27/11/2024 - 9ª - Comissão Permanente Mista de Combate à Violência contra a Mulher

Horário

Texto com revisão

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A SRA. PRESIDENTE (Teresa Leitão. Bloco/PT - PE. Fala da Presidência.) - Boa tarde a todas e a todos.
Havendo número regimental, declaro aberta a 9ª Reunião da Comissão Permanente de Combate à Violência contra a Mulher, da 2ª Sessão Legislativa Ordinária da 57ª Legislatura, que se realiza nesta data, 27 de novembro de 2024.
A presente reunião destina-se à realização de audiência pública para debater sobre redes de enfrentamento às violências contra as mulheres, em atenção ao Requerimento nº 7, de 2024, feito a esta Comissão, de minha autoria.
Convido para tomar lugar à mesa a Sra. Suely de Oliveira, Diretora de Programa do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Suely participa de maneira presencial.
Informo que também teremos a participação, de forma remota, da convidada Natália Cordeiro, Pesquisadora da equipe do SOS Corpo.
Antes de passar a palavra às nossas convidadas, comunico que esta reunião será interativa, transmitida ao vivo e aberta à participação dos interessados, por meio do Portal e-Cidadania na internet, no endereço senado.leg.br/ecidadania ou pelo telefone 0800 0612211.
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O relatório completo com todas as manifestações estará disponível no portal, assim como as apresentações que forem utilizadas pelos expositores.
Na exposição inicial, cada convidada poderá fazer uso da palavra por até quinze minutos - sem muita pressão. (Risos.)
Ao fim das exposições, a palavra será concedida às Sras. e aos Srs. Parlamentares inscritos para fazerem as suas justificativas, as suas perguntas, as suas considerações.
Quero fazer uma breve introdução, Suely, justificando que, inclusive, a escolha dessa data se dá porque estamos vivenciando o período de 21 dias de ativismo contra a violência praticada às mulheres, o que, para nós, é muito necessário enfrentar e combater tendo em vista os dados que são apresentados nos diversos anuários.
Por exemplo, o mais recente anuário da ONU Mulheres, publicado nesta segunda-feira, Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher, trouxe dados estarrecedores sobre o aumento da violência contra a mulher em todo o mundo: mais de 51 mil foram mortas por seus parceiros ou pessoas da família em 2023, incluindo-se aí meninas em todos os continentes. Isso equivale a dizer que 140 mulheres perderam suas vidas todos os dias, e geralmente de forma brutal.
Nas delegacias de todo o Brasil, somente no período de janeiro a março deste ano, foram registrados 584 feminicídios, conforme divulgado no Mapa Nacional da Violência de Gênero, que utiliza dados da segurança pública reunidos em bases do Senado Federal, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, do Conselho Nacional de Justiça e do Sistema Único de Saúde.
É sempre bom e importante reforçar que esses números nos dão um panorama, mas, em razão da subnotificação, sabemos que podem ser números até mais elevados.
Sabemos que, em 2023, as principais respostas do Governo Federal, estaduais e municipais à questão da violência contra as mulheres eram as casas-abrigo e as delegacias especializadas de atendimento à mulher. Com a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres pelo Presidente Lula, as políticas públicas de enfrentamento à violência foram ampliadas e passaram a incluir ações de prevenção, de garantia de direitos e de responsabilização dos agressores, como a sanção da Lei Maria da Penha, em 2006.
Nesta audiência pública interativa, vamos debater, como eu disse, com as nossas convidadas. O nosso foco é atuar para termos, de fato, uma melhoria na qualidade deste atendimento, que precisa ser articulado, de acesso divulgado às mulheres, e, ao mesmo tempo, com os cuidados de sigilo que alguns deles exigem.
Suely é uma militante muito consolidada no movimento de mulheres de Pernambuco, já ocupou vários cargos públicos, tanto em nível municipal quanto em nível estadual, e agora está aqui nos dando o prazer da sua competência, do seu compromisso com a causa, no Ministério do Desenvolvimento Social. Então, é um prazer muito grande que nós vamos ter essa exposição da nossa conterrânea e amiga, que, para mim, é uma professora nesses assuntos de direito das mulheres.
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Então, Suely, você tem a palavra.
A SRA. ADELAIDE SUELY DE OLIVEIRA (Para expor.) - Boa tarde! Muito obrigada, Senadora. Quero já agradecer o convite que me foi feito pela Comissão e agradecer também a oportunidade de contribuir, de alguma forma, com a discussão que a gente vai travar agora à tarde.
É importantíssimo que o Senado esteja, por meio dessa Comissão, fazendo essa audiência. Então, eu quero, de pronto, já agradecer o convite. Quero cumprimentar todas as pessoas que estão aqui presentes e cumprimento também aquelas pessoas que nos assistem. Quero cumprimentar também a Natália, que será a próxima palestrante, e digo que é também uma alegria e um prazer estar aqui hoje, embora o tema e a discussão sejam ainda muito difíceis porque os números que a Senadora apresentou aqui mostram um pouco da gravidade do tema e da discussão que nós vamos fazer agora à tarde. Então, eu queria, sem maiores delongas, começar a minha apresentação.
A gente vai conversar sobre redes de enfrentamento às violências contra as mulheres, e eu fiz uma breve apresentação, que é um pouco o roteiro para estruturar a apresentação. Eu vou me apresentar, dizer quem é a pessoa que vos fala - essa pessoa que conversa com vocês agora à tarde -, falar um pouco sobre a violência contra a mulher, os conceitos, os tipos, e falar um pouco sobre a sociedade patriarcal, porque a violência contra as mulheres é um dos tentáculos do patriarcado.
Eu pensei também, Senadora, em fazer uma linha do tempo dessa institucionalização das políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres no Brasil. Muito rapidamente, falarei sobre as redes de atendimento e de enfrentamento à violência contra as mulheres. Eu não me detive nesse ponto porque entendi que seria o Ministério das Mulheres que iria fazer um maior aprofundamento sobre essa discussão, mas, mesmo assim, eu vou falar um pouco, e eu encerro com os novos desafios que o nosso Governo, em 2023 e 2024, já apresenta em relação a esse tema.
Então, eu vou me apresentar. O meu nome é Suely Oliveira, eu sou psicóloga de formação, sou psicóloga clínica, sou Doutora em Psicologia Clínica e tenho uma atuação há muitos anos como gestora pública nos três níveis - municipal, estadual e federal - e agora voltei para o Governo Federal, desde o ano passado, com muita alegria, ajudando o Presidente Lula a reconstruir o Brasil.
Então, eu trabalho no MDS, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome - esse ministério que tem nome e sobrenome, como a gente costuma dizer. E, no ano passado, alguns ministérios, entre eles o MDS, criaram os comitês de gênero, raça e diversidade. Era uma orientação do Presidente Lula. Os comitês não são uma novidade; eles foram criados muito lá atrás, pela então Ministra Nilcéa Freire, em 2006, eu acho que... depois da primeira conferência, que foi em 2004.
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Os comitês foram criados porque o Presidente entende, com toda a sua sensibilidade e compromisso, que gênero, raça e diversidade atravessam todas as políticas. Então, é muito importante que a gente possa ter comitês nos ministérios para poder contribuir com essas questões, e eu sou a Coordenadora do Comitê de Gênero, Raça e Diversidade do MDS.
Na questão da violência contra as mulheres, a Lei Maria da Penha define a violência contra a mulher como "qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial". Esse conceito é um conceito que a Lei Maria da Penha... Eu tenho muito orgulho de ter feito parte do GT que criou a Lei Maria da Penha, quando um consórcio de mulheres feministas apresentaram para a Nilcéa, a Ministra - eu trabalhava com ela -, uma proposta do que viria a ser, depois, a Lei Maria da Penha. Foi criado um GT importantíssimo, e esse GT, que teve a duração de um ano, culminou com a Lei Maria da Penha. Participaram o Senador Eduardo Suplicy, outros Deputados Federais, mas também a sociedade civil organizada; era uma proposta que vinha do movimento feminista. Eu digo isso porque esse conceito que a Lei Maria da Penha traz é um conceito que vem da Convenção de Belém do Pará; ela bebe da fonte, que foi a Convenção de Belém do Pará - a gente vai ver daqui a pouco -, e esse conceito vem dali.
Os tipos de violência doméstica e familiar são: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. A violência contra a mulher - eu conversava um pouco com a Erika - é um fenômeno que atinge mulheres de todas as idades, etnias e classes sociais; é uma forma de violência de gênero que desrespeita os direitos humanos da mulher e sua integridade física, psicológica e moral; é um problema de saúde pública, porque pode ter consequências graves para a saúde física e mental e porque afeta a sociedade como um todo, com consequências físicas, mentais e sociais; e pode ocorrer em diversos espaços, como no ambiente de trabalho, na escola, nas ruas... Se a gente ligar a TV todos os dias no Bom Dia daqui do DF, com muita frequência aparecem casos de maridos ou ex-maridos que foram esperar as mulheres na porta do trabalho, na saída do trabalho, e elas foram assassinadas ali, no seu ambiente de trabalho. A violência contra a mulher é naturalizada nesta sociedade, que ainda é patriarcal - a gente vai ver um pouco isso no decorrer da minha fala.
Bom, e o que é que a gente chama de sociedade patriarcal? É uma sociedade onde ainda prevalecem as relações de poder e domínio dos homens sobre as mulheres e todos os demais sujeitos que não se encaixem no padrão considerado normativo de raça, gênero e orientação sexual. Então, o patriarcado abarca todas essas questões colocadas.
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Tem uma pesquisadora feminista e professora universitária, a Marlise Matos, que diz que o patriarcado é um sistema que ordena as relações sociais, políticas, econômicas e, até mesmo, simbólicas, tendo como base o homem, como aquele que detém o exercício do poder, a autoridade moral e o controle dos valores e sentidos.
Eu trabalhei em uma prefeitura, no Município de Camaragibe, há muitos anos - de 1997 a 2003 -, e tinha umas agentes de saúde que faziam com a gente um trabalho de prevenção da questão da violência no território. E a gente descobriu uma família da qual o pai tinha uma deficiência e não podia se locomover - eu estou dando este exemplo, mas eu posso dar inúmeros outros.
Ele tinha duas filhas - o casal tinha duas filhas -, e muitas vezes, se as meninas se atrasassem, ele pedia que elas pegassem no quintal uma tabica - tabica é um pedaço de pau de uma árvore - e a trouxessem, porque ele iria bater na mulher e nas filhas que chegaram atrasadas; nas filhas, porque no meio do caminho se distraíram e demoraram para chegar; e na mulher, por responsabilizá-la pelo atraso.
E posso dar exemplos de mulheres que são muito mais fortes do que os homens e estão em uma relação de subordinação, porque a violência passa por toda uma questão que tem a ver com o patriarcado, que tem a ver com uma relação de dominação.
Eu me lembro de que o Instituto Papai, que é uma organização não governamental lá de Pernambuco, fez uma pesquisa uma vez com os soldados, e uma das coisas que eles diziam, às vezes, durante a pesquisa, é que eles podem até não saber por que estão batendo, mas elas com certeza sabem por que estão apanhando.
Então, a questão da violência tem toda essa discussão simbólica da autoridade, do controle, do exercício de dominação sobre aquele corpo. Por isso, quando eu vejo uma manchete dizendo assim: "Matou por ciúmes"... Gente, está na hora de os meios de comunicação fazerem uma revisão na forma como se dirigem a um feminicídio.
Os homens não matam por ciúme, matam, porque existe a coisa do corpo que deixa de ser dele, do corpo sobre o qual ele deixa de ter o domínio, e muitas vezes essa insuportabilidade de perder esse controle e esse exercício do poder fazem com que as mulheres sejam assassinadas, e é por isso que a gente tem o crime de feminicídio.
Aí eu fiz, Senadora, uma linha do tempo - eu estou chamando de linha do tempo; fui beber das teorias feministas que gostam de fazer esse exercício da linha do tempo -, porque eu acho que é importante para rememorar e reafirmar a trajetória dessa institucionalização das políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres.
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Primeiro, eu quero dizer que todas as conquistas que nós temos nas políticas públicas, dos primeiros equipamentos à Lei Maria da Penha, dos primeiros equipamentos à Lei do Feminicídio, tudo isso passa pela reivindicação, pela mobilização dos movimentos sociais, dos movimentos de mulheres e feministas, e, obviamente, para isso é preciso uma gestão pública que acolha as reivindicações e que as implemente.
Então, entre 1964 e 1985, a gente viveu no Brasil a ditadura militar, mas as mulheres, as feministas já estavam ali organizadas, e, para quem quiser ver um pouco mais, tem um livro que se chama Dicionário das Mulheres, que é um livro de Schuma Schumaher, que é uma feminista do Rio de Janeiro, um livro que tem muitos detalhes sobre essa história do feminismo no Brasil. Então, ali naquele período da ditadura, as mulheres já estavam ali organizadas e com algumas insígnias, com algumas bandeiras de luta muito importantes, e a gente pode dizer que, de alguma forma, ali estava também a semente da luta de enfrentamento à violência contra as mulheres.
Então, "nosso corpo nos pertence" era uma bandeira de luta importante naquele período; "o privado também é político", que é uma bandeira de luta, uma insígnia completamente atual... Então, em relação àquela história de que em briga de marido e mulher não se mete a colher, o privado também é político. O que se passa dentro de casa precisa também ser denunciado, a violência contra a mulher precisa ser denunciada, mesmo que seja no espaço doméstico, mesmo que seja no espaço privado. E "quem ama não mata". Então, eu escolhi essas três insígnias como uma forma de simbolizar esse início, vamos dizer assim, de um período de enfrentamento à violência contra as mulheres.
Em 1975, acontece a Conferência Internacional da Mulher, no México, muito por uma conferência da Organização das Nações Unidas, mas muito por pressão dos movimentos de mulheres. E em 1975, nessa conferência internacional, então, é declarado o Ano Internacional da Mulher, e, entre 1975 e 1985, a Década da Mulher.
Então, nesse período, nesses dez anos, ainda que, no Brasil, a gente estivesse vivendo a ditadura militar, as mulheres, sob o guarda-chuva da Década da Mulher, tiveram muitas oportunidades de poder fazer a discussão sobre várias questões, inclusive sobre o enfrentamento à violência contra as mulheres.
Eu destaco, ainda que seja no período da ditadura, 1982, o momento das eleições diretas para Governador, e eu destaco São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, porque nessas três administrações, de Franco Montoro, Tancredo Neves e Brizola, nesses três estados havia uma organização e uma reivindicação das mulheres pela criação dos conselhos estaduais da condição feminina. Então, em 1983, depois que eles tomam posse, eles, então, criam, em São Paulo, em Minas e no Rio de Janeiro.
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Os primeiros organismos não são executivos, não são de executar políticas e também são organismos um pouco híbridos, porque, ao mesmo tempo que não eram executores, acabavam executando campanhas. Esses foram os primeiros organismos criados e os primeiros que começaram também a pensar políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres.
Em 1985, é criado o CNDM (Conselho Nacional dos Direitos da Mulher), que era uma reivindicação do movimento. José Sarney acatou essa reivindicação e criou o CNDM, vinculado ao Ministério da Justiça, ano também em que começam as primeiras DEAMs (Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres); a primeira delas, em São Paulo.
A minha dissertação de mestrado é sobre o feminismo, a luta feminista na ditadura militar. Então, eu resgato um pouco isso na minha dissertação de mestrado, mostrando como esses organismos e como o próprio CNDM teve uma importância grande. É pena que Betânia não vai estar hoje nesta discussão, mas acho que Natália também pode falar sobre isso. Lá atrás, na época da criação do CNDM, Betânia foi uma das que participou e teve uma atuação muito importante.
Em 1986, são criadas as casas-abrigo, porque havia uma reivindicação das mulheres: o que a gente ia fazer com aquelas mulheres que eram vítimas de violência? Pensou-se na casa-abrigo. Hoje já se pensa que a casa-abrigo não era a melhor alternativa, porque você tirava as mulheres do lar, do seu espaço, e as colocava em um espaço de confinamento, protegida, mas, ao mesmo tempo, aprisionada. As mulheres saíam do seu lugar, porque eram vítimas, e passavam a estar protegidas, mas, muitas vezes, carregando os seus filhos para o que eram as casas-abrigo. Isso mudou bastante.
Então, São Paulo tem o seu primeiro Centro de Convivência para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica (Comvida), e, em 1992, foram criadas as casas-abrigo Viva Maria, do Rio Grande do Sul, e a Casa do Caminho, no Ceará. Em 2011, havia um total de 72 casas-abrigo no Brasil.
É importante a gente saber - por isso eu lamento também que, considerando todas as agendas do 21 Dias de Ativismo, o Ministério da Mulher não pôde vir - um pouco sobre as Casas da Mulher Brasileira, que são muito inspiradas nos centros de referência, não nas casas-abrigo, mas nos centros de referência.
Em 1989, é criado o primeiro serviço de aborto legal no Brasil, no Hospital Jabaquara, em São Paulo, pela Prefeita Luiza Erundina. O aborto é legal no Brasil desde 1940, não é, minha gente? A gente não está falando de uma descriminalização, mas do aborto previsto em lei desde 1940. Mas o acesso era limitado e, na prática, ele não era cumprido. Então, quando a então Prefeita Luiza Erundina se elege, ela cria, no Hospital Jabaquara, o serviço de aborto legal.
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A gente sabe que o aborto pode ser realizado no Brasil em três condições: quando há risco de vida da mulher, quando a gravidez é resultado de estupro e quando o feto tem anencefalia, quando o feto é anencéfalo.
Hoje, conversando com uma companheira querida de Recife, ela estava me perguntando: "Será que o serviço de aborto legal lá de Recife, do Cisam, foi em 86?". Eu confesso que fiquei em dúvida e, como eu já estava vindo para cá, não consegui fazer essa pesquisa, mas o serviço de aborto legal de Recife, que é um dos mais organizados, mais eficazes, também existe da década de 80 e é um serviço muito importante.
Acho que eu comecei a fala dizendo que as políticas públicas que a gente tem implementadas são muito fruto da reivindicação dos movimentos de mulheres e feministas, mas eu não posso cometer uma injustiça com os trabalhadores da saúde. Algumas administrações já tentaram acabar com esses serviços de São Paulo e os trabalhadores da saúde, não somente médicos, mas os profissionais de saúde, que são comprometidos, não permitiram que alguns serviços fossem desmantelados.
Então, acho que é importante a gente também resgatar isso, tanto a academia quanto os profissionais de saúde têm também um papel muito importante para a gente resgatar nessa trajetória de institucionalização das políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres.
Eu estou na metade da fala, mas eu vou...
Eu peguei essas três conferências, a Conferência de Viena, em 93, a Conferência de Belém do Pará, em 94, que é a conferência pelo fim da violência, e a Conferência de Pequim. Eu peguei essas três conferências porque as conferências e os tratados internacionais contribuíram muito para a identificação do problema da violência contra a mulher como um fenômeno global. As conferências mostraram esse escândalo que é a violência contra as mulheres.
Então, a gente está falando aqui de 93, 94 e 95, e a gente está em 2024 ainda dizendo que é um absurdo que as mulheres sejam mortas por serem mulheres, que existe uma coisa chamada feminicídio, que é quando as mulheres são mortas pelo fato de serem mulheres.
Em 2002, foi criada a Sedim. Todos esses organismos de que eu estou falando, de alguma forma, trouxeram muito fortemente a questão do enfrentamento e da assistência à violência contra as mulheres, mas, somente em 2002, já no apagar das luzes do Governo Fernando Henrique Cardoso, ele cria a Secretaria de Estado dos Direitos das Mulheres, a Sedim.
Acho que muita gente se lembra de que era uma secretaria criada no Ministério da Justiça, ela era vinculada ao Ministério da Justiça. Aí é o que eu sempre digo, tem uma reivindicação histórica dos movimentos, mas, se a gente não tiver um governo comprometido com a causa, ou ela é implementada pela metade, ou ela é implementada da forma como a gente não queria, que foi o que aconteceu, que era uma secretaria ligada ao Ministério da Justiça.
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Finalmente, em 2003, o Presidente Lula cria a Secretaria de Políticas para as Mulheres, cria muito como uma forma de... Era uma secretaria especial, como algo transitório, porque o que a gente queria mesmo era um ministério, e finalmente a gente tem um ministério em 2023. Então, em 2003, é criada a SPM, uma secretaria, a gente diz, que, de alguma forma, recolocou as políticas para as mulheres no centro do poder, do poder governamental, o que demandou um reposicionamento dos movimentos de mulheres e feministas e uma atualização das estratégias para influenciar essas políticas. Obviamente, se a gente tem em 2004 a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, a primeira conferência em que se vai ter um plano nacional de políticas para as mulheres, a sociedade civil, os movimentos de mulheres, os movimentos feministas e outros movimentos queriam influenciar no resultado final daquela conferência. Por isso que a gente diz esse reposicionamento dos movimentos de mulheres e feministas.
Em 2006, a gente tem a Lei Maria da Penha, a Lei 11.340, e a lei traz algumas questões que são muito importantes. A gente tinha, até antes da Lei Maria da Penha, e a Lei Maria da Penha é uma das últimas da América Latina, o Brasil é um dos últimos países a ter uma lei para coibir a violência contra as mulheres... Então, a lei traz algumas questões importantes, como a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a proibição de penas pecuniárias aos agressores, porque, antes da Lei Maria da Penha, o que era que acontecia? A mulher ia lá para a delegacia junto com o cara, o agressor levava um carão, como é que fala, um carão? Uma bronca, não é? E, então, era assim: "Olha, o senhor vai ter que dar não sei quantas cestas básicas em tal comunidade". Muitas vezes, as mulheres agredidas, as vítimas de violência que tinham que passar por aquilo, ir atrás para ele cumprir a pena. Então, acabou-se esse negocinho de penas pecuniárias aos agressores. A possibilidade de medidas protetivas de urgência e o caráter híbrido das ações, que podem ser, a um só tempo, penais e cíveis. A gente tem ainda muitas questões para avançar em relação à Lei Maria da Penha, mas ela é um mecanismo importantíssimo para coibir a violência contra as mulheres.
Termino. Já me encaminhando para o final, eu muito rapidamente vou falar que as redes de atendimento e de enfrentamento à violência contra as mulheres foram pensadas pela complexidade do problema. A violência contra as mulheres é um problema de violação de direitos humanos, é um problema de saúde pública, precisa de atendimento psicossocial, é um problema de segurança pública, de assistência social. Então, tem toda uma complexidade do atendimento e do enfrentamento à violência contra as mulheres. E obviamente se precisava pensar nessas redes de enfrentamento. Precisa-se também de serviços especializados, quando a gente pensa nessa rede de atendimento, e de uma descentralização dos serviços, para a gente ter uma rede eficaz.
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Não vou ler tudo o que está ali, mas fica o registro. Eu acho que, entre 2023 e 2024, vocês viram que, nessa linha do tempo, eu faço, num primeiro momento, os anos 80 e os anos 90 um pouco mais exaustivamente, porque acho que ali se começou muito do que a gente tem hoje, mas a gente tem, em 2023 e em 2024, novos e importantes desafios, por exemplo, eu trabalho no MDS (Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome). No MDS, a gente tem a capilaridade, a territorialidade dos Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social). Então, nesse lugar, muitas vezes, chegam as mulheres vítimas de violência, mulheres que sofreram violência na família e que, muitas vezes, procuram os centros de referência especializados para falar da sua dor e muitas vezes para procurar ajuda, e muitas vezes ajuda financeira, ajuda para alimentação.
Os Cras têm um papel importante, quando a gente pensa nessa rede de atendimento e de enfrentamento à violência contra as mulheres. O público atendido pelos Creas são as famílias e indivíduos em situação de risco pessoal e social, com violação de direitos, como as violências, as negligências. Então, eu trago aqui os Creas também como esse lugar, essa parte da rede que tem também uma importância do ponto de vista da assistência social.
E aí são duas novidades, que não são tão novidades, porque uma é de 2021 e a outra é de 2023, mas que são novidades e são novas questões colocadas para o enfrentamento da violência contra as mulheres. Então, a Lei 14.133, de 2021, e o Decreto 11.430, de 8 de março de 2023. Esse é um grande desafio para a gestão pública que são as contratações públicas com reserva de um percentual mínimo de vagas para mulheres vítimas de violência doméstica. É uma questão do MGI (Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos) e do Ministério das Mulheres, por meio de um cadastro sigiloso das vítimas, com muito cuidado com a natureza da contratação, pois a mulher não pode ser identificada no serviço, mas existe toda essa proposta, que é uma proposta de amparo e de proteção às mulheres.
E a última que eu trago é a Lei 14.717, de 2023, que institui uma pensão especial para filhos e dependentes de vítimas de feminicídio. É uma pensão equivalente a um salário mínimo, destinada a crianças e a adolescentes menores de 18 anos. É um benefício temporário, descontinuado, se for comprovado que o crime não ocorreu. Ele não acumula com outras pensões ou benefícios previdenciários. Enfim, são novos desafios que estão postos para a gestão pública e que mostram, também, o compromisso do nosso Governo, do Governo Federal, com essa questão do enfrentamento à violência contra as mulheres. É isso. Muito obrigada. Tentei cumprir aqui o meu tempo e fazer um panorama da questão das redes de atendimento e de enfrentamento à violência contra as mulheres. Muito obrigada e estou à disposição.
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A SRA. PRESIDENTE (Teresa Leitão. PT - PE) - Nós que agradecemos, Suely, pelo conteúdo riquíssimo da exposição, desde o histórico, em que a gente vê as contradições e também o caminhar na luta. Ainda é uma pauta urgente, necessária e presente, mas que tem uma visibilidade, sem sombra de dúvida, maior nos dias de hoje, graças a esse histórico. Um destaque na sua fala, que eu deixo para reflexão, é a necessidade da constituição de redes e da articulação intersetorial entre os diversos organismos governamentais. Muito obrigada pela sua exposição.
Vamos passar a palavra agora, em tempo, de maneira remota, para a Natália Cordeiro, a quem agradecemos por aceitar o nosso convite. Natália é pesquisadora da equipe do SOS Corpo, que é uma instituição que trata também do feminismo e de questões relacionadas à mulher. Tem várias linhas de pesquisa, inclusive a pesquisa sobre violência e enfrentamento à violência, que é onde Natália está atuando, atualmente, no SOS Corpo.
Muito obrigada, Natália. Você tem 15 minutos iniciais. Se precisar de algum tempinho, a gente vai dosando, porque temos um teto, mas dá tempo de você fazer a sua exposição tranquilamente. Muito obrigada. O início é com você.
A SRA. NATÁLIA CORDEIRO (Para expor. Por videoconferência.) - Boa tarde!
Quero agradecer o convite e saudar as minhas conterrâneas. (Falha no áudio.) Então, Suely de Oliveira, representante do MDS...
Agradeço o convite, a possibilidade de estar representando a sociedade civil, neste momento.
Foi bom o parecer que eu combinei com a Suely, porque ela apresentou um pouco dessa visão histórica, um pouco dos conceitos, e eu fiquei pensando como eu poderia contribuir para esta audiência pública, tentando pensar um pouco o panorama atual. Acho que pensar um pouco sobre a conjuntura ajuda. Se a gente entende que a violência contra as mulheres está baseada no patriarcado - e a gente tem que entender que se relaciona com o racismo e com o capitalismo -, isso vai se atualizando ao longo do tempo. Então, acho que ajuda a gente a pensar como é que isso se atualiza e está acontecendo hoje.
Então, eu não vou trazer dados. Eu lamento, inclusive queria pontuar, a ausência do Ministério das Mulheres. Acho significativo como tem sido essa atuação do ministério. Acho que é importante dizer isso, porque a gente está num momento do mundo em que o feminismo pontuou, pautou, como a Suely trouxe, brigou muito, disputou muito, para que as políticas públicas de enfrentamento à violência fossem implementadas. A gente, hoje em dia, fala muito mais da violência do que se falava nos anos 70 e 80. Isso é mérito do movimento, obviamente, em diálogo com o poder público, mas é mérito do movimento, da luta organizada das mulheres, mas a gente hoje tem visto que a violência não diminui. Na verdade, a violência, a cada ano, aumenta e aumenta mais para algumas mulheres; ela tem aumentado para as mulheres negras e diminuído para as mulheres brancas. O Brasil é o país que mais mata mulheres trans. A gente não tem dados de violência cometida contra mulheres lésbicas. Então, isso mostra para a gente que tem um monte de questão que precisa ser enfrentada. A minha ideia, na minha fala, é um pouco trazer alguns elementos que ajudem a gente a compreender isso, os porquês disso, o que justifica essa situação atual dos fatos e tem a ver com o meu lugar de militante feminista - eu sou militante do Fórum de Mulheres de Pernambuco e da Articulação de Mulheres Brasileiras - e o meu lugar de pesquisadora. Eu sou Doutora em Ciência Política e venho pesquisando desde o mestrado a rede de atenção a mulheres em situação de violência: as casas abrigo e as delegacias especializadas. Então, é desse lugar que eu falo.
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Eu vou fazer mais ou menos uma cartografia de elementos que possam ajudar a gente a pensar esse cenário atualmente. Bom, obviamente, a gente tem uma conjuntura política que eu acho que faz diferença para a gente entender o que está acontecendo, que é de uma extrema direita enraizada não só no Brasil, mas no mundo, ocupando os territórios - todos os lugares, a extrema direita está tomando: os serviços públicos, as periferias, os territórios -, essa é uma dimensão, e, obviamente, a gente viveu anos no Brasil de recessão democrática e de ascensão do autoritarismo e do golpismo. Os últimos acontecimentos são a prova cabal disso. Então, obviamente, o golpe de Dilma, o Governo de Temer e o Governo de Bolsonaro deterioraram profundamente as políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres. Com a retomada da democracia com o Governo Lula, apesar de ser uma frente amplíssima essa coalizão que elegeu Lula, a gente viu um processo de tentativa de retomada, mas que, na nossa visão, tem sido absolutamente insuficiente para enfrentar o problema.
Eu vou tentar trazer um pouco desses elementos que são insuficientes, o que tem por trás, o que poderia ajudar, porque eu acho que a gente como sociedade civil precisa provocar os Parlamentares, o conjunto dos ministérios, o Poder Executivo, o Poder Judiciário e o Poder Legislativo para que tentem um pouco ver como a gente está vendo o mundo, para ver se isso ajuda no trabalho de vocês, entendendo que a gente faz um trabalho que é necessariamente complementar e eventualmente tenso - eventualmente, há tensões entre nós.
Bom, a violência contra as mulheres - e aí eu acho que a mídia, o Judiciário, os próprios ministérios e as secretarias dos órgãos de Governo têm um papel nisso - tem sido tratada de uma forma absolutamente em nível do indivíduo. Então, você diz assim: "Disque 180". Você diz: "Existem cinco tipos de violência". Você diz: "Perceba como identificar se você está em uma situação de violência", mas em hora nenhuma a violência contra as mulheres vem sendo pensada dentro da estrutura social racista, patriarcal e capitalista. Se a gente não pensar nisso, parece que a violência contra as mulheres acontece isoladamente, é uma questão individual: a mulher escolheu um companheiro que não era legal, sofreu violência por isso, então basta ela romper com ele, como ato de simples vontade, e aquilo está resolvido.
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E eu acho que os dados que a Senadora trouxe no começo e os noticiários que a Suely mencionou demonstram que, na verdade, não é bem assim.
A gente tem uma rede hoje profundamente desarticulada, fragilizada, uma rede que revitimiza as mulheres, quando elas procuram os serviços, e ela revitimiza, sobretudo, as mulheres negras, as mulheres trans, as mulheres pobres, as mulheres com deficiência, as mulheres indígenas. E isso não tem a ver exclusivamente com a identidade dessas mulheres; isso tem a ver com o conjunto de opressões aos quais essas mulheres estão submetidas.
Então, se você trata a violência contra as mulheres do ponto de vista das indivíduas, como algo que é individual, você não vai à raiz da questão. E eu acho que são assim as brigas para que as políticas públicas possam ser implementadas.
Com os primeiros Governos Lula, elas foram bem-sucedidas, começaram a ser implementados os planos, os pactos, houve uma descentralização da rede, uma divisão de tarefas, uma pactuação orçamentária de quem faria o quê dentro dessa rede de enfrentamento, mas isso foi interrompido, e, obviamente, a gente hoje precisa retomar de um lugar que não é mais aquela conjuntura dos anos 2000.
É uma conjuntura da extrema direita. Aí, em Brasília, por exemplo, está acontecendo agora a votação na CCJ da PEC 164, que foi ressuscitada, uma PEC de autoria do Eduardo Cunha, que pensa a vida desde a concepção; e isso atinge diretamente as mulheres vítimas de violência sexual, as meninas vítimas de violência sexual.
Então, a gente precisa entender que a correlação de forças é outra, que o movimento feminista não tem como brigar por políticas públicas nessa conjuntura e que o Governo não pode oferecer as mesmas respostas que oferecia nos anos 2000 e 2010. Eu acho que isso é fundamental.
A gente vive em um cenário de profunda precarização da vida, de implosão dos lares. O trabalho hoje não é mais via salário; a gente vê a precarização do trabalho, e está junto também a PEC que busca questionar a jornada 6x1, mas a gente vive em um momento em que o salário não é mais o meio pelo qual os homens exercem o seu poder dentro das casas.
Então, isso implode os lares, isso faz recrudescer a violência dentro das famílias. As mulheres também já estão no momento em que também estão no mercado de trabalho, com muito mais força e também visando a uma autonomia, sobretudo as mulheres mais jovens, inclusive as mulheres da minha geração, que já nascem em um contexto de precarização do trabalho. Então, isso já muda e já traz algumas implicações para pensar a questão da violência.
A gente vê novas formas de violência nos territórios, a partir, inclusive, das economias ilegais. Então, esses homens que não mandam mais via salário dentro de casa vão buscar um lugar de pertencimento e um lugar de remuneração nos mercados ilegais, nas polícias ou no Exército. Então, ou vai ser no tráfico de drogas, ou vai ser nas milícias, ou vai ser na polícia.
E isso é fundamental para a gente entender a violência contra as mulheres hoje, porque, quando você vai a uma delegacia, e uma mulher diz que está sendo ameaçada por um traficante de drogas que é rival do marido dela, que também é traficante de drogas, o que o comissário de polícia diz para a mulher é: "Isso não é nesta delegacia, é na delegacia comum"; só que o cara está a ameaçando de estupro. Qual violência contra uma mulher é maior do que uma ameaça de estupro?
Então, eu acho que o poder público não tem conseguido identificar essas nuances na hora de enfrentar a violência contra as mulheres.
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A gente vive um momento de espoliação da terra e da vida, de especulação imobiliária, do avanço do agronegócio. A gente tem um conjunto aí de poderes econômicos atuando para desterritorializar as pessoas, para tirar a possibilidade de as pessoas se sustentarem. Então, tudo isso atua para fortalecer a violência contra as mulheres, considerando que são as mulheres que estão nas ocupações fazendo a luta por moradia, são as mulheres que fazem a luta pelo direito à terra nas zonas rurais. São as mulheres, as pescadoras, as ribeirinhas, as quilombolas, que estão na linha de frente dessas lutas.
Então, essa é outra dimensão para a gente pensar o enfrentamento à violência contra as mulheres. A rede de enfrentamento, atualmente, com sorte, vê de forma superficial. Na maioria das vezes, sequer enxerga.
Acho que a gente tem uma dimensão também de reprodução de desigualdade nas políticas públicas. É um pouco a isso que eu tenho dedicado as minhas pesquisas. A gente tem pensado a violência contra as mulheres como um fenômeno que acontece exclusivamente por conta da desigualdade de gênero. Acontece que, por exemplo, uma mulher branca que procura uma delegacia ou uma Casa Abrigo tem um tipo de tratamento diferente do de uma mulher negra. A gente vê uma série de reproduções de estereótipos dentro dos serviços da rede de enfrentamento à violência contra as mulheres. Mulheres em situação de rua, por exemplo, não conseguem sequer cadastrar um boletim de ocorrência, porque elas não têm endereço, porque elas não sabem o nome do agressor. Elas precisam ouvir do comissário: "Mas, minha senhora, você começou a se relacionar com ele ontem, isso não configura uma relação". Mas essa é a realidade de muitas mulheres. Quando você procura o serviço, você não só passou pela violência antes, mas também precisa provar, na hora que você recorre ao serviço, que você, de fato, é vítima daquela situação.
Então, o conjunto das políticas públicas que Suely resgatou precisa ser atualizado e pensado nessa situação hoje, porque não adianta... O poder público até consegue enfrentar os casos que eu chamo de casos das vítimas perfeitas. Por exemplo, uma mulher que tem cinco filhos, trabalhadora, bem certinha, que vai de casa para a igreja e que apanha do marido, o Estado se mobiliza para resolver o problema dela. Ou, pelo menos, quando ela chega para fazer a denúncia, essa denúncia não é colocada em questão. Agora, se uma mulher usuária de droga chega para fazer a denúncia, ela já começa a ser questionada, porque ela não corresponde a esse perfil ideal.
Existe uma série de julgamentos morais, uma série de estereótipos de gênero, de raça e de sexualidade que o Estado brasileiro reproduz. E, quando eu estou falando do Estado brasileiro, eu não estou falando de uma abstração, dessa instituição quase intangível, eu estou falando dos profissionais que operam as políticas públicas: a educadora social que trabalha na Casa Brigo, o comissário de polícia que faz o boletim de ocorrência e que recebe essa mulher vítima de violência, a assistente social que trabalha nos centros de referência.
Quando isso acontece, a gente consegue garantir que alguns casos vão ser encaminhados, geralmente os das mulheres que têm um pouco mais de instrução, mulheres que correspondem a esse imaginário do que é ser mulher; e as mulheres que estão fora disso continuam... Não é à toa que sessenta e poucos por cento das mulheres que morrem vítimas de feminicídio no Brasil são negras e, quando você cruza ser negra com ser pobre no Brasil, isso tem uma relação absolutamente profunda. São essas mulheres que mais dependem do Estado para sair da situação de violência.
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Então, eu acho que pensar as redes de enfrentamento à violência contra as mulheres hoje significa atualizar esse conjunto de compreensões para poder a gente conseguir... O Estado precisa conseguir dar respostas à altura do tamanho dos problemas, tanto do ponto de vista da correlação de forças aí dentro dos Parlamentos, dos ministérios, enfim, mas também para pensar a complexidade dos problemas hoje.
Porque, veja: "disque 180", ou então "se for iminente, risco de morte iminente, ligue para o 190"... A polícia militar, gente, é a polícia que entra nas casas das mulheres negras sem autorização - sabe? -, quebrando tudo, destruindo a casa da galera, que mata os filhos dessas mulheres. Essas mulheres nunca contarão com a polícia, elas continuam sem contar com a polícia. De que rede de enfrentamento à violência a gente está falando? Uma mulher que está envolvida com traficantes de drogas vai denunciar na polícia? É claro que ela não vai.
Para concluir minha fala, para ficar bem fiel aqui ao tempo, eu acho que é óbvio que o Estado, ainda mais nesta correlação de forças, nesta conjuntura política, tem uma atuação absolutamente limitada, e eu acho que a gente, enquanto sociedade civil - e especificamente me dirigindo à Senadora Teresa, à companheira Suely, a gente tem uma relação que é anterior, que é das lutas feitas no cotidiano -, a gente sabe dos limites e do papel de cada um, mas a gente precisa, enquanto sociedade civil, cobrar também do Estado fazer uma leitura da realidade que permita que a implementação de políticas públicas, a articulação da rede de serviços seja feita considerando essa realidade atual.
A implementação de políticas públicas, a formulação de políticas públicas precisa criar o mínimo de tensionamento dentro do Estado, para poder ir criando outras correlações de forças internamente, para mudar um pouco a situação, entende? Se a gente continua fazendo sem radicalidade, sem trazer a dimensão do feminismo para o centro, se a gente acha que, por exemplo, as Casas da Mulher Brasileira vão ser o que vai resolver... Gente, o movimento feminista está criticando as Casas da Mulher Brasileira desde o Governo Dilma. A gente tem falado que é para postar nas redes, a gente precisa descentralizar, a gente precisa garantir que o conjunto dos municípios, as mulheres do interior, as mulheres das zonas rurais, as mulheres ribeirinhas, as mulheres das florestas tenham acesso às políticas públicas. Quando o Ministério das Mulheres volta com a Casa da Mulher Brasileira, volta a concentrar tudo num lugar, num centro urbano. É o contrário, então, você não muda nada, você não tensiona correlação de forças nenhuma. Os problemas vão continuar se repetindo e a gente vai continuar vendo mulher morrer.
Então, eu acho que, compreendendo esse papel complementar, que é... Deixem que aqui de fora a gente vai cobrar com toda a radicalidade, a gente vai para as ruas, a gente vai tensionar no limite, buscando trazer toda a radicalidade da luta feminista no enfrentamento à violência contra as mulheres, mas os ministérios, os Parlamentares precisam minimamente também ter uma atuação que promova pequenas rupturas na ordem que está colocada, porque a gente, sozinha, daqui de fora, não tem força, mas vocês também, se não tentarem também alargar um pouco mais dessa atuação, fazer uma atuação mais com os pés no chão, mais olhando para a realidade brasileira, conseguindo ler a realidade brasileira, a gente não vai conseguir enfrentar esse problema tão complexo, tão amplo, tão histórico, que se atualiza no tempo, que se redefine no tempo e continua desafiando a gente, que continua matando cotidianamente a nós mulheres, sobretudo as mulheres negras, as mulheres trans, as mulheres pobres.
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Eu acho que é muito sério o compromisso de seguir no enfrentamento à violência contra as mulheres, mas esse compromisso precisa ser sempre atualizado à luz dos momentos atuais, à luz das conjunturas atuais e de como esse fenômeno se atualiza, de como se materializa na vida das pessoas, de como se materializa nas políticas públicas. Então, era a partir desse lugar, dessas provocações que eu queria fazer a minha contribuição. E, mais uma vez, agradeço o convite. Agradeço a escuta. Este espaço de interlocução para a gente é fundamental.
A SRA. PRESIDENTE (Teresa Leitão. PT - PE) - Muito obrigada, Natália.
Como você disse, parece que você combinou com o Suely. Eu acho que é uma leitura muito complementar de como os sistemas, de como a rede, de como os organismos oficiais estão repercutindo na vida das mulheres. A gente sabe que não os ter é pior do que tê-los, mas tê-los desta maneira também é insuficiente.
Acho que você trouxe muito a leitura - não é, Suely? - de quem está na ponta da vida cotidiana das mulheres, de quem são essas mulheres, de como são recebidas. A iniciativa de se ter em cada ministério esses comitês... Eu acho que é importante que eles também problematizem isso, porque existe violência contra a mulher em várias dimensões da nossa vida.
Aqui no Senado, por exemplo, existe. Está havendo agora um evento aqui em Brasília de uma ONG que está reunindo Vereadoras dessa última eleição e candidatas a Prefeitas, eleitas ou não eleitas, para discutir violência política, porque a gente acha que a gente tem, em tese, um certo poder de isenção, ou somos isentas, e não somos, porque a violência contra a mulher existe em todos os patamares da vida, mas você traz a vida daquelas que mais precisam dessas políticas públicas. É a vida da mulher ribeirinha, é a vida da mulher negra, é a vida da mulher que a família se envolve em comunidades dominadas pelo tráfico. Então, como esses organismos, como essa rede de enfrentamento pode chegar a essas mulheres? Acho que foi uma fala muito real, uma fala de quem está com o pé, realmente, ou com a mão na massa. A gente precisa, Suely, fazer justamente essa reflexão conjunta. Acho que foram falas importantes, falas muito comprometidas, e falas, para nós, da Comissão, desafiadoras.
Nós vamos tratar em relatório. Tudo o que a gente está tratando nesta Comissão é tratado em relatório, mesmo não tendo nenhuma pessoa inscrita para falar, eu me arvoro a dizer isso. Será um relatório desta sessão bastante contundente, e vivendo esta sessão, no momento em que a gente vive os 21 dias de ativismo contra a violência às mulheres, a gente renova o compromisso desta Comissão, que foi criada já com essa marca. Era uma Comissão que talvez nem precisasse existir, mas é uma Comissão Especial Mista, que envolve Deputadas e Senadoras, porque a chaga existe, e a gente precisa enfrentá-la com dores, é verdade, com o sentimento de impotência, muitas vezes, mas, sobretudo, com o foco de que é preciso enfrentar, é preciso combater e é preciso que as mulheres tenham direito à vida, e à vida plena. Somos nós aqui que temos voz para representá-las.
Muito obrigada, Natália, pela sua participação.
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Muito obrigada, Suely, também pela sua participação.
Não havendo mais ninguém inscrito... Tem alguma coisa do e-Cidadania? (Pausa.)
Nem do e-Cidadania.
Eu agradeço a presença de todos e todas que aqui estão e declaro encerrada a presente reunião.
(Iniciada às 14 horas e 32 minutos, a reunião é encerrada às 15 horas e 34 minutos.)