08/05/2024 - 13ª - Comissão de Segurança Pública

Horário

Texto com revisão

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A SRA. PRESIDENTE (Leila Barros. Bloco Parlamentar Independência/PDT - DF. Fala da Presidência.) - Havendo número regimental, eu declaro aberta a 13ª Reunião, Extraordinária, da Comissão de Segurança Pública.
A razão desta audiência pública se deve à necessidade de o Senado Federal garantir um debate público qualificado sobre o que o Estado brasileiro está fazendo para superar a crise do sistema penitenciário nacional, visando esclarecer a sociedade sobre as medidas emergenciais e estruturais que estão sendo planejadas sobre o tema para os próximos anos, visando, primeiro, superar o estado de coisas inconstitucional, reconhecido pela ADPF 347, desde 2015, pelo STF, cujo acórdão prolatado sobre a matéria impôs várias condicionantes à União e às unidades da Federação em 8 de janeiro deste ano; e, segundo, atender a recomendação do acórdão da auditoria do Tribunal de Contas da União que é o Acórdão 026.096/2017-0, que recomenda ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, através do então Departamento Penitenciário Nacional, hoje Secretaria Nacional de Políticas Penais, e do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), estabelecer e/ou intensificar parcerias amplas com o objetivo de produzir perspectiva integrada de todos os órgãos da execução penal, incluindo definições de como o esforço cooperativo será liderado e como o resultado das fiscalizações e dos acompanhamentos determinados pela Lei de Execução Penal será observado e tratado pelos demais órgãos da execução penal, de forma a repercutir em entregas efetivas para a sociedade. A partir da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 do Supremo Tribunal Federal, o então Ministério da Segurança Pública assinou em outubro de 2018 termo de cooperação técnica com o CNJ e o CNMP para a atuação conjunta no enfrentamento da situação.
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Diante desse contexto, hoje a discussão sobre os planos nacionais sobre o sistema penitenciário brasileiro, no âmbito da Comissão de Segurança Pública do Senado Federal, se faz necessária, para esclarecer os pontos críticos dessa pauta, a fim de que o Estado brasileiro possa, primeiro, responder a esses desafios com real capacidade de investimentos para atender as demandas e, segundo, cumprir o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável sobre Paz, Justiça e Instituições Eficazes (ODS 16), da Agenda 2030 das Nações Unidas, pactuada com o Brasil, sobretudo diante das evidências relacionadas aos fatos: 1) o Brasil ser a terceira maior população carcerária do mundo; 2) o impacto da Lei 14.843, de 2024, que traz a reintrodução do exame criminológico para a concessão de progressão de regime, a restrição à saída temporária e a ampliação do monitoramento eletrônico; e 3) o custo social e econômico da prisão para o país.
Desta forma, presido esta audiência com o objetivo de enriquecer o debate público junto aos meus pares e à comunidade em geral, agradecendo a todos os presentes, física e virtualmente.
O objetivo desta presente reunião é a audiência pública que tem como objetivo debater o programa Pena Justa e o Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária 2024-2027, em atendimento ao Requerimento nº 12, de 2024, de minha autoria.
Informo que foi convidado para esta audiência pública, mas que infelizmente não pôde comparecer, o Sr. Marcus Castelo Branco Alves Rito, Presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Estado de Justiça, Cidadania, Direitos Humanos e Administração Penitenciária.
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E agora eu convido, para tomar lugar à mesa, os nossos seguintes convidados, os que estão presentes: o Sr. André de Albuquerque Garcia, Secretário Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça e Segurança Pública. (Palmas.)
O Sr. Douglas de Melo Martins, Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça e Segurança Pública. (Palmas.)
O Sr. Luís Geraldo Sant'Ana Lanfredi, Coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça. (Palmas.)
O Sr. Gabriel Sampaio, Diretor de Litigância e Incidência da Conectas e membro da Rede Justiça Criminal.
E Ana Lucia Tavares Ferreira, por videoconferência, Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Execução Penal. (Palmas.)
Bom, primeiramente, eu peço desculpas aos nossos convidados, porque vamos ter que dar celeridade a esta audiência, que julgo ser de extrema importância.
Comunico que a presente audiência pública será interativa, transmitida ao vivo e aberta à participação dos interessados, por meio do Portal e-Cidadania, na internet, no endereço www12.senado.leg.br/ecidadania, ou pelo telefone 0800 0612211 - 0800 0612211.
O relatório completo, com todas as manifestações, estará disponível no portal, assim como as apresentações que forem utilizadas pelos nossos expositores.
Na exposição final, cada convidado poderá ter o uso da palavra por até dez minutos... Na exposição inicial - perdão -, o uso da palavra por até dez minutos. Ao fim das exposições, a palavra será concedida aos Parlamentares inscritos para fazerem suas perguntas ou comentários.
Vou passar a palavra, já inicialmente, para iniciarmos, mais uma vez reiterando os agradecimentos desta Casa e também dos membros da Comissão de Segurança Pública a todos os presentes, a todos os convidados para o debate, que julgamos - não só eu, como requerente -, a Comissão julga serem muito pertinentes e importantes os esclarecimentos e a possibilidade de poder ouvi-los, apesar de algum... Particularmente, acho que faltou um pouco mais desse debate, na aprovação da lei, que já citei antes, na minha fala, mas, enfim, como toda lei, a gente coloca o trem nos trilhos e ela vai ter que andar. A gente está aqui para fazer justamente os ajustes e repensar, com certeza, todo o trabalho que, muitas vezes, a gente, porventura, tenha que retroagir ou reavaliar, para fazermos o nosso melhor.
Então, eu vou passar a palavra para o Sr. Gabriel Sampaio, que é o Diretor de Litigância e Incidência da Conectas e membro da Rede Justiça Criminal. Seja bem-vindo, Sr. Gabriel.
O SR. GABRIEL SAMPAIO (Para expor.) - Muito boa tarde. Gostaria de cumprimentar, na pessoa da Senadora Leila Barros, todos os Parlamentares aqui presentes e presentes virtualmente; cumprimentar todos os colegas de mesa, Dr. Douglas, Dr. Lanfredi e Dr. André Garcia. É uma honra poder dividir este espaço de fala com Suas Senhorias.
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Se me permitir, Senador, até a partir da fala inicial feita pela senhora, abro, então, esta exposição destacando a importância do momento histórico que nós estamos vivendo em relação aos direitos, às garantias fundamentais, aos direitos humanos. É um momento desafiador para a humanidade, ouso dizer, além de ser desafiador para nós que, tradicionalmente, lidamos com essa questão, atuando na defesa dos direitos humanos, no enfrentamento ao racismo estrutural no nosso país.
Nós temos uma trajetória, desde a colonização, que é muito difícil, árdua, de lutas para conseguirmos o mínimo existencial para a defesa da nossa dignidade. Então, nessa trajetória, nós temos, pela nossa ancestralidade, uma experiência grande em lidar com situações desafiadoras; mas ouso dizer, Senadora, que nós estamos, em nível global, diante dos maiores desafios da nossa geração, porque no campo dos direitos e das garantias fundamentais, nós estamos sitiados em torno de ameaças que colocam em risco a nossa própria existência como humanidade, porque nós tratamos as questões, desde as questões climáticas até às questões mais relacionadas à violência institucional, como a tortura, a violência policial, a violência nas prisões, igualmente como questões de direitos humanos. Em todas essas matérias, nós estamos diante de um momento desafiador e que coloca em questão a existência da própria humanidade, quando nós tratamos da relevância desses temas. Isso faz com que, até em alguns momentos, esses temas, que são tão próprios daqueles direitos mais básicos, até percam espaço diante desses desafios que são colocados.
O sistema penitenciário, por muito tempo, trouxe para o debate público nacional diversos questionamentos sobre quais rumos o nosso Estado de direitos daria para a questão penitenciária. Isso sempre foi objeto da pauta pública. Em algum momento, quando essa crise ficou ainda mais aguda, nós perdemos espaço para discutir aquilo que tem sido o motor dos problemas do sistema penitenciário.
Isso fez com que toda a sociedade, talvez, perdesse o compasso da necessidade de medidas emergenciais para solucionar aquilo que são problemas crônicos. Muitas vezes, são tratados como crises, quando acontece algum episódio de projeção nacional, uma rebelião que tenha maior repercussão ou uma situação de massacre, como muitas que nós já vivenciamos na história do sistema penitenciário, mas é fato que nós perdemos um pouco o compasso da importância de tematizar a urgência dos problemas do sistema penitenciário.
E o reflexo a sociedade inteira percebe, porque o sistema não tem trazido respostas para os principais problemas que ele se propõe a resolver.
Então, o sistema hoje não traz respostas do ponto de vista da valorização da dignidade das pessoas. Fala-se muito e de forma muito crítica do sistema de ressocialização, de reintegração social. Nós sabemos dessas críticas, especialmente porque nós vivemos um contexto social em que, muitas vezes, o processo de socialização não é absoluto na nossa sociedade, mas é fato que o sistema não promove a integração social da pessoa presa. O sistema é incapaz de garantir as condições mínimas quando nós tratamos de educação, de saúde, de acesso ao trabalho, por mais que haja esforços dos agentes públicos.
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E nós temos aqui pessoas certamente muito comprometidas na valorização dos direitos sociais das pessoas presas, mas, diante do retrato e do cenário que nós vivenciamos, o sistema tem se mostrado incapaz de dar respostas. Tanto é que o Supremo Tribunal Federal foi chamado a atuar diante da falta dessas respostas.
Lembrando que o próprio Legislativo também, diante de alguns chamados, deu respostas importantes. É preciso destacar a importância da nova lei de medidas cautelares, que traz um contraponto àquela prática muito comum de a prisão, ao longo do processo, ser a regra... A lei trouxe um arcabouço mais amplo, para que outras alternativas fossem propiciadas, o Legislativo também trouxe outras alternativas, como a remissão pelo estudo, e outras condições para que o sistema pudesse enfrentar, ainda que pontualmente, alguns problemas.
Mas o Supremo Tribunal Federal precisou ser chamado a se colocar, por conta de o problema ser um problema estrutural, de ele atingir tantas dimensões da nossa institucionalidade que era necessária então uma resposta também estrutural, que envolvesse tanto institucionalmente o Supremo Tribunal Federal como todos os agentes públicos da institucionalidade que se relacionam com o sistema penitenciário.
É aí, Senadora, que o desafio, então, passa a tomar, de forma central, o prumo de trazer medidas concretas para enfrentar o problema. Por isso a ideia de ter um plano; por isso a ideia de ter medidas objetivas e concretas; por isso engajar os diversos agentes públicos e da sociedade civil nesse esforço, que tem que ter uma direção muito clara, muito direta e muito imediata.
E aqui vem uma mensagem da sociedade civil muito respeitosa a esse processo legislativo, mas se impõe, conectada com a importância da urgência das medidas de um plano e de um engajamento institucional, manifestar que, nesse momento, a sociedade e o sistema de direitos e garantias fundamentais do Brasil precisa desse Legislativo nesse esforço e precisa, nesse momento, por exemplo, numa medida objetiva, que os vetos apostos à medida legislativa citada pela senhora sejam mantidos e, se possível, até que uma nova medida legislativa trabalhe na direção oposta àquela que foi aqui aprovada, por questões que são muito objetivas e que, como a própria Senadora disse, precisam fazer parte do debate.
A ciência demonstra - a ciência demonstra - que exame criminológico não atinge os objetivos propostos pela legislação. Não atende a esses objetivos. Não há um exame, não há um método científico capaz de ser preditivo em relação à capacidade de uma pessoa cometer ou não um crime. Uma pessoa sã pode cometer um crime, uma pessoa em transtorno pode cometer um crime, em várias condições que a ciência e a humanidade são incapazes de prever e conter.
O exame criminológico só traz um problema operacional e um problema para a garantia de direitos, porque a gente sai da dimensão... Infelizmente, alguns temas da ciência são colocados em questão quando a própria ciência os supera, mas aí nós precisamos enfrentar os problemas até operacionais e de gestão.
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Um sistema que mal consegue garantir devidamente, no tempo e na necessidade proposta pela legislação, o acesso ao trabalho, o acesso ao estudo, muitas vezes até à alimentação adequada, vai proporcionar condições para que as pessoas passem por um exame? Quando faltam funcionários, quando faltam servidores? Quando a agenda dos profissionais da área é cada vez mais ampla no sentido de valorização e de precarização da sua forma de trabalho?
Como é que o sistema vai se organizar para aplicar uma regra que está sendo trazida até em contraponto àquilo que a própria ciência diz? Como é que o sistema vai se organizar para cumprir essa dimensão da progressividade...
(Soa a campainha.)
O SR. GABRIEL SAMPAIO - ... de permitir que um regime semiaberto seja um espaço para que as pessoas tenham socialização, mas, mais do que isso, Sra. Senadora, é uma preocupação também daquelas pessoas que têm o apreço à família, porque a legislação e o Estado dizem que a pessoa tem direito a trabalhar, a sair para trabalhar; a legislação já deu essa condição à pessoa, de sair para trabalhar, de sair para estudar, mas a legislação está dizendo que essa pessoa não pode sair no Dia das Mães e dar um abraço à sua mãe e ouvir da sua mãe o quanto é importante tê-la em liberdade, em condições de socialização, em condições de viver com a família com uma expectativa de cumprimento da pena. A legislação está dizendo isso.
A mesma legislação que é capaz de punir, que é capaz de colocar a pessoa presa numa situação degradante também faz um esforço para afastar a pessoa da sua família, em algo que é absolutamente contraditório aos esforços, muitas vezes aos esforços políticos feitos também dentro desta Casa, para que a família seja valorizada.
E, aí, qual é a consequência muito direta? A consequência é o agravamento dos problemas.
Aí se discute que quando o Estado é incapaz de oferecer uma porta de saída, uma porta de socialização, uma porta de acolhimento à família, se o Estado não oferece, por meios até algumas vezes ilegais, outros espaços de socialização são oferecidos. E no Brasil, hoje, é algo até intuitivo: as pessoas têm a real dimensão do quanto o Estado acabou colaborando para o fortalecimento das organizações criminosas, e elas vão se fortalecer cada vez mais com esse tipo de medida. Vão se fortalecer cada vez mais que o Estado, por meio da atuação legislativa, ou executiva, ou judicial, coloca como única opção essa dimensão que se opõe à realização de direitos e garantias fundamentais.
Se nós queremos ter um futuro enquanto nação, se nós queremos realizar todo o potencial de nação que nós temos, nós precisamos valorizar os direitos e as garantias fundamentais.
Os direitos humanos e os direitos fundamentais são a base, o alicerce para que este país realize as suas potencialidades. Um país que trate o sistema penitenciário e os problemas do sistema penitenciário da forma que nós estamos tratando, sem solução de urgência para os seus principais problemas, está condenado a agravar uma situação social de desigualdades estruturais e de um Estado incapaz de prover o bem-estar da sua população.
Muito obrigado. (Palmas.)
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A SRA. PRESIDENTE (Leila Barros. Bloco Parlamentar Independência/PDT - DF) - Nós é que agradecemos a participação do Sr. Gabriel Sampaio, que é membro da Rede Justiça Criminal.
Passo a palavra agora para o Sr. André de Albuquerque Garcia, Secretário Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Seja bem-vindo, Dr. André.
O SR. ANDRÉ DE ALBUQUERQUE GARCIA (Para expor.) - Obrigado, Senadora Leila, a quem faço já os cumprimentos e estendo-os a todos os Parlamentares. Também cumprimento o Gabriel, que esteve presente nas nossas audiências públicas, que foram realizadas na sede do Ministério da Justiça; o Dr. Douglas, Presidente do CNPCP, parceiro nessa luta de conscientização ou tentativa de superar a irracionalidade que a gente tem enfrentado na pauta na vida e na agenda pública; o meu amigo Lanfredi e também colega no Comitê Executivo de Elaboração do Plano Nacional de Enfrentamento ao Estado de Coisas Inconstitucional, que foi criado pelos Ministros Ricardo Lewandowski e Ministro Luís Roberto Barroso. Nós dois fazemos parte, Senadora, do comitê que está à frente, mas com uma equipe enorme, tanto do CNJ quanto da Secretaria Nacional de Políticas Penais. Contamos com diversas participações, e aqui que me referi à primeira delas, e talvez a mais importante, de dois dias de audiência pública realizada, com diversas manifestações inclusive de familiares, de presos e representações institucionais importantes dos órgãos de execução penal, que, segundo a nossa lei de execução penal, fazem parte do contexto do sistema penitenciário brasileiro. Houve também uma consulta pública que se encerrou, também aberta para colaborações de todo o país, sem nenhum tipo de veto ou preconceito, para que pudéssemos colher essas informações.
Eu queria, primeiramente, agradecer o interesse da senhora pela realização de um evento desse porte, e por se tratar, inclusive, de um tema, como foi colocado, um dos desafios que tem sofrido mais nesses últimos tempos dessa agenda que eu costumo chamar de agenda do senso comum, quando se tenta resolver problemas complexos, difíceis, desafios - que se fossem fáceis de serem resolvidos, já teriam sido resolvidos - com soluções simples, inclusive de natureza legislativa, o que nos preocupa muito.
E, como foi dito aqui muito bem pelo Gabriel, nós estamos também aproveitando a oportunidade para fazer um apelo para os nossos Parlamentares considerarem eu não vou dizer o veto do Presidente, porque, na verdade, o Presidente sancionou, ele apenas vetou um item do projeto de lei apresentado, que versa sobre as visitas aos familiares, especialmente, na famosa saída temporária. E faço um apelo, porque se a ideologia, as concepções pessoais, filosofia de vida, seja lá o termo que se queira usar, sufoca a racionalidade, a gente pode partir para um apelo de natureza pragmática mesmo.
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É importante pensar sob o ponto de vista prático, porque nós temos no nosso país um sistema que tem por obrigação, dentre outras, devolver essas pessoas ao convívio social. E como é que nós queremos que essas pessoas sejam devolvidas? Essa é a pergunta mais simples, prática. Seria pura e simplesmente sufocando todas as assistências e o tratamento penal e as ações de ressocialização, por mais grave que seja o crime, e, ao fim do cumprimento da pena, abrir as comportas e soltar essas pessoas sem nenhum tipo de preocupação, inclusive no acompanhamento do período de saída do sistema prisional, que é a ideia de integração social? Ou queremos pensar e repensar a ideia de que, mesmo que... Essa ideia não é ingênua, ninguém que está aqui na mesa, tenho certeza...
Nós sabemos que tem pessoas que dificilmente vão se recuperar, vão se reintegrar bem ao convívio social, mas existem inúmeras outras, várias outras, como no caso da saída temporária, por exemplo, em que em média 97% dos internos retornam para as unidades prisionais, e sem nenhum tipo de ocorrência. Então, nós estamos prejudicando 97% da população prisional em detrimento dos 3% ou 4% que não retornam, ou que retornam tardiamente, ou que praticam os crimes que são noticiados.
Sempre esses fatos contundentes, graves, essas tragédias, como aconteceu com o que motivou a retomada da discussão na questão da saída temporária, são importantes. Há mortes envolvidas, há pessoas... Como o caso do sargento da Polícia Militar de Minas Gerais. E todos nós lamentamos, ninguém comemora esse tipo de coisa. Por outro lado, o calor dos acontecimentos não é um bom conselheiro, certamente, para que a gente tome decisões que vão se perpetuar, porque a decisão do legislador talvez seja a decisão mais importante numa sociedade democrática, porque é ela que vai estabelecer as regras de convivência para o futuro.
Por isso essa atividade é tão importante, tão nobre, e demanda, portanto, uma reflexão, debates, como a própria Senadora mencionou aqui a necessidade de debates, discussões aprofundadas, de preferência afastando as preferências ideológicas do debate que deve ser considerado e levantar questões de natureza técnica, científica, baseada em evidências, o que é o mais importante.
Por fim, nós temos uma grande oportunidade que foi posta para a nossa geração, Senadora, e a senhora faz parte desse processo, pela sua iniciativa, de nós contribuirmos e buscarmos os caminhos e as soluções para um problema que é histórico. Embora haja - e é sempre bom dizer isso para quem milita nessa área e conhece - boas práticas no sistema penitenciário brasileiro, embora seja inconstitucionalmente reconhecido pelo nosso Supremo Tribunal Federal, embora haja boas práticas que conseguem fazer o convívio adequado entre segurança versus ressocialização e reintegração, há diversos exemplos desses, é fato que também há inúmeros outros exemplos de violações de direitos, de sistemas desorganizados, de sistemas que precisam se adequar aos preceitos constitucionais, especialmente na questão da ressocialização.
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Portanto, o desafio está posto, nós estamos num plano de várias mãos sendo elaborado, que depois vai ser seguido, após a homologação, pelos planos estaduais. Cada estado vai fazer o seu plano específico, com a nossa consultoria, com o apoio do Governo Federal, através da Secretaria Nacional de Políticas Penais.
E eu queria só, para terminar a minha fala, colocar um ponto que é fundamental no meu entendimento: política pública não se faz sem recurso. Nós temos um grande desafio, Senadora. O Fundo Penitenciário Nacional, que é o fundo que financia tudo isso, desde 2016 vem sofrendo um processo de desidratação, de ataques que o tornam hoje quase que irrelevante. Nós saímos de R$2 bilhões, R$1,9 bilhão em 2016 para, hoje, algo em torno de R$360 milhões. Os problemas só se agravaram, se tornaram mais complexos. O desafio está posto. Nós temos, por isso, essa oportunidade - e eu falo em oportunidade da ADPF, que decorre da ADPF, porque, com essa atividade do comitê, do qual eu faço parte junto com o Dr. Lanfredi e as nossas equipes, nós estamos participando da integração, da complementação de uma decisão judicial da mais alta Corte do país, que de fato reconheceu a inconstitucionalidade do sistema penitenciário.
(Soa a campainha.)
O SR. ANDRÉ DE ALBUQUERQUE GARCIA - Portanto, posto o desafio, o que temos agora é que fazer discussões. Além das medidas que devem ser construídas para enfrentar cada um dos problemas elencados pela decisão na ADPF 347, é discutir seriamente o financiamento dessas atividades. Não adianta nada nós fazermos um plano, por melhor que seja elaborado - e será, tenho certeza disso, porque a cada dia, como diz o Dr. Lanfredi, temos um plano novo, nós vamos acolhendo as contribuições de várias partes da sociedade brasileira -, mas esse plano só vai se tornar viável se nós tivermos também a disposição para discutir a questão orçamentária, a reposição suficiente e adequada para o Fundo Penitenciário Nacional, que é a fonte, a única fonte de orçamento, não só para o Sistema Penitenciário Federal, que são aquelas cinco unidades de segurança máxima que todos conhecem - essas são administradas diretamente pela Secretaria Nacional de Políticas Penais -, mas também para que nós possamos financiar as atividades nos estados, as políticas públicas, as boas práticas, fazer com que essas boas práticas sejam disseminadas por todos os estados da Federação. Para isso, nós precisamos discutir também a questão do financiamento da atividade.
Eu agradeço a oportunidade de falar aqui em nome do Governo Federal, do Ministro Ricardo Lewandowski, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, e quero dizer que nós estamos completamente imbuídos na elaboração do planejamento, que é importante, mas também nesse esforço na busca de um financiamento adequado e compatível para as expectativas da senhora, da sociedade brasileira, expectativas de todos.
Muito obrigado. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Leila Barros. Bloco Parlamentar Independência/PDT - DF) - Nós é que agradecemos sua participação, Dr. André. Venha mais vezes aqui à Casa, nós estamos precisando ouvi-los mais. Agora é que eu estou me inteirando, estando mais próxima do ministério e tudo, e tenho na minha assessoria a Márcia, que me ajuda muito na compreensão do sistema e das dificuldades que o conselho, o ministério e o próprio sistema vêm enfrentando.
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Para mim, está sendo muito importante esse momento aqui, porque é uma forma de que eu também possa ser uma ponte entre tudo isso que está acontecendo aqui e os membros da Casa, principalmente do Senado Federal.
Eu vou passar agora a palavra para o Dr. Douglas de Melo Martins, Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Seja bem-vindo, Dr. Douglas.
O SR. DOUGLAS DE MELO MARTINS (Para expor.) - Muito obrigado, Senadora Leila. Para mim, é uma grande alegria comparecer aqui em nome do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, atendendo a seu convite, que muito nos honra, pelo convite da senhora, pelo que representa o Senado Federal, pela importância da instituição e pelas pessoas que a senhora colocou ao meu lado aqui na mesa, os queridos amigos André Garcia, Gabriel e o querido amigo Lanfredi, com quem já temos debatido esse assunto em muitas oportunidades, em diversos momentos da nossa história atuando no sistema prisional, na humanização do sistema prisional.
De fato, Senadora, esse assunto é muito relevante, ele é muito importante, muito oportuno, em que pese a senhora tenha feito o comentário de que, de alguma forma, com o projeto de lei agora já transformado em lei, na fase da discussão do veto presidencial, talvez fosse um pouco extemporâneo, mas não é. É oportuno, sim, porque nós estivemos aqui anteriormente, nós participamos aqui, estivemos aqui convidados anteriormente, em debate na Comissão de Segurança do Senado, na oportunidade em que, representando o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça, Senadora, nós sustentamos que este projeto de lei, agora lei, não serviria àquilo que está sendo apresentado para a sociedade como uma panaceia para diminuir a criminalidade, para proporcionar mais segurança pública - que é um anseio legítimo da sociedade.
Esse, talvez, Senadora, seja um dos assuntos que mais mobiliza hoje. Se fizermos qualquer pesquisa - e eu acho até que mais forte que as pesquisas é o que você vê nas feiras, nos espaços onde se discute e as pessoas demonstram as suas preocupações - talvez esteja acima até das preocupações com saúde, educação e outros temas. A segurança pública ganhou uma relevância cada vez maior em decorrência do problema, efetivamente existente, que é a violência em nossa sociedade.
Constatar a insegurança e o anseio da sociedade por mais segurança é algo em que é desnecessário se realizarem até estudos mais profundos. A constatação é simples. O problema, Senadora, está na solução, quando alguém, sem base na ciência, sem base em dados, sem base na experiência concreta, sem o conhecimento do que ocorre no sistema prisional brasileiro e as consequências do que se realiza dentro dele para a segurança de toda a sociedade, apresenta medidas que concretamente podem resultar no caminho inverso daquilo desejado pela sociedade. O caminho inverso por quê? As medidas que se propõem apontam na mesma direção de outras adotadas já no passado, Senadora, que resultaram no encarceramento em massa e na transformação do nosso sistema prisional nesta situação constatada... Não constatada; eu acho que o termo que utilizei é inadequado.
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Não foi o Supremo Tribunal Federal que constatou. O Supremo Tribunal Federal declarou aquilo que nós já sabíamos, aquilo que já se tem demonstrado, que é o estado de coisas inconstitucionais no sistema prisional e, como consequência disso, o fortalecimento das facções do crime organizado e, aí sim, o incremento da criminalidade e da violência no país.
Penso, Senadora, que talvez este seja o maior problema da segurança pública hoje no Brasil: o enfrentamento do crime organizado, das facções do crime organizado e do que elas representam, o enfrentamento daquelas que efetivamente têm poder econômico, estrutura e condições de, em algumas circunstâncias, até enfrentar o Estado. Então, é preciso...
Eu penso, Senadora, que às vezes é muito fácil tomar medidas contra quem não tem como se defender e adotar medidas que efetivamente prejudicam uma parcela significativa das pessoas encarceradas, que são pessoas pobres, levadas ao sistema prisional muitas vezes por falhas do sistema de Justiça, que lamentavelmente é seletivo para prender pessoas pobres e consegue ser capaz e eficaz para prender pessoas pobres.
Senadora, lamentavelmente, o que representa a maior parte do encarceramento no Brasil não são os crimes contra a vida, ao contrário do que as pessoas pensam. Os crimes contra a vida representam uma parte menor. Quem mais vai se prejudicar com o fim das saídas temporárias são pessoas que cometeram crimes mais leves, delitos mais leves. E penso até, Senadora, que, como disse o Secretário André Garcia, fazendo aqui um comentário sobre o número de pessoas, o percentual - na verdade, ele tratou do percentual de pessoas que agem corretamente, cumprem rigorosamente aquilo que é estabelecido na decisão judicial que permite a saída temporária, o que representa 97% -, esses não estão causando nenhum dano, mas aprovou-se um projeto de lei que causa danos, prejuízos, que prejudica esse número significativo de pessoas.
Aqui no Senado Federal, Senadora, há até um projeto... Não quero aqui que confundam e pensem que eu estou dizendo que ele é bom, amigo Lanfredi, mas, comparado com esse, teria mais sentido. Há um projeto de lei tramitando no Senado Federal que propõe, por exemplo, aumento de pena para quem comete delito na saída temporária. Aí sim, é um projeto de lei que, de alguma forma, é dirigido a quem efetivamente descumpre as regras da saída temporária e efetivamente comete algum delito. Tem até mais sentido, porque aí seria focado em quem descumpriu as regras da saída temporária, efetivamente praticou o crime, seja lá qual for, e de alguma maneira estaria esse, sim, causando dano à sociedade. Tem mais sentido, mas este de prejudicar 97%... Dados aqui apresentados pelo Secretário Nacional de Políticas Penais, que é quem tem esses dados, essas informações, coleciona essas informações, pode fornecer e está fornecendo, aqui em um ato público neste Senado Federal, essa informação relevante para a tomada de decisão do Congresso Nacional... Eu aponto como algo relevante...
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Ontem mesmo, no Ministério da Justiça, o Ministro Lewandowski recebeu um Senador e vários Deputados e fez uma exposição que eu não vou conseguir fazer no mesmo nível dele aqui, uma exposição num nível muito elevado mostrando a relevância e a importância de se manter o veto presidencial para este momento, de alguma forma podendo proporcionar e até minimizar a inconstitucionalidade, se assim podemos dizer, desta lei recém-aprovada, mantendo o veto presidencial que ao menos garantiria, nessas hipóteses mínimas, ainda o instituto da saída temporária.
Digo, Senadora, que a probabilidade, se cair o veto presidencial, do risco de declaração de inconstitucionalidade desta lei aumenta no âmbito do Poder Judiciário. Nós, eu e o colega Lanfredi, que somos magistrados e atuamos no sistema de Justiça e na execução penal há décadas, temos visto como esses institutos criados por esta lei não funcionam.
Fazendo inspeção - e esses fatos o amigo Lanfredi conhece bem -, em uma certa oportunidade, Senadora Leila, me causou um grande impacto, porque as perguntas... Algumas pessoas não sabem exatamente o que se questiona, o que se investiga no exame criminológico. O que se tenta descobrir no exame criminológico, Senadora Leila? Primeiro, tenta-se adivinhar se há probabilidade de que, em certas circunstâncias, alguém...
(Soa a campainha.)
O SR. DOUGLAS DE MELO MARTINS - ... que tenha a expectativa de sair possa eventualmente voltar a cometer crime. Tem alguma profissão que tenha este poder de, a partir de uma análise de dados e entrevistas, chegar à conclusão de que alguém eventualmente voltará a cometer crime ou não? E aí me vem a pergunta... Eu já vi muitos exames criminológicos, eu já vi aquilo que se pergunta. Para o exame criminológico, muitas vezes se monta uma equipe multiprofissional e se colocam psicólogo, por exemplo, assistente social, psiquiatra no meio. Alguma dessas profissões tem essa condição de adivinhar? Mas eles fazem perguntas, Senadores.
Senadora Leila, eu vi exames criminológicos em que se pergunta à pessoa se ela tem para onde voltar, porque se chega à conclusão e se pontua positivamente se a pessoa tem casa; porque, se ela não tem casa, vai ficar na rua e há probabilidade maior de crime. Pontua negativamente se a pessoa... Pessoa em situação de rua não passa no exame criminológico, Senadora. Isso é justo? Nós já punimos a pessoa, porque negamos a ela direitos fundamentais, o direito à moradia, o direito à saúde, porque a parte dessas pessoas, inclusive, foi negado o direito à saúde. Por exemplo, muitas delas são dependentes químicos, precisam da rede de saúde pública e, ao contrário, apresentamos a elas o sistema de justiça criminal para prendê-las. Não passa no exame criminológico, Senadora Leila - não passa. A pessoa que foi abandonada pela família ou não tem família, não passa. A pessoa que não tem proposta de emprego - "Você tem já uma análise, a possibilidade de emprego?" - não passa. Essas são as questões... "Tem família?" Se foi abandonado pela família, Senadora, pesa negativamente no exame criminológico. É uma parte, por exemplo, do que os assistentes sociais tentam investigar no exame criminológico, ou seja, a pobreza é novamente criminalizada, como disse aqui muito bem o nosso querido Gabriel. Então, essa é uma preocupação.
Outra questão que se tenta fazer, Senadora... E essa...
A propósito do Rio Grande do Sul, eu aproveito esse ensejo para desejar e demonstrar minha preocupação, a preocupação de todos, a preocupação do Governo e a preocupação da sociedade pelo desastre que ocorreu no Rio Grande do Sul.
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E aproveito para dizer que não é só lá; nós tivemos eventos extremos, enchente ao extremo no Rio Grande do Sul e seca no Norte, que foi o que nós vivenciamos muito recentemente, exatamente por essa postura, por exemplo, contrária à proteção do meio ambiente.
Mas para concluir, Senador, eu conto um evento, uma entrevista de um preso que não passava no exame criminológico, no Presídio Central de Porto Alegre, quando, em 2010, eu estava no DMF do CNJ, hoje ocupado pelo querido amigo Lanfredi, que desempenha a função no DMF muito melhor do que eu desempenhei, fui sucedido por alguém... É muito bom quando alguém nos sucede e faz melhor do que nós fizemos, porque isso dá prestígio ao cargo que nós ocupamos. Funciona bem para o meu currículo dizer que fui sucedido. Quando alguém pergunta que cargo era esse, eu digo: "É o cargo que o Lanfredi ocupa hoje". Aí, pronto, já dá um certo prestígio ao cargo.
Quando eu estava nessa função, Senadora, fui... E sabe outra coisa que pesa negativamente para o exame criminológico? Pergunta-se... Psicólogos. Eu falei um pouco dos assistentes sociais... Agora psicólogo pergunta se a pessoa está arrependida, pergunta se ela está resignada com a pena. São perguntas. Uma pessoa chegou para mim e disse: "Doutor, eu nunca vou passar nesse exame criminológico, porque eu fui condenado injustamente, eu nunca vou dizer que estou arrependido de um crime que eu não cometi e muito menos... eu nunca vou dizer, no exame criminológico, que eu estou resignado com uma pena que é absolutamente injusta, que foi contra mim aplicada".
Senadora, se alguém estiver no sistema prisional e disser: "Eu nunca vou dizer que cometi um crime, nunca vou dizer que estou resignado, porque eu tenho uma família lá fora que acha que eu sou inocente; eu vou dizer, só para passar no exame criminológico?" Eu vou morrer aqui no presídio central, mas eu não vou nunca dizer...". Naquele tempo se fazia exame criminológico. "Eu vou morrer aqui, mas eu não vou dizer que estou resignado com a pena de um crime que eu não cometi". Não passa, Senadora, no exame criminológico. É isso que nós queremos que volte?
Senadora, perdoe-me por extrapolar o tempo, mas eu precisava aproveitar essa oportunidade que a senhora me proporcionou de vir aqui e ter esse diálogo com essas pessoas, com essa Mesa maravilhosa que a senhora proporcionou, e eu espero que nós consigamos minimizar os impactos mantendo o veto presidencial e ao mesmo tempo estabelecer um grande debate...
(Soa a campainha.)
O SR. DOUGLAS DE MELO MARTINS - ... que a senhora pode liderar aqui, no Senado Federal, para que nós consigamos, em um espaço curto de tempo, reverter essa tendência negativa que lamentavelmente estamos enfrentando.
Muito obrigado. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Leila Barros. Bloco Parlamentar Independência/PDT - DF) - Nós que agradecemos, Dr. Douglas, até o seu desabafo também. A gente percebe a sua indignação. Muito obrigada pela sua participação aqui.
Bom, eu vou passar a palavra para o Sr. Luís Geraldo Lanfredi, que é o Coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas, do Conselho Nacional de Justiça.
Seja bem-vindo, doutor.
O SR. LUÍS GERALDO SANT'ANA LANFREDI (Para expor.) - Boa tarde a todos e a todas que nos acompanham aqui, presencialmente e virtualmente.
Estimada Senadora Leila Barros, é com muita alegria e com muita satisfação que nós estamos aqui hoje, no Parlamento, nesta Casa das leis, da representação popular do povo brasileiro, sobretudo numa Comissão, talvez uma das Comissões mais significativas e emblemáticas deste Senado Federal, para discutir um tema tão caro, tão importante, numa quadra histórica desafiadora do país.
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Evidentemente que a oportunidade do diálogo e da construção plural, inclusiva, com contribuições que agreguem e possam trazer ao tema o seu melhor endereçamento é o que todos nós desejamos, sobretudo falando de um sistema prisional que há muito deixou de ter sua funcionalidade e sua forma de realização, tal como a própria lei aprovada no Parlamento, como as expectativas da população brasileira sempre desejaram fosse esse sistema prisional o mais adequado e o mais empenhado em devolver cidadãos para a sociedade, e não, eventualmente, aquilo que sobrou ou ainda resta de pessoas que acabaram sendo vilipendiadas e solapadas porque estavam cumprindo pena e porque estavam sob a proteção e a custódia do Estado.
Portanto, fazer esse debate ou trazer esse debate recolocando-o nesta Casa, neste Parlamento é sobremodo significativo e extremamente importante, aqui, diante da senhora, que ousa com a liderança dessa pauta, chamando esse tema tão duro, esse tema tão complexo, muitas vezes maltratado, e fazê-lo diante de Senadores da República, com a representação popular, que evidentemente todos nós desejamos, para legitimação de um processo de transformação como nós desejamos.
Fazê-lo, inclusive, Senadora Leila, diante de uma Mesa tão seleta, tão especial, com os queridos amigos André e Douglas, também Gabriel Sampaio, é nos deixar extremamente à vontade, é como se nós estivéssemos em casa, não relaxados com a expressão da responsabilidade desse momento, mas sobretudo entendendo que esse debate vai ser em alto nível, um debate extremamente qualificado, que, desde o primeiro momento, na própria proposição do requerimento, ao que se percebe, foi a intenção da senhora quando trouxe a esta Casa a apresentação desse tema.
O Supremo Tribunal Federal, quando decide, no mérito, a ADPF 347, que é ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental, uma ação sui generis, uma ação especial, não é uma ação qualquer, uma ação como essas que nós estamos acostumados a ver ou a intuir no dia a dia como aquelas mais corriqueiras... Uma ação de descumprimento de preceito fundamental é o reconhecimento de que estamos a discutir uma situação de desagregação estrutural grave no nosso país. E aqui o objeto da ação é justamente o sistema prisional, é o reconhecimento, portanto, de que esse sistema prisional, pela sua estrutura, pelos seus serviços, pelas pessoas que nele intervêm...
Esse descompasso é tão grande que esse sistema já não responde às finalidades para as quais ele existe, sobretudo interagindo com pessoas, e submetidas essas pessoas à condição de proteção de Estado, mas pessoas que estão ali a resgatar uma sanção penal, a cumprir uma pena privativa de liberdade ou qualquer outra de entre aquelas previstas na nossa legislação, mas que o façam com qualidade e com eficiência, com aquele sentimento de que se está cumprindo uma pena justa, uma pena decente e uma pena que resgate essa pessoa, devolvendo o espaço de cidadania que essa pessoa merece entre nós.
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Não temos, no nosso país, por disposição constitucional, previsibilidade de pena de morte ou prisão perpétua, mas esse sistema prisional que está aí, Senadora Leila Barros, mata. O sistema prisional que está aí cancela pessoas para o resto da vida. E os efeitos reflexos indiretos pelos quais esse sistema prisional opera são efetivamente aqueles que nos colocam numa situação a desafiar, portanto, todas as autoridades no sentido de nós termos de nos reinventar, de buscarmos agora a proposta de uma própria refundação desse sistema prisional, a partir justamente desse reconhecimento: o que está aí não funciona, o que está aí não está bom, louvando iniciativas práticas, pontuais, arranjos circunstanciais muito significativos em todas as partes do país.
Não é tudo de ruim nesse sistema prisional, mas grande parte dele. Vamos deixar muito claro aqui que muita gente de bem, boa, trabalha por esse sistema prisional tentando fazê-lo operar significativamente, mas, no grosso, na forma da sua realização, esse sistema está muito aquém do desejado.
É por isso, então, que o Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a necessidade de nós revalidarmos esta composição de forças, de estrutura, de serviços, assinou não só um prazo, mas fez uma convocação geral, Senadora Leila, a todos, não excluindo ninguém, a todos, a começar do próprio Poder Judiciário, passando pelo próprio Poder Executivo e também não deixando de lado as responsabilidades inerentes a esta Casa, aos nossos Parlamentares, e sobretudo trazendo ao debate a participação da sociedade civil.
Quando determinou, portanto, a reposição desse estado de coisas à sua realização efetiva, reconhecendo que existe um estado inconstitucional de coisas que é uma situação de absoluta frustração para nós enquanto autoridades públicas, reconhecemos que as nossas atividades são desconsideradas ou nenhum efeito ou nenhum alcance detêm.
Quando o Supremo Tribunal Federal admite que estamos operando à margem da lei maior, das leis infraconstitucionais e dos tratados internacionais que o Estado brasileiro ratificou e comprometeu-se a cumprir perante a comunidade internacional é porque esse desarranjo é de tal monta significativo que esta obra, que esta necessidade de repensar esse sistema prisional não pode ser confiada a um, a outro ou a exclusivos atores, senão a toda a sociedade.
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É isso que o Supremo Tribunal faz quando, portanto, prevê que um plano, não como esses que nós conhecemos como planos de Governo... O plano, na verdade, aqui está para simbolizar o seguimento e a continuidade da própria decisão do Supremo Tribunal Federal, em que o Supremo Tribunal Federal admite que as medidas, a forma como este sistema prisional deverá ser reconstituído, reprogramado, reanalisado, seja justamente a partir da contribuição de todos. Todos nós somos responsáveis por esta composição, até porque se admite, Senadora Leila, que todos nós temos uma parte significativa de responsabilidade pelos problemas que aí estão. E não estou aqui a apontar o dedo para este ou aquele Poder, para esta ou aquela pessoa, para essa ou aquela experiência, senão para um acúmulo de omissões, para uma sistemática negligência das autoridades deste país, sobretudo também pela forma muitas vezes equivocada como pensamos ou racionalizamos sobre o sistema prisional. Há necessidade, portanto, de emprestarmos um outro significado a essa conjuntura, a essa sistematização de estruturas.
Portanto, aqui, o que nós estamos fazendo neste momento ao falar de um plano? Nós estamos, na verdade, definindo como o Estado brasileiro quer se enxergar ou ser reconhecido perante a comunidade internacional, mas perante nós mesmos enquanto cidadãos. O sistema prisional fala muito de como nós somos enquanto sociedade, Senadora Leila. E é por isso que todos nós temos responsabilidade pelo que aí está.
(Soa a campainha.)
O SR. LUÍS GERALDO SANT'ANA LANFREDI - Aqui, portanto, há necessidade de nós atuarmos integralmente, e é o que nós estamos fazendo justamente agora - Conselho Nacional de Justiça, Secretaria Nacional de Políticas Penais, do Ministério da Justiça e Segurança Pública -, numa espécie de repasse desse sistema prisional pelas mais diversas lentes.
Para a senhora ter uma ideia, desde 8 de janeiro, quando este prazo de seis meses assinado pelo Supremo Tribunal Federal para que este plano possa ser devolvido à Corte Suprema, para que ela valide a sua execução pelos próximos, seguintes três anos, inúmeras reuniões, mais de 35 reuniões já foram realizadas com todo o staff da Esplanada, do Executivo federal. Nós estamos falando, nesse primeiro momento, apenas do plano nacional, porque o Supremo também determinou que nós devemos construir planos estaduais e o distrital, mas, primeiro, o plano nacional, que são as proposições macro, a coordenação geral de uma política ou de uma recomposição de uma política que se aspira como uma política de Estado. E, portanto, aqui nós estamos falando com o sistema de justiça, falando com a sociedade civil...
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Mal terminamos agora, na semana passada, Senadora Leila, uma audiência pública para a qual se inscreveram, justamente para oportunizar voz e vez àqueles que nunca foram ouvidos, quem? Aqueles que cumprem a pena, aqueles que sofreram a pena; ou aqueles que têm entes queridos que estão submetidos ao sistema prisional, aqueles que muitas vezes estiveram na fila para visitar esses entes queridos e foram também tão vilipendiados quanto os seus parentes, que estão a desempenhar o cumprimento de pena. Essas pessoas foram ouvidas em audiência pública, no auditório do Ministério da Justiça e Segurança Pública - mais de 550 inscritos, Senadora Leila -, aquilo que o Senado faz, a Câmara faz, o nosso Parlamento faz, para que este plano pudesse também ser a caixa de ressonância dessas pessoas invisibilizadas ou muitas vezes pouco ouvidas nesse tema fundamental para elas. É um tema que afeta diretamente essas pessoas. Mais de 550 habilitadas nesses dois dias em que houve, portanto, a oportunidade de ouvirmos mais de 58 pessoas.
Para além disso, uma consulta pública também foi aberta por mais de três semanas, e, para surpresa de todos nós, Senadora Leila, mais de 6 mil contribuições foram recebidas e agora estão em processos de sistematização pela equipe aguerrida do Ministério da Justiça e Segurança Pública, do Conselho Nacional de Justiça. Contribuições vêm chegando do sistema de justiça, da própria magistratura, da Defensoria Pública deste país, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Ministério Público Federal e do estadual; ou seja, nós estamos tentando compor ou tentando articular uma formulação que possa expressar os reais sentimentos da nossa sociedade, mas sob uma perspectiva de enfrentamento de causas dos problemas, não de paliativos, não tratando desse tema com pirotecnia, mas sim, fazendo desse tema um tema central para a segurança pública brasileira.
Aqui, portanto, mais uma vez, eu não posso deixar de reconhecer a iniciativa extraordinária do requerimento trazido por V. Exa. para que nós viéssemos a esta Casa. Esta audiência hoje faz parte da construção do plano. E aqui, se eu posso dizer dessa maneira, Senadora Leila, a senhora é um pouco uma madrinha desse plano também, na perspectiva em que lidera essa discussão dentro do Senado Federal, com a presença qualificada de todos os Senadores que compõem esta Comissão, que compõem esta Casa, que compõem o Parlamento.
A vontade é, no melhor sentido, a de podermos aproveitar esta grande oportunidade, este grande momento histórico. Nós vamos ser cobrados no futuro se nós não soubermos aproveitar adequadamente este momento. Grandes iniciativas já surgiram no nosso país, encabeçadas muitas vezes por este Parlamento. Comissões Parlamentares de Inquérito nós já tivemos quatro, Senadora Leila, com belíssimo trabalho...
(Soa a campainha.)
O SR. LUÍS GERALDO SANT'ANA LANFREDI - ... e, a senhora sabe, já discutindo esse tema desde o ano de 1976, com conclusões - pasme a senhora - que estão sendo revisitadas ainda agora, porque não foram implementadas. Um trabalho magnífico desta Casa, deste Parlamento, onde ali em 1976, muitos dos problemas atuais já vinham sendo destacados e alertados, para que o Estado brasileiro não cometesse erros. De lá para cá, nós tivemos Constituição Federal, Lei de Execução Penal, uma série de outros diplomas que trouxeram incremento legislativo, punitivo e outros tantos de contemporização.
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Veja, quanto à política criminal, nós temos efetivamente aqui como o lugar apropriado onde ela se faz dentro deste Parlamento. A sua realização prática está com o Executivo e com o próprio Poder Judiciário, mas aqui é o mais significativo, é a grande oportunidade que temos, também com grandes iniciativas do próprio Executivo que também não foram à frente, de aproveitar essa oportunidade para que nós possamos dizer dessa história ou contar essa história para as futuras gerações; mas não precisamos esperar tanto para que nós mesmos, enquanto cidadãos, enquanto sociedade, possamos aproveitar aquilo que seja representativo de um Estado de direito, de um Estado que cumpre soberanamente as regras aprovadas por este Parlamento.
A ADPF 347 surge justamente de uma provocação deste Parlamento para o Supremo Tribunal Federal. E o Supremo Tribunal Federal fala: "A Constituição está sendo violada; as leis aprovadas pelo Parlamento estão sendo violadas, portanto vamos rediscutir todos à mesa". Faltou diálogo. Faltou diálogo e faltou Estado. Faltou Estado; esse espaço não ocupado pelo Estado está sendo vilipendiado por outros grupos e organizações, estas sim, que aterrorizam a nossa sociedade e comprometem a segurança de todos.
Portanto, louvo, Senadora Leila, a oportunidade desse debate, o enriquecimento desse debate feito dentro desta Casa sob a sua liderança.
Muito obrigado. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Leila Barros. Bloco Parlamentar Independência/PDT - DF) - E não termina por aqui, não vai terminar somente nessa audiência.
Eu quero dizer a vocês que eu já comandei algumas audiências públicas aqui: nos últimos cinco anos, quatro anos, pelo menos umas 20, 30 audiências. E essa foi impactante pela emoção de vocês. A gente percebe claramente o cansaço, a exaustão de se estar insistindo numa temática que parece que a maioria não quer enxergar, mas eu posso dizer a vocês que aqui vocês terão, de alguma forma, uma parceira, porque, de fato, eu sou uma pessoa muito sensível, muito empática, graças a Deus. Eu estou na política, mas eu não perdi essa capacidade - muitos aqui perdem essa capacidade - de se colocar no lugar do outro.
E, como vocês falaram, além do plano que tem que se entregar para a sociedade, tem a questão de que muitas vezes se criam narrativas, não é, Dr. Lanfredi e Doutores aqui? Vocês sabem que as narrativas aqui... Como nós vivemos um período muito polarizado, muito ideológico, como Gabriel falou, nós perdemos a capacidade de discutir sobre coisas muito práticas, reais, que afetam a vida das pessoas de forma contundente. Então, graças a Deus, eu sou provocada por muitos que estão ao meu lado e que são figuras, graças a Deus, que têm uma compreensão e um preparo muitas vezes melhor do que o nosso, e acho que, do meu lado, eu não perdi essa capacidade, sabe, Dr. Douglas?
Assim, eu quero dizer a vocês que a indignação de vocês eu percebi muito clara. Percebo a força e a vontade de querer transformar, modificar esse cenário. E nós vamos trabalhar, vamos provocar dentro desta Casa e, quem sabe, dentro do próprio Congresso - porque aqui é Senado Federal; nós somos um Congresso, que tem duas Casas, e esse debate não termina por aqui, Dr. Lanfredi.
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Inclusive, uma coisa que me chamou muito a atenção foi o questionamento, as perguntas dos nossos internautas. Tem audiência pública em que não tem cinco perguntas, e aqui nós fomos simplesmente demandados, fuzilados por perguntas. Então, tem gente acompanhando, tem gente que está preocupado, tem gente que está entendendo o que está acontecendo, e estão entendendo os recados de V. Exas. também.
Então, aqui o Luiz, do Distrito Federal: "Com a restrição orçamentária sempre presente nos governos, não seria melhor investir em privatizações dos presídios?".
Fica a pergunta. Quem quiser pode responder alguma aqui.
José, do Goiás: "Por que não investir para que o preso possa trabalhar em obras do Governo [isso que eu falo de desconhecimento, não é?], tirar seu sustento, aprender a profissão e reduzir sua pena?".
Amauri, de São Paulo: "O que o Estado pretende fazer para tornar o cumprimento [de uma] pena uma verdadeira possibilidade da ressocialização do preso?".
Laerte, da Paraíba: "Existe um projeto em andamento para padronizar as estruturas e procedimentos dos presídios nos estados?". Alguns, hein?
Raul, de São Paulo: "As pessoas de bem estão presas em suas casas. [Enquanto] Criminosos [estão] soltos prematuramente, sem medo de punição [...]".
Arlem, do Ceará: "Um dos graves problemas sociais brasileiros é a segurança pública, que está diretamente ligada ao fator das penas cumpridas".
Robinson, do Paraná: "Acredito que formas alternativas e sustentáveis de punição devem ser priorizadas. Não é justo o cidadão de bem ficar com o ônus do sistema".
Nós acabamos de falar de financiamento, do valor que caiu, do fundo, que eram quase 2 bilhões, e hoje nós só temos 300 milhões para cuidar de todos os presídios do país, inclusive os cinco de segurança máxima.
Felipe, do Distrito Federal: "Como fazer o sistema carcerário se autossustentar, ou ao menos minimizar o impacto orçamentário?".
Acabei de falar do impacto orçamentário, que isso é pífio.
Simone, de São Paulo: "Como será tratada a progressão de pena em caso de reincidência? Será suprimida ou não? Qual a base legal para esse caso?".
E Gabriela, do Mato Grosso: "Como esses programas planejam promover a reintegração social [de] ex-detentos, fornecendo apoio e oportunidades para sua reinserção produtiva?".
Bom, eu entendi muito bem algumas perguntas, algumas respostas já foram dadas aqui, outras eu estou só repetindo, mas se quiserem responder, podem ficar à vontade.
Eu aproveito para pedir desculpa à Sra. Ana Lúcia Tavares Ferreira, Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Execução Penal, que estava por videoconferência. Houve um erro de comunicação aqui, e ela infelizmente teve que sair, porque ela tinha um outro compromisso. Então, eu peço desculpas à Dra. Ana Lúcia Tavares.
Passo para as considerações finais, e, caso os senhores queiram responder algumas das perguntas, fiquem à vontade.
Eu vou passar a palavra primeiramente... Estou sentindo que o Dr. Lanfredi está pronto para responder. (Risos.) Então vai lá, fique à vontade.
Com a palavra, o Dr. Luís Geraldo Lanfredi.
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O SR. LUÍS GERALDO SANT'ANA LANFREDI (Para expor.) - Senadora Leila, além da participação, que nos contempla a todos, as perguntas são de excelente qualidade.
E aqui eu creio que seja interessante dizermos que nós estamos atuando na composição deste plano, não numa perspectiva teórica conceitual, mas, sim, trabalhando por uma proposta pragmática, realizável, aferível, que ela possa ser medida, que ela possa ser visibilizada, que todos possam acompanhar. A senhora veja, falta um pouco de transparência, falta agregar ao sistema prisional, talvez, os mais elementares e comezinhos princípios da administração pública: impessoalidade, moralidade, publicidade, ou seja, uma série de princípios que, de serem aplicados, já mudaria muito o que nós temos aí. Ele sempre é tratado na base da emergência, e a base da emergência justifica muita coisa, facilita também muita coisa, e nós vamos entendendo que esse sistema prisional não atua, no sentido de se reconstruir positivamente.
O Supremo Tribunal Federal, na ADPF 347, nos deixou três pistas: esse plano precisa falar de vagas, quantidade de prisões, de qualidade de vaga; esse plano também precisa abordar a ambiência prisional, a qualidade dos serviços e da infraestrutura; os processos - disse o Supremo Tribunal Federal - de reinserção social precisam ser requalificados. Nós estamos agregando, além dessas pistas já deixadas pelo Supremo Tribunal Federal, que estão sendo, portanto, destrinchadas, especificadas, uma outra proposta, que é uma vertente de não repetição...
(Soa a campainha.)
O SR. LUÍS GERALDO SANT'ANA LANFREDI - ... ao mesmo tempo em que nós trabalhamos para enfrentar os problemas a partir destas pistas deixadas pelo Supremo, já atuando para que elas não retrocedam, ou seja, que a gente não volte a esse estado tão lamentável. E cada um desses eixos no plano, assim compreendidos, gera um problema, uma ação mitigadora e uma medida, e essa medida tendo que ser aferível e concreta, para que nós possamos mensurá-la no seu sentido prático.
O sistema prisional tem pouco ou muito recurso para ser investido? Se pouco, vamos então expressar: o Brasil quer prender 650 mil pessoas, que é a terceira maior população prisional do planeta? Sim, mas então pague por isso, pague para ter um mínimo de dignidade.
E o que nós estamos reivindicando, Senadora Leila, não é nem tanto a Lei de Execução Penal, que é muito bem-feita, ainda de 1984, mas muito completa, mas nós estamos reivindicando hoje as regras mínimas, ou as chamadas regras de Nelson Mandela, que é um arcabouço, digamos assim, elementar, para que essas pessoas possam ter dignidade e subsistência garantidas.
Então, veja, eu creio que, se essas situações todas vão receber, ou de receberem um melhor encaminhamento, para que todos possamos nos conectar aos mesmos problemas e passarmos a trabalhar por esse sistema, na perspectiva de que ele possa ter a sua funcionalidade reativada e a sua eficiência assegurada, com certeza todas essas questões e indagações formuladas pelos nossos ouvintes serão atendidas e contempladas - e isso a benefício das próprias vítimas que hoje estão em suas casas, porque imaginar que essas pessoas maltratadas nos presídios vão voltar melhores é desconhecer que um sistema prisional que age assim, tão insatisfatoriamente, deixa de prevenir a própria reiteração da criminalidade.
Muito obrigado. (Palmas.)
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A SRA. PRESIDENTE (Leila Barros. Bloco Parlamentar Independência/PDT - DF) - Nós que agradecemos, Dr. Lanfredi.
Agora com a palavra o Dr. Douglas de Melo Martins, Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça e Segurança.
Para suas considerações finais, Doutor.
O SR. DOUGLAS DE MELO MARTINS (Para expor.) - Muito obrigado, Senadora Leila.
Eu começo pelo tema das privatizações, vamos direto aos questionamentos. Foi apresentado um questionamento sobre a solução, se poderia ser eventualmente as privatizações, diante da falta de recursos. Eu, Senadora, me manifesto contrariamente a essa tendência, essa proposta, é algo que já foi experimentado, foi experimentado e deu errado, por exemplo, nos Estados Unidos.
Eu tive a oportunidade, Senadora, de ter sido convidado pelo Governo americano para participar de um período de debates em vários estados americanos sobre o sistema prisional americano, e um dos fracassos do sistema prisional americano é exatamente a privatização, que aqui se apresentou como uma solução. É cara, não é melhor do que o sistema público. O que nós precisamos é fazer funcionar bem o nosso sistema, e não tentar copiar o modelo fracassado.
É a mesma lógica de copiar o modelo de guerra às drogas americano, que eles próprios já abandonaram como errado, não deu certo nos Estados Unidos. Hoje, em vários estados americanos, o que se procura é um outro caminho, o caminho relacionado com a política de saúde, e não o do encarceramento em massa de pessoas, em função de temas relacionados, que poderiam ser resolvidos como tema de saúde. Então, não é o caminho nem a privatização, nem esse. E, como eu disse, nem mesmo nos Estados Unidos isso se propõe como uma política pública adequada.
Outra pergunta: a ideia de um sistema que seja autossustentável. Autossustentável completamente, não, Senadora. E a pessoa... Como disse o caro amigo Lanfredi, perguntas muito bem formuladas, mas o sistema pode não ser autossustentável, porém, pode produzir muito, e talvez isso se consiga, não ao ponto de ser autossustentável.
Temos aqui um bom exemplo, aproveitando a presença do...
(Soa a campainha.)
O SR. DOUGLAS DE MELO MARTINS - ... Rafael Velasco, que foi Secretário Nacional de Políticas Penais, é do Maranhão: lá nós temos um sistema prisional em que se produzem móveis, Senadora, todos os móveis da Secretaria de Educação do Estado são fabricados no sistema prisional; o fardamento para todos os alunos das escolas públicas são fabricados no sistema prisional; as ruas são calçadas, projeto Rua Digna, com o calçamento feito no sistema prisional. Então, está em sintonia com a pergunta muito bem formulada - mais que uma pergunta, é uma sugestão da pessoa que acompanha esta audiência pública, e ela é perfeitamente realizável.
Não vou dizer - não tenham aqui a ilusão, a utopia de que vai ser autossustentável -, mas precisamos incentivar o trabalho. Aí, isso sim, Senadora Leila, isso sim, diminui criminalidade; isso sim, Senadora, afasta as pessoas das facções; isso sim, proporciona segurança pública. Muito recentemente, liderado pelo Secretário André Garcia, se realizou um evento no Ministério da Justiça na Senappen, exatamente sobre esse tema do trabalho no sistema prisional.
Outro questionamento - e aí já encerro com este, não vou conseguir responder a todos - é sobre a padronização, se não seria o caso de padronização do sistema. Escolhi esse para ser o último, porque é uma atribuição do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Nós temos resolução estabelecendo exatamente essas regras mínimas de como deve ser o padrão, como deve funcionar o sistema prisional, isso cabe ao CNPCP, e o CNPCP o tem feito por meio de várias resoluções e recomendações que definem isso, desde temas como a estrutura dos presídios, quantas pessoas...
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Lamentavelmente, Senadora, uma das coisas que destruiu a segurança pública em nosso país foi o modelo em que se colocavam 100, 200, 300 pessoas em um galpão sem nenhuma separação. Isso não é possível. Precisa ter um limite máximo de pessoas em cela, exatamente para dificultar a atuação das facções do crime organizado, dificultar esse modo de organização interno deles.
Então, com essa manifestação e, espero, com essas respostas aos questionamentos feitos, eu encerro a minha participação. E não poderia, neste encerramento - peço licença à senhora, não quero que fique parecendo aquelas coisas quando você vai lá ao programa da Xuxa e diz "quero mandar um..." (Risos.)
Eu perco os amigos, e não perco a piada. Eu queria aproveitar este momento para tietar um pouquinho a Senadora Leila, por favor, sou fã desde sempre...
A SRA. PRESIDENTE (Leila Barros. Bloco Parlamentar Independência/PDT - DF. Fora do microfone.) - Obrigada.
O SR. DOUGLAS DE MELO MARTINS - ... desde antes da sua atuação na política, desde o exemplo que foi no esporte, o exemplo que é para todos nós, o exemplo que é para o país. Então, aproveito esta oportunidade para tietar um pouco. Eu sei que é inadequado para o momento, mas, se eu perdesse essa oportunidade, minha família não iria me perdoar, Senadora, se eu não dissesse o quanto a admiro.
A SRA. PRESIDENTE (Leila Barros. Bloco Parlamentar Independência/PDT - DF) - Teria que trocar a fechadura da casa. (Risos.)
O SR. DOUGLAS DE MELO MARTINS - Teria que trocar a fechadura e sumir se eu não dissesse que tietei a senhora um pouquinho hoje aqui.
A SRA. PRESIDENTE (Leila Barros. Bloco Parlamentar Independência/PDT - DF) - Obrigada, Dr. Douglas. Eu que virei fã de vocês, sinceramente, pelo trabalho e pela dedicação aqui de vocês todos. Muito obrigada pelo carinho. Um abraço para sua família!
Vou passar a palavra agora, para finalizar, ao Sr. André Garcia, Secretário Nacional de Políticas Penais, do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Dr. André.
O SR. ANDRÉ DE ALBUQUERQUE GARCIA (Para expor.) - Aproveitando a descontração, eu estava vendo a Senadora escrevendo com a mão esquerda e me lembrei assim: essa canhotinha era difícil de marcar. (Risos.)
Muito difícil de marcar.
A SRA. PRESIDENTE (Leila Barros. Bloco Parlamentar Independência/PDT - DF. Fora do microfone.) - Bons tempos!
O SR. ANDRÉ DE ALBUQUERQUE GARCIA - Eu queria agradecer a oportunidade e pedir até desculpas, às vezes, pela veemência. A gente não critica as posturas nem as pessoas. Nós criticamos o momento e a forma com que determinados movimentos, vamos chamar assim, ideológicos têm de concepção de mundo. Essa que é a grande divergência. Nós estamos vivendo tempos difíceis de involução civilizatória, não é? Discussões... Como disse o Gabriel, que estava aqui, está interditado o debate. Ninguém hoje pode ter opinião, porque, se tiver opinião, terá muito provavelmente de volta uma saraivada não só de críticas, porque isso faz parte de quem trabalha na vida pública, mas de ataques, como se nós estivéssemos em campos opostos quando a gente trata sobre esse tema, que é um tema muito caro para todos nós que estamos aqui.
Eu tenho um passado, Senadora, de segurança pública, embora esteja hoje como Secretário Nacional de Políticas Penais, que também integra a questão da segurança pública do nosso país. Também atuei como Secretário de Justiça e Administração Penitenciária no Espírito Santo, embora seja pernambucano. E nunca tive uma visão contraditória nesse campo. Mesmo sendo responsável por vezes de colocar para dentro, como falam no jargão popular, sempre cuidava também, tinha preocupação em como colocar para dentro, quem colocar para dentro. Como foi dito aqui, algumas medidas, algumas posturas no passado adotadas em alguns países, que estão sendo revisadas, nós estamos querendo adotar agora, ou seja, nós estamos atrasados, com pressa e errados quando discutimos determinados temas.
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A privatização em si, eu não tenho preconceito nenhum contra a privatização, se alguém acha isso. O que eu tenho são algumas considerações. Uma delas... E também gera custo, o discurso é contraditório. E, ao mesmo tempo, é obrigação do Estado esse caso, a custódia dessas pessoas, a segurança dessas pessoas. Portanto, não vejo que seja algo que... não estimulo esse tipo de... Mesmo dentro do Governo, nós discutimos isso. Há pessoas que acham que essa é uma medida adequada e outras não. No meu caso, o Ministro Lewandowski já se manifestou algumas vezes contrário também nesse entendimento.
Por fim, a minha expectativa é de que esta audiência pública, essa participação muito louvável de quem está nos acompanhando possa contribuir também com essas sugestões. Nós vamos levar as perguntas, porque o mundo é movido por perguntas. As respostas reduzem muitos problemas, o mundo é movido por perguntas. Então, essas manifestações serão consideradas também para a elaboração desse plano.
E me coloco aqui...
(Soa a campainha.)
O SR. ANDRÉ DE ALBUQUERQUE GARCIA - ... pela Secretaria Nacional de Políticas Penais, pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, à disposição sempre que houver a disposição para o debate, a discussão sobre esses temas, que são temas caros para a sociedade.
E, como disse aqui o Dr. Lanfredi, nós temos uma responsabilidade muito grande, porque o que nós estamos fazendo aqui, essa discussão e o trabalho que está sendo elaborado como plano nacional, no futuro, talvez nem tão remoto assim, as pessoas vão estar olhando. O que é que esse André Garcia fez? Ele fez esse plano aqui junto com o Lanfredi, a Senadora Leila estava lá também. E o que é que mudou na realidade? O que é que mudou nesse sistema? Como foi bem colocado aqui, desde 1976, pelo menos no âmbito legislativo, as feridas foram expostas. Os problemas estavam lá postos, isso em pleno regime militar.
Nós temos uma Lei de Execução Penal que também é fruto do regime militar e foi elogiada aqui. E o que muito me espanta é que, em pleno regime democrático, nós pioramos a Lei de Execução Penal, criada pela ditadura. Olha só como é a contradição do mundo em que nós estamos vivendo.
Então, a discussão é essa posta. Cidadãos de bem todos nós somos. Eu não vejo essa distinção, essa separação. Não consigo, não entra na minha cabeça a divisão, colocar pessoas nessas prateleiras, uma discussão que, no ponto de vista, eu vou dizer, do debate democrático, é superficial, fica só ali, não passa daquilo, quando a gente deseja muito é se aprofundar nesses temas, discutir, mudar de posição quando a gente entender que está errado, e tem que mudar mesmo, e fazer com que esse plano, esse conjunto de medidas que vão ser propostas, com o trabalho de várias mãos e a participação de muita gente, seja de fato algo que faça diferença nos temas penitenciários brasileiros.
Muito obrigado. (Palmas.)
R
A SRA. PRESIDENTE (Leila Barros. Bloco Parlamentar Independência/PDT - DF) - Obrigada, Dr. André.
Bom, vamos para a nossa quarta, ainda temos uma sessão plenária longa, extensa.
Eu gostaria muito de agradecer a todos os internautas, a todos que nos acompanharam nesta rica audiência e, mais uma vez, reforçar que a Casa, as portas estarão abertas para mais audiências, mais diálogos e, principalmente, para a discussão desse plano nacional, que eu tenho certeza de que vai ser muito importante para o nosso sistema prisional.
Nada mais havendo a tratar, eu declaro encerrada a presente reunião.
Muito obrigada.
Boa quarta para todos. (Palmas.)
(Iniciada às 14 horas e 23 minutos, a reunião é encerrada às 15 horas e 55 minutos.)