa procurar o Estado no SUS, procurar o Estado na polícia, procurar o Estado nesses diferentes espaços, no Judiciário, nas repartições públicas e encontrar a si mesma e, no que ela encontra a si mesma, ela é tratada como gente.
A política de cotas, no serviço público como um todo, avançou muito, mas é preciso pensar sobre os espaços em que ela não avança. Ela não avança onde, por exemplo? Em alguns estados, por exemplo, ela não avança no campo das carreiras jurídicas, digamos, as mais elitizadas. A Defensoria Pública não aprova cotistas, o Poder Judiciário não aprova cotistas, tem um número de vagas reservado, mas nunca esse número de vagas é preenchido. É preciso pensar estratégias para que nós possamos transformar essas instituições, porque, se nós não transformarmos essas instituições, não importa que nós internalizemos a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de intolerância, porque, se quem for decidir chegar para o processo decisório interpretativo e disser "veja bem, o Brasil tem uma forma específica de democracia racial, é assim mesmo e tá tudo certo", nós não transformamos em realidade aquelas esperanças da Constituição.
Não falta mais regra jurídica no nosso ordenamento constitucional. Podia faltar antes, a gente tinha que construir um pouco mais, porque a Constituição, de fato, podia ter dito um pouco mais, mas agora, com a Convenção Interamericana, existe o dever do Estado de lidar com segurança pública pensando na questão racial. Agora, com a Convenção Interamericana, existe o dever do Estado de pluralizar os espaços políticos e judiciais por meio de ações afirmativas. Agora, com a Convenção Interamericana, existe o dever de estabelecer ações afirmativas no âmbito privado e no âmbito público.
R
Não falta regra, não falta norma jurídica. Falta o quê? Falta nós tirarmos esses obstáculos que impedem que nós cheguemos aqui hoje fazendo um debate puramente celebratório, que era o que nós mais queríamos fazer, mas que exige que nós façamos um debate também de muitos outros passos que precisamos dar. Mas eu fico muito feliz que estejamos dando esses passos, construindo em conjunto, ao lado de amigos, de amigas de inspirações de uma jornada.
Eu agradeço muito por poder fazer parte dessa luta e desse pensamento e fico aqui à disposição para mais luta, para mais pensamento, para mais reflexão, para nós, efetivamente, buscarmos esses sonhos e essas aspirações no nosso mundo real.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Muito bem, Dr. Wallace Corbo. O Wallace Corbo é Doutor e Mestre em Direito Público da UERJ.
Se você me permitir, eu resumo numa frase a sua fala, que foi muito, muito boa. Foi praticamente ajustado para você fazer essa fala no final. A luta foi dura durante o tempo - todos esses tempos -, mas eu tenho uma frase que eu usei na minha primeira campanha, estou lembrando aqui agora. Então, calcule: foi lá na Constituinte, período pré-Constituinte. E o símbolo da minha campanha... Eu dizia que nós, lutadores sociais - negros, brancos, sindicalistas -, fizemos muito, mas temos muito ainda por fazer. Por que eu digo isso? Hoje eu diria a mesma frase: fizemos muito durante todo esse período, mas temos muito ainda por fazer. É aqui que eu faço, de forma simbólica, a sua fala.
E ainda tem uma outra que eu gosto muito, até repetitivo eu sou, mas eu vou dizer.
Olhem, todos os convidados que aqui falaram, eu gosto daquela frase que diz: é muito bom, mas é muito bom mesmo saber que no mundo existem pessoas iguais a vocês.
A salva de palmas é para vocês. (Palmas.)
É para vocês.
Nós temos que ir para o encerramento. E eu, por dever de ofício aqui, vou adotar um método que eu tenho usado ultimamente.
Eu vou aqui fazer a leitura do e-Cidadania, que são perguntas, e vocês poderão escolher, cada um, uma ou duas perguntas para responder - os presenciais, devido ao nosso horário. E vocês terão de três a cinco minutos para as considerações finais.
E-Cidadania, perguntas.
Thaynara Brito, de Minas Gerais: "Quais seriam as políticas públicas para garantir os direitos sociais?".
Adriano Bandeira, do Espírito Santo: "Como superar o desafio de uma Constituição antirracista quando as leis que a apoiam são percebidas como fracas, sem punições significativas?".
Aqui eu leio tudo, viu?
Genyvall Paullo, de Alagoas: "Por que não [abordar também] [...] [o combate ao] bullying [...]? [...] Muitos [...] [sofrem e alguns chegam a tirar suas vidas por conta disso] [...]. [...] [Quem já passou sabe o quanto é doloroso] [...]".
Comentário.
Ana Cristina, de Minas Gerais: "Não precisamos de mais leis, basta [...] [aplicar] [...] [as] leis que já temos. Criar leis para grupos específicos só segrega cada vez mais a sociedade".
R
Luiz Guerra, de Pernambuco: "É necessário, de tempos em tempos, atualizar nossa constituição para refletir justiça social, equidade e igualdade".
Valéria Sá, do Rio de Janeiro: "Políticas de cotas ou similares, são justificáveis de certa forma, porém investir em igualdade educacional para todos é chave antirracista".
Kristhian Dayvison, de São Paulo: "Como uma constituição pode ser formulada de maneira eficaz para ser antidiscriminatória e antirracista?".
Carlos Henrique, de São Paulo: "Quais serão as políticas-públicas determinantes [...], de forma a garantir os direitos do povo negro nas áreas social, econômica e política?".
Roberto Nascimento, do Rio de Janeiro: "Por que o racismo é utilizado de forma massante [como] ataques contra negros? Brancos não sofrem racismo? Ou mesmo outra raça?".
Adriano Bandeira, do Espírito Santo: "Como garantir efetivamente que uma Constituição seja, conforme o tema, considerando não apenas palavras no papel, mas implementação prática?".
E por fim, Joyce Adriano, de São Paulo: "Se conseguirmos mudar a postura da sociedade e fazer com que novas políticas públicas sejam eficientes, talvez tenhamos um país mais justo".
Vanessa Andrade, de Minas Gerais: "O fato é que nós somos um País miscigenado, no qual todos temos os mesmos direitos, não [...] [há motivo para] ficar criando separação das pessoas".
Luciana de Barros, de Mato Grosso do Sul: "Nossa Constituição diz que todos são iguais perante a lei. Não precisamos mudar a CF e sim o discurso. Chega de privilégios [...] [para alguns]."
Lauro Lasmar, do Amazonas: "Acredito que ter consciência de classe, é primordial para debater esta pauta, sobre políticas antirracistas no país".
Bom, aqui no finalmente, porque nós estamos com um problema de horário, eu vou dar cinco minutos para os que estão presentes. Se quiserem responder a qualquer uma das perguntas ou fazer um comentário dos comentários, fiquem à vontade. Se não, usem o tempo para expressarem a sua opinião sobre esse dia e o debate do dia de hoje.
Eu vou inverter agora. Vamos começar do último para o primeiro. Então vai ser, pela minha ordem aqui, o Wallace mesmo. Wallace Corbo, Doutor e Mestre em Direito Público da UERJ.
O SR. WALLACE CORBO (Para expor.) - Muito obrigado, Senador.
Muito brevemente então, tentando endereçar a questão colocada quanto a quais políticas públicas podem ser adotadas. É claro que, para responder quais são as políticas públicas necessárias para uma sociedade antirracista, nós precisaríamos de muito mais do que cinco minutos, de modo que eu quero apenas ajudar a visualizar como é que o desenho de políticas públicas é essencial, quer dizer, nós falamos muito aqui, sempre surgem pelo menos duas grandes questões: de um lado, a criminalização do racismo; de outro lado, as políticas de ações afirmativas.
São duas formas de enfrentar o problema do racismo, não é? De um lado, punindo os crimes de ódio e, de outro lado, gerando uma inclusão em diferentes espaços elitizados, ou espaços previamente fechados, na prática, para pessoas negras.
Mas não são as únicas. É claro que o direito penal, por si só, não vai resolver o problema do racismo no Brasil, como não resolveu até hoje, por uma série de razões. E é evidente que a política de ações afirmativas... Porque essas políticas têm sido pontuais; ainda que aplicadas a todo o serviço público, isso é muito pontual. A gente não tem claramente, por exemplo, ações afirmativas no mercado de trabalho ou em outros espaços.
R
É claro que elas atuam num campo, num campo de mudança de imaginário, de horizontes, de inclusão, de distribuição, mas nós precisamos ir além. É preciso pensar que o problema do racismo não envolve um gestor público sentar um dia e pensar assim: "vou resolver o racismo". O racismo só vai ser solucionado quando o gestor de saúde pensar como a minha questão, como essa minha política de distribuição de medicamentos afeta diferenciadamente pessoas negras e como que eu resolvo esse problema; quando um gestor de economia pensar "como eu vou desenhar uma reforma qualquer que seja, pensando na especificidade de pessoas negras - porque há especificidade de pessoas negras - e na forma como elas são discriminadas na realidade.
Portanto, que políticas? Todas as políticas: política de educação, política de saúde, política em segurança pública. O Brasil mata e encarcera, mas mata e encarcera desproporcionalmente pessoas negras, jovens negros de periferia, isso é uma realidade. Nós não estamos falando aqui de pessoas, de jovens negros que foram condenados em sentença transitada em julgado, ou seja, eles não foram considerados culpados. A maior parte deles, ou uma parte relevante deles foi encarcerada preventivamente, ou seja, sem um devido processo legal encerrado. Ou pior, quando são encarcerados muitas vezes têm sorte, porque muitos são mortos em operações policiais, em abuso de autoridade.
Então, é preciso pensar segurança pública como determina a Convenção Interamericana contra o Racismo. É preciso pensar segurança pública também entendendo o impacto desproporcional que o racismo tem nessa questão. As polícias no Brasil... há ótimos policiais no Brasil - há ótimos policiais no Brasil -, mas a realidade da prática policial no Brasil é uma realidade de discriminação racial.
Quais políticas? Todas as políticas. Uma delas vai resolver o problema? Não. A gente precisa de todas em conjunto. Mas também nós não podemos esvaziar as que nós já temos, porque não estão funcionando; precisamos ampliar para as que nós não temos, para resolvermos um problema que qualquer pessoa que tem olhos para ver consegue enxergar. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Muito bem, Wallace Corbo, doutor e mestre em Direito Público, que na sua fala já respondeu uma meia dúzia de perguntas e comentários também. (Risos.)
Parabéns, viu?
Então, de imediato, na sequência, Dra. Lívia Sant’Anna Vaz, Promotora de Justiça do Estado da Bahia.
A SRA. LÍVIA SANT’ANNA VAZ (Para expor.) - Bom, aproveitando que o Dr. Wallace Corbo já trouxe uma resposta síntese, eu queria me concentrar um pouco mais na compreensão do que seja o racismo.
Tem uma pergunta muito importante aí - que na verdade mais afirma do que pergunta -: "nós estamos, com as políticas públicas e com as ações afirmativas, promovendo uma separação".
A realidade é que a separação já existe, e nós não iremos evoluir enquanto sociedade se não reconhecermos isso. E aí, por que a separação já existe? Nós tivemos um país que foi o último do Ocidente inteiro a declarar abolida a escravidão em 13 de maio de 1888. E não é só por isso, não é só pelo tempo de escravização de pessoas negras no Brasil. É porque o sistema escravocrata foi a base econômica da sociedade brasileira por séculos. E no pós-abolição, nós permanecemos com estratégias de manutenção de poder que vão continuar marginalizando pessoas negras.
No livro Cotas Raciais, eu faço um apanhado da legislação das províncias no Brasil que proibiram pessoas negras e ou escravizadas por quase um século de frequentarem a escola. Então, a instrução pública, a escola, que é um elemento importantíssimo de ascensão social... nós permanecemos por muito tempo com essa proibição legal.
R
Então, se nós falarmos hoje, tentando dar um pequeno salto histórico para os dias de hoje, na questão racial, o fator raça segue sendo o principal fator de produção e reprodução de todas as desigualdades. Da mortalidade infantil, passando pelas violências contra as mulheres - violência obstétrica, mortalidade materna, violência sexual, violência doméstica e familiar, feminicídios -, passando pelo genocídio da juventude negra, que não é só da juventude, é do povo negro, se a gente pensar na questão histórica, com o encarceramento em massa e a violência policial letal, como bem lembrou o Dr. Wallace aqui, mas também os erros, muito entre aspas, no reconhecimento de pessoas no processo penal que - eu nunca vi atingir um homem branco, por exemplo -, sempre atinge jovens negros. E, se eu for falar em expectativa de vida, pessoas negras vivem menos que pessoas brancas em todos os estados da Federação Brasileira, segundo o IBGE.
Não estou falando de um elemento tangencial, periférico. É um elemento central da nossa não democracia. Portanto, a separação já está colocada na prática, e nós só conseguiremos, realmente, extirpar essa separação, se admitirmos que ela existe.
As cotas raciais são um pequeno passo, firme, porém um pequeno passo, a primeira grande resposta do Estado brasileiro a esses quase quatro séculos de escravização. Mas não basta. Nós precisamos de todos os caminhos possíveis, porque todos os nossos direitos foram retirados. Se pensarmos no porquê da perpetuação dessa separação, desse apartheid, que só não é, nunca foi no Brasil, formalizado por lei, mas, na prática, impediu a realização de uma democracia racial...
Vou trazer aqui os dados da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) para finalizar com essa reflexão. Segundo a pesquisa Elevador social quebrado, no Brasil, nós precisamos de nove gerações - é a segunda pior colocação do mundo, perdendo apenas para a Colômbia, porque são nove gerações -, para que uma pessoa que faz parte dos 10% mais pobres da sociedade brasileira alcance a renda média.
(Soa a campainha.)
A SRA. LÍVIA SANT’ANNA VAZ - Onde nós estávamos há nove gerações? Nós estávamos em pleno regime escravocrata.
Então, as pessoas negras não tiveram base econômica, de direitos, de recursos, de propriedade, para poder ascender socialmente. Portanto, as políticas públicas, as ações afirmativas, as cotas raciais, são uma dívida histórica, que começa agora a ser efetivamente paga ao povo negro do Brasil.
Muito obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Muito bem, Dra. Lívia Santana Vaz, Promotora de Justiça do Estado da Bahia.
Meus cumprimentos pela resposta.
Agora vamos à Dra. Vera Lúcia Santana de Araújo, advogada, Coordenadora da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, membra da Frente de Mulheres Negras do DF.
A SRA. VERA LÚCIA SANTANA ARAÚJO (Para expor.) - Só para finalizar, fazendo uma correção no meu nome, é que não tem o "de Araújo". Era para eu ter dito, inicialmente. Mas isso assim, não tem nenhum problema, é só mesmo para esse pequeno registro.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Não, mas é bom esclarecer, para não ficar nos Anais.
Não tem Vera?
A SRA. VERA LÚCIA SANTANA ARAÚJO - Não tem o "de Araújo". É Vera Lúcia Santana Araújo, sem o "de".
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Está o.k.
Então, vamos providenciar para ajustar: Vera Lúcia Santana Araújo. Não tem o "de" Araújo.
A SRA. VERA LÚCIA SANTANA ARAÚJO - Eu já sofri algumas perseguições, dentro do sistema de Justiça inclusive e, numa delas, o acusador invocava que eu às vezes aparecia como Vera Lúcia Santana Araújo e outras vezes com o "de", como se fosse uma coisa assim de falseamento de identidade.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Entendi.
A SRA. VERA LÚCIA SANTANA ARAÚJO - Mas, Senador, de novo, muitíssimo grata pela possibilidade desse espaço, desse diálogo tão enriquecido por essa composição presencial e virtual que tivemos.
R
Diante de alguns questionamentos e/ou comentários lidos pelo e-Cidadania, eu somente posso dizer que nosso caminho passa pela radicalidade democrática, democratizar a democracia. Isso significa dar concretude a todos os preceitos que a nossa Constituição escreve, inclusive com as inovações trazidas pelos documentos internacionais que a República Federativa do Brasil abriga, acolhe, mas estamos ainda muito distantes de vermos preconizada, efetivada toda uma retórica, toda uma construção jurídica. Aí eu quero pegar, por exemplo, a Declaração de Durban, em que tivemos, no Brasil, o Brasil foi o país que ocupou a relatoria daquela conferência mundial de combate ao racismo, ao xenofobismo e outras formas correlatas de discriminação, e jamais abrimos aquele documento para pensar na sua transcrição para a vida real. De lá para cá, nós viemos robustecendo todo esse aparato jurídico normativo, positivado, e nada disso tem se traduzido com muita efetividade ou pelo menos com a efetividade ansiada por todos e todas aqui presentes, especialmente no campo da negritude mais combativa, democrática, inclusiva que temos país afora.
E quero literalmente concluir a minha fala invocando a Profa. Thula, porque eu também estou envolvido com esse processo da ADPF 973, em que, mais uma vez, sofremos uma decisão judicial, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, pelo ministro relator da ADPF, recusando processualmente dar voz ativa processual a organizações que são as vozes mais ativas, até porque são as mais vitimadas, as mais atingidas...
(Soa a campainha.)
A SRA. VERA LÚCIA SANTANA ARAÚJO - ... por um racismo que é estrutural e que tem, de novo, o encadeamento de uma institucionalidade que é encarceradora, que é letal, em que radicalmente temos ainda políticas que não aceitam um país equânime, um país incluso, um país que simplesmente saiba coexistir com toda essa riqueza humana que é o povo brasileiro.
Viva a negritude brasileira! Viva o povo brasileiro! E viva a nossa luta ancestral e futura!
Muito obrigada.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Muito bem, viva!
Vera Lúcia Santana Araújo, Advogada, Coordenadora da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), membro da Frente de Mulheres Negras do Distrito Federal e Entorno. Parabéns pela sua exposição de forma ampla, corajosa e apontando os caminhos, respondendo às perguntas também.
R
Por fim, César de Oliveira Gomes, Defensor Público Federal, Doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, mestre em Direito Público pela Unisinos.
Depois, Dr. Douglas faz a conclusão final.
O SR. CÉSAR DE OLIVEIRA GOMES (Para expor.) - Obrigado, Senador Paulo Paim.
Na linha da Dra. Lívia, do Dr. Wallace, da Dra. Vera, sim, nós precisamos avançar um pouco mais, mas creio que nós estamos em um estágio do debate em que nós precisamos aprofundar a reflexão sobre o papel do Estado como agente indutor do racismo, como agente de legitimação.
A Profa. Flávia Rios tem uma reflexão no sentido de que a produção, até um tempo atrás, acadêmica, os debates, até nesta Casa, giravam muito em torno da organização coletiva, das pessoas negras, políticas importantes, políticas de inclusão, mas ainda faltava um debate maior com relação ao papel, à centralidade do Estado como agente de legitimação do racismo.
E isso ainda se verifica. Quando a gente escuta a fala da Profa. Dra. Thula Pires, a gente identifica que isso é e está muito presente.
O racismo foi se formando também por meio de silêncios. A título de exemplo, pensando, e a gente sempre tem que olhar para trás, pensando a questão da história do tempo presente, de que eu falei inicialmente, pegando como exemplo a Assembleia Constituinte, em 1823, em que nós tínhamos ali uma série de debates em torno de um constitucionalismo liberal, não há uma palavra, uma linha sobre a questão da escravização de pessoas negras, não é? Simplesmente você não encontra um debate nesse sentido. Então esse é um silêncio que fala muito, e isso foi ocorrendo em outros momentos da história do nosso constitucionalismo.
Então acho que hoje, sendo muito breve, eu acho que todas as reflexões que nós trouxemos aqui e os avanços que são necessários também giram em torno de nós identificarmos, mobilizarmos políticas públicas, tendo como norte essa ideia de que nós tivemos e temos ainda um Estado que produz racismo. Acho que essa é a crítica central para continuarmos avançando neste tema.
E por quê? Nos últimos anos, a gente precisou infelizmente falar muito de democracia no nosso país. E o enfrentamento ao racismo é um caminho necessário para consolidarmos a democracia do país. Então fica aqui essa reflexão, que a gente precisa também estabelecer esse diálogo em torno do reconhecimento de um Estado que, ao longo do nosso constitucionalismo, seja por silêncio ou por omissão, ou por vezes, por ação, nos critérios de interpretação jurídica, sobretudo, que é o motivo de estarmos aqui hoje, o racismo foi se reinventando, se consolidando. E ainda é um tema que a gente precisa debater muito e, como o senhor disse, fazer muito.
Obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Muito bem, muito bem, Dr. César de Oliveira Gomes, Defensor Público Federal, doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, mestre em Direito Público pela Unisinos. que terminou com uma frase na linha que nós havíamos comentado com ele aqui, não é? Só que ele sintetizou. Temos que fazer muito mais. Fizemos muito - e eu gostei -, temos que fazer muito mais. Eu gostei, doutor.
R
Parabéns!
Agora, vamos para o Dr. Douglas Pinheiro, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, doutor em Direito, Estado e Constituição. Foi um dos que provocou o tema do debate de hoje.
Por favor.
O SR. DOUGLAS PINHEIRO (Para expor.) - Como me colocam já no final, agradeço aos colegas e às colegas que já anteciparam algumas das respostas.
Eu queria aproveitar esse último momento para lembrar algo. A Constituição de algum modo se coloca como uma utopia, não como aquilo que não é para ser realizado, um sonho não alcançado. "Utopia", na origem do termo, é um lugar no futuro melhor que o presente.
Eu digo que muitos puderam, quando a Constituição foi feita, pensar num lugar no futuro melhor que o presente. Mas para a população negra, preta deste país, era preciso, inclusive, pensar na possibilidade do presente; pensar na possibilidade do presente e sobreviver a ele para, inclusive, pensar no futuro.
Uma Constituição antirracista é uma Constituição que dá conta desses vários tempos que se sobrepõem ao presente. O tempo dos ancestrais, de toda a ancestralidade; de toda a escravização é essa dívida impagável que o Estado precisa minimamente querer pagar. O tempo do futuro que ele se abra novamente para as pessoas pretas; que não seja só uma distopia; que a gente possa voltar a sonhar, possa esperançar novamente. E, mais do que tudo, garantir no presente que as vidas negras possam permanecer vivas, que as vidas negras sejam lembradas não só no espaço da exclusão, mas no espaço institucional de inclusão.
Nós vamos resistir. Nós combinamos, nós fizemos um combinado: nós não vamos morrer, nós vamos resistir! (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Fiquem com a frase que foi um slogan mundial já, não é? "Vidas negras importam, sim!" Já botaria: "Vidas negras importam, sim!"
Muito bem, Dr. Douglas Pinheiro, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, doutor em Direito, Estado e Constituição.
Parabéns!
Olha, nós vamos agora para o encerramento.
Primeiro, agradeço a todos, aos que estão no plenário, aos que falaram à distância, de forma virtual, e à mesa, aqui composta toda de autoridades do mais alto nível, que deixaram clara a importância do combate ao racismo e a todo tipo de preconceito.
Nós estamos aqui porque queremos uma sociedade em que todos tenham, efetivamente, direitos iguais. Quando me perguntaram se no texto relatado por mim aqui sobre as cotas... e um Senador, o qual eu respeito muito, me perguntou: "Mas pela forma que ficou agora, Paim, não ficaram eternas as cotas?" Eu, de forma muito carinhosa e respeitosa - e o respeito muito mesmo -, disse: nos Estados Unidos elas duraram em torno de 50 anos, porque existia uma lei, não tinha dia para terminar. E depois de 50 anos a Suprema Corte assim decidiu, e a sociedade americana acatou.
Aqui no Brasil, é a mesma coisa. Se vão ser 10, 15, 20, ou 30 anos, ou 40 - não sei -, ou 50, o que eu posso dizer é que o meu sonho é que um dia a gente possa dizer que não há necessidade mais de cotas no Brasil. Quando não precisar, não precisa. Isso é matemática. É o óbvio, não é? Então oxalá um dia a gente possa dizer que no Brasil não precisa mais política de cota.
R
E é nessa visão que eu vou encerrar a nossa audiência pública de hoje, falando do Abdias, um pequeno resumo que a Casa fez.
Abdias foi o primeiro Parlamentar negro a defender a causa coletiva da população de origem africana no Parlamento brasileiro. Introduziu projetos pioneiros de legislação antidiscriminatória e apresentou as primeiras propostas, no Brasil, de ações afirmativas. Foi um dos grandes incentivadores do sistema de cotas, que hoje é realidade vitoriosa, implantada em todo o país.
Abdias, pintor, professor, escritor, engenheiro urbano, gaúcho de Uruguaiana, através de seu neto, o pintor, professor, escritor, engenheiro urbano, estou me referindo a você e família, Urbano Villela, gaúcho de Uruguaiana, através do seu neto aqui presente, João Pedro Villela, quer nos presentear com sua obra sobre o grande Abdias. Grande, grande, grande Abdias. Grande Urbano.
Muito obrigado. Vida longa às ideias, aos ideais que Abdias, ao longo da sua vida, deixou para todo o povo brasileiro e em nível internacional.
Uma salva de palmas a você, Urbano, e uma salva de palmas para o grande Abdias. (Palmas.)
Encerramos assim a nossa reunião de hoje. Muito, muito obrigado a todos.
(Iniciada às 09 horas e 22 minutos, a reunião é encerrada às 12 horas e 14 minutos.)