31/03/2015 - 12ª - Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa

Horário

Texto com revisão

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O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Apoio Governo/PT - RS) - Peço aos nossos convidados que sentem. Sob a orientação do Senador João Capiberibe, eu abrirei aqui, e, em seguida, ele vem para cá para coordenar os debates.
Declaro aberta a 12ª Reunião Extraordinária da Comissão Permanente de Direitos Humanos e Legislação Participativa, da 1ª Sessão Legislativa Ordinária, da 55ª Legislatura.
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A presente reunião destina-se à realização audiência pública, nos termos do Requerimento nº 34, de 2015, da CDH, de autoria do nosso querido Vice-Presidente, Senador João Capiberibe, aprovado em 2015, para lembrar, rememorar, os 51 anos do Golpe Civil e Militar de 1964, que interrompeu o Estado democrático de direito no Brasil, com a deposição, pelas armas, do Presidente legalmente constituído, João Belchior Marques Goulart.
Quero mais uma vez enfatizar que esta audiência é uma iniciativa do nosso João Capiberibe, que fez questão que acontecesse no dia de hoje, e o requerimento apresentado por ele foi aprovado por unanimidade por esta Comissão.
Enquanto ele dá uma entrevista, vou apenas montar a primeira mesa. Em seguida, ele assume a presidência dos trabalhos e eu vou para o plenário, ao lado dos meus queridos convidados, Senadores, Deputado Federal João Morais, Deputado Federal Daniel Miranda, Deputado Federal Chico Alencar e o meu querido, sempre presente, Senador Hélio José.
De imediato, vou chamar a composição da primeira mesa, porque o discurso de abertura será feito pelo Senador João Capiberibe.
Citei sim, Deputado Federal Daniel Almeida, se não citei, cito agora: Deputado Federal Daniel Almeida, meu querido amigo; Jô Moraes, que esteve aqui, teve que dar uma saída, mas volta. E o Deputado Federal Chico Alencar. Senadora Lídice da Mata, grande Senadora também presente.
Vou fazer a montagem da mesa para que o nosso Senador faça o discurso de abertura, conforme combinado.
Convido para a primeira mesa a coordenadora do Grupo Independente de Familiares de Mortos e Desaparecidos, Srª Eliana Castro. (Palmas.)
Convido também a representante do Comitê pela Verdade do DF, Srª Iara Xavier. (Palmas.)
Convido também o meu amigo, ex-Deputado Federal, sempre presente, Gilney. Não, ele me disse que falará li do plenário mesmo. Eu quero fazer uma homenagem a você, Gilney, pela sua história, pela sua luta.
(Palmas.)
Claro que isso eu improvisei, não estava escrito.
Já chamei a Srª Iara Xavier.
Chamamos agora Sr. Luciano Mariz Maia, Procurador Federal dos Direitos do Cidadão Adjunto do Ministério Público Federal.
Chamamos Professora da Fundação Getúlio Vargas, Srª Dulce Pandolfi.
(Palmas.)
Chamamos o Sr. Cid de Queiroz Benjamin, jornalista e escritor. (Palmas.)
Chamamos o meu querido amigo e Deputado Federal, que me procurou há minutos e fez um belo convite - não vou dizer qual - o meu querido Chico Alencar.
De imediato, convido meu querido Senador João Capiberibe. V. Exª está convocado a assumir a presidência dos trabalhos. A nossa assessoria, inclusive, fez um belo pronunciamento de abertura, e eu disse: "quem vai fazer o discurso de abertura é V. Exª. Se quiser usar o pronunciamento, use; se não quiser, fale de improviso".
Peço a todos uma grande salva de palmas ao Senador João Capiberibe que, neste momento, assume a presidência dos trabalhos. Eu ficarei no plenário, me somando a essa militância da liberdade, da democracia. Que esse ato seja um ato que reafirmo: ditadura nunca mais!
Com a palavra, como Presidente, João Capiberibe. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Bom dia a todos e a todas.
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Meus cumprimentos ao nosso Presidente, Senador Paulo Paim, que, pela terceira vez, conduz a Comissão de Direitos Humanos.
Antes de tudo, quero agradecer a presença de todos os convidados para essa audiência pública, que rememora um dos episódios mais tristes da história do País, que é a ditadura civil-militar de 1964.
Eu diria que o Brasil da democracia é infinitamente melhor do que esse Brasil que a minha, a nossa geração conheceu. E muitos dessa geração estão aqui presentes e foram vítimas da violência da ditadura, da truculência, enfim, cresceram num clima assombroso de medo. E nós, com muito sacrifício, com o sacrifício de muita gente, de pessoas que tombaram pelo caminho e se sacrificaram, podemos viver neste País que estamos vivendo hoje: m País infinitamente melhor do que já foi no passado, um País protagonista, um País reconhecido em todo o mundo.
Eu me lembro do período do exílio, em que só ouvia falar do Brasil depois do carnaval em função das estatísticas de mortos ou, quando muito, pelos feitos do Pelé. Era o que normalmente se ouvia falar do Brasil. O Brasil não era protagonista de absolutamente nada, a não ser também das denúncias de violência e de tortura nos porões da ditadura.
Portanto, este momento é muito importante para que as gerações que nasceram, cresceram na democracia entendam que a democracia precisa avançar. Isso é o que me parece que está acontecendo neste momento.
Eu vejo com entusiasmo esses sintomas novos da democracia, que revelam um comportamento das elites brasileiras, que foram sempre assim.
Nós temos hoje três fatores importantes, determinantes dos próximos dias, dos próximos meses no nosso País. Nós temos uma revelação de escândalos que só a democracia poderia revelar.
O que estamos vivendo hoje é fruto, é resultado, é consequência da Constituição de 1988 e do avanço do processo democrático: a Operação Lava Jato, todo esse envolvimento dos homens, dos magnatas da construção civil que estão presos. Até, Senador Paim, às vezes eu me belisco para acreditar que isso é verdade, que isso esteja acontecendo no Brasil. Essas pessoas sempre tiveram poder enorme, muitas delas desde sempre, são sócios dos orçamentos públicos do nosso País desde sempre. Não é de agora. Temos agora mais um escândalo, o Conselho Fazendário, em que se descobriu, em rápida investigação da Polícia Federal, que chega a R$20 bilhões.
Isso só possível graças à democracia, graças à independência do Ministério Público, graças à independência da Polícia Federal, graças ao fortalecimento das nossas instituições. (Palmas.)
Na ditadura, isso sempre aconteceu. Eu me lembro das grandes obras da ditadura, inclusive eu me lembro de uma história que o saudoso Governador Miguel Arraes nos contou, que um ministro da Justiça da ditadura, quando faleceu, tinha deixado numa conta da Suíça US$55 milhões, ministro da Justiça. E esses valores foram constados em inventário, e a família recebeu esse valor. Isso hoje dificilmente aconteceria. Temos agora o SwissLeaks, que é outra questão, digamos, que está mexendo com a elite brasileira, em todas as áreas.
O que me parece é que há um entrelaçamento entre os envolvidos na Lava Jato, no SwissLeaks e também nessa questão do Conselho Fazendário.
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Eu tenho impressão de que, na hora em que aprofundarmos as investigações, vamos encontrar as impressões digitais dos mesmos, nos três escândalos que são investigados neste momento. Portanto, graças à democracia, temos a oportunidade de, de fato, passar o Brasil a limpo. E essa é uma responsabilidade que não cabe apenas ao Executivo; cabe ao Parlamento.
Nós somos hoje, digamos, cobrados, exigidos para que possamos dar contribuição no sentido de fazer a democracia avançar. Portanto, não podemos perder de vista o que aconteceu no passado. Também devemos juntar a ponta do passado com a ponta do presente para fazer a democracia avançar. E é para isso que nos reunimos, nos encontramos e relatamos histórias que podem mexer com a nossa juventude, que podem despertar a nossa juventude no sentido de exigir que a democracia possa dar passos mais largos, que possam vencer esse pacto que, do meu ponto de vista, se exauriu, que é o pacto construído com a Nova República, através da habilidosa engenharia política de Tancredo Neves. Ele juntou os próceres da ditadura com os desejosos de democracia e construiu um processo amplo, um pacto amplo baseado em algumas questões que, hoje, são impossíveis de continuar existindo, como, por exemplo, o loteamento de cargos públicos.
Nós temos que dar uma resposta para isso. Nós temos que pôr um ponto final nessa questão. Então, esse pacto de 31 anos atrás está vencido, e cabe ao Parlamento dar passos adiante.
Eu queria, finalmente, agradecer a todos aqueles que o Presidente da nossa Comissão, Paulo Paim, já convidou para a Mesa.
Então, vamos começar a audiência pública ouvindo exatamente os nossos convidados, porque estamos aqui mais para ouvir do que para falar. Isso porque, depois de analisarmos o relatório da Comissão Nacional da Verdade, Memória e Justiça, haverá desdobramentos legislativos. Então, vamos apresentar algumas propostas legislativas, porque, enquanto houver um único desaparecido político, não poderemos cruzar os braços. Nós temos que prestar contas até encontrarmos o último ser humano que a ditadura fez desaparecer. E é importante a nossa persistência na busca do esclarecimento de todos os casos de desaparecidos políticos para que essa prática não se reproduza mais no presente.
Portanto, vamos começar convidando a Eliana Castro, Coordenadora do Grupo Independente de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos.
Com a palavra, Eliana.
A SRª ELIANA CASTRO - Bom dia.
Sou Maria Eliana Castro, sou irmã de desaparecido político da guerrilha do Araguaia. Falo, como familiar, que a tortura é comum em nosso País desde sempre, uma prática nefasta, verdadeira herança maldita, trazida pelos portugueses, educados nos métodos da dita sagrada inquisição e que permanece até hoje, passando por Colônia, Império, independência, República, ditadura, e em perfeito estado de direito, com um governo de todos os tipos. Isso diz a Prof. Vitória de Mesquita Benevides Soares, uma socióloga.
Fazendo parte do contexto das ditaduras do Cone Sul, o Brasil iniciou o seu processo em 1964 e terminou em 1985. Como em todos os regimes de exceção, as práticas de torturas, mortes, prisões, exílios e violência generalizada, resultam em dolorosa memória que só o romper do silêncio, através de publicações e divulgações, vão visibilizar os absurdos cometidos nos porões dos quarteis e outras instituições criadas para alimentar o sistema ditatorial.
No Brasil, a Lei de Anistia - denominação popular - ou Lei 6.683, foi promulgada pelo ex-Presidente João Baptista Figueiredo, em 28 de agosto de 1979, após ampla mobilização social, ainda durante o regime de exceção de 1964.
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Não concordamos totalmente com a Lei de Anistia, mas, como foi promulgada, tivemos que aceitar de uma forma não muito agradável, porque aqueles que torturaram, mataram, executaram, jogaram e fizeram verdadeiro extermínio daqueles jovens que simplesmente não concordavam com a forma com que a liberdade de um país estava sendo feita, foram anistiados. Tivemos de simplesmente aceitar essa forma de anistia.
A redação original do projeto de lei diz:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares e outros diplomas legais.
Esses "outros diplomas legais" foi retirado, infelizmente, da redação original, e ficamos com a lei, para mim, meio capenga. Mas em dois mil e...foi pedida, no Supremo Tribunal, uma revisão, e nós perdemos por sete a dois.
Eu espero que agora possamos fazer uma boa avaliação e cheguemos a um consenso melhor quanto aos torturadores desse período ditatorial que o nosso País teve.
Obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Muito obrigado a Eliana Castro.
Eu tenho a honra de passar a palavra ao Deputado Chico Alencar. Vocês sabem que, nesta Casa, ocorrem simultaneamente, pelo menos, dois, três, quatro eventos.
E o Deputado Chico Alencar está sendo demandado. Estou o acompanhando pelo telefone e, a toda hora, ele está sendo convidado a comparecer em diversos eventos programados. Eu sei que ele tem debates importantes, inclusive, relativos a direitos humanos, que deverão ser travados na comissão, daqui a pouco.
Com a palavra o Deputado Chico Alencar.
O SR. CHICO ALENCAR (PSOL - RJ) - Vou até falar em pé para ser mais breve, até porque os depoimentos vivos aqui, que esta mesa recolhe e traz, são muito mais importantes.
Vou começar com uma aparente indiscrição.
Quem aqui - vou poupar a mesa, até porque ninguém levantaria o braço - tem menos de 51 anos? (Pausa.)
É claro que se eu perguntasse: quem gostaria de ter menos de 51 anos, todos levantariam. Mas, olhem, dois terços desta sala nasceram depois do golpe. Aí eu falo do meu lugar permanente, pois mandato parlamentar de Senador e de Deputado é transitório, e o meu lugar permanente é o de um velho professor de história. E isso é significativo, porque vejo no meu cotidiano muitos jovens que não têm a menor ideia do que foi a ditadura.
E nessa mínima ou pouca visão desse período histórico, que não é tão passado assim, muitos fazem a afirmação superficial e reverberam na linha do que o Senador Capi trouxe aqui: "Ah, pelo menos naquele tempo não tinha roubalheira."
Sábado passado, no Rio de Janeiro - não sei se meus colegas moradores do Rio souberam -, um grupo de vinte ou trinta pessoas foi para a frente do Comando Militar do Leste, o antigo Ministério da Guerra, ali na Central do Brasil, para aclamar pela volta dos militares.
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E aí um jovem do grupo de teatro Companhia Ensaio Aberto ficou indignado e fez uma breve fala, com ares de comício relâmpago, porque ele teve de sair correndo, sob pena de apanhar. Era um jovem com visão. Depois ele, já longe daquela manifestação de viés fascista, foi detido por policiais militares que queriam revistá-lo. Ele disse: "Só abro a minha bolsa na minha mão". Acautelou-se. Levou spray de pimenta. Foi derrubado, detido. Quiseram fazer um auto de desacato à autoridade e resistência à prisão.
Só conseguimos, um grupo grande que se mobilizou, tirá-lo desse absurdo dos absurdos lá para a meia-noite. E o Delegado ainda ameaçou prender a advogada colega dele, tributarista, que foi lá dar um amparo imediato. Então, houve mentira de policiais militares fardados, detenção arbitrária; e o delegado, policial civil, coonestando isso tudo agora, sábado, na semana em que se relembra o golpe.
Portanto, vemos que essa rememoração histórica é fundamental até porque, como diz um conterrâneo do meu querido Paulo Paim, Mário Quintana, o passado não conhece o seu lugar, insiste em reaparecer no presente. Sabemos que a história só se repete como fácil ou como tragédia, já dizia o velho Marx. Daí a importância desta memória aqui.
Gilney lembrava que o golpe, na verdade, foi 1º de abril, mas os mineiros, talvez liderados por Mourão Filho, pelo fato de terem saído lá de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro, no dia 31 de março, cunharam essa data, até porque 1º de abril é o Dia Internacional da Mentira. Um evento histórico que se quis redentor, que salvou a democracia de uma república sindicalista, que ia combater a corrupção e outros desmandos não poderia ter essa marca do 1º de abril.
De qualquer forma, 31 de março ou 1º de abril é um tempo que a gente tem que negar e repudiar pedagogicamente inclusive, insistindo na informação.
Eu encerro com dois registros que, na verdade, são artísticos: Francis Hime e Chico Buarque, mais dois que não poderiam levantar o dedo de ter menos de 51 anos, também dessa geração que cresceu nesse tempo terrível, fizeram um samba maravilhoso chamado Vai Passar:
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
Todo regime autoritário, discricionário e ditatorial é sementeira de corrupção. (Palmas.)
Não tenho dúvida. Há uma tese acadêmica recém-publicada em que um professor - creio que é nosso colega lá do Rio de Janeiro - fala das empreiteiras na ditadura. E todo alto chefe político de origem militar, como Golbery, por exemplo, ao sair do poder, ia logo para uma empresa privada. Então, havia esse conluio espúrio já naquela época.
Mas o Chico e o Francis também dizem:
Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
O nosso trabalho é reavivar esse presente para que ele não se repita.
Encerro. Eu fiz uma publicação meio pessoal ano passado, fazendo a memória da minha vivência na ditadura, nada comparável em sofrimento e capacidade de resistência de muitos que estão aqui, que tive o privilégio de conhecer e deles ficar amigo. Mas eu era secundarista. Não era universitário naquele tempo. Vivi esses momentos e, depois, escrevi um livro de história, cada capítulo musicado pelo meu compadre Milton Nascimento, por Fernando Brantes, também setentões. O Fernando, para o filme Jango fez um texto belíssimo, que nos envolve, nos comove e nos move nessa resistência continuada contra as ameaças à construção democrática brasileira hoje muito presente.
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Eu estou tendo que ir correndo lá, senão aprovam a toque de caixa a redução da maioridade penal, porque agora a lei é encarcerar todo mundo - essa mentira de que isso resolve o problema da violência.
Então, o Fernando diz o seguinte sobre os episódios de 1º de abril:
Os acontecimentos daquele dia
ainda estão claros na memória
fechado no escuro do quarto
querendo fugir do mundo
que me chegava pelo rádio.
Eu pouco mais que um menino
chorando como se fosse morte
a viagem- fuga do Presidente Jango.
Os anos passados, a maturidade
a visão diária da injustiça e do ódio
da opressão, da mentira e do medo
me levam, agora maduro
em nome da verdade e da história
a reafirmar o menino
as lágrimas derramadas de 64
continuam justas.
Assim seja. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Muito obrigado, Deputado Chico Alencar.
Cumprimento os Senadores presentes: o Senador Hélio José, o Senador Donizeti, a Senadora Fátima Bezerra, o Senador Medeiros.Também cumprimento o Deputado Chico Lopes - seja muito bem-vindo à Comissão de Direitos Humanos do Senado; o Deputado Gilney Viana que, se não foi o último, foi um dos últimos a ser libertado pela ditadura, nos anos 1970; a Deputada Janete Capiberibe.
Nós vamos ter duas mesas. Esta é a primeira mesa; e logo em seguida, vamos ter uma segunda mesa.
E eu queria convidar a Sueli Bellato, que é da Comissão de Anistia, para compor a mesa conosco. Esta Audiência Pública é uma parceria da Comissão de Direitos Humanos com a Comissão da Anistia. (Palmas.)
Logo em seguida a esta mesa, vamos assistir a um documentário chamado Nossas Histórias, entre uma mesa e outra.
Também está aqui entre nós o ex-Deputado Constituinte, Domingos Leonelli, que veio participar desta mesa. (Palmas.)
O SR. PAULO PAIM (Bloco Apoio Governo/PT - RS) - Eu não vejo o Leonelli, acho, há mais de vinte e poucos anos. Eu só queria lembrar aqui que ele foi fundamental quando fomos à África do Sul - João Herrmann junto, já falecido - exigir a libertação de Nelson Mandela.
Diziam que não conseguiríamos descer e que o avião da Varig ia ser bombardeado. O Leonelli disse no avião: "Bombardeado coisa nenhuma. Vamos descer, e pronto!". O avião desceu; e hoje, Mandela é lembrado como o grande líder do combate ao apartheid, um dos maiores líderes da humanidade, que está lá em cima, mas está olhando esta reunião.
Palmas a você, Leonelli, e ao João Herrmann. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Já que o Senador Paim lembrou a luta da ANC de Mandela, na África do Sul, lembro que alguns brasileiros participaram ativamente do apoio a ANC e a Nelson Mandela. E eu queria destacar uma pessoa, Mariuza Correa Lima. Mara foi uma figura muito importante. Nós morávamos em Moçambique, e ela deu um apoio integral à luta armada da ANC. Eu me lembro de que ela teve muitas dificuldades em algum momento, em Moçambique, quando o país se distendeu em direção, porque precisava sobreviver - hoje a gente entende -, ao governo racista da África do Sul.
Ela tinha em casa um verdadeiro arsenal da ANC. E eu e Janete frequentávamos a casa dela com os nossos três filhos. E o medo era muito grande, porque Maputo recebeu vários ataques, ataques terroristas nesse período. E ela tranquilamente ali ... Mara era uma figura revolucionária que deve estar nos ouvindo lá de cima. (Palmas.)
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Eu passo a palavra a uma família de heróis deste País. Iara Xavier.
Eu só queria, Iara, cumprimentar o Senador Anibal Diniz, que acaba de chegar. Seja bem-vindo, Senador.
A SRª IARA XAVIER - Bom dia a todos, bom dia, Senador Capiberibe, Sueli Bellato, cumprimento a Mesa.
Venho de uma família de comunistas, perseguidos já no golpe. Eu tinha 12 anos, tive que ficar um ano fora de casa.
Quando vi essas manifestações de volta ao regime militar, eu fiz uma pergunta: onde nós erramos? Porque não foram vozes isoladas, no meu entendimento, e havia muitos jovens. Não foram os bolsonaros da vida normal; foi uma classe média enfurecida, como enfurecidos estiveram em 1964, achando que iam perder seus poucos privilégios. E essa juventude, de forma irresponsável ou não, ou muito consciente, proclamava a volta da ditadura.
Nós tivemos um acúmulo: os 50 anos do golpe, a constituição da Comissão Nacional da Verdade. Nós conseguimos que esse tema não só de reparação, mas de memória, de verdade e de justiça para aqueles familiares, de honra àquelas vítimas fosse pautado na agenda da sociedade, porque, então, era uma coisa muito localizada de grupo, dos familiares. E cresceu. Será que isso ainda os assusta? Será que a nossa dor, porque o que resta a nós familiares é só dor, porque essa dor é irreparável. E nós queremos apenas justiça.
Será que isso ainda os assusta tanto? Será que esse ódio é tão profundo que possa a pessoa achar que um regime...eu acho que ninguém pode alegar ignorância. Hoje em dia, você com uma tecla tem acesso a posições diferentes diversas, não só no Brasil como em todo o continente, várias ditaduras. Temos o caso do Chile, mais feroz, menos feroz, mais amplo, menos amplo, mais seletiva como a brasileira. Quer dizer, não pode, Deputado Chico Alencar, que é professor de História - saiu. Eu digo: onde nós, nessa construção da nossa democracia, estamos errando?
Onde é? Que valores? Porque acho que valores como ética, moral, justiça são universais! Você pode estar mais à direita, mais à esquerda, no centro, mas se você é uma pessoa íntegra, nunca vai defender prisão, tortura, assassinato, estupro. Você pode divergir, pode achar que se esgotou um modelo e que vamos mudar. Mas aí é eleição. Agora, você perde e você começa uma movimentação defendendo valores totalmente contra o ser humano. Isso foi uma coisa que impactou, porque a nossa luta, dos familiares, como eu disse primeiro, foi uma luta muito isolada.
Nós jogamos muitas fichas na Comissão Nacional da Verdade, jogamos no Supremo, achando que íamos avançar. E não avançamos o suficiente, porque esperávamos que a justiça...
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O Ministério Público tenta, mas é tudo muito lento e, de repente, a gente vê, no País, uma situação onde uma parcela dessa população defende a volta de um regime militar. E isso nos choca muito! Isso nos choca, e digo que achamos um desrespeito tão grande à nossa dor, a toda essa luta, a todo esse conhecimento.
Então, Senador, acho que precisa ainda muito ser feito. Eu acho que o Governo precisa ainda implementar, o Ministério da Educação, precisa ver que a formação, os valores têm que ser transmitidos, têm que ser debatidos. Nós nunca tivemos medo de debater com ninguém. Eu acho que precisamos reavaliar o caminho que estamos traçando nesta democracia e a importância que tem que ser dada ao respeito aos direitos humanos. A importância tem que ser dada e tem que ser prioridade deste Governo. Vemos aí o caso da redução da maioridade penal.
Então é com muito desgosto, assim, um pouco assustada que vejo esse clamor, sabe? Estou acostumada a ouvir, aqui dentro, debate desde a década de 1990, o Bolsonaro querendo pular no nosso pescoço, normal. Agora, quando você vê e recebe nesse bendito Facebook... Eu tenho vários amigos para quem falei: "gente, desculpa, mas não há condição".
Então, a defesa da democracia, para mim, passa pelo respeito aos direitos humanos e passa, para que se entenda, de uma vez por todas, que nós, familiares, temos direito a ter justiça, temos direito de conhecer a verdade: quem, como e onde assassinaram os nossos familiares, e que eles respondam judicialmente pelos crimes cometidos.
Obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Muito obrigado, Iara. A Iara teve dois irmãos assassinados pela ditadura, Alex e Iuri, jovens, 21 anos. E desaparecidos. Um já conseguiram localizar. Veja, as pessoas não desaparecem no ar; alguém desapareceu com eles. Bastaria essas pessoas que agiram, que torturaram, que assassinaram e que desapareceram falar, que se localizariam todos os desaparecidos. Mas ninguém... É um segredo que continua guardado e não há nenhum tipo de pressão capaz de fazer os responsáveis pelos crimes da ditadura falar. Há uma proteção, ainda perdura até hoje aquele pacto de 31 anos atrás.
Dando sequência, vamos ouvir o Procurador Federal dos Direitos do Cidadão Adjunto do Ministério Público Federal, Luciano Mariz Maia. Com a palavra.
O SR. LUCIANO MARIZ MAIA - Alô. Bom dia, Senador João Capiberibe; bom dia, Senador Paulo Paim, que preside esta Comissão com tanto brilho e que a Procuradoria Federal do Cidadão se orgulha de ter parceria com esta Comissão em algumas atividades tão relevantes e também agora.
Como lembrou o Deputado Chico Alencar, eu tenho mais de 51 anos, tenho 55 anos. Era uma criança em 1964, mas jovem e adolescente, e depois universitário, sofrendo ainda os efeitos da ditadura militar. Em 1977, quando entrei na universidade, no curso de Direito, logo em abril tivemos o Congresso fechado e uma reforma do Judiciário por uma canetada. Ou seja, é curioso que, tendo sido dado o golpe em 1964 - e Hélio Gaspari o chama, no primeiro momento, de a ditadura envergonhada -, permitiu as eleições em 1965.
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João Agripino, meu tio, foi eleito Governador em 1965, ele que foi Senador aqui, um Senador com muita atuação parlamentar aqui em 1965, e tirou o seu mandato inteiro, viveu aqueles momentos difíceis, das Ligas Camponesas, em 1968, o recrudescimento do golpe. Mas o que é possível identificar? E é isso o que o Ministério Público, como guardião do regime democrático, do Estado de direito, procura fazer ainda agora.
Aprendi com outro Senador, Antônio Mariz, meu primo e querido amigo, eu adolescente, acompanhando as lutas de Resistência ao Medo, em 1978, quando ele foi o anticandidato, que o "poder tende a corromper, o poder absoluto corrompe de forma absoluta", como diz Lord Acton, e corrompe a si próprio. Os militares, que baseiam todo o seu esforço na hierarquia e na disciplina, com a ditadura e a introdução da tortura, trazida da Polícia Civil - o Fleury era da Roubo e Furtos e, portanto, hábil no uso da tortura para fazer revelar os pequenos maus feitos - trouxeram a tortura, como instrumento do Estado para atuar contra os inimigos do regime, convertendo a doutrina da segurança nacional, baseada na tortura, num instrumento de terror.
O que terminou acontecendo foi a corrupção e a destruição da própria estrutura a hierarquia e da disciplina militar, fazendo com que poderes paralelos, e aí entra, como foi feito referência aqui pelo Deputado Chico Alencar e pelo Senador João Capiberibe, um diálogo promíscuo entre o empresariado e os militares, fazendo não só com que houvesse o financiamento da atuação clandestina das forças de repressão e terror, mas, ao mesmo tempo, fazendo com que se fizessem tábulas rasas das obrigações constitucionais dos vários entes federativos. Ou seja, as forças de repressão e terror dialogavam diretamente entre si, passando por cima dos vários escalões sem prestar contas a eles, dialogando com as forças estaduais, Marinha, Aeronáutica, Exército, Secretaria de Segurança Pública, os seus DOPS, os seus setores de repressão, tudo com um financiamento a latere, baseado nos empresários que também lutavam para evitar a comunização do país. Ou seja, o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente: corrompe a disciplina, corrompe a hierarquia, corrompe o Estado de direito.
Os militares, que deram o golpe em 1964, quiseram institucionalizar o regime com a Constituição de 1967, que foi entregue ao Parlamento em dezembro de 1966, aprovada em janeiro de 1967 - menos de dois meses para uma Constituição ser aprovada.
Essa Constituição não se revelou suficiente. Embora ela previsse os próprios modos de modificação, era a caneta do regime de plantão que, por atos institucionais, continuava introduzindo emendas constitucionais e alterando ao seu livre sabor. Foi assim com o AI-5, que veio em 1968, e foi assim com vários outros instrumentos normativos. Ou seja, instituído o estado de legalidade, não se restaurou o Estado de direito, a não ser com a Constituição de 1988, porque, como disse Canotilho, a Constituição não é apenas a lei suprema, mas é uma lei fundada na justiça.
É nesse sentido que, como foi feito referência, não pode haver um Estado de direito sem democracia, não pode haver Estado de direito sem um Parlamento livre. Por isso o Ministério Público atua tanto para que o Parlamento seja sempre livre, ausente de peias do Executivo ou das Forças Armadas. Agora, é preciso que seja justo com o seguinte aspecto: restabelecida a governança civil a partir de Tancredo, em 1985, não temos de lideranças militares autênticas, nesses últimos trinta anos, nenhum gesto concreto de tentativa de retomada de poder. O que temos, ao contrário, são viúvas tentando... (Palmas.)
O SR. LUCIANO MARIZ MAIA - ... de um modo ou de outro, restabelecer-se pelo medo infundido em todos e em cada um. O que termina acontecendo? Os militares voltaram aos quartéis, mas a militarização da sociedade continua prevalecendo. São as nossas polícias, como lembrou Chico Alencar, que continuam matando os nossos jovens e jovens pobres, e jovens negros.
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São eles. E por que isso? Graham Greene, no livro Nosso Homem de Havana, diz assim: a classe dos torturáveis. Quais são os torturáveis? Os nossos pobres e os pobres de países pobres como os nossos. O que uma ditadura faz é ampliar a classe dos torturáveis, acrescentando aos pobres os estudantes, os intelectuais, os políticos de oposição, os sindicalistas, os artistas, os jornalistas, os negros. Esses sempre e permanentemente.
Portanto, o que precisamos efetivamente é resgatar a verdade, a memória, estabelecer a reparação, a segurança da não repetição, mas completar a democracia interrompendo a continuidade autoritária. E, nesse sentido, fazer com que a nossa democracia seja para todos e não para poucos, seja também para os pobres. E que possamos entender que a tortura continua como instrumento de poder. E aquele delegado que tortura se torna posteriormente um deputado estadual, um deputado federal, porque tem um discurso que a sociedade aplaude, que é o discurso de combate à criminalidade, um discurso que pretende a redução da maioridade penal, um discurso que pretende encher as cadeias cada vez mais de pessoas presas, sem pensar numa forma de ressocialização e de uma punição pela justa e devida medida. E nos tornamos um dos países que mais encarcera no mundo. Já são quase 600 mil pessoas encarceradas, fora 200 mil que cumprem pena que não são no cárcere. São mais de 800 mil pessoas punidas neste País ou aguardando punição que estão presas.
De tal maneira que celebrar o 31 de março é celebrar permanentemente a nossa necessidade de advertir que, se não trouxermos a luz, as trevas terão lugar. E se não lutarmos pela democracia, a ditadura se implantará pelo medo da sociedade com o desconhecido.
E, nesse sentido, a celebração desta reunião, desta audiência desta Comissão, é um esforço para que cada um de nós continue lutando pela liberdade de expressão, lutando pela liberdade de reunião, lutando pela verdade, pela reparação, para que consigamos, para os nossos filhos e os nossos netos entenderem que, por mais difícil que seja enfrentar a verdade, mas difícil ainda é não poder enxergá-la na ditadura. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Muito obrigado, Procurador Luciano Mariz Maia, eu passo a palavra ao Senador Donizeti.
O SR. DONIZETI NOGUEIRA (Bloco Apoio Governo/PT - TO) - Eu resolvi falar. Eu tenho que sair depois da fala da Iara e da conclusão da fala do Procurador. Por que voltam esses sentimentos, no meu ponto de vista? Eu penso que o Governo atual, o Governo, meu Governo, de que faço parte, tenho orgulho, cometeu algumas falhas de não fazer uma disputa de valores na sociedade. Preocupou em governar, preocupou em criar solução para os problemas, mas não fez a disputa de valores. Eduardo Costa diz, nestes versos aqui, uma coisa que está atual para nós, no meu ponto de vista.
"Na primeira noite, eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem. Pisam as nossas flores, matam nosso cão. E não dizemos nada. Até que, um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz. E, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada".
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Então, nesse 31 de março, para mim, o que fica, a lição... Eu que, nos primeiros anos da ditadura, era inocente - tenho 59 anos, nasci em 1955 - não sabia o que estava acontecendo. Eu não sou militante de esquerda ao tempo da ditadura. Comecei a compreender isso ao final. Augusto Boal fez minha cabeça, fazendo-me crer da luta de classe. Hoje, estou com essa preocupação. Peço e queria deixar para nós todos que não podemos sequer deixar roubar uma flor no jardim da democracia, precisamos reagir e fazer a defesa.
Outra coisa que Chico falou sobre a ditadura, quando alguém fala que não havia corrupção. Ricardo Semler, que é um psdbista, diz em um artigo que "nunca se roubou tão pouco", para dizer que uma Organização Não Governamental disse que, na época da ditadura, o desvio do PIB era da ordem de mais de 5%. Nos governos que antecederam a este que está aí era mais de 3% e que agora está em 0,8%. Ele termina fazendo uma comparação com a represa da Cantareira de que, na medida em que a água baixou, apareceu o lodo barrento.
Eu penso que essa é outra tarefa nossa. O que sobra das manifestações para mim, dos dias 13 e 15 de março, é que há duas coisas convergentes: o combate à corrupção e a reforma política. Nós precisamos conseguir chamar para um campo só aqueles que estão defendendo o combate à corrupção e aqueles que estão defendendo a reforma política. A reforma política, do meu ponto de vista, só sairá, com mais profundidade e com a necessidade que o País tem, se tiver pressão popular.
Nesse 31 de março, nestas minhas palavras, quero dizer e finalizar resumidamente: é preciso, no combate à corrupção, na reforma política, fazer uma defesa veemente à democracia. Obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Obrigado, Senador.
Senadora Fátima Bezerra.
A SRª FÁTIMA BEZERRA (Bloco Apoio Governo/PT - RN) - Senador, também peço...
Eu vou ter uma entrevista agora e queria dar meu bom-dia e saudar aqui nossos convidados e convidados. Mais do que saudá-los, agradecer pela dedicação militante e pelo trabalho que cada um e cada uma de vocês têm feito nessa luta pela defesa da democracia, na busca da verdade e da memória. Então, é muito importante o trabalho e, repito, a dedicação que cada um e cada uma de vocês têm feito. Saúdo aqui os demais colegas Senadores e os demais presentes.
Quero dizer, Senador Capiberibe, que é sempre oportuno, claro, fazermos essa reflexão do ponto de vista de, cada vez mais, aprofundar a reflexão sobre os tempos vividos de 31 de março e suas consequências e suas sequelas. O Brasil, sem dúvida nenhuma, foi um dos países que demoraram muito a encarar a busca dessa verdade e a busca dessa memória. Demorou muito!
Mas, enfim, está em curso e, mais do que estar em curso, o que é importante também agora é aprofundarmos cada vez mais a busca dessa verdade, a busca dessa memória. Eu, particularmente, somo-me àqueles e aquelas que defendem a revisão da Lei da Anistia. Somo-me aos que defendem essa tese.
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Mas acho que, mais do que nunca, esse 31 de março de 2015 nos leva a lutar para fortalecer a democracia, exatamente, também, pelos tempos que estamos vivendo hoje.
Enquanto escutava o Dr. Luciano falando, eu me lembrava disso. Enquanto estamos aqui, o Deputado Chico Alencar teve que correr lá, para a Câmara, porque a Casa resolveu, agora, enfim, aprovar a legislação que vai na direção de redução da maioridade da idade penal.
O fato é que estamos vivenciando, nesse exato momento, um avanço do ponto de vista das teses conservadoras, aqui, no âmbito do Congresso Nacional, e isso é muito preocupante, mas muito preocupante mesmo. E isso exige de todos nós, das forças vivas da democracia, dos que militaram no passado e dos que militam no presente, muita unidade, muita união, para evitarmos o retrocesso.
Eu quero terminar, Senador Capiberibe, dizendo que, eu também era criança quando golpe veio, e tenho muitas lembranças tristes daquele período, muitas perdas. Uma das perdas que me tocam muito fundo foram as consequências nefastas que o golpe trouxe, por exemplo, para a área da educação, que é a minha área. Eu sou professora.
Quer dizer, dói muito pensar que Paulo Freire não tenha tido a oportunidade, porque o Brasil precisava, mais do que nunca, naquela época, de implementar o seu Plano Nacional de Alfabetização.
Paulo Freire esteve no meu Estado exatamente em início de 1963, lá, numa cidadezinha chamada Angicos, quando, em 40 horas, ele conseguiu alfabetizar dezenas de pessoas, tornando-as cidadãos e cidadãs. Enfim, e foi banido em consequência do golpe.
Passados esses 51 anos, de repente, vêm as mobilizações sociais, e sejam bem-vindas as mobilizações sociais, porque, inclusive, elas são fruto da democracia pela qual lutamos e a qual conquistamos. Mas dói, de novo ver uma faixa, lá, na mobilização social, agora, no dia 15, "abaixo Paulo Freire". Eu prefiro, inclusive, acreditar que quem exibiu aquela faixa não tem a menor noção de quem foi Paulo Freire, o que foi que ele fez, exatamente, o seu legado.
Então, o golpe trouxe, por exemplo, perdas irreparáveis, foi um verdadeiro golpe mesmo para a Educação. A Educação brasileira podia estar, hoje, em outros patamares, e não estamos ainda no patamar em que devíamos estar. Em parte, deve-se, exatamente, ao reflexo do golpe militar na Educação.
E o segundo item é a questão da reforma política. Hoje, mais do que nunca, Senador Capiberibe, é um momento muito oportuno para fortalecermos a nossa crença, a nossa fé, a nossa convicção, a nossa capacidade de não desistir, de lutar, para que, de fato, saia uma reforma política que responda aos anseios da sociedade.
Nós temos que ter muito - muito, muito - cuidado. Para mim, esse é o tema, hoje, mais relevante e mais importante. Tenho defendido, inclusive, dentro do meu Partido, que poderíamos nos unificar, agora, em torno do movimento da coalizão democrática, uma coalizão democrática que tenha como eixo o fim do financiamento empresarial de campanha e a defesa do voto proporcional, da paridade de gêneros.
Digo isso, porque há um risco muito grande - vou concluir - de o Congresso Nacional aprovar uma reforma política que significará um retrocesso para o avanço e o fortalecimento da democracia no nosso País, na medida em que a proposta defendida, hoje, pela maioria, aqui, no Congresso Nacional, é a que trata de constitucionalizar o financiamento empresarial de campanha.
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Então, acho que neste 31 de março é mais um bom momento para a gente, repito, reafirmar o nosso compromisso com a defesa da reforma política. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Muito obrigado, Senadora Fátima Bezerra.
Nós temos duas Mesas... Não gostaria de lembrar, mas o tempo é limitado. Então, peço aos nossos expositores... Aliás, todos estão colaborando muito. É impressionante; e eu não havia nem falado. Acho que vou retirar o que eu disse. Mas muito obrigado pela colaboração de todos.
Daqui a pouco temos uma segunda Mesa e temos um documentário.
Senadora, estou absolutamente convencido de que vamos dar um salto adiante na democracia.
Acompanhei as palavras do Procurador e, de fato, nossas Forças Armadas estão recolhidas, se profissionalizando. O temor seria um golpe parlamentar. A gente poderia temer isso. Mas, até então, somos vários Senadores aqui, e não me consta que haja qualquer tipo de murmúrio aqui dentro do Parlamento. Acho que estamos distante da possibilidade de um golpe parlamentar como aconteceu no Paraguai com o Zelaya. Enfim, acho que, se a pressão continuar sobre o Parlamento, vamos ter que buscar um denominador comum com o Executivo para um avanço da democracia. Estou convencido de que vamos dar um passo adiante na democracia e que o Parlamento vai contribuir.
O Parlamento é pouco cobrado. Ouvir o relato de uma constituição que chega ao Parlamento em dezembro e é promulgada em janeiro reflete um Parlamento que estava ajoelhado e, hoje, temos um Parlamento recuado. Esta é que é a grande verdade, convenhamos. Nós estamos aqui e sabemos que há um certo recuo diante da crise que está aí. Precisamos fazer este Parlamento avançar e se comprometer com solução da crise. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Vamos ouvir a palavra da professora da Fundação Getúlio Vargas, Dulce Pandolfi.
A SRª DULCE PANDOLFI - Vou ficar de pé.
Espero não decepcionar Capiberibe por causa do horário, pois já comecei a cortar a minha fala.
Começo agradecendo o convite, a oportunidade de expor algumas ideias aqui no Senado e parabenizando os organizadores do evento, o Senador Paim e o Senador Capiberibe. Ressalto a importância deste momento, até porque, como alguém já disse aqui, comemorar não é apenas festejar, é também lembrar, é também não esquecer. E hoje estamos diante de uma data que não podemos esquecer.
Não vou fazer uma exposição linear, até porque meu tempo é curto, mas quero levantar algumas questões a partir dos meus diversos lugares. Sou uma historiadora, sou uma militante dos direitos humanos e sou também uma vítima do estado autoritário que se plantou no País.
Eu queria, inicialmente, remeter a dois depoimentos que considero importantes para a gente fazer algumas reflexões aqui.
O primeiro depoimento foi exatamente dito, foram palavras por conta das comemorações ocorridas no ano passado, na data de 50 anos do Golpe de 64, no Clube Militar, na cidade do Rio de Janeiro, pelo General reformado Luiz Gonzaga Lessa. Ele, preocupado em esclarecer aos mais jovens a verdade dos fatos, disse o seguinte naquele episódio, há exatamente um ano:
O Movimento de 64 não foi militar, foi um movimento de massas impulsionado pela classe média. O que ocorreu no País não foi uma ditadura, não foi golpe coisa nenhuma. Havia eleição. Era indireta para Presidente, mas havia sempre eleição direta para Senador, Deputado etc. O movimento revolucionário [tudo isso ele falando] não foi uma quartelada. Ele impediu o comunismo e possibilitou a ampliação da democracia através de uma transição pacífica.
O militar prossegue:
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A Comissão da Verdade é um erro, é uma farsa. A Lei da Anistia foi um acordo entre o governo militar e os políticos da época, para trazer a paz, esquecer o passado e seguir em frente. A Comissão da Verdade acaba com isso tudo. Inclusive, ela não quer apurar os crimes que foram cometidos pelos terroristas.
O outro depoimento que eu quero remeter - e que todos vocês devem lembrar bastante, mas eu acho que nunca é demais falar dele -, é do Coronel Paulo Malhães, dado à Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, publicado no Globo em 16 de março de 2014.
Ao assumir a responsabilidade pelo desaparecimento do então deputado Rubens Paiva, preso em sua residência no Rio de Janeiro, em janeiro de 1971, e cujo corpo até hoje não foi encontrado, o torturador Paulo Malhães, de forma didática, explicou por que, no período da ditadura, era melhor desaparecer com os inimigos do que, simplesmente, matá-los.
Diz ele:
O desaparecimento é mais importante do que a morte porque causa incerteza no inimigo. Quando um companheiro morre, os guerrilheiros lamentam, mas acabam esquecendo. Não é o caso do desaparecimento que gera uma eterna expectativa nos familiares.”
Está aqui Iara, presente, a quem eu rendo as minhas homenagens.
Prossegue ele:
"Nada fiz além de cumprir meu dever. Se precisasse faria tudo de novo. Foi tudo racionalizado. Eu tenho 76 anos, mas ainda posso dar instruções aos mais jovens” (Paulo Malhães).
Pergunto: qual o sentimento que essa fala do torturador produz em todos nós, sobretudo nos familiares e em todos os desaparecidos do País? Pergunto: por que é possível Paulo Malhães falar com tamanha naturalidade e audácia sobre os crimes considerados de lesa-humanidade e ainda afirmar que, se precisasse, faria tudo de novo? O Estado brasileiro o anistiou? Quem o anistiou? Qual a diferença entre perdão e esquecimento? Por que, diferentemente de outros países da América Latina, o Brasil não julgou criminalmente os seus torturadores? É possível sermos um país mais justo e democrático se esquecermos o passado ditatorial? Por que a tortura que existe desde os tempos mais remotos e que não foi uma invenção da ditadura, embora ela tenha sido acirrada ali, continua sendo utilizada até hoje em nosso País, um país onde vigora um regime democrático, ainda que com algumas imperfeições?
Eu acho que esses casos são reveladores do Brasil de hoje e se tornam bom prólogo para tecer algumas considerações sobre o Golpe de 64.
Sabemos que o regime implantado com o Golpe de 64, que destituiu Jango da Presidência da República, teve várias facetas e muitas especificidades. Até hoje, vencidos e vencedores disputam a memória sobre o ocorrido. A disputa começa, tanto pela data - 31 de março, 1º de abril - ou até mesmo pelo nome: aquilo foi um golpe ou foi uma revolução? Foi uma contrarrevolução?
Inicialmente, é importante afirmar que o Golpe de 64 - e, consequentemente, a implantação da ditadura - não foi um processo inevitável. Isso eu acho importante ressaltar neste momento que o Brasil está vivendo, porque ele foi resultado de um jogo político onde os atores sociais, mesmo que com pequena margem de manobra, poderiam ter jogado de outra maneira, e, portanto, o placar poderia ter sido outro. É claro que, para o historiador, o "se" não existe, mas, de qualquer maneira, tanto os setores vitoriosos, ou melhor, tanto militares, quanto civis não tinham projeto definido para depois da tomada do poder. Ao sabor da conjuntura, eles foram fazendo uso de muitos casuísmos, e o regime ia mudando as suas regras do jogo.
Aqui é interessante, até, a gente lembrar da posição do JK no primeiro momento e do próprio Lacerda, que depois é perseguido pelo regime. Mas, enfim, de qualquer maneira, o Golpe de 64 foi um divisor de águas na história do País. E também foi um divisor de águas na minha história: eu morava em Recife, tinha 14 anos e era uma entusiasta, tanto do governo Jango, quanto do governo Miguel Arraes.
Pernambuco era, no pré-64, talvez o Estado mais comprometido com as tais reformas de base, que tanto me fascinavam. Miguel Arraes, Francisco Julião, Gregório Bezerra, Paulo Freire, já citado aqui, as ligas camponesas, a reforma agrária, o movimento de cultura popular, a campanha de alfabetização de adultos povoavam a minha imaginação.
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Nos dias que antecederam o Golpe, o clima era, visivelmente, tenso, mas, para mim, tudo parecia muito sólido. Por isso, no dia do Golpe, meu mundo caiu: tudo que parecia tão sólido, rapidamente se desmanchou no ar. De fato, o Golpe pegou muita gente de surpresa. Lembro do corre-corre, dos livros queimados, dos estudantes baleados, do líder comunista Gregório Bezerra, com a corda no pescoço, sendo arrastado, pelas ruas do meu bairro, pelo Coronel Villocq Vianna, um dos comandantes da 7ª Região Militar, em um jipe do Exército Brasileiro, recebendo dos militares "um tratamento que nem cachorro merece", como disse, recentemente, no ano passado, a mãe da Cláudia, que foi morta, no Rio de Janeiro e arrastada num carro pela Polícia Militar - todo mundo deve ter visto as cenas pela televisão -, e a filha vai à televisão e disse uma frase que me tocou muito: "Minha mãe recebeu um tratamento, dos militares, que nem cachorro merece".
Aquela exposição pública do Gregório parecia querer demonstrar não só que eles, os militares, haviam vencido a guerra, mas, também, que o tratamento dos inimigos, no pós-guerra, ia ser pesado. Logo depois do golpe, muitas eram as notícias sobre as torturas e o desaparecimento de inúmeros trabalhadores rurais da Zona da Mata de Pernambuco, inimigos mortais do regime, em função da projeção política que haviam conquistado no regime Jango, que tinha como uma de suas bandeiras principais a reforma agrária.
Sobre esses trabalhadores, a despeito do trabalho da comissão da verdade, até hoje pouco se sabe. Em 1964, muitos não tinham nem documento. Aliás, eu acho que todos. Eram atores importantes do processo, mas eram pré-cidadãos.
Ao longo do período ditatorial, a despeito da diversidade na modalidade e até mesmo da visibilidade ter sido variada, a tortura, a morte e o desaparecimento foram práticas adotadas pelo regime como uma política de Estado.
Foi exatamente em meados da década de 70 que a luta pela anistia, apesar de pautada desde os primeiros momentos de implantação do regime, ganhou mais densidade.
Em 1975, foi criado, por Therezinha Zerbine - hoje aqui homenageada - e outras pessoas, o Movimento Feminino pela Anistia. Pouco tempo depois, em 1978, foi criado o CBA, o Comitê Brasileiro pela Anistia, que teve, também, como presidente, a mãe do Cid Benjamin, uma pessoa a quem aqui eu rendo minhas homenagens, que teve um papel fundamental naquele movimento.
No dia 28 de agosto, no turno do General João Figueiredo, depois de aprovada no Congresso, foi sancionada uma lei de anistia. Como forma de pressão, para conquistar uma anistia ampla, geral e irrestrita, os presos políticos - entre eles, Gilnei - fizeram uma greve de fome que durou 32 dias, o que sensibilizou muitos setores da sociedade.
Mas o projeto aprovado não foi o nosso projeto, não foi o projeto do CBA, não foi o projeto dos presos, não foi o projeto dos familiares, não foi o projeto do MDB. Ou seja, essa anistia não foi resultado de um pacto político. Isso que é fundamental se dizer, embora isso seja propalado em prosa e verso. A anistia era concedida a todos os brasileiros, com exceção daqueles que tivessem cometido os chamados "crimes de sangue".
Segundo algumas leituras, a lei garantiu perdão aos dois lados, seja os que combateram o regime militar, desde que não houvessem cometido os "crimes de sangue", seja os que eram agentes da ditadura e que haviam praticado crimes de sangue, crimes hediondos como torturas e assassinatos, ou seja, aquela anistia era totalmente incoerente.
Essa leitura foi possível porque a lei de anistia concedia aos crimes políticos e aos chamados "crimes conexos", aspas, que eram considerados crimes conexos aos crimes políticos. Mas a tortura não é e nunca foi, em nenhum lugar do mundo, um crime político; nem é um crime conexo ao crime político. Ela é um crime de lesa-humanidade. Entretanto, como a ditadura não reconhecia a tortura, a lei, obviamente, nada dizia sobre a tortura, e os agentes do Estado ficaram assim anistiados em função dos tais crimes conexos.
Ao contrário de outros países - da América Latina, inclusive -, no Brasil, essa anistia não foi concedida em regimes posteriores à queda do regime militar, mas ela foi outorgada pelo regime. Insisto, ela não foi negociada, ela não foi um pacto. O nosso projeto foi derrotado!
Paradoxalmente, hoje, o Brasil, ao mesmo tempo em que é signatário de inúmeras convenções internacionais que consideram a tortura crime imprescritível, é réu em ação movida pelo Centro de Justiça de Direito Internacional, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, acusado de proteger os responsáveis pela tortura, assassinato e desaparecimento de presos políticos, durante o Regime Militar.
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Lembro ainda que, na nossa Constituição - a Constituição de 1988 -, a prática de tortura é considerada um crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
Em setembro de 2010, pouco antes da criação da Comissão da Verdade, a Ordem dos Advogados do Brasil apresentou uma ação de contestação da Lei da Anistia junto ao Supremo Tribunal Federal.
Embora reconhecendo a importância de se conhecer o passado e que o direito à verdade e à memória não deveria ser questionado, a maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, por sete a dois, lamentavelmente julgou a ação improcedente, alegando que a Lei da Anistia havia sido o resultado de um pacto que possibilitou a redemocratização do País e que não se deveria legislar de forma retroativa.
Pergunto de novo: que pacto foi esse?
Acho importante mencionar aqui, rapidamente, pelo menos uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo em 2010, em que 50% da população de 11 capitais concordava plenamente com o uso da tortura para obter provas dos acusados.
E, para finalizar, recentemente a Anistia Internacional realizou uma pesquisa em 21 países. A pergunta era saber se, caso a pessoa fosse presa, teria medo de ser torturada. O Brasil, lamentavelmente, apareceu em primeiro lugar. Acho isso impressionante, gente.
Na Argentina, as pessoas não têm medo, se forem presas, de serem torturadas, um país que foi mais violento do que o nosso. No Uruguai, também as pessoas, se forem presas, não têm medo de serem torturadas. Enfim, em outros países do mundo... Essa pesquisa foi feita, e vocês podem ter acesso a ela pela Anistia Internacional. Eu a acho impressionante.
E, no Brasil, quer dizer... O paradoxo é este: as pessoas concordam com a tortura, e, ao mesmo tempo, morrem de medo, porque sabem que, se forem presas, podem ser torturadas. O Brasil tirou o primeiro lugar nesse quesito.
Esses dados são impressionantes, preocupantes, mas acho que estamos vivendo um momento muito importante, e espero que o Parlamento, os Senadores, nós consigamos tirar proveito dessa situação.
Temos um momento propício, com muita dificuldade; temos um embate muito grande. Vivemos exatamente um momento de disputa de uma memória do passado e de disputa de uma situação presente. Acho que a Comissão da Verdade, com todos os seus problemas, etc. e tal, teve um papel fundamental, inclusive o de responsabilizar as Forças Armadas e de considerar a tortura que foi realizada no período ditatorial uma política de Estado, feita pelo Estado brasileiro.
Então, acho que a gente tem de aproveitar essas oportunidades. E faço um apelo aqui aos Senadores, para que não deixem essa história morrer. Ela não pode morrer; essa luta tem de continuar.
Muito obrigada. (Palmas.)
A SRª ELIANA CASTRO - Só um minutinho, só para uma observação.
Não é preciso ser preso para ser torturado. Minha família é torturada há 41 anos, porque nós não temos o corpo do meu irmão, que é desaparecido político.
Então, essa Lei da Anistia, infelizmente, faz com que a gente fique constantemente sendo torturado. Não é preciso nem ser preso; a gente tem sido torturado no decorrer desses anos todos.
Obrigada e me desculpem.
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Muito obrigado.
Bem; dando sequência, convido a Sueli Bellato, Vice-Presidente da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, para usar a palavra.
A SRª SUELI BELLATO - Muito obrigada, Senador Capiberibe. Muito obrigada, Senador Paim, a quem a Comissão de Anistia buscou para este evento.
Nós entendemos que não poderíamos deixar passar em branco nessa conjuntura em que vemos a distorção dos apelos sendo clamada nas ruas.
Mas peço licença a V. Exªs para dizer que não vim sozinha. Queria que o Senado soubesse quantos são os colegas, muitas vezes anônimos, da Comissão de Anistia, que estão presentes.
Então, peço que levantem o braço. (Palmas.)
E não só são esses colegas, mas temos também o privilégio de estarmos acompanhados de alguns companheiros do Comitê de Assuntos de Consulta (CASC). Estou vendo, a Rosa, o Alípio...
Quantos são os do CASC que estão presentes? (Palmas.)
A Iara, o Alípio Freire, que está lá...
Então, é para dizer que é um imenso prazer estarmos aqui. E tenho a satisfação também de ver tantos amigos presentes. Parece que, de repente, passou um filme na minha cabeça.
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Já trabalhei na Procuradoria da República... Aliás, quando fui para o Ministério da Justiça como Conselheira da Comissão de Anistia, a convite do então Ministro Márcio Thomaz Bastos - eu tinha trabalhado no Acre com ele, na assistência, no caso Chico Mendes - e me foi permitido pelo Senador Sibá Machado passar algumas horas do meu dia lá no Ministério da Justiça, contribuindo no Conselho da Comissão de Anistia. Naquele momento, a Comissão era uma comissão muito menor, muito mais frágil: éramos 11 Conselheiros e um recurso diminuto disponível na República. Esses foram os primeiros dias do governo Lula.
Hoje, temos cerca de 75 mil processos e desses já há, pelo menos, apreciados mais de 60 mil, ainda que esses 15 mil que nos faltam sejam para nós um motivo de muita preocupação. São pessoas mais velhas, pessoas com muitas dificuldades que enfrentam e aguardam o atendimento ao pedido de reparação do Estado.
Mas lhes digo que há um esforço, há uma tentativa de resposta de reparação e nos reportamos sempre que, ainda que a Lei nº 6.683, de 1979, seja o chão, também, do nosso trabalho, o que nos traz luz é a Constituição de 1988, buscada na rua com muito suor e lágrimas.
No Rio Grande do Sul, Senador Paim, lembro-me, ainda quando trabalhei lá, com o Agostinho, da constituinte na roça. Essa Constituição nós fomos retirar das praças, das ruas, das fábricas, das igrejas. Ela não caiu do céu; ela foi buscada com muito empenho pela sociedade brasileira. E é a ela que nós nos reportamos na Comissão de Anistia.
Entendo o dilema que enfrentam os familiares que se reportam à Lei nº 6.683, mas não foi a Lei nº 6.683 que nos autorizou a expandir, da forma como expandimos, a política de reparação praticada pelo Estado brasileiro.
Sou colega, também, da Eliana na busca dos desaparecidos do Araguaia, no GT formado na República para que cumpramos as sentenças de condenação a que o Brasil foi condenado tanto pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como aqui pela Justiça Federal, e, de fato, não é fácil. Nós ficamos com um sentimento um pouco, eu diria, de inveja quando assistimos aos documentários e vemos o então Presidente da República Néstor Kirchner determinar às Forças Armadas que retirassem os quadros dos militares torturadores que deram o golpe de Estado na Argentina. Essa timidez que parece haver fala pelos seus gestos. Os gestos falam muito.
Muitos dos militares, como disse a professora Dulce, que ainda dizem que têm capacidade de ensinar aos mais jovens, é porque foram formados na Escola das Américas e não houve revisão, ainda, da sua formação. Os jovens continuam à mercê deles, para que eles lhes ensinem, e não que nós, cidadãos e cidadãs, digamos que Estado de direito queremos preservar, por qual Estado nós queremos zelar.
Ontem, eu estava com a minha colega Mariana, na UnB, fazendo um debate, e uma senhora - e foi dito que ela tem três faculdades, inclusive uma de Direito - encontra na atual Constituição Federal a disposição que autoriza o impeachment da Presidente. Eu disse: "Olha, não sei por que faculdade a senhora passou, porque a única disposição em que eu consigo entender que há possibilidade de intervenção em Estado é aquela que trata das violações de Direitos Humanos, e nenhuma mais."
Ao que eu, ainda quando criança, assistia, antes do golpe, era uma campanha do "varre a corrupção" - o "varre, varre, vassourinha". Foi assim que o então Presidente Jânio Quadros se elegeu. Então, falar em corrupção hoje e que seria este um dos motivos plausíveis para o impeachment não encontra nenhuma previsão nem legal, nem moral, porque nós sabemos que a corrupção vem de muito tempo. Corrupção são as atitudes que se repetem hoje, ainda, no meio dos cidadãos.
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Quando falamos em reparação, na Comissão de Anistia, não estamos falando apenas da reparação econômica; estamos falando da reparação moral, aquela que muda a atitude das pessoas. Quantos servidores, militares e civis, valem-se de outros servidores ainda como seus empregados, em desvio de função? Quantas denúncias nos chegam de que há ainda, no corpo militar, militares que se valem daqueles subalternos para limpeza de casa, para serviços particulares? Isso é corrupção! Fazer a carteirada, dizer "sabe com quem o senhor está falando?", tudo isso é corrupção.
E parece, Iara - e você tem razão em dizer "onde nós erramos?" -, que não ficou dito o que estava no meio de uma sociedade que gera as suas instituições. Quem elege os Senadores, os Deputados, quem forma todas as instituições é a própria sociedade. Então, eu não consigo ver um Congresso nem uma instituição civil, militar ou eclesiástica que não seja fruto da própria sociedade. Acho que essa fica também como uma reparação possível a que estamos sendo chamados no dia a dia. É a reforma política, dita pela Senadora Fátima, e é também o que estamos ensinando nas academias, o que a escola continua ensinando, como o Ministério da Saúde, como o Ministério da Educação, como todos concorrem com o Ministério da Justiça para que nós façamos essa reparação.
Fica difícil, de fato, para os familiares, quando o Estado brasileiro pede perdão - e aqui também há vários declarados anistiados a quem o Estado brasileiro pediu perdão -, mas há uma inconclusão desse pedido. Se eu lhes peço perdão pelos erros praticados ontem, mas não demonstro que, hoje, eu tenho uma atitude diferente daquela que tive ontem, como a sociedade pode acreditar em mim? E isso quando sei que há não apenas um Amarildo desaparecido hoje, mas centenas deles, daqueles que nós conhecemos e daqueles que nós não conhecemos.
Então, a Comissão tenta trazer esse material no Projeto Marcas da Memória com os seus filmes. Hoje, nós temos sido prestigiados com prêmios, inclusive, ganhos em Gramado e em outros setores, com exibição internacional, na Alemanha, em Cuba, em Portugal. Vários países conhecem os nossos documentários. São mais de 20 filmes, produzidos por Sílvio Tendler e tantos outros.
É como nos lembra a Clara Charf: como eu posso entender o presente se eu não entender o passado? E o material, os livros, o material pedagógico, que está à disposição, são nesse intuito, de nos ajudarmos na nossa formação. Formação não é algo que acontece na academia, num determinado momento da vida e depois se estanca, mas ela continua acontecendo todos os dias.
Contava também ao Senador Paulo Paim que acabei de chegar, ainda ontem de El Salvador, onde houve uma guerra, com os prejuízos mais nefastos que se pode imaginar, num Estado do tamanho de Sergipe com cem mil mortos. Não há uma família que conte a história sem dizer que tem um morto ou um torturado. E eu vi, num voluntário que trabalhava em El Salvador, oriundo da Argentina, uma camiseta com a inscrição "Brasil, estamos de olho em você". Certamente, assustou a juventude da América Latina ter visto jovens pedindo a volta da ditadura, porque isso a Argentina não quer, isso o Chile não quer, isso o Uruguai não quer, isso o Brasil não quer! (Palmas.)
Então, eu penso que a revisão da Lei da Anistia, de 1979, é uma grande possibilidade que o Brasil tem. Há um novo componente no Supremo Tribunal Federal, há uma composição distinta, há uma condenação da Corte Interamericana, determinando a revisão da Lei da Anistia, há uma disposição de muitos Procuradores da República, que, mesmo perdendo as ações, continuam dando entrada, continuam oferecendo denúncias. Essa é uma atitude aguerrida que o Ministério Público Federal também tem tido e que nos possibilitará, em breve, se Deus quiser - especialmente porque estamos na Semana Santa -, que haja essa modificação da Lei da Anistia no Supremo Tribunal Federal.
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Então, quero, em nome de todos os Conselheiros, da Conselheira Marina, que também está aqui presente; em nome de todos os servidores do Ministério da Justiça que compõem a Comissão de Anistia, em nome da sua presidência, expressar o meu muito obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Muitíssimo obrigado.
Eu gostaria de registrar a presença do Senador Randolfe Rodrigues, que é da geração que cresceu na democracia, ele certamente tem...
ORADOR NÃO IDENTIFICADO - Ele tem menos de 51.
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Bem menos de 51 anos, e ainda vai levar um tempo para ele chegar lá aos 51. Ele cresceu na democracia e tem uma visão fantástica daquilo que nós vivemos.
Muito obrigado, Senador.
Vamos para o último componente desta primeira mesa.
Eu vou pedir licença por alguns minutos para que eu possa atendar uma agenda muito rápida; e volto em seguida. Assim é o Senado e a Câmara também.
Eu queria convidar o nosso Presidente, Senador Paim, para presidir a mesa.
Daqui a pouco somem os Deputados e os Senadores todos; eles vão passando por aqui.
Senador Paim, por favor, eu peço a V. Exª que convide o nosso último palestrante.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Apoio Governo/PT - RS) - Eu dizia ao nosso querido Capiberibe que ele fique tranquilo porque a minha agenda é só aqui. Suspendi todos os demais compromissos pela importância desse evento no dia de hoje.
Então, de imediato passo a palavra ao jornalista e escritor Cid de Queiroz Benjamin.
V. Sª tem a palavra pelo tempo necessário ao seu posicionamento.
O SR. CID DE QUEIROZ BENJAMIN - Obrigado, Senador.
Bom; eu começo agradecendo o convite do Senador Capiberibe, agradecendo ao Senador Paim, saudando o meu amigo, Senador Randolfe Rodrigues.
Eu vou tratar de não falar muito, porque temos outra mesa e temos a exibição de um filme, e vou também procurar me ater a questões não levantadas ou tratadas de forma mais periférica.
A Dulce fez referência a uma coisa que alguns militares dizem, ou seja, que foram empurrados para dar o golpe militar em 64, de que houve um clamor da classe média que os levou para lá. Isso é uma balela! O mesmo grupo que deu o golpe militar em 64, em 54, levou Getúlio ao suicídio; em 55, tentou impedir a posse do Juscelino Kubitschek; em 61, tentou impedir a posse do Jânio. Então, isso é uma conversa fiada que não se sustenta efetivamente.
O golpe se inseria em um contexto internacional de guerra fria etc. e respondia, por parte das classes dominantes, a um ascenso dos trabalhadores apoiando reformas democráticas e republicanas que o governo Jango implementava. E, nesse sentido, vale a pena a gente fazer até uma reflexão sobre o que seria o Brasil se não tivesse havido a ditadura militar, se não tivéssemos tido o golpe militar, se as reformas agrária, tributária, educacional, eleitoral, urbana e outras todas fossem feitas. Certamente, teríamos tido um País muito mais democrático, muito mais justo, muito mais fraterno.
O golpe, então, respondeu a uma situação externa e respondeu a uma situação interna de setores prejudicados por essas reformas - sim, porque seus privilégios eram afetados -, que quiseram se antecipar e derrubar o Presidente da República.
Fala-se muito da ditadura hoje em dia lembrando o aspecto do respeito aos direitos humanos, o que é importantíssimo; isso é fundamental. Agora, é preciso lembrar que a ditadura não foi só isso - a ditadura não foi só isso. Se a gente pegar a distribuição de renda, havia um processo de melhoria dessa distribuição de renda que foi brutalmente interrompido com o golpe de 64. Na justiça social a mesma coisa: um avanço para uma sociedade mais fraterna, mais igualitária etc. Na cultura, basta lembrar que o Ballet Bolshoi foi proibido de apresentar o Lago dos Cisnes, no Rio de Janeiro, no Teatro Municipal. Ele estava fazendo uma excursão pela América Latina e, como vinha da União Soviética, o Lago dos Cisnes foi proibido. Quer dizer, é preciso lembrar a censura na imprensa, na música, no teatro.
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Os agentes do Dops querendo prender Sófocles! Quem é esse subversivo que escreveu Antígona? O Chico Buarque fazendo samba e assinando Julinho da Adelaide, porque, se assinasse Chico Buarque, não seria aprovado pela censura. O Maurício Tapajós, que está morto, infelizmente, certa vez cantou uma música muito politizada, que não havia sido censurada. Como ele era meu amigo, eu disse certa vez: "Maurício, como essa música não foi censurada?" E a música é pau puro na injustiça, defendendo que as pessoas se unam e lutem contra a injustiça e tal, inclusive o refrão é "Quando o muro separa, uma ponte une". E ele disse: "Ah, Cid, eu fiz o seguinte: mandei essa música na época do carnaval, junto com as marchinhas, com os sambas-enredo, e o título da música é Agora é Portela 74". Não tem nada a ver com Portela, não tem nada a ver com Carnaval, mas foi o subterfúgio utilizado, e ela conseguiu passar.
No cotidiano das pessoas também, basta lembrar um surto de meningite, que matou crianças, começou em São Paulo e chegou ao Rio. E foi censurada qualquer notícia sobre o surto de meningite, porque podia dar a impressão de que as autoridades sanitárias e da saúde não estavam trabalhando bem. Isso ocasionou a morte de crianças, porque os pais não foram avisados, não foram orientados a respeito de como proceder etc., etc.
Então, a ditadura, na verdade, foi um horror. Se o Brasil não tivesse vivido esse período, seria outro País, com certeza absoluta.
A gente vive também até hoje consequências da forma como a ditadura acabou. Diferentemente da Argentina, onde os militares tentaram a aventura das Malvinas e acabaram sendo derrubados, no Brasil, os militares organizaram, por dez anos - claro que pressionados pelo movimento popular, não foi uma coisa de laboratório -, o que eles chamaram de "distensão lenta, gradual e segura". E há resquícios até hoje essa forma como acabou a ditadura.
Quanto à questão da anistia - e já foi lembrado por algumas pessoas -, primeiramente, essa inverdade de que a anistia foi um "acordão" da sociedade. Não foi! Havia dois projetos, que foram a votação no Congresso. O da ditadura foi aprovado por quatro ou cinco votos, num Congresso mutilado pelo Pacote de Abril. A anistia não libertou o Gilnei, por exemplo, porque era condenado pelo chamado "crime de sangue", participou de alguma ação armada em que houve feridos. A divergência básica que havia não era se anistiava ou não torturadores, isso não estava em discussão, nem se cogitava isso; o que estava em discussão era uma anistia ampla, geral e irrestrita, como queria a OAB, a ABI, o MDB, na época etc., ou uma anistia que deixasse de fora o pessoal que teria cometido "crime de sangue". Ganha essa proposta de ficar de fora o pessoal dos "crimes de sangue".
A ditadura, posteriormente, usou um artifício - os tais "crimes conexos" - para justificar a anistia a torturadores. Só que "crime conexo", digamos, é um crime político, você vai fazer...
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Apoio Governo/PT - RS) - Permita-me, Cid.
Antes que a Lídice saia - e a Lídice é um ícone dessa luta -, eu queria registrar a presença de S. Exª aqui. Tomei a liberdade de fazer a interrupção ao Cid pelas causas que você batalha e defende, antes que você saia. (Palmas.)
O SR. CID DE QUEIROZ BENJAMIN - Saudações.
Muitas vezes, por exemplo, a guerrilha ia sequestrar um embaixador para libertar presos, mas usava carros roubados. O roubo desse carro é um crime conexo ao crime político direto. Agora, considerar que o estupro de uma presa política é crime conexo, é crime político, é um escândalo - isso é um escândalo! Lamentavelmente, não só militares entraram por aí, como o Supremo Tribunal Federal, há três ou quatro anos, ao responder uma ação da OAB, referendou esse tipo de interpretação.
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Saúdo, inclusive, uma iniciativa do Senador Randolfe Rodrigues, que apresentou um projeto de lei que modifica a Lei da Anistia, deixando claro que ela não atinge torturadores e assassinos. E por um caminhão de razões, uma das quais, por exemplo, é a de que desaparecidos são um caso em aberto. O caso não está solucionado, não foi elucidado, não se encontraram restos mortais, pode ser um crime em andamento. A gente vê, na Europa, volta e meia, um maluco raptar uma moça e a manter no porão por dez, quinze anos; e, depois, a coisa aparece. Quem pode garantir, do ponto de vista judicial, que os desaparecidos estão mortos? É um caso em aberto evidentemente. Não bastassem outras razões já levantadas aqui, inclusive pela Dulce também.
E quanto aos torturadores, digo isso com a maior tranquilidade - já escrevi artigos, num livro que escrevi falo isso -, eu não tenho qualquer rancor por eles. Eles têm a vida deles lá, eu tenho a minha aqui etc. É uma questão política essa questão dos torturadores. O futuro da tortura está ligado ao futuro dos torturadores. Enquanto eles não forem responsabilizados e julgados, a tortura vai prevalecer. Possivelmente, diria que provavelmente o Amarildo, o pedreiro que morava na Rocinha, no Rio de Janeiro, estaria vivo se os torturadores da ditadura estivessem sentados no banco dos réus, porque a tortura continua, não da forma de antes, não como uma política institucional de Estado, mas continua, em particular, em relação às camadas mais pobres. E, para elas, o Estado de direito chegou de forma muito precária. É preciso que seja dito.
Hoje em dia, nas manifestações, alguns jovens ativistas, quando se dão conta de algumas injustiças que permanecem, dizem: "a ditadura continua, não acabou". Não é assim, claro que acabou. É muito diferente, mas há limitações muito grandes nos direitos democráticos, republicanos das camadas mais pobres. E não é só na questão da prisão, da tortura, dos maus tratos etc.; é com conivência, inclusive, do Ministério Público e do Judiciário muitas vezes.
A gente tem, no Rio de Janeiro, uma ocupação, a Maré, que é um complexo - são sete ou oito favelas ali -, onde moram 130 mil famílias, isto é, há 130 mil casas. Muito bem; foi pedido pela Polícia - o Ministério Público encampou e o Judiciário concedeu - um mandado de busca e apreensão para o conjunto do Complexo da Maré. Olha, isso não aconteceria no Leblon ou em Ipanema, no Rio de Janeiro. O mandado de busca e apreensão é direcionado a uma residência a partir das razões apresentadas ao juiz, que vai dizer: "Está bom, há razões para que a inviolabilidade do lar não seja respeitada aqui etc." Mas você fazer isso para 130 mil famílias é um escândalo! Mostra que o Estado de direito está muito longe de ter chegado lá.
De qualquer forma, eu acho que a gente tem avançado bastante nos últimos dois anos na recuperação da memória, seja pelo aniversário redondo de 50 anos do golpe, no ano passado, seja pela criação das Comissões da Verdade. O fato é que se avançou muito. Eu diria que, neste ano e pouquinho, nesses quatorze meses, de janeiro no ano passado até agora, discutiu-se mais o golpe e a ditadura do que nos 50 anos que precederam essa data. Isso é absolutamente fundamental.
As Comissões da Verdade, apesar das limitações, jogaram papel positivo. E há a lamentar o boicote aberto e explícito das Forças Armadas. Chega a ser gritante, revoltante, que o Ministério da Defesa emita uma nota dizendo que não tem elementos para afirmar que tenha havido tortura em órgãos, em prédios militares. Isso é um deboche, um deboche absoluto!
E, aí, chegamos a um ponto que é crucial: a abertura dos arquivos. Os arquivos militares têm importância na repressão política na ditadura. O resto não tem quase nenhuma importância. Em alguns Estados chegam a ser ridículos. No Rio de Janeiro, onde o Dops não tinha uma função repressiva muito aberta, fazia mais trabalho de cartório, colhia depoimento quando o cara era acusado, para instruir o processo e tal, o Dops produzia fichas - e eu sei por experiência própria, porque pedi meu habeas data - que eram verdadeiras palhaçadas.
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Eu fui apontado pelo Dops como um elemento "muito perigoso, devido à minha alta periculosidade". Esse era o nível do trabalho do Dops do Rio e essas são as fichas que chegaram a ser conhecidas. É absolutamente fundamental que esses arquivos sejam abertos. E ninguém que tenha mais de 10 anos de idade vai acreditar que esses arquivos foram destruídos. Não se destrói arquivo; arquivo é poder. Cabe à Presidente da República, que tem o mérito de ter aberto a Comissão da Verdade - devia ter sido aberta muito antes - exercer a sua autoridade como comandante-chefe das Forças Armadas.
Essa questão da recuperação da memória é absolutamente fundamental, não para punir A, B ou C, embora devam ser punidos, mas é fundamental para sociedade. Isso não é olhar para trás; isso é olhar para a frente, é criar anticorpos para que essa barbárie não se repita.
Eu sou fã do Nelson Mandela muito antes de ele virar um ícone pop. O Nelson Mandela, que era apontado, inclusive pelo governo americano, como terrorista - não podia viajar -, virou um herói mundial. É uma figura maravilhosa o Nelson Mandela. Ele passou 27 anos preso; 13 desses anos, quebrando pedras. Foi barbaramente torturado, mas era referência. Dos 27 anos, a maior parte desse tempo, quase todo esse tempo, estava preso sozinho, em solitárias, o que é algo que destrói muito as pessoas. Muito bem; chegou um momento em que o regime racista não tinha mais condições de se sustentar, pois estava desabando; tinha que negociar uma saída. Com quem negociar? Quem tinha legitimidade, como liderança da população negra amplamente majoritária, era o Mandela. Pois bem; o regime racista faz uma proposta ao Mandela no sentido de ele ser solto, com a condição de ele condenar publicamente a violência na resistência ao apartheid. O Mandela, que tinha feito luta armada contra o apartheid, já não defendia essa posição nem o seu partido defendia isso. Ele se recusa e diz que os promotores da violência eram os racistas. Eles é que tinham que se desculpar, que não cabia ao preso político, líder negro, fazer qualquer autocrítica da violência. Ele ficou mais dois anos preso. Foi libertado incondicionalmente depois.
Pois bem; ele tinha todas as razões para ser um sujeito rancoroso, ressentido e querer, de alguma forma, cobrar tudo que o regime racista fez com que sofresse a maioria do povo da África do Sul, que é negro. Contudo, ele compreendeu que enveredar por aí seria abrir uma guerra civil que, talvez, não chegasse a lugar nenhum. E faz uma proposta absolutamente generosa, mas absolutamente politizada, que é a seguinte: aceita dar anistia, inclusive a torturadores e assassinos de presos, com a condição de os caras irem a um tribunal e dizer tudo que fizeram. Qualquer fato omitido podia dar margem a um processo e a uma condenação. Isso foi uma catarse na sociedade sul-africana, porque as pessoas sabem que há tortura, que há maus-tratos, mas não sabem exatamente como é a história lá dentro. Deu uma cambalhota a sociedade. Agora, certamente, ela criou anticorpos muito poderosos para que essa barbárie não se repita.
É por isso que os arquivos têm que ser abertos! É por isso que temos que sentar os torturadores nos bancos dos réus, mesmo que se dê anistia para eles mais adiante. Isso, para mim, não é o mais importante. Mas há que se cumprir esse ciclo e mostrar à sociedade o que aconteceu, justamente porque estaremos olhando para a frente e não porque estaremos olhando para trás.
Por fim, eu quero falar da questão das Forças Armadas. Elas são uma instituição respeitável, respeitada, necessária. A ninguém interessa enxovalhar as Forças Armadas, mas elas precisam se dar ao respeito. Elas não pode seguir afirmando que o Wladimir Herzog se suicidou ou que não houve tortura em quartéis, porque isso é uma coisa ridícula. Eu, como cidadão, quero saber qual é a formação que está sendo dada aos jovens oficiais, por exemplo, na Academia Militar das Agulhas Negras, onde, há três anos, foi escolhido, como paraninfo da turma de jovens oficiais formados, o General Médici. Lá nessas escolas militares, os currículos continuam se referindo ao golpe militar como "a revolução redentora". Criou-se uma situação em que os militares não entram diretamente na política - de fato eles estão no canto deles -, mas a sociedade e o governo não têm ingerência nas Forças Armadas. Essa situação não serve à democracia.
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O capitão Wilson, da bomba do Riocentro, quando se recuperou e saiu do hospital, ele não foi sequer reformado. Ele devia ser julgado e punido, mas não foi sequer reformado; ele foi realocado e trabalhou como professor de história num colégio militar - o cara que estava colocando a bomba no Riocentro.
Então, essa é uma questão que chama a atenção, inclusive, porque é uma questão que o Parlamento pode assumir e pode entrar neste debate: qual é a formação que está sendo dada nas escolas militares? Qual é o currículo no qual é formada a nova geração de oficiais? Porque, senão, a gente está formando militares que, mesmo que se não metam na política agora, serão, a médio e longo prazo, uma constante e permanente ameaça à democracia.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Apoio Governo/PT - RS) - Muito bem, Sr. Cid de Queiroz Benjamin, jornalista e escritor.
O SR. RANDOLFE RODRIGUES (Bloco Socialismo e Democracia/PSOL - AP) - Presidente...
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Apoio Governo/PT - RS) - Vou passar a palavra, em seguida, a V. Exª, Senador.
Como estamos com problema de tempo, vou pedir que os meus convidados retornem para a primeira fila. Eu chamo a segunda mesa e, então, passo a palavra para o nosso Senador.
Como estamos correndo contra o tempo, é com enorme alegria que eu quero chamar o ex-Deputado Federal Domingos Leonelli, parceiro de uma grande e bonita invernada na África do Sul, quando, estando Mandela no cárcere, nós fomos recebidos por Winnie Mandela.
É bom te receber aqui, nesta data histórica, em nome da democracia e no combate permanente a todo tipo de ditadura. (Palmas.)
Quero convidar também a minha querida amiga Deputada Federal Janete Capiberibe.
Do seu currículo e da sua história, todos sabem. (Palmas.)
Quero convidar Patrique Lima, Diretor de Relações Institucionais da União Nacional dos Estudantes.
Grande Patrique! (Palmas.)
Luiz Claudio Cunha, jornalista, escritor - autor do livro Operação Condor: o sequestro dos uruguaios -, nosso parceiro aqui, no Senado e no Congresso, de forma permanente, em todas as lutas do bem. (Palmas.)
E o jornalista e diretor cinematográfico, Sr. Alípio Freire.
Por favor. (Palmas.)
A Janete fez questão de lhe dar um abraço.
Segundo a programação da Comissão, que organizou a nossa reunião de hoje, agora nós teríamos o vídeo chamado Nossas Histórias, que conta a trajetória política de Angelina Dutra de Oliveira, Damaris Lucena e Theodomiro Romeiro, três pessoas até então anônimas na sociedade brasileira, que lutaram contra a ditadura militar, no Brasil, e tiveram as suas vidas transformadas pela repressão, com perdas de pessoas próximas, prisões, torturas e exílios.
Este filme é um precioso acervo humano sobre esse período da triste história do País.
Senador Randolfe Rodrigues.
O SR. RANDOLFE RODRIGUES (Bloco Socialismo e Democracia/PSOL - AP) - Presidente, serei breve. Eu queria só saudar todos os convidados deste dia... Na verdade, este é o dia errado, porque o dia mesmo será amanhã, dia 1º de abril.
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Mas, neste dia em que a Comissão de Direitos Humanos do Senado faz um seminário, uma jornada de testemunhos e depoimentos sobre a ditadura, eu queria saudar os convidados das mesas anteriores - destaco o meu querido e irmão Cid Benjamin -, bem como saudar esta mesa de agora, da qual destaco o Patrique Lima, companheiro da direção da União Nacional dos Estudantes, a minha querida companheira Janete, o meu querido Domingos Leonelli, o Luiz Cláudio Cunha, queridíssimo companheiro e amigo, e o jornalista e diretor cinematográfico, Alípio Freire.
Cumprimentando a todos, ressalto que esta jornada de depoimentos hoje é fundamental e, pela riqueza dos depoimentos, deveria a TV Senado, que a está exibindo, disponibilizar o evento para todas as escolas. É fundamental que o Brasil compreenda o que aconteceu nos 21 anos de ditadura para que coisa igual não aconteça.
O que foi relatado até agora - e, com certeza, a próxima mesa ressaltará - é que nós pagamos dois preços: um preço, primeiro, pela ditadura, que trouxe raízes na formação do sistema político brasileiro - e tenebrosas raízes. É bom lembrar que na ditadura não havia Ministério Público Federal, com os poderes que só a Constituição de 1988 lhe deu. Portanto, é um absurdo total, uma ignomínia total dizer que, durante a ditadura, não havia corrupção. As causas e as raízes de toda a corrupção existente hoje estão no período autoritário. As causas do enriquecimento de empreiteiras, como hoje nós diagnosticamos, estão no período da ditadura. Então, havia corrupção e violação de direitos humanos, como nunca houve em toda a história brasileira. Foram cometidos crimes pelo Estado brasileiro durante esse período sem similares na história nacional.
A outra sequela é que o nosso processo de transição foi tardio, como aqui registrado. Enquanto a Argentina levou os responsáveis por sua ditadura para a cadeia - e alguns deles terminaram seus dias na cadeia, como fizeram o Uruguai e até o Chile, que teve o mais cruel golpe de estado da América Latina -, o nosso processo demorou não apenas 20 anos. Com a constituição da Comissão da Verdade, que terminou seus trabalhos ano passado, foram quase 30, porque Geisel, que anunciou uma "abertura lenta, gradual e segura", preparou o ambiente para que, inclusive, o governo fosse assumido, subsequentemente, por um líder do partido da ditadura. Então, na prática - é claro por um acaso do destino -, não houve processo de reconciliação nacional.
E não se trata de ajuste de contas. É importante a reconciliação nacional, porque a Lei da Anistia, de 1979, não foi uma lei aprovada sob a égide de um Estado democrático de direito e não foi, como alguns dizem, uma lei da "reconciliação nacional". Ao contrário; foi imposição de um regime arbitrário sob a égide da pressão sobre o Congresso, com vários fechamentos do Congresso Nacional, e aprovada, mesmo assim, por ínfimos cinco, seis votos do partido governista.
É por isso que essa lei precisa ser revista. É por isso que temos um projeto de lei, já aprovado na Comissão de Direitos Humanos, Senador Paulo Paim, que está na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional - e Defesa do Estado. E, portanto, este projeto não pode ficar levado às gavetas para nunca ser apreciado, nunca ser votado, ou por medo de que seja votado, por pressões não sei de onde, sob a égide do Estado democrático de direito, ou com designação para ser rejeitado.
Nós temos dois atos - e concluo, Senador Paim - para, de fato, concluirmos nosso processo de transição democrática: um já foi, a Comissão Nacional e as Comissões da Verdade; o outro - e o Cid foi muito feliz nisso - não é nem a punição, que talvez para alguns nem haja tempo mais, mas o fundamental é dizer claramente para as gerações que virão o que aconteceu na história e, para isso, temos que votar o PLS nº 237.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Apoio Governo/PT - RS) - Muito bem, Senador Randolfe!
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Como foi dito, é importante que a juventude brasileira saiba o que aconteceu nesse período.
Eu tinha o entendimento de que íamos ter três mesas, mas são apenas duas.
Como acho que nós estamos ao vivo para todo o Brasil, nós vamos rodar esse pequeno documentário de 20 minutos, o que é praticamente a fala de um orador. Em seguida, a mesa fala e nós ainda poderemos abrir para o Plenário, para algumas considerações, porque sei que o Gilnei quer falar.
Então, vamos lá.
É o filme Nossas Histórias. Em seguida, vamos à mesa.
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(Procede-se à exibição do filme Nossas Histórias.)
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O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Apoio Governo/PT - RS) - Muito bem.
São Nossas Histórias, do período da ditadura, uma parte do que aconteceu. Uma parte muito pequena, mas importante que a gente retome neste momento.
Vamos direto a nossa Mesa, conforme entendimento feito aqui.
Eu passo a palavra ao jornalista e escritor Luiz Carlos Cunha, autor do livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios.
Vou conceder um tempo de 10 minutos, com mais cinco e mais cinco, caso necessário.
O SR. LUIZ CLAUDIO CUNHA - Obrigado, Senador, pela honra do convite e por dividir esta mesa e ouvir tanta gente ilustre, todos eles resistentes à luta contra a ditadura e na tarefa permanente de a contar.
Eu lembro, vendo tanto cabelo branco no filme e aqui na mesa e no plenário, que nós estamos, na verdade, relembrando o primeiro ano do segundo século do Golpe. Nós já passamos 50 anos e existe muita coisa ainda a ser feita.
Antes de falar uma coisa importante aqui, eu queria dizer que vou falar de três fatos graves que mostram que nós devemos continuar lutando nessa questão grave do Golpe: um é o cinismo dos generais - também colocada pelo Cid; o outro é a tibieza da Presidente Dilma, e a terceira é a omissão do Congresso.
Agora, há uma semana, uma entidade que trabalha com todas as universidades do continente, coordenados pela Universidade de Vanderbilt, no Tennessee, Estados Unidos, fez uma pesquisa que é muito preocupante do ponto de vista brasileiro. Mostra que esses idiotas que ficam pedindo a volta dos militares ao poder não são uma minoria que deva ser desprezada por nós, eles representam um perigo muito grande.
Nessa pesquisa feita pela Vanderbilt, no Brasil, há três quadros muito preocupantes: no primeiro quadro, mostra-se que o apoio a um golpe militar no Brasil, sob a justificativa dos altos níveis de corrupção, aumentou, em 2007, de 36,9% para 47,6%, em 2014. Ou seja, o que era um terço da população brasileira; agora, há um em cada dois brasileiros, por essa pesquisa, que justificariam um golpe pela incidência da corrupção que hoje ocupa toda nossa mídia diariamente.
O segundo quadro, muito importante, mostra que, num confronto com a avaliação da Presidente Dilma, as pessoas que avaliam como ruim ou muito ruim o seu governo, compreensivelmente, representam 52,8% das pessoas que apoiam o golpe. Mas o estranho é que, das pessoas que acham que é regular o Governo Dilma, 46,4% também apoiam o golpe; das pessoas que acham que o Governo Dilma é bom ou muito bom, 45,6% apoiam um golpe sob essa justificativa. O que mostra, inclusive, que os apoiadores da Presidente têm uma profunda descrença na democracia e isso nos deve deixar muito preocupados.
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No terceiro quadro, que eu acho mais preocupante, eles fizeram um levantamento em 23 países do continente americano, mostrando a defesa do golpe pela justificativa da alta corrupção. O primeiro, com 58% da população apoiando o golpe, era o Paraguai. O Brasil entra nessa relação em sexto lugar, com 47,9%.
Curiosamente, os três países onde menos se apoia um golpe pela justificativa da corrupção são a Argentina, o Uruguai e o Chile. O que é que isso nos leva a concluir? Os três países que fizeram o dever de casa e, logo após os seus períodos ditatoriais, abriram Comissões da Verdade e executaram as investigações necessárias para responsabilizar os militares e exercitar o poder da democracia, colocando repressores, torturadores na cadeia, punindo-os, como na Argentina, onde o Videla morreu na cadeia; no Uruguai, onde o Juan María Bordaberry, morreu na cadeia; e o Chile, que criou a Comissão Rettig, logo em 2000, para apurar tudo isso, esses são os países que, ao escancarar os horrores da ditadura, criaram uma blindagem na opinião pública contra o regresso dos militares.
O Brasil, que é uma país cínico, que não fez seu trabalho, está na ponta desse processo, porque as pessoas, inclusive as mais jovens, não conhecem os horrores da ditadura e acham que ela pode ser uma bela solução para os dramas do País.
Importante lembrar que a nossa Comissão da Verdade foi instituída em 2012, 27 anos depois da saída do último General, Figueiredo, em 1985. Ou seja, chegamos atrasados. Eu participei da Comissão da Verdade durante um ano, saí da Comissão por divergências abertas contra uma certa postura defensiva da Comissão, e, lá, eu percebi o seguinte: quando procurávamos os generais, os militares envolvidos com a repressão, chegávamos tarde. Ou eles tinham morrido, ou estavam com Alzheimer, ou estavam com Parkinson, ou estavam desmemoriados, ou estavam absolutamente indiferentes à investigação da Comissão da Verdade. Ou seja, chegamos tarde pela história, por conta da nossa timidez em relação a essa questão.
Eu quero, aqui, defender, efusivamente, a Comissão da Verdade. Acho que foi um evento da maior importância, porque ela estabelece, nas suas 29 recomendações finais, alguns itens decisivos para o futuro do País. Se essa Comissão tivesse sido instituída lá, em 1985, 1990, a gente poderia ter feito o dever de casa e não teríamos tantos nostálgicos da ditadura como temos, hoje, no País.
Nas 29 recomendações finais, por coincidência, a primeira delas, reconhecimento pelas Forças Armadas de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações, ou seja, cobrar dos militares, como lembrou o Cid, a sua responsabilidade pelo horror que impuseram ao País durante duas décadas. A segunda, determinação pelos órgãos competentes da responsabilidade jurídica que revogue essa obscena lei de autoanistia, que foi formatada pelos militares para se defenderem do eventual advento da democracia, como era inevitável.
Essa questão nos coloca, primeiro, o cinismo dos generais. O grande porta-voz dos generais da direita nostálgica da treva da ditadura é o General Leônidas Pires Gonçalves. Ele ecoa um mantra que foi assumido por dois ex-Ministros da Defesa, o Ministro Nelson Jobim, do Lula, e o atual Ministro da Defesa da Dilma, Jaques Wagner, dizendo o seguinte: "Vamos olhar para frente. Não vamos ficar olhando para o retrovisor. Nós temos que pensar no futuro."
Isso mostra que o General Leônidas, além de um mau general, é um péssimo motorista. Espelho retrovisor não é um enfeite, nem um adereço; o espelho retrovisor é um instrumento de segurança essencial para um bom motorista, porque, através dele, nós conseguimos direcionar a rota, sabendo quem à esquerda ou à direita pode nos abalroar. Ou seja, nós devemos fazer a nossa trilha para o futuro olhando para trás.
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Olhar para trás nos ensina como trilhar com segurança o caminho para frente.
Durante todo o trabalho da Comissão da Verdade, ela foi flagrantemente sabotada pelos generais. Eles foram cínicos. Chegaram ao ponto de negar que havia tortura em qualquer dependência das Forças Armadas, inclusive esquecidos de que na Tutoia, a sede do DOI-Codi em São Paulo, que foi o mais letal endereço da ditadura brasileira, em 1970, uma jovem guerrilheira da VAR-Palmares, chamada Vanda, codinome de Dilma Rousseff, foi torturada durante 22 dias. Eles esqueceram disso no relatório medíocre, tacanho e mentiroso que forneceram de uma forma debochada, como lembrou o Cid, à Comissão da Verdade, rebatendo inclusive eventos que marcam uma guerrilheira que, por acaso, hoje, é Comandante Suprema das Forças Armadas, a qual todos os generais devem respeito e obediência. Ou seja, afrontaram a verdade.
A D. Dilma teve um papel da maior importância ao convocar a Comissão da Verdade. Ela começou muito bem e terminou muito mal, porque, quando passou o 31 de março de 2014, 50 anos do golpe, D. Dilma esqueceu de fazer uma coisa que era elementar na sua biografia. Toda hora ela convoca televisão e rádio para pedir apoio ao programa do PAC, ao Minha Casa, Minha Vida, ao Mais Médicos, várias coisas importantes para o País, mas, na hora que passou o 31 de março, ela tinha obrigação moral, até porque ela carrega na carne e na alma as dores da tortura da ditadura, de convocar uma rede nacional de televisão e falar ao País, inclusive para esses jovens imbecilizados que hoje vão às ruas pedir a volta dos militares, o que nós passamos na ditadura.
A D. Dilma é a única mandatária do mundo que tem o privilégio de ser uma ex-presa política e torturada. Com ela, divide essa condição nada honrosa a Michelle Bachelet, do Chile, e o Pepe Mujica, do Uruguai.
Ela devia ter lembrado dessa sua biografia. Ela faltou a um dever moral de ir perante à Nação brasileira e dizer em rede de rádio e televisão que aquela data marcava 50 anos do golpe. Isso passou em branco. D. Dilma não fez nada.
Na hora de fazer a entrega oficial do relatório da Comissão da Verdade houve uma negociação muito forte, sob pressão dos generais, para que fosse um evento privado. Os seis comissários da Comissão entregando nas mãos da D. Dilma o resultado de dois anos de investigação. É um deboche absurdo! Quer dizer, uma comissão que tem um compromisso moral de prestar contas ao País entregar de forma envergonhada, quase clandestina, o relatório para a Presidente da República seria um acinte à memória nacional.
A pressão das famílias, muitos de vocês aqui, indignados com essa primeira tentativa de fazer uma entrega clandestina do relatório, é que obrigou o Palácio a rever essa cerimônia e fazê-la um pouquinho mais aberta, no Palácio do Planalto. Assim mesmo, sem aquela pompa e circunstância.
E o que aconteceu com o relatório? Nada. As recomendações finais, as 29 recomendações, nenhuma delas foi executada ou tornada política de Estado pelo Governo que havia convocado a Comissão. Ou seja, a D. Dilma Rousseff, que começou muito bem convocando a Comissão da Verdade, terminou muito mal não fazendo nada. Pegou o relatório e, se não houver uma luta e uma cobrança nossa aqui, vai ficar nas gavetas da história, como tantos outros documentos do País.
A terceira questão, para encerrar a minha fala, é a omissão do Parlamento. Existem dois projetos de revisão da Lei de Anistia tramitando no Congresso: um da Deputada Luiza Erundina, na Câmara; e outro do Senador Randolfe Rodrigues, no Senado. É muito pouco projeto para um Congresso que tem 81 Senadores e 503 Deputados.
É uma questão moral do País a recuperação da memória nacional. É uma coisa que afeta crimes de lesa-humanidade. O Brasil é o único país do mundo que não tem um miserável torturador na cadeia. Nem denunciado e condenado.
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O Coronel Brilhante Ustra, que foi o mentor e o chefe da Tutoia, onde foi torturada a Dilma Rousseff, está vivendo apenas processo na Justiça, mas ele não foi condenado.
O País passou ileso por esse processo traumático. É uma vergonha para nós brasileiros que, passados 21 anos de ditadura, a gente, ainda de uma forma cínica, talvez temerosos de uma reação dos quartéis, não tenhamos a coragem de abordar as questões como elas deveriam ser abordadas, com o desprendimento que faça jus à cobrança que a história nos fará.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Apoio Governo/PT - RS) - Esse foi Luiz Claudio Cunha, jornalista e escritor, autor do livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios.
Agora, vamos diretamente ao Diretor de Relações Institucionais da União Nacional dos Estudantes, Patrique Lima, com a palavra por dez minutos, e com mais cinco e com mais cinco se for necessário.
O SR. PATRIQUE LIMA - Bom dia a todos e todas. Gostaria de saudar a todos aqui presentes, na figura da Deputada Janete Capiberibe, que é amapaense assim como eu, e o Senador Paulo Paim, Presidente da Comissão, e estendo a todos aqui presentes e à mesa que está composta.
Para nós da União Nacional dos Estudantes, o debate desses 51 anos da ditadura militar brasileira é imprescindível para reafirmar o nosso papel na história. A primeira ação da ditadura militar na madrugada do dia 31 de março para o dia 1º de abril foi incendiar e metralhar o prédio da União Nacional dos Estudantes. Esse prédio, que depois de 50 anos, no próximo março do ano que vem, estará reerguido e estará de volta a Casa do poder jovem brasileiro, a Casa de todos os estudantes, e que concentrará as suas lutas, e que, para a gente, na história, é muito valioso e ajuda a reconstruir parte da memória nacional que foi usurpada e apagada pela ditadura militar. Nós não podemos deixar passar em branco.
A minha geração não conviveu com a ditadura militar: eu nasci, exatamente, no ano em que nasceu a Constituição cidadã. Mas, para nós, jovens engajados, temos clareza que o movimento estudantil jogou imprescindível papel no combate às arbitrariedades da ditadura militar. Perdemos uma série de estudantes, militantes e dirigentes da nossa entidade nesse período, e, para nós, não pode ser deixado passado em branco. Como bem salientou o Senador Randolfe Rodrigues, a Lei da Anistia não foi discutida, ela não foi um acordo, ela foi uma imposição do regime que estava acessando. Para nós, a revisão da Lei da Anistia é causa importante para recontar a nossa história a partir dos trabalhos e dos relatos da Comissão da Verdade.
A União Nacional dos Estudantes, após o estabelecimento da Comissão da Verdade Nacional, organizou a sua Comissão da Verdade para apurar os crimes cometidos contra os seus diversos dirigentes e diversos estudantes durante o período da ditadura militar. Ela encerra seus trabalhos nos próximos dias 3 e 4 de junho, no nosso 54º Congresso Nacional, que deve se realizar na cidade de Goiânia ou de Belo Horizonte. Para nós, é importante que, junto com a verdade que seja estabelecida, possa haver, sim, uma nova lei que revise a Lei da Anistia. Nós queremos medidas legais do Estado brasileiro para punir aqueles que ceifaram a vida e o futuro de diversos lutadores que defendiam nosso País, e que impediram o nosso crescimento e que impediram o crescimento do País.
Temos vivido nesse período - e aí foi bem lembrado por diversos oradores aqui antes... que todo período de pré-golpe vem imbuído com forte discurso da anticorrupção. Esse debate da corrupção - que, para nós, não é uma bandeira política; para nós, esse debate de combate à corrupção não é uma bandeira política - é princípio basilar dos agentes públicos, e não pode servir, momentaneamente, de bandeira de agitação para determinado grupo político. Isso tem que ser princípio. Para nós, todos momentos pré-golpe, a história nos mostra que sempre foram imbuídos desse discurso anticorrupção.
É importante que a gente possa estar conscientes do momento que nós estamos vivendo na conjuntura política atual.
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Nas manifestações do dia 15 passado, eu vi uma faixa que foi muito emblemática, aqui em Brasília, que dizia assim: "Abaixo Paulo Freire". Essa faixa é emblemática, porque eu acho que tem a ver um pouco com o cerne da questão estratégica da visão de futuro do País.
Paulo Freire, patrono da educação brasileira, tinha como símbolo a sua teoria da pedagogia do oprimido, que conseguia fazer relação com a posição de classe de que cada pessoa ocupava na nossa sociedade. Combater Paulo Freire é combater a memória de quem é quem na sociedade, de quem é explorado e de quem é explorador.
E combater isso é, também, a memória. Porque os que pedem intervenção militar negam a história. Negam a posição das pessoas e de quem era quem. No Brasil - e aí vale o registro desse debate sobre a corrupção -, as empreiteiras brasileiras que mais cresceram, e que hoje, inclusive, ocupam os principais espaços da construção civil brasileira, tiveram seu crescimento na ditadura militar. Vale o registro de que o Brasil aumentou a sua dívida externa no período da ditadura militar para mais de US$100 bilhões. E tudo isso passa à margem da história, sem o devido registro de onde foi parar isso.
Muita gente fala que foi graças a ditadura militar o período da construção e da infraestrutura do Brasil. Construíram pontes, estradas, ferrovias, hidrovias, mas ninguém discute a que custo isso saiu. A infraestrutura do Brasil é fundamental, e até hoje nós perecemos de mais infraestrutura, mas o preço que nós pagamos por esse processo de infraestrutura que a ditadura militar promoveu é muito caro e nós sentimos ainda hoje.
Para nós, da União Nacional dos Estudantes, a nossa posição hoje é de defesa da democracia. É da defesa dos avanços e dos direitos conquistados até hoje, a partir da Constituição de 1988. Nós achamos que, para consolidar a democracia brasileira, ainda falta muito. Nós temos muito trabalho ainda pela frente e muito enfrentamento para se fazer, com muitos direitos que ainda precisamos conquistar, mas o caminho que nós devemos seguir é através da democracia, da participação popular, do investimento em educação, do investimento em setores estratégicos que garantam o bem-estar e a qualidade social do nosso povo.
Neste exato momento, na Comissão de Constituição e Justiça, na outra Casa, na Câmara dos Deputados, está sendo votada, abriu o processo de votação para redução da maioridade penal. Para nós, da União Nacional dos Estudantes, é importante que nós possamos ligar um alerta. Porque hoje a gente está sendo acometido, nós estamos sendo bombardeados por um conservadorismo na nossa sociedade, que nos remete a riscos históricos de atrasos nos nossos direitos sociais. Assim como a redução da maioridade penal, assim como os direitos sociais, civis da comunidade LGBT, assim como outros temas ligados a avanços em que até há um tempo atrás tínhamos avançado bastante.
Agora é importante que nós possamos ter tudo isso desse prisma dentro de um apanhado histórico. Para nós, estarmos vendo jovens defendendo a ditadura militar, nos remete a uma questão muito séria sobre o papel da nossa educação hoje.
Eu sou do Amapá, estudei lá minha vida toda em escola pública e, durante muito tempo, até eu entrar na universidade, diziam que não existia ditadura militar no Amapá, que não existia nenhum registro, que o Amapá era ainda Território Federal. E só depois de eu entrar na universidade é fui saber a história do nosso Estado, a partir de outros olhares, e a gente vai descobrir figuras emblemáticas da luta democrática, como a Janete Capiberibe, como o João Capiberibe, e outros lutadores, como o próprio Chaguinha, que desempenharam funções, que lutaram no combate à ditadura militar, no meu Estado. Quer dizer, então, a história nos nega, a história formal, a educação formal nos nega.
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E é importante que, neste momento, a gente possa discutir também o papel da educação na formação dos jovens brasileiros. Os jovens brasileiros precisam deparar com a história real, com a história da verdade, porque isso vai ser fundamental para a formação dos cidadãos brasileiros, mas também para que possamos rechaçar o risco da volta da ditadura e para que possamos ter a nossa memória reavivada, a fim de que nunca nos esqueçamos dela e de que ela nunca mais aconteça.
É isso, obrigado.
(Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Muito obrigado, Patrique Lima, Diretor de Relações Institucionais da UNE, que teve e tem um papel importante na história do nosso País.
Eu passo a palavra a uma pessoa muito especial na minha vida e na minha luta, a Deputada Federal Janete Capiberibe.
A SRª JANETE CAPIBERIBE (PSB - AP) - Minha saudação a todos e a todas que participam desta audiência pública.
Obrigada, Senador Paim, Presidente da Comissão de Direitos Humanos, que está, de verdade, na defesa dos direitos humanos da população do nosso País.
Obrigada, Senador Capi, pelo convite para a participação nesta audiência pública.
E obrigada a todos aqueles que palestraram aqui, como a Sueli, que, com toda a equipe, com todo um grupo de militantes, podemos dizer, da Comissão de Anistia, e que nos fez um relato pé no chão, realidade da militância sua, Sueli, com todos os recursos humanos com os quais trabalha. E não é de agora, você citou aqui que esteve no Acre.
Enfim, quero dizer que esta manhã, Senador Paim, é muito enriquecedora. Em primeiro lugar, eu me sinto assim muito feliz, muito apoiada aqui, com Gilney e com Alípio, que viveram essa questão na carne, na pele; com Cid Benjamin.
Você não me conhece, mas eu venho... Inclusive, sua mãe, a Iramaia... Eu a chamo assim, porque é uma pessoa muito íntima para mim.
Enfim, é um momento muito importante para nós, que combatemos, através da nossa militância, da luta armada mesmo, a ditadura militar.
E quero, Patrique, aproveitar, você que é jovem, que é do meu Estado do Amapá - há alguns amapaenses nesta sala -, para lhe passar uma preocupação com o processo de resgate da verdade, memória e justiça no nosso Estado do Amapá. Nesse momento, o Governador do Amapá, Waldez, eleito nesta democracia conquistada com suor e sangue, a duras penas, paralisa a Comissão da Verdade do Amapá, que foi aprovada pela Assembleia Legislativa.
Sueli Bellato esteve no Amapá na sua instalação, quando o Governador Camilo estava no poder. Ele criou todo um grupo importante para fazer o resgate dessa memória, que para nós, amapaenses, é muito importante, porque nós, no Amapá, estamos do outro lado do Rio Amazonas. Nós estamos isolados do Brasil, estamos mais perto da Guiana Francesa, da França, da União Europeia do que do Brasil.
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E ali, Patrique, você sabe tudo que aconteceu, um fenômeno que precisa ser esclarecido, criado pelos governos militares do nosso Estado do Amapá - era Território, na época -, um fenômeno que se chamou "engasga-engasga". Especula-se que aconteceu para a criação da Polícia Militar ali no nosso Estado do Amapá e foi uma violência muito grande, até hoje não esclarecida. Muitas pessoas foram presas, encapuzadas, levadas para Belém, para ficarem ali presas no Exército, na 5ª Companhia de Guarda, e nada disso está aí na memória da população.
Está claro para a nossa juventude, Patrique, esse fato que ocorreu durante o período da ditadura militar. Então, é necessário que a juventude no Amapá pressione, tensione, vá às ruas pedir ao Governador Waldez que reinstale a Comissão da Memória, Verdade e Justiça para que, em seis meses, que era o prazo ainda necessário para a conclusão dos trabalhos, apresente à sociedade, à Assembleia Legislativa, à Justiça do Estado do Amapá esses fatos trazidos à luz e à verdade.
Eu quero, assim como o Cid Benjamin, o Luiz Claudio Cunha, vocês que são jornalistas, escritores, vocês têm o registro do que ocorreu nesse período, mas não é todo cidadão brasileiro... a juventude brasileira não tem acesso a essas informações que vocês fazem. Li o seu livro e agora o Luiz Claudio faça dessa possibilidade de um novo golpe militar no nosso País e apresenta um ranking de quatro países, Argentina, Uruguai, Chile e Brasil... e isso me preocupa muito.
Eu ainda fico tremendo quando falo nas coisas do período da ditadura militar. Bom, uma questão é esta: fazer essa denúncia aqui, pedir àqueles que são do PDT aqui no Senado que falem, conversem, pressionem o Governador Waldez Góes para que ele reinstale a Comissão ali no Estado do Amapá.
A segunda questão que eu queria colocar é relacionada com a fala, com a provocação que o Luiz Claudio fez diretamente ao Congresso, sobre os generais, o cinismo... A gente vê, a gente sabe a postura da Presidenta Dilma, que é uma ex-presa política torturada no nosso País. E depois a provocação que você faz ao Congresso Nacional. Eu vou fazer um movimento dentro da Câmara Federal para que apresentemos vários projetos de lei de anistia que puna os crimes de lesa-pátria que ocorreram no período da ditadura militar. Já valeu esta audiência, não só por essa provocação sua, mas por tudo o que está sendo conversado aqui e dito.
Eu queria me reportar, ainda, à Amazônia. O Chico Mendes, que foi um acriano, seringueiro, ambientalista, ele foi alfabetizado por um refugiado das Ligas Camponesas do Nordeste do Brasil. Ele ensinou o Chico Mendes, esse refugiado das Ligas Camponesas, a ler e escrever a partir do jornal Voz Operária e ele ensinou o Chico Mendes a ouvir a BBC de Londres, a Rádio Tirana e outras.
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Eu também, no nosso Amapá, Patrique, o meu alfabetizar político, eu já era secundarista, foi o Chaguinha, o nosso Chaguinha. Ele nunca nos falou, mas eu acho que ele também veio das Ligas Camponesas, no Nordeste, pelo método que ele usou para alfabetizar o Chico Mendes, no Acre, foi o mesmo que o Chaguinha, do Partido Comunista, usou para me alfabetizar politicamente.
O Chico Mendes, quando aconteceu o Golpe Militar de 1964, ele ouviu, pela BBC de Londres, que o professor dele desapareceu do seringal em que ele estava no Acre. Ele ouviu pela BBC de Londres que o Golpe Militar, dado pelos militares, não era bom para a Amazônia, porque os militares traçaram um projeto de desenvolvimento econômico para a nossa região totalmente incompatível com a vida, com a biodiversidade, com a diversidade genética, com a vida das pessoas na Região Amazônica. Nesse projeto de desenvolvimento dos militares, já no Golpe, o militar de plantão, em 1970, Emílio Médici, começou o Plano Nacional de Integração, com a abertura de rodovias, as obras da rodovia BR-230, conhecida como Transamazônica, a BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, a BR-210, conhecida como Perimetral Norte, com 100km no nosso Estado, o Amapá, quando morreram 80% dos índios Waiãpi. A estrada chegou até os índios e praticamente os dizimou, porque o contato com o branco trouxe malária e outras enfermidades para as quais eles não tinham resistência. Pelo menos oito mil índios, estima-se, pois o número pode ser muito maior, foram exterminados, vítimas desse genocídio. Não há registros, Sueli.
A Comissão da Anistia e a Comissão da Verdade não conseguiram se aprofundar no extermínio desses mais de oito mil índios no nosso País, das etnias Waiãpi , Jiahui, Tenharim, Waimiri Atroari, Caxinauá, do seu Acre, Senador Aníbal, e Madijá. Os que sobreviviam, na época, eram presos e escravizados. As correrias - no Acre essa palavra era comum, no Amapá nem tanto - feitas pelos militares, pelos empreiteiros, pelos madeireiros, pelos fazendeiros, foram um verdadeiro genocídio com a população indígena no nosso País.
Eu queria fazer um relato bem rápido, não sei se ainda tenho tempo, Senador Capi. Vivi nove anos no exílio. No nono ano, em janeiro de 1979, em Moçambique, o último país do nosso exílio - meu, do Capiberibe e de nossas três crianças -, chegavam as notícias de que estavam os exilados todos voltando para o Brasil, que a Comissão de Anistia os recebia no aeroporto. Não acontecia nada. Eu vim com as minhas três crianças. .
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Eu tinha um contrato com o governo de Moçambique, eu era professora, dava aula de Biologia lá, e vim passar um mês no Brasil para encontrar a minha família, os amigos - nove anos depois, era muito tempo, era muita saudade - e, ao chegar ao aeroporto do Galeão, no túnel ainda, eu fui sequestrada com as minhas três crianças - a mais velha tinha 8 anos - e fui levada para a Polícia Federal. Eu fui sequestrada, aliás, no túnel do aeroporto. Cid, a sua mãe, a Iramaia, estava lá, e ela, com mais todos os compunham a Comissão de Anistia gritavam: "Aí está a Janete, que chegou de Moçambique com os três filhos." Mas a Polícia Federal, com um revólver em cima de mim, com as crianças não podia...
E eu fui sequestrada, levada para um prédio da Polícia na Praça Mauá, e passei a noite, depois de ter atravessado o Atlântico e chegado ao Brasil, em uma sala de tortura, preparada para a tortura, com duas lâmpadas enormes viradas para bancos altos assim e um sofá velho, todo rasgado, onde eu tive que passar a noite sentada com as minhas crianças, as três nesse sofá.
Bom, eu tinha ouvido um pouco o barulho de fora, e eu pedi também para uma companheira que veio de Moçambique comigo, também com dois filhos, pedi a ela: se acontecer alguma coisa comigo, você avisa a Iramaia aí fora, avisa a Comissão de Anistia. E eu acho que ela avisou, mas, de toda forma, na manhã seguinte, de novo eu fui sequestrada pela Polícia Federal e levada até dentro do avião da Varig, até às poltronas onde eu sentei com os meus filhos, o que é uma constatação da conivência da Varig com a ditadura, com os órgãos de repressão. Eles não disseram nada. A minha filha mais velha teve uma crise terrível, tremia... (Palmas.)
A SRª JANETE CAPIBERIBE - Só mesmo a minha presença, o braço em cima das três crianças nos ajudou desde o momento que nós fomos sequestrados.
Enfim, trouxeram-me para Brasília, de novo me sequestraram na porta do avião e me deixaram na Polícia Federal também sequestrada. E o povo do Comitê da Anistia gritando lá fora: "Janete chegou, está com os três filhos, veio de Moçambique" - eles se comunicaram do Rio, a Comissão de Anistia, com a daqui de Brasília.
Enfim, eu sei que eles não me liberaram, eles tiravam de trás de uma mesa de escritório um revólver e apontavam para mim com as crianças. E a Comissão lá fora gritando meu nome e das minhas três crianças. E eu só sei que eles só me liberaram depois que me fizeram um interrogatório minucioso de nove anos de exílio: a fuga, Bolívia, Chile, Canadá, Moçambique, tudo. E eu fazia o que a Angelina dizia, eu não dizia o nome de ninguém. Dizia todo o contrário se coincidisse que eles dissessem o nome de algum companheiro. Por quê? Essa minha volta, eu fui presa uma primeira vez nos nove anos anteriores e não foi tão terrível como essa minha volta ao Brasil; as pessoas não chegam a pensar nisso. É como o Gilney, a Lei de Anistia foi aprovada e você não foi anistiado, não é verdade?
Portanto, foi assim um momento muito terrível que eu vivi nas mãos da ditadura militar. Eu acho que eu vou terminar, já falei muito.
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O Governo brasileiro, a ditadura militar, em janeiro de 1979, eles nos davam um documento, o primeiro documento dos meus filhos e o meu, depois que fui presa, quando eles ficaram com os meus documentos, que foi um passaporte com validade de três meses. Aí, eu vim para passar um mês, eu tinha um contrato de trabalho em Moçambique e precisava voltar. Quando fui de Brasília para minha cidade, no Amapá, Macapá, eu tinha, todos os dias, que me apresentar na sede da Polícia Federal, todos os dias, durante quase três meses.
Vou terminar com isso, porque é uma história interessante a desse xale que estou nesse folder, um xale que coincidiu com a mesma época da minha volta ao Brasil. A Therezinha Zerbini, que estava no México, em Puebla, era o Ano Internacional da Criança, ela ali pediu ao episcopado o fim do meu sequestro, que eu pudesse voltar com as minhas crianças para Moçambique. Isso foi muito importante. Essas duas mulheres, a Therezinha Zerbini e a Iramaya - não vou nominar outras companheiras, porque posso fazer injustiça - e outros companheiros que estiveram nessa luta, nesse apoio pela abertura política, pela democratização, foram muito importantes. O Dr. Assu Guimarães, que procurei um ano atrás, era Presidente da OAB quando passei em Brasília, e ele me deu muito apoio, assim como a CNBB, a ABI, a Comissão de Anistia. O Dr. Assu Guimarães já faleceu. Eu fiquei triste, queria dar um abraço nele, agradecer, muito tempo depois. Vou ver se encontro familiares dele para agradecer a eles também, é uma vontade que sinto.
Então, eu concluo retomando as palavras da Iara. O que nós fazemos, o que nós devemos continuar fazendo diante desse retrocesso de perdas de direitos, a partir da Constituição de 1988, como ocorre com a redução da maioridade penal... Eu marquei presença na CCJ e vou sair daqui para lá também. O Chico Alencar foi antes. De ontem para hoje, principalmente, os Parlamentares que são pastores evangélicos e os ruralistas estão ali fechados para votarem a criação da comissão especial para formatar esse famigerado projeto, que infelicitará a vida da nossa juventude. Digo que esse projeto da redução da maioridade penal...
A PEC nº 215, é um retrocesso nos direitos adquiridos pelos povos indígenas no nosso País. Passar para este Congresso Nacional, com a composição que tem, a definição da demarcação de terras indígenas, identificação, demarcação, homologação, é uma perda total de direitos. Não chega já os que foram assassinados durante o período da ditadura militar.
Enfim, estamos na luta, protagonizamos durante todo esse período e continuamos protagonistas dessa história. Vamos, sim, fazer esse movimento para que sejam punidos os assassinos do período da ditadura militar, para que a nossa juventude... A grande preocupação aqui é com as gerações presentes. Vários falaram suas idades, mas sou muito mais velha, tenho 66 anos, tenho mais do que todos que declinaram a idade aqui. A minha preocupação é grande. Que comece mudando por este Senado a Ala Filinto Müller. No meu Estado, no segundo maior Município, há a Avenida Filinto Müller, em Santana.
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Então, é preciso que a memória e a verdade apareçam, para que os nossos jovens, Patrique, debatam isso nas escolas, na universidade, e a gente continue essa mudança, que vem andando aí, mas a passos muito lentos.
Muito obrigada, gente.
Desculpe pela emoção. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Muito obrigado.
Vou lembrar aqui um dos slogans da ditadura na Amazônia, quando faziam uma intensa campanha, Senador Paim. Eles tinha dois slogans: "Integrar para não entregar" e "Terra sem homens para homens sem terra". O resultado é que 20% da Floresta Amazônica desapareceram ainda como consequência dessa política.
Bom, passo a palavra para o combatente Alípio Freire, Jornalista e Diretor Cinematográfico.
O SR. ALÍPIO FREIRE - Boa tarde a todas e a todos.
Eu agradeço o convite ao Senador Paim, a quem cumprimento, e a todos os Senadores presentes.
Cumprimento a Mesa através do Capiberibe e da Janete.
Cumprimentar os presentes é difícil. Eu contei e há 17 pessoas que são minhas amigas aqui, o pessoal da Comissão de Anistia: Sueli, Marina, Rodrigo, Rosa, Amarílis, que estava aqui, são muitos.
Já que ela foi tão citada, eu não poderia deixar de fazer uma pequena homenagem a Iramaya Benjamin, uma das figuras... (Palmas.)
...mais fantásticas que eu conheci e que me faz falta. Ela até me adotou como filho mais velho. Quando os outros não se comportavam, ela dizia: "Você está precisando vir ao Rio falar com os meninos". (Risos.)
E os meninos estavam mais que comportados, mas ela queria linha justa.
Tem também o pessoal do Conselho Curador do Memorial da Anistia. A nossa companheira Sônia. Aquele casal simpaticíssimo, os meus amigos Yara e Gilnei. Todo mundo aí. Então, é difícil.
Muita coisa já foi tratada aqui. Eu vou tentar puxar a questão para a perigosa conjuntura em que vivemos. Acho que alguns dos que se manifestaram foram extremamente otimistas. Eu não sou pessimista, mas temos que dar uma aterrissada.
Uma das coisas que me leva a pensar hoje e comparar com 51 anos atrás é a intensa presença e ingerência dos Estados Unidos no nosso País neste momento. Se não tivermos clareza disso, não vamos conseguir sequer avaliar a importância e o peso de uma série de coisas que estão acontecendo.
Não sou paranóico, não sou Ubaldo, mas alguém já parou para refletir sobre quem derrubou o avião do Eduardo Campos? Não caiu de graça. Não caiu de graça! Não caiu.
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Na comissão de averiguação, que tem dois técnicos dos Estados Unidos... Não esqueçamos que o Embaixador dos Estados Unidos no Brasil, em 1964, era também funcionário da CIA.
A primeira versão demorou e saiu meio escabreada, dizendo que foi falha humana, que o piloto não tinha feito os cursos que deveria, tititi, que ninguém no Brasil sabe pilotar aquele tipo de Cessna. O Ministério Público contestou, não aceitou. E agora eles estão procurando uns pássaros que voavam, alguma coisa assim. Se não é pássaro, é borboleta; se não é borboleta, é libélula, e vai. Quanto a isso, acho que todos deveríamos forçar a investigação.
Nos jornais, temos tido as mais diversas denúncias da ligação de elementos dos Estados Unidos, financiados pelos Estados Unidos, com as manifestações. Eu entendo quando se diz que mesmo os que votaram na Dilma e alguns que a apoiam são a favor do golpe. Eu entendo, porque a maioria de nós tem vergonha de defender a Dilma. Eu defendo. Não a Dilma pessoa, porque nem a conheço direito. Nunca convivi com ela, embora tenhamos estado juntos.
Vocês lembram que o pré-sal foi descoberto durante o governo Fernando Henrique, o segundo governo, e imediatamente escondido? Ah! Não é tão importante assim! No segundo governo Lula, ele chega, por algum motivo - vá lá saber qual -, e faz um estardalhaço. Parecia que tinha sido descoberto por ele. E a partir daí, a pressão dos Estados Unidos para que o pré-sal não fosse explorado só cresceu.
Vocês acompanharam o leilão do Campo de Libra, que é uma fração mínima do pré-sal? Foi feito um edital para o leilão a que nenhuma empresa americana conseguia corresponder. E ganhou a China. O Brasil colocou, no meio do Atlântico, uma potência atômica. Ter petróleo e não ter bomba atômica é ocupação, é dominação. Por trás de toda essa crise está o nosso petróleo, mais uma vez.
Todos lembramos o suicídio de Getúlio Vargas, que já foi citado aqui. Atrás disso estava o petróleo brasileiro. Todos lembramos - se não lembramos podemos lembrar agora - que, a partir daí até 1964, toda a divisão e a polarização das eleições para a Presidência da República eram um candidato a favor da manutenção do monopólio estatal do petróleo e outro contra. Assim foi Juarez Távora e Juscelino Kubitschek; assim foi Jânio Quadros e Marechal Lott, e assim por diante. E estamos outra vez frente a uma situação desse tipo. Não dá para brincar.
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Junto com isso, o Governo Dilma põe em ação os BRICS - como outros querem dizer. Antes, ninguém mexeu com os BRICS. Era uma rodinha de amigos conversando, solidariedade. E os BRICS criaram o banco de fomento, o novo banco de fomento. Isso é uma disputa internacional inclusive do dólar como moeda padrão única. A China é dos BRICS e está lá no meio do Atlântico. É a terceira margem do oceano agora. Então, acho que quando olharmos a atual conjuntura, não podemos esquecer a geopolítica dos Estados Unidos, de jeito nenhum!
Nós tivemos manifestações, há anos atrás... Bom, até então o último ditador que havia sobrado no Ocidente era o Fidel Castro, segundo Washington. Aí, de repente, descobrem um monte de ditadores no Norte da África, no Oriente próximo. O que é isso?
E grandes manifestações, porque era preciso a democracia, o fim da corrupção, o fim do uso da burca e um monte de marmeladas. Era preciso que as forças da democracia fossem lá. E eles invadiram. Depois da invasão, a Pax Americana, ou seja, a paz dos cemitérios nesses países. Por coincidência, todos estavam sentados em cima de milhões de barris de petróleo, oleodutos, gasodutos ou coisas do gênero.
A derrubada do avião do Eduardo Campos... Porque aí teve Primavera Árabe para todo canto. A derrubada do avião do Eduardo Campos veio um pouco depois da queda do avião da Malaysia Airlines.
Os caras não têm muita imaginação, mas nós também mergulhamos num túnel da pós-modernidade em que não fazemos a junção das coisas. É tudo fragmento. Cada coisa acontece num canto.
As manifestações aqui. Vocês acham que é só rede social que convoca isso? Nunca! Primeiro, ela já está pautada pela grande mídia, que dizem que está obsoleta. Não é verdade. Quem pauta os debates da internet, as redes sociais, são TV Globo, as manchetes dos jornais, a Veja. Quem pauta são eles! A conversa vem depois. E esses jornais, revistas, televisões nós sabemos de sobra de quem são! Aliás, era proibido capital estrangeiro ter meios de comunicação no Brasil e isso foi flexibilizado na época dos militares ainda. Flexibilizado significa que o capital estrangeiro é sócio disso tudo.
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Não esqueçamos que a campanha da Dilma - primeiro a candidatura e, em seguida, a campanha - foi sabotada internamente no PT por forças poderosas. Vamos parar de fazer cara de santo e de inocente! A maioria aqui é próxima ou foi próxima do PT. Há um isolamento por interesses distintos, suponho e espero que distintos, porque, se eu começar a supor que forças do PT têm o mesmo interesse que as do PSDB ou do DEM, aí, então, acabou o mundo!
Acho muito delicado quando a gente olha o Governo Dilma. Eu acho que ele está tomando algumas medidas absolutamente incorretas, algumas. Mas que força há, que base social organizada, se o Partido que nasceu para organizar a classe trabalhadora desestruturou tudo?
O Paim, que está aí, não vai me deixar mentir. (Risos.)
Sou filiado ao PT e gostaria que o projeto tivesse dado certo, mas temos que olhar de frente o que está nos esperando, porque isso é muito grave. Como é que você vai enfrentar toda essa crise internacional?
Agora, uma das estratégias dos Estados Unidos é o controle do Atlântico Sul - já disseram, numa reunião em Lisboa, há seis anos, que, a partir daquele momento, a Otan não se limitaria apenas ao Atlântico Norte, ela interviria em qualquer lugar em que a civilização ocidental democrática e cristã estivesse em risco.
A China está aqui no meio; a África do Sul e o Brasil estão associados à China, à Rússia e à Índia. Nesse jogo de tabuleiro, a China está fazendo um canal ao sul da Nicarágua que vai transformar o Canal do Panamá em coisa superada. E esse canal vai ser controlado, e a força-tarefa que vai estar lá, pelos russos, ou seja, eles não vão precisar dar mais a volta ao mundo para chegar ao Atlântico Sul.
A desestabilização do Brasil coincide, neste momento, com a desestabilização da Rússia, onde a questão é a mesma. Eu não sou, nem poderia ser, um admirador de Putin, do Presidente Putin, mas ele está dando um show de diplomacia no pedaço dele.
Então, acho que vivemos um momento que é muito grave. Tem gente brincando com fogo! E a minha palavra de ordem neste momento - apesar do ajuste fiscal, disso ou daquilo que está errado, de um monte de coisa ali que está errada - é garantia da constitucionalidade de uma Presidente; é a minha palavra de ordem. E não estou conclamando ninguém a ter a mesma palavra de ordem que eu. Se a gente não conseguir garantir a constitucionalidade do País, nem as outras coisas vamos mudar. E aí acabou!
Agradecendo mais uma vez a paciência de vocês e o convite, espero ter contribuído com alguma coisa. (Palmas.)
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O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Obrigadíssimo, Alípio, pelos seus alertas.
Este é um país que muita gente cobiça. Aliás, pouca gente cobiça, mas é um país muito rico, um país com um potencial que vai além do petróleo; tem a biodiversidade, tem coisas fantásticas o nosso Brasil, água em abundância, enfim, temos muitas riquezas. E temos 200 milhões de brasileiros, o que também é uma riqueza fantástica.
Como nosso último convidado, quero passar a palavra ao Deputado constituinte Domingos Leonelli, companheiro de muitas lutas.
O SR. DOMINGOS LEONELLI - Presidente em exercício, Capiberibe, meu amigo querido, governador de uma verdadeira revolução na floresta, que nós procuramos narrar e com ela contribuir; meu amigo Paulo Paim, Presidente desta Comissão, quero lembrar que não apenas fizemos aquela missão na África juntos, mas escrevemos juntos praticamente todo um Capítulo VII da Constituição brasileira, que fala dos direitos dos trabalhadores, os quais a duras penas conseguirmos ampliar. E alguns desses direitos, alguns desses dispositivos até hoje não foram aplicados.
Dizia um Senador italiano que a Constituição da Itália era tão boa porque tinha 50 anos e não tinha sido completamente aplicada ainda. A nossa está entrando neste caso: é tão boa que não consegue ser aplicada.
Quero compartilhar um pouco aqui uma visão que talvez não coincida com a da maioria. Já que os fatos da ditadura, a composição foi bem rememorada, muito bem colocada por todos, eu gostaria de abordar dois momentos só: o nascimento e a morte dessa ditadura. Eu gostaria de me fixar mais nesses dois pontos até para atender a essa visão de que rememorar não é olhar pelo retrovisor; rememorar serve para olhar para frente, é muito importante para o olhar para adiante. E, se puder, se estiver com o Ministro Jaques Wagner, vou transmitir a ele essa sua boa recomendação de que o retrovisor é uma peça muito importante do automóvel.
Eu queria lembrar aqui que não considero que o golpe militar tenha sido apenas um golpe militar, tenha sido uma quartelada. Compartilho da ideia de que havia uma revolução em marcha. Havia uma revolução democrática, uma revolução talvez social-democrática em marcha, desde Getúlio, passando por Juscelino e, principalmente, com Jango, quando esse processo se acentuou muito com a campanha pelas reformas de base, que eram reformas revolucionárias, tão revolucionárias que até hoje não foram realizadas: a reforma urbana, a reforma agrária. Até hoje estamos nos devendo essas reformas. E isso estava em um processo acelerado. Realmente, o País caminhava não para uma ditadura anarco-sindicalista, mas para um processo de transformação bastante significativo.
Quero compartilhar aqui do que já foi dito: que país seria este se não houvesse o golpe militar? Com certeza, um país muito mais avançado. Com certeza, muitos dos gargalos teriam sido resolvidos naquela época. Então, penso que o que nós vivemos em 1964 foi uma contrarrevolução. Foi, realmente, uma contrarrevolução profunda, planejada, com pensamento, com projeto; não foi uma quartelada simples como até pretendiam alguns militares.
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Como aquele que disse que era uma vaca fardada, pretendiam era isto mesmo: derrubar o governo de Jango, implantar rapidamente e restruturar a democracia. Mas não foi. Por trás deles, havia um Golbery, havia um Geisel, havia um pensamento político que se revelou logo no começo do golpe militar e da ditadura civil-militar, na minha opinião, porque Golbery do Couto e Silva teve tanta importância quanto Octavio Gouvêa de Bulhões.
E começou a ditadura a executar um projeto de transformação contrarrevolucionária. A primeira coisa que ela fez foi quebrar a estabilidade no emprego, porque era fundamental quebrar essa estabilidade para possibilitar a venda das empresas brasileiras às multinacionais. A estabilidade no emprego era o principal obstáculo da venda de empresas brasileiras para o avanço do capital estrangeiro no Brasil, um avanço bem diferenciado daquilo que Juscelino fez.
Juscelino, também num processo de benesses ao capital estrangeiro, deu ao capital estrangeiro, à indústria automobilística um mercado e fechou o mercado. Foi uma beleza: dar uma reserva de mercado fantástico como essa a determinadas cinco ou seis grandes empresas. Em compensação, possibilitou o crescimento de uma indústria de acessórios, de equipamentos, de fábricas, o que realmente foi uma contribuição extraordinária para a economia.
O golpe de 64 fez o contrário. Qual foi a atitude logo adiante, a primeira coisa que ele fez de essencial? Ele desmontou a nossa matriz energética e a nossa matriz de transporte. Em dois anos, ele inviabilizou as ferrovias e possibilitou esse rodoviarismo louco que consome os recursos brasileiros. E aí entra com força isto que hoje espanta todos: entra com força o reino das empreiteiras, construindo estradas etc. Paralelamente a isso, num País que tem 8 mil quilômetros de costa, eles desmontam a navegação de cabotagem. Por quê? Porque precisavam desmontar uma coisa que se chamava PUA (Pacto de Unidade e Ação) entre os sindicatos dos trabalhadores ferroviários, dos trabalhadores portuários e dos aeroviários. Era o PUA. Essa desmontagem da nossa matriz de transporte, que era fundamental, foi essencial também para a desmontagem da matriz energética. Então, eles executaram um projeto detalhadamente.
A política de Octavio Gouvêa de Bulhões e de Roberto Campos foi uma coisa muito bem pensada, muito bem trabalhada. Não se pode dizer que os militares chegaram ao poder sem ter o que fazer, sem ter pensado nada. Eles tinham aquilo preparado. Havia alguns caras que acreditavam que ela era passageira, mas eles sabiam que não era - insisto - meramente militar, era civil, talvez até mais civil que militar.
Golbery do Couto e Silva saiu do Exército diretamente para ser Presidente da Dow Chemical no Brasil, que, na Bahia, chegou a ter a sua mina de sal-gema, com uma área cercada, com a aquiescência do Sr. Antonio Carlos Magalhães - os dois viviam em comum acordo. Fecharam um território brasileiro em Matarandiba. Os moradores de Matarandiba só podiam entrar na sua cidade se tirassem uma carteira de identidade na Dow Chemical na Pituba, em Salvador.
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Foi um processo foi um processo desnacionalizante, foi um processo profundamente estruturante de uma nova ordem econômica e financeira. Foi quando os bancos adquiriram uma importância gigantesca na economia e "financeirizou-se" a nossa economia brutalmente.
Eu quero dizer isso porque tem a ver também com o fim da ditadura. A ditadura, lamentavelmente, não terminou, não foi derrotada pelas forças heroicas de muita coragem e de muito patriotismo dos nossos revolucionários armados. Marighella - está ali a neta e a filha de Carlinhos - foi uma grande referência para mim, inclusive, eu o conheci pessoalmente, uma beleza, uma figura humana extraordinária. A ditadura foi derrotada pelas forças democráticas, pela perspectiva democrática, pela visão do velho partidão, que ainda que não tivesse sido realizado... No lugar do partidão, surgiu o PT. O PT é um partidão que deu certo, que transformou-se no partido da classe operária, cresceu e, em vez de adotar uma política revolucionária, adotou uma política reformista etc. Essa substituição foi extraordinária para a política brasileira e deu certo.
E aí entraram fatores subjetivos que não vale a pena examinar aqui; talvez, valham a pena, porque também o partidão, naquela época, não tinha chance, embora tivesse a política mais correta, tanto que essa política foi adotada pelo PT - a política das alianças, a política da amplitude -, e não podia, porque já estava demais desgastado. É uma coisa que talvez se assemelhe ao que está acontecendo, hoje, com o PT também. Eu li na CartaCapital, que agora tem três análises importantíssimas... Porque o PT é um patrimônio do Brasil muito importante. Não podemos desconhecer a importância do PT para o bem ou para o mal, ou para ele deixar de existir ou para continuar existindo, mas é importantíssimo que se discuta essa função do PT.
Retomando, por que eu disse isso? Porque o fim da ditadura correspondeu também a uma certa incapacidade que o último governo, o governo de João Figueiredo, teve de se manter ligado às elites. Ele começou a entrar em contradição com essas elites e começou a ser insatisfatório do ponto de vista das elites. As elites começaram a se desprender do governo Figueiredo e a formar, digamos assim, a compor um leque de alianças democráticas, principalmente comandado pelo PMDB, que já havia ganhado duas eleições.
Nós não podemos dizer que vivemos uma ditadura militar clássica, de repressão total, absoluta, porque não é verdade. Nós tivemos ditadura terrível, desumana, brutal, mas havia áreas de oxigênio de onde ela se beneficiava e se beneficia até hoje. A questão da impunidade está muito vinculada a essa história da permissão, das concessões democráticas que ela fazia.
E, nessa composição, houve um determinado momento, no País, em que havia duas grandes teses sobre a substituição, a superação da ditadura: uma tese, defendida pelo Partido Comunista Brasileiro, pelo PMDB, pela social democracia - à época, Fernando Henrique e outras pessoas -, que era derrotar a ditadura; e outra, de uma concepção mais radical, que era a derrubada da ditadura. E essas concepções não conseguiam se juntar. Eu acho importante examinar isso hoje porque também estamos diante de concepções, à esquerda, díspares e contraditórias entre si, que vêm favorecer sempre a direita quando acontece isso.
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Essas contradições, essa contradição básica foi atravessada literalmente por uma ideia, uma proposta que era ao mesmo tempo... Uma tese era a ruptura com o sistema; a outra tese era a composição, a abertura do sistema. E houve uma proposta, em determinado instante, que era uma ruptura e, ao mesmo tempo, uma ruptura democrática, um processo que era processual, e era ruptura, que foi a proposta das Diretas Já, que, ao mesmo tempo que era uma proposta de ruptura, de ruptura mesmo, de substituição da ditadura de um general por um governo eleito, tinha também o componente democrático, porque seria uma emenda parlamentar, uma emenda à Constituição aprovada pelo Congresso Nacional. Portanto foi uma saída, uma proposta que atravessou essas concepções e essas contradições que a esquerda vivia à época.
Eu digo neste livro, que é enorme, brutal, que considero que a campanha das Diretas Já acabou se transformando numa quase revolução democrática. Eu fico imaginando se não tivessem nos faltado os 221 votos que nos faltaram para a aprovação, Paim, dessa emenda como seria este País. Pela primeira vez na história o povo era o principal personagem. Nos palanques, eu me lembro bem, no Anhangabaú, o principal personagem era sempre o povo nessa campanha. Por mais que ela tenha sido, digamos, turbinada pela propaganda, pelo apoio dos governos estaduais, era o povo o principal personagem. E isso tinha um significado histórico impressionante. Pela primeira vez na história brasileira o povo estaria dando às elites o direito de serem votadas, ao contrário do que sempre aconteceu e continua acontecendo, de as elites concederem ao povo o direito de votar. Eu acredito que teria um caráter de refundação do Brasil. Qualquer que fosse o Presidente eleito, depois de uma eleição conquistada pelo povo em praça pública, teria um caráter transformador muito mais profundo.
Eu quero lembrar como o regime se mobilizou para isso, porque ele combinou a força de comunicação da direita, que era a Rede Globo, a Veja, etc., com a força militar. Brasília foi cercada no dia da eleição. Era preciso garantir aos parlamentares que iam votar contra as diretas ou se ausentar que eles não seriam retaliados. E o General Nini foi para lá com aquela chibata dele, fez aquela presepada toda, mas o importante é que eles usaram todas as forças para impedir isso. Por quê? Era para impedir a eleição direta de Presidente? Não. Tanto é que eles concederam logo depois essa eleição. Era para impedir que o povo fosse o autor dessa página da história, era para impedir o protagonismo popular, que seria transformador, teria uma função de transformação social muito profunda.
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Aí, a essa tragédia se sucederam outras. A eleição de Tancredo só foi possível porque absolveu uma parte, como Capiberibe já disse, absolveu uma parte da direita, chefiada por Sarney, que era um chefe contra as diretas, era um dos principais articuladores, era o líder do partido do Governo na época. Acontece a tragédia da morte do Tancredo, que se elegeu, embora explodindo esse Colégio Eleitoral que não valia mais nada. O Colégio Eleitoral era o sonho de todos os parlamentares picaretas da época. Era como... Antigamente, eles apenas homologavam o resultado que os generais apresentavam. Já imaginaram poderem eles escolher, o Parlamento escolher um presidente da República? Quem eram os candidatos? Maluf, cheio de dinheiro. Ia ser a maior vergonha da história, não fosse aquela manobra, não fosse a campanha das Diretas Já, que impulsionou a campanha de Tancredo - tanto é que virou Tancredo Já -, que estourou o Colégio Eleitoral antes mesmo, e ele só se reuniu formalmente para praticamente homologar a candidatura de Tancredo, que, lamentavelmente, morre e assume Sarney.
Quero deixar claro que não era contra a eleição direta para Presidente que se deu toda aquela mobilização, foi exatamente para impedir que o povo fosse o principal protagonista de um processo que aconteceria caso a emenda do Dante de Oliveira... Nosso saudoso Dante de Oliveira, meu parceiro nesse livro, que teve um ideia que correspondeu a uma tática política, a um momento histórico essencial.
Muito obrigado.
Era isso que eu queria dizer.
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Muitíssimo obrigado, ex-Deputado e Constituinte Domingos Leonelli.
A SRª LÍDICE DA MATA (Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Senador Capi...
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Agradeço a todos que nos proporcionaram este momento histórico aqui, na Comissão de Direitos Humanos.
Consulto os Srs. Senadores e a Srª Senadora se desejam usar a palavra.
Passo a palavra à Senadora Lídice.
A SRª LÍDICE DA MATA (Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Muito rapidamente, Presidente, pelo avançado da hora, quero justamente parabenizá-los - o senhor e o Senador Paim, que têm mantido viva a chama da luta pelos direitos humanos nesta Casa - pela realização deste encontro, destas duas mesas-redondas - ou quadradas -, estas duas mesas que rememoraram no Senado Federal esse momento histórico fundamental da organização da sociedade brasileira, quando, há 51 anos, sofremos o golpe militar. Eu, aliás, tinha 7 anos de idade e meu pai foi um dos que tiveram que fugir e depois foi preso. Vivi, portanto, a minha infância e juventude toda vinculada a essa data.
Mas quero saudar e vincular também a outros momentos que estamos passando aqui agora. Não temos o público que concorreu com os senhores e as senhoras que aqui se colocaram. A Comissão de Assuntos Econômicos concorria com a nossa reunião, realizando a audiência do Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, a figura mais destacada hoje pela imprensa nacional. Então, a concorrência não foi pequena, foi grande. Mesmo assim, creio que permaneceram conosco nos acompanhando internautas, pessoas que, através da Rádio Senado e da TV Senado, estão vivendo este momento histórico e todas as pessoas que aqui estiveram.
Neste momento, na Câmara dos Deputados, nós acabamos de perder a votação na Comissão de Justiça, que admitiu a possibilidade da diminuição da idade penal. Eu fui olhando aqui as mensagens de alguns que se manifestaram, inclusive Parlamentares, saudando este novo momento como um grande momento da vida nacional. Eu creio que entre a discussão de direita e esquerda no Brasil de hoje está justamente a ideia da proteção daqueles que precisam de proteção na sociedade. E costuma-se dizer que quem defende a maioridade penal são aqueles que estão mantendo a violência no País.
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Eu quero dizer que a nossa luta pela manutenção da maioridade penal é justamente um dos pontos de respiradouro da luta contra a violência que se abate sobre a sociedade brasileira neste momento preciso, em que a juventude - que a UNE antes representou e que, naquele momento, significava o jovem de classe média que estudava e que fazia universidade -, no Brasil, hoje, tem uma outra formatação. Nós temos jovens de classe média que estão representados pela UNE e por outras entidades estudantis do Brasil, mas nós temos uma enorme juventude fora da escola, fora do trabalho, colocada totalmente à mercê, vulnerabilizada, nos bairros populares deste País e que perfaz o quadro dramático da violência no Brasil, que tem, na maior parte da população vítima dessa violência, jovens entre 17 e 25 anos. Os jovens são vítimas e também são os agentes da violência. É essa contradição da realidade social que os coloca nesse patamar.
E acreditamos que, apesar de todas as críticas, das desilusões que possamos ter acumulado nesses anos e de todos os desafios que temos pela frente, rememorar a história do nosso País é não deixar que essa juventude possa ser confundida, não deixar que essa juventude possa imaginar que uma ditadura pode ser o melhor caminho para a organização da sociedade.
Eu acredito que, com todas as dificuldades que estamos enfrentando, inclusive as dificuldades de manter a democracia, ela ainda é necessária. E é importante que seja mantida. Acho que esse debate, esse esforço de realizarmos este seminário aqui hoje é a confirmação desse compromisso de luta de todos nós pela democracia no Brasil.
Muito obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Senador Paulo Paim, Presidente da Comissão, reconhecido como um defensor intransigente dos direitos humanos.
O SR. PAULO PAIM (Bloco Apoio Governo/PT - RS) - Senador Capiberibe, companheiros, Freire, Cunha, Leonelli, Janete - que não está -, Lima, eu confesso, em primeiro lugar, que eu tinha uma reunião com V. Exª ontem à noite e eu não fui porque eu estou com um problema seriíssimo na coluna. É uma dor infernal; ela sai da coluna e estoura na perna. Mas fiquei aqui todo o tempo porque achei importante este momento e o debate que aqui V. Exª trouxe à Casa e ao Brasil.
Eu vou aceitar a sugestão do Randolfe, no sentido de mandar produzir esta audiência pública e ver se remetemos em nível nacional, para que nossa juventude tenha conhecimento. Alguns, com certeza totalmente equivocados, foram às ruas pedindo até mesmo a volta da ditadura. Que esta audiência pública seja um instrumento de debate nas escolas, nas universidades. E vamos também remetê-la aos Senadores que não puderam acompanhá-la.
Eu confesso que estou também muito preocupado com o momento por que o Brasil passa em toda sua amplitude. Já falam até - e não sabemos o desdobramento - da criminalização dos partidos políticos diante da conjuntura que se apresenta. E nós sabemos no que isso poderá resultar.
Eu sou daqueles que acha - escrevi um artigo recentemente inspirado em Ruy Barbosa - que fora da lei não há salvação. Inspirado em um revolucionário gaúcho - coloquei no mesmo artigo -, eu digo que eu quero leis que governem homens e não homens que governem as leis. Porque seria, com isso, estar invertendo por cima da lei a perspectiva de impeachment ou golpe.O impeachment seria um golpe institucional, o golpe que eu espero que não chegue nunca a acontecer.
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Esta audiência e todos que aqui falaram, os familiares, mostraram o quanto o Brasil teve de atraso. Somente quem passou sabe - e eu passei à época, por isso que eu brincava com sua esposa... Eu tenho 65 anos. Eu tinha 14 quando houve o golpe e eu já era Presidente do Ginásio Noturno para Trabalhadores de Caxias do Sul. Fui destituído; fui chamado ao Exército e fui destituído da Presidência. Um gurizão, com 14 anos, cheio de fôlego pela vida e para administrar aquele ginásio. Fui para um outro ginásio noturno; dali a um mês, assumi a Presidência. E fui destituído também; pela segunda vez, destituído. Em seguida, caminhamos para a questão das centrais. Eu tinha uma missão, que recebi das centrais, de ir para Europa mostrar o que estava acontecendo no Brasil. No aeroporto de São Paulo, tive que ficar praticamente despido e meu dossiê que eu levava ali ficou. Assim mesmo, eu fui; mas superconstrangido.
Enfim, quantos amigos perderam suas vidas! Não fui torturado, mas quantos foram torturados - e sei aqui o sofrimento das mães, enfim, dos parentes e amigos pelo que aconteceu. Por isso eu repito muito uma frase que é uma marca da democracia, daqueles que amam a liberdade e a justiça: “Ditadura nunca mais; liberdade, liberdade abre as asas sobre nós.”
Vi aqui o depoimento da sua esposa: inegavelmente alguém que viveu aqueles momentos, como também os familiares. E esta audiência pública tem esse componente. O quadro que se apresenta é um quadro delicado. Eu tenho tido a ousadia de colocar algumas posições a público, mas sempre na linha de fortalecer a democracia em primeiro lugar e evitar que haja qualquer tipo de retrocesso. Só nós - nós, eu digo, e não eu; e V. Exª é testemunha da história -, que vivemos aqueles momentos, sabemos o que é viver sob o tacão da ditadura.
Meus cumprimentos, João Capiberibe; meus cumprimentos a todos os painelistas. Vou fazer a minha parte reproduzindo esta audiência, tentando fazer com que ela chegue a todos os recantos do Brasil.
“Ditadura nunca mais; liberdade, liberdade abre as asas sobre nós." (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - AP) - Obrigado, Senador Paim.
Muito bem, eu queria só reafirmar algo que eu acredito: não existe presente nem futuro sem que nos entendamos com o nosso passado. Eu fico imaginando...
Ontem não sei se alguém ouviu a notícia - eu estava assistindo a uma passagem na televisão - de que, na Hidrelétrica de Três Marias, das seis turbinas, uma funciona. Eu fico imaginando, quando foi inaugurada lá no início dos anos 60, o tamanho da festa. Fiquei imaginando aquele acontecimento fantástico no início dos anos 60, aquela obra de engenharia. São centenas de metros; é uma coisa fantástica. Tem 2 ou 3 quilômetros de extensão a barragem. Jamais aqueles que a inauguraram e que a construíram imaginaram que um dia aquela hidrelétrica não funcionaria por falta de água no Rio São Francisco.
Olhe, se isso fosse levado em consideração hoje, se nós tivéssemos esse compromisso com o passado, nós não estaríamos construindo Belo Monte. Imaginem, daqui a 60 anos, nesta mesma Comissão de Direitos Humanos, quem sabe algum Senador vai falar que a Hidrelétrica de Belo Monte está parada por falta de água?
Então é fundamental nos entendermos com o nosso passado para que possamos fazer a democracia avançar em nosso País. Eu estou convencido de que nós seremos capazes de dar passos importantes adiante. Na medida em que formos compreendendo, cada vez mais, quem nós somos, qual o resultado do presente, eu tenho certeza que nós vamos avançar, Senador Paim.
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Eu me preocupo; eu acho que qualquer retrocesso com relação à democracia... Ontem mesmo eu estava conversando com algumas pessoas e disse: nós temos que agradecer a democracia, todos os avanços. Cada Presidente que passou pelo País deu sua contribuição, mas a democracia é o grande guarda-chuva que protegeu os avanços até agora. E minha esperança e expectativa são: que a gente continue avançando.
Eu queria agradecer a todos os nossos convidados que se deslocaram de vários Estados para participar deste encontro.
Agradeço o Presidente Paim pela abertura que nos dá aqui na Comissão. De fato, aqui nós estamos concentrando as ideias de defesa dos direitos humanos, de defesa do patrimônio ambiental brasileiro. Aqui mesmo, nesta Comissão, nós aprovamos, na semana passada, um relatório que permite, digamos, contemplar todos aqueles que intervêm na biodiversidade brasileira: as populações indígenas, quilombolas, populações tradicionais, enfim...
Nós vamos votar, daqui a pouco, lá no plenário do Senado, o novo marco da biodiversidade. Espero que a gente possa aprovar e fazer o mínimo de justiça. Não é tudo, Senadora Lídice, mas é o que se conseguiu. Eu acho que é bem mais do que nós recebemos. Se nós aprovarmos esse projeto hoje no plenário do Senado, nós vamos dar uma contribuição, promover um avanço para que se desenvolva a indústria da biodiversidade e, sobretudo, para que se reconheça o direito de todos aqueles que constroem este País.
Nada mais havendo a tratar, dou por encerrada esta reunião. (Palmas).
(Iniciada às 9 horas e 21 minutos, a reunião foi encerrada às 13 horas e 32 minutos.)