06/06/2018 - 53ª - Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, Comissão de Assuntos Sociais

Horário

Texto com revisão

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A SRª PRESIDENTE (Marta Suplicy. Bloco Maioria/MDB - SP) - Declaro aberta a 53ª Reunião, Extraordinária, da Comissão Permanente de Direitos Humanos e Legislação Participativa conjunta com 20ª Reunião da Comissão Permanente de Assuntos Sociais do Senado Federal da 4ª Sessão Legislativa Ordinária da 55ª Legislatura.
A audiência pública será realizada nos termos dos Requerimentos 52 e 98, de autoria da Senadora Regina Sousa, e do Requerimento nº 84, de autoria da Senadora Marta Suplicy e do Senador Hélio José, todos de 2018, da CDH, e ainda do Requerimento nº 9, de autoria da Senadora Regina Sousa, e do Requerimento nº 12, de autoria da Senadora Marta Suplicy, ambos de 2018, da Comissão de Assuntos Sociais, para debater o tema "A cidadania da população LGBT, com foco na terceira idade e no envelhecimento: 'o tempo de nossas vidas'".
Esta audiência pública será realizada em caráter interativo, com a possibilidade de participação popular. Por isso, as pessoas que tenham interesse em participar com comentários ou com perguntas podem fazê-lo por meio do portal e-Cidadania, no link www.senado.leg.br/ecidadania, e também do Alô Senado, através do número 0800-612211.
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Cumprimento a Mesa e, muito especialmente, a parceira com a Senadora Regina, Presidente da Comissão de Direitos Humanos.
Muito bem-vindo, Bayard Tonelli, que tem um trabalho fabuloso. É ator, poeta, tradutor, diretor de arte, coreógrafo, mas o que eu lembro bem é que você é um dos fundadores do antológico Dzi Croquettes, que fez a alegria e foi muito, muito, muito famoso. Foi nos anos 70, 80? Em que ano foi?
O SR. BAYARD TONELLI - Em 1972 e 1981. Voltamos em 1988 e, depois, em 2012 e 2016. Em 2016, eu dei uma parada para fazer outros trabalhos.
A SRª PRESIDENTE (Marta Suplicy. Bloco Maioria/MDB - SP) - O Tonelli participou de 25 longas-metragens e de inúmeros curtas no cinema nacional, desempenhando as mais diferentes funções. Daqui a pouco, nós vamos ouvi-lo.
Também quero dar as boas-vindas a João Nery, psicólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor universitário, psicoterapeuta e consultor em gênero e sexualidade, especializado em sexologia pelo Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia.
Nós mudamos um pouco aqui a ideia, pois vamos falar de envelhecimento. Eu acho que a oportunidade que nós temos hoje aqui, Bayard, principalmente em relação à história pessoal do João Nery, é muito única. Nós temos a oportunidade de ouvir o relato de uma pessoa que viveu a história, um transexual. Agradeço se você tiver - não sei se eu diria a gentileza, ou a coragem, ou a vontade - a generosidade, eu diria, de nos contar o que foi esse percurso, porque o que falamos aqui no Senado fica no arquivo do Senado. E eu imagino que, daqui a 10, 15, 20 anos, quando os estudiosos forem procurar esse arquivo, forem entender o que aconteceu, nessas décadas, no País, em relação às pessoas LGBTI, nós vamos ter uma história bastante longa, e essa história eu tenho certeza de que vai ser muito importante quando constar com seu depoimento.
Então, com a palavra Paulo Albernaz Mello Bastos (João Nery), por 20 minutos. Ali está o controle do seu tempo. Por favor, colocar 20 minutos.
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS - O microfone está ligado?
A SRª PRESIDENTE (Marta Suplicy. Bloco Maioria/MDB - SP) - Está ligado. Pode começar.
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS - Boa noite a todas, a todos e a "todxs", porque nós temos os não binários também, que são invisíveis na nossa sociedade binarista, que só acha que existem homens e mulheres, quando, na realidade, nós temos uma gama enorme de gêneros, independentemente, inclusive, dos intersexuais, se formos abordar a questão biológica também.
Eu nasci no Rio de Janeiro, numa família de classe média. Tive a oportunidade de estudar. Nasci com corpo feminino, e, naquela época - nasci em 1950, portanto, estou com 68 anos -, nem a palavra trans existia. Eu nunca me senti uma mulher. Desde que eu me entendo por gente, eu me considero do gênero masculino. Aos nove anos, minha mãe me leva a uma psicóloga, mas ela, claro, não me diagnosticou como trans, porque também desconhecia esse termo.
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E eu não queria crescer, queria ser uma eterna criança, porque eu sabia a barra que eu iria começar a enfrentar. Eram outras épocas, eram outros tempos; não é como hoje, que uma criança pode dizer para o pai que se sente um menino, como é o caso do filho do Brad Pitt. E eu sempre fui uma criança que manifestava: eu queria usar short, sem camisa, mas tinha que usar vestido, tinha que botar saia para ir para a escola; tinha que usar tudo. Porque, quando você nasce, a sociedade já está preparada para recebê-lo com tudo pré-moldado.
Então, como eu vim ao mundo como uma menina, eu tive um nome feminino, eu tinha que botar vestido, eu tinha que me comportar como uma menina, viver em um mundo social privado, como toda mulher, enfim, me submeter a uma série de coisas, e nada disso fazia parte do meu universo. Eu não podia subir em árvore, eu não podia andar de carreta, eu não podia jogar bola de gude, eu não podia ser um moleque de rua, como eu gostava.
E aí, eu sofria transfobia na pracinha em que eu brincava, me chamavam de Maria Homem, depois, na escola, me chamavam de Paraíba. Eu não sabia nem que palavra era essa...
A SRª PRESIDENTE (Marta Suplicy. Bloco Maioria/MDB - SP) - O que passava na cabeça da menina nessa condição?
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS - Todas as vezes em que me tratavam de "ela", eu corrigia para "ele" mentalmente. Eu lembro que isso era uma obsessão na minha infância. Imagine, cada vez que me chamavam de "ela", eu corrigia para "ele" mentalmente.
A SRª PRESIDENTE (Marta Suplicy. Bloco Maioria/MDB - SP) - Você sabe, João, que, quando você falou da filha da Angelina Jolie, uma das coisas que mais chamaram atenção é que falavam: "She", e ela dizia: "He, John."
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS - Hoje eu acho que já se manifesta verbalmente isso. Mas, naquela época, era impossível.
E eu conto tudo aqui nesse meu livro, Viagem Solitária. Aqui sou eu com 14 anos de idade e aqui eu com 27, quando eu faço a cirurgia. Eu sou o primeiro transexual masculino a fazer a cirurgia no Brasil, em 1977, durante a ditadura militar. E era proibida, era considerada mutilação do humano. Meu médico foi condenado a dois anos. Não por minha causa, mas por ter operado em 1971 uma mulher trans. Ele já morreu, o Roberto Farina, em São Paulo.
Bem, eu consegui estudar, me formei em Psicologia e sempre me preocupei com a questão da sexologia. Naquela época, se falava sexólogo, hoje já se fala em gênero e sexualidade. E sempre estudei as sociedades primitivas por minha conta, as sexualidades em Samoa, os antropólogos culturalistas, enfim. E fui abrindo a minha cabeça e descobrindo que a sexualidade era uma invenção social. Quer dizer, no sentido é um construto, porque cada cultura tem uma forma de se comportar, que varia do tempo, que varia, enfim.
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Judith Butler hoje, desde a década de 90, já esclarece muito bem essa questão do gênero. O que você carrega entre as pernas não tem nada a ver com a sua identidade de gênero, que é uma coisa muito importante de ser diferenciada e que a sociedade confunde muito, entre o que é identidade de gênero e orientação sexual. A identidade de gênero é como você se identifica, no caso como homem, como mulher, ou como as duas coisas, ou como nenhuma das duas coisas, ou como outra qualquer; e a orientação sexual fala da afetividade, fala do desejo, então, independe da sua identidade sexual. Eu poderia ser um trans gay se eu gostasse de homem, no caso, fosse ele cisgênero ou transgênero.
Cisgênero quer dizer... Cis é um prefixo latino, quer dizer do mesmo lado. Uma pessoa cisgênera é a dita, entre aspas, "normal" na nossa cultura, porque é a que tem a coerência entre o seu gênero e o seu genital. Então, este é um homem ou uma mulher cisgênera. Eu, não, eu não tenho essa coerência, portanto, eu sou um transgênero.
Mas acontece que, no nosso País, nós não temos políticas públicas para transgêneros e não temos políticas públicas para não binários. Então, nós somos obrigados a ter um rótulo para ter essas políticas. Por isso, eu me defino como um homem trans ou como um trans homem, que, aliás, é uma palavra que eu prefiro porque eu não sou homem, eu sou trans. Eu faço questão de não ser um homem cis, pertencente a essa sociedade machista, que eu acho que é a nossa grande patologia social. Eu acho que no cis tinha que estar o machismo, e não a transexualidade. Enfim, há uma sociedade sexista, heteronormativa compulsoriamente. Então, eu tenho o maior orgulho de ser trans, apesar de toda a dificuldade que eu passei.
Eu, depois de formado, dei aula em três universidades no Rio de Janeiro. Eu comecei ainda com uma identidade feminina e comecei também um curso de mestrado. Nessas alturas, eu estou com 24 anos. E, na década de 70, começam, então, os movimentos contraculturais e a moda unissex surge, para a minha salvação. Eu corto o meu cabelo, eu passo a usar jeans, que não existia, e me torno uma figura unissex.
E aí, eu começo a viver, aí eu tenho essa cara que eu estou aqui, esse gato aqui. Eu não tenho barba não, nem me hormonizo. Mas, olha que loucura, eu dou aula na faculdade com essa cara. E era a maior confusão, porque quem não me conhecia me tratava no masculino; e quem me conhecia me tratava no feminino, a família e os amigos. Então, eu vivia duas vidas, duas identidades sociais. Não é um caso de esquizofrenia, apenas identidades sociais completamente distintas.
E aí, o que aconteceu? Eu me submeto, eu descubro uma equipe no Moncorvo Filho, pioneira, que começa a estudar o transexualismo. Até hoje era uma doença, agora, com a decisão do Supremo, deixou de ser. Mas ainda consta no CID como uma doença. E eu faço a histerectomia, que é a retirada dos órgãos reprodutores internos. Faço a conhecida mastectomia, que é um termo que a Medicina usa, mas é errado. Porque, na verdade, mastectomia é a retirada das mamas, por exemplo, de uma mulher com câncer, que nem o mamilo se recoloca. E, no caso dos homens trans, não é. No caso dos homens trans, é uma mamoplastia, em que você transforma uma mama feminina em uma mama masculina. Então, não é uma questão estética, é restauradora.
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E fiz uma neo-uretra também, para poder urinar em pé, para uma futura neofaloplastia, ou seja, a feitura de um pênis. Acontece que essa cirurgia, a neofaloplastia, é considerada no Brasil - só no Brasil e só para homens trans - experimental. Portanto, ela só pode ser feita em hospitais universitários.
Agora, qualquer homem aqui que perdeu o seu pênis, o que não é raro, por câncer, por falta de higiene, por gangrena devido a diabetes... Há muitos homens que perdem o pênis nem por isso deixam de ser homens, o que comprova a minha tese - a minha não, a nossa tese - de que o gênero independe dos órgãos genitais. Ninguém deixa de ser homem porque perdeu um pênis. Pode ficar com a autoestima abalada, mas ele pode reconstituir o pênis dele com qualquer urologista em qualquer hospital que ele escolher. E nós, não.
Então, isso também é um preconceito da Medicina. Para a Medicina, eu sou um transexual feminino. Quem me define é minha genitália até hoje, e não masculino. Para vocês verem como é. A cadeira de gênero e sexualidade só existe em cinco universidades no Brasil como obrigatórias. Então, formam-se médicos, psicólogos, assistentes sociais sem a menor noção do que seja a diferença entre gênero e sexualidade. Isso é uma coisa muito séria. E a Medicina talvez seja uma das áreas mais transfóbicas e mais ignorantes nessa questão.
Como lidar com um corpo trans? Bom, aí depois que eu me formo, que eu descubro essa equipe, que eu faço as cirurgias, surge o segundo problema: como trabalhar sendo uma figura masculina e com documentos femininos? Eu não podia entrar na Justiça, como até pouco tempo se podia, para mudar meu prenome e gênero. Nenhum juiz me daria essa mudança naquela época. Até hoje são transfóbicos, imagine naquela época!
E aí por acaso recebi uma transexual com o marido e o filho na minha casa, que me deram força, e eu resolvi ir a um cartório e cometer o meu segundo crime. O primeiro foi ter me operado em uma época em que a cirurgia era proibida. Não existia SUS, não existia processo transexualizador. Isso foi surgir 20 anos depois.
E aí, eu fui ao cartório e tirei uma nova certidão masculina. Disse que nunca tinha sido registrado, que eu precisava servir o Exército. Eu estava com 27 anos, tive de dizer que tinha 18, e consegui uma nova identidade. E, com isso, eu fico com dois CPFs, um de mulher, outro de homem. E por isso fiquei 30 anos dentro do armário para não ser preso.
E perdi, como homem, todo o meu currículo escolar. Eu me torno um analfabeto, eu deixo de ser psicólogo, eu deixo de ser professora universitária, no caso, perco meu mestrado. E passo a ser pedreiro, passo a ser pintor de parede, passo a ser tradutor de pocketbook, passo a ser massagista de shiatsu, chofer de táxi. Eu tive várias profissões que não exigiam currículo, para sobreviver. Nunca o Estado me ressarciu dessa perda. Eu estou desempregado, eu não tenho aposentadoria, eu vivo com ajuda. Meu pai fez cem anos agora, ainda está lúcido, embora a memória recente dele seja comprometida, e ele me dá uma ajuda. Paga meu plano de saúde.
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E sou "casado", entre aspas, pela quarta vez, com uma museóloga, funcionária pública, que é aposentada agora, há 22 anos. No meu terceiro casamento, eu sempre fui um homem apaixonado pelas minhas relações. Nunca conseguir ser um trans galinha. Eu sempre me envolvi, sempre me apaixonei, coisas muito difíceis no mundo masculino. Eu continuo mantendo tudo o que eu aprendi do mundo feminino que eu considero positivo, como a emotividade, a afetividade, poder chorar, poder perder, poder ser fraco, não carregar no ombro esse peso que o mundo masculino carrega. Eu mantenho na minha personalidade, eu sou um trans homem feminino.
E eu, como já disse, sou um trans feminista, inclusive. Sou inteiramente a favor de que a mulher seja dona do corpo dela. Eu sou contra a proibição do aborto. Eu sou contra, enfim, tudo o que possa reprimir, porque são os homens quem ditam as regras e quem dita o que pode e o que não pode na nossa cultura, na nossa ciência e na nossa literatura. E eu acho que está na hora de as mulheres falarem cada vez mais alto e estão falando, não é?
Eu sei o que é um assédio sexual. Felizmente, nunca fui estuprado, mas é comum que um homem trans seja estuprado. Mas não é o estupro que uma mulher sofre, é chamado estupro corretivo, que também as lésbicas sofrem, para mostrar, para ensinar o que é ser mulher. E esse estupro, como também o das mulheres, normalmente é praticado pela própria família.
Eu viajei muito. Eu, depois desse livro, me tornei um ativista dos direitos humanos e dou palestras em congressos, em seminários. Enfim, dei muitas entrevistas na televisão logo quando saiu meu livro, no Jô Soares, na Gabriela. E, com isso, eu criei um exército de filhotes. Eu tenho um perfil no Facebook só para atender os homens trans. Eu fiz 26 grupos fechados, em que, dentro desses grupos, eu coloco profissionais capazes de atender os homens trans. Agora se não precisa mais de advogados, mas o que eu consegui: ginecologistas, psicólogos, cirurgiões, etc.
Aliás, a saúde é um problema seriíssimo para os transexuais. Um homem trans, por exemplo, precisa de ginecologista. E, no SUS, a ginecologia como a obstetrícia são uma especialidade exclusivamente feminina. Então, nem o nome social pode ser usado dentro do SUS. Se um homem trans for ao SUS, para fazer um tratamento ginecológico, ele não pode dar o nome social masculino dele, porque o sistema vai ler como fraude. Um homem não pode ter assistência de ginecologista. Assim como, se um homem trans engravidar, o que é muito comum, não para virar mãe, para virar pai, a identidade dele não muda, ele também não terá direito ao SUS, porque será lido como fraude. E, se ele tiver já mudado o nome dele, aí ele não é nem atendido; se ele tiver já mudado o nome legalmente.
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O Supremo Tribunal Federal agora, no dia 1º de março de 2018, finalmente nos deu a cidadania, porque uma pessoa que não tem direito ao próprio nome não existe como cidadão. Apesar de pagarmos impostos, nós não temos direito à moradia, nós não temos direito a atendimento médico, nós não temos direito a abrigos. Somos expulsos de casa ainda menores de idade, a maioria. As tentativas de suicídio são muito altas. Não temos direito a trabalho, ninguém dá trabalho a trans. Agora, algumas empresas multinacionais estão abrindo para a diversidade, não só de gênero, mas de uma maneira geral, e eu soube agora que a Gol contratou a primeira transexual. O Carrefour também tem já 30 trans trabalhando.
Então, para vocês terem uma ideia, a média de vida de uma travesti é de 35 anos de idade. Ou ela morre de Aids, ou ela morre por drogas, ou ela morre assassinada, que é o mais comum, ou suicídio. Então, falar sobre a velhice trans é muito difícil.
Eu estou escrevendo o meu quarto livro. O primeiro foi O Erro de Pessoa, que eu escrevi aos 27 anos, enquanto me recuperava da cirurgia, e 30 anos depois eu escrevo Viagem Solitária. Este livro aqui inspirou a novela agora, recente, da Gloria Perez, A Força do Querer, para quem eu dei consultoria, inclusive.
(Soa a campainha.)
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS - E ela fala sobre a transexualidade masculina pela primeira vez na televisão.
Quarenta e nove por cento da população brasileira não sabe o que é a palavra trans, desconhece a transexualidade, mistura transexualidade com homossexualidade, que não tem nada a ver. Então, é preciso, apesar de essa decisão do Supremo ter passado por cima do Legislativo, como fez também com o casamento civil igualitário - porque parece que a Câmara cada vez anda mais para trás, infelizmente -, nós temos que agradecer, evidentemente, essa decisão do Supremo, embora ela tenha sido dada no momento em que o Supremo sofre bastantes críticas, inclusive internacionais - nós todos sabemos disso. Mas finalmente houve uma atitude muito lisonjeira, muito necessária, e hoje podemos ir a um cartório e mudarmos o nosso prenome e o nosso gênero, sem precisar de cirurgias ou laudos psiquiátricos. Portanto, despatologiza a transexualidade. Mas isso não é suficiente. É preciso de leis que nos protejam.
Então, só para concluir, eu gostaria de que a mídia... Eu gostaria de que houvesse um movimento popular, de que tivesse cursos de formação, enfim, de que houvesse uma conscientização da sociedade para podermos ser respeitados e conhecidos. Enfim, cada um tem o direito de ser o que quiser.
Muito obrigado. (Palmas.)
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A SRª PRESIDENTE (Marta Suplicy. Bloco Maioria/MDB - SP) - Nós que agradecemos, João. É uma coisa tão forte o que você conta que as pessoas estão tão longe de imaginar o que é essa trajetória. E ainda há os percalços que nós temos.
Foi bem colocado, o Supremo agora deu alguns direitos, até direitos plenos. Nós temos o projeto do Jean Wyllys e da também Deputada Erika Kokay. Aqui tem, desde 2011, o meu projeto sobre trans também.
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS - E a lei João W. Nery.
A SRª PRESIDENTE (Marta Suplicy. Bloco Maioria/MDB - SP) - É.
E nós temos muita dificuldade em fazer isso, de prosseguir.
Agora, sua fala também levantou algumas questões importantes de leis que precisam ser ajustadas em relação aos serviços públicos prestados, porque, por exemplo, não ouvi falar ainda desse assunto, de como que um trans masculino vai fazer uma consulta no SUS e ocorrer toda essa confusão, e ainda ocorre.
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS (Fora do microfone.) - Ainda ocorre.
A SRª PRESIDENTE (Marta Suplicy. Bloco Maioria/MDB - SP) - Quer dizer, isso tem que ser visto, isso tem que ser levado...
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS (Fora do microfone.) - É só mudar o sistema do SUS.
A SRª PRESIDENTE (Marta Suplicy. Bloco Maioria/MDB - SP) - É, tem que ser levado ao Ministério da Saúde, para que possa... Acho que não é nem questão de lei; é uma questão de conversa.
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS (Fora do microfone.) - Quando eu falo em lei, é porque nós temos...
A SRª PRESIDENTE (Marta Suplicy. Bloco Maioria/MDB - SP) - Sim.
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS - ... por exemplo, a Lei Maria da Penha, que protege basicamente as mulheres. Muitos trans que não querem mudar de nome, porque como é que fica no presídio? Para que ala nós vamos? Para que delegacia vamos? (Fora do microfone.)
Se formos presos, vamos para o presídio masculino. Aí é uma desgraça, porque somos estuprados. Nem todos os presídios tem alas LGBT.
A SRª PRESIDENTE (Marta Suplicy. Bloco Maioria/MDB - SP) - E também essa questão dos diplomas. Também isso hoje já deve ter mudado.
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS - Não, basta você mudar a sua certidão, você mudará todos os documentos.
A SRª PRESIDENTE (Marta Suplicy. Bloco Maioria/MDB - SP) - E aí a certidão você já tem. É um problema mais do SUS.
Eu infelizmente vou ter que me retirar, porque tenho uma Comissão de Assuntos Sociais para presidir. Vou chamar a Presidente desta Comissão, que é a Senadora Regina Sousa, e ela agora continua os trabalhos aqui com o Bayard e, ao mesmo tempo, abre as questões para as pessoas sobre isso. Foi simplesmente uma abertura da nossa conferência.
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS - Eu queria só fazer um complemento à questão do Supremo. (Fora do microfone.)
A Lei João W. Nery, a Lei de Identidade de Gênero, tem um artigo, que é o art. 5º, que o Supremo não levou em conta. Ele fala é muito importante, fala sobre os menores, a proteção dos menores trans, porque os responsáveis, muitas vezes, pelas crianças e adolescentes abusam delas e não respeitam a identidade delas. Então, elas teriam, segundo o PL 5.002/13, direito a recorrer ao Ministério Público. E agora, com o Supremo, não tem proteção mais para os menores. Eles têm que ficar nas mãos dos responsáveis e serem estuprados, apanhados e não serem respeitados.
A SRª PRESIDENTE (Marta Suplicy. Bloco Maioria/MDB - SP) - Está registrado.
Passo a palavra agora, e a Presidência, à Senadora Regina Sousa.
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Bom dia a todas e a todos.
Vamos continuar.
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Serão 20 minutos para o Bayard. Ele já foi apresentado, mas ele é um dos fundadores do grupo artístico, como é que se chama?
O SR. BAYARD TONELLI - Dzi Croquettes.
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Então, 20 minutos para o Bayard. Com um minuto avisa, mas também temos tolerância, assim, para concluir, prorrogamos um pouquinho.
O SR. BAYARD TONELLI - Bom dia a todos.
Sou gaúcho, nasci em 1947. A sexualidade entrou na minha vida bem cedo, como brincadeiras de criança. Dentro da alegria do prazer das brincadeiras infantis, o sexo surgiu como uma brincadeira usual. Aos quatro anos, eu tive um pequeno problema que não me afetou muito, porque um vizinho tentou me estrangular. Provavelmente, ele era adolescente, ficou excitado comigo. Eu devo tê-lo apalpado, porque um pau duro para mim era uma brincadeira normal, e ele tentou me estrangular. Não me afetou muito, mas, aos quatro anos, eu tive também um momento que me marcou muito, quando eu conheci Getúlio Vargas. Na campanha de 1951, eu fui a um almoço, e Getúlio, no final do almoço, passou para conversar com as senhoras das autoridades presentes e passou a mão na minha cabeça. Isso marcou muito a minha família.
Em 1954, eu descobri a violência sexual, que podia ser estuprado, que tinha lugares que eu tinha que evitar, pessoas que eu tinha que evitar, porque podiam querer me pegar e podiam querer me comer à força. Então, eu aprendi muito cedo, e isso sem interferência, sem conhecimento da minha família. Sou filho de militar, jogador de futebol, técnico, comentarista. Tive um pai maravilhoso, que nunca me reprimiu. Fui criado em quartel e campo de futebol, mas não admitia jogar futebol, porque para mim, ao jogar futebol poderiam encostar em mim, e eu não admitia que nenhum homem encostasse em mim, porque eu sempre achava que qualquer tentativa de encostar em mim era uma tentativa de querer abusar de mim. Então, eu não podia jogar futebol, porque, se eu estava com a bola no pé e alguém me tirasse a bola, eu saia chutando e querendo matar a pessoa. E, como tinham me ensinado aos quatro anos que estrangular era uma possibilidade, eu, pequenininho, aprendi que pular no pescoço das pessoas e tentar matar era autodefesa.
Também, aos sete anos, uma coisa que me marcou muito foi a carta-testamento do Getúlio, porque foi o primeiro documento importante que eu comecei a ler, e eu quis entender o porquê, o que era esse suicídio, esse abandono da vida, essa possibilidade de deixar de existir.
Dentro do mundo oriental, não é tão condenado, como para nós, o suicídio; é uma opção de vida. (Pausa.)
O SR. BAYARD TONELLI - E eu sou muito curioso. Se alguém fala, eu quero ouvir o que a pessoa está falando. Aí eu fico...
Então, é isso. Aos sete anos, eu descobri isso e comecei a me defender, evitar. Sabia, modéstia à parte, que eu era considerado bonitinho. Então, nas brincadeiras de rua, eu tinha um limite até aonde eu podia ir. Eu não podia entrar no matinho que tinha para brincar de soldado e bandido, porque alguém podia querer me agarrar.
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Então, eu sempre vivi alerta e, desde cedo, apaixonei-me por putas e freiras e sempre odiei padres. As freiras me fascinavam pela opção desse amor divino ao Cristo, e as putas pela sua dedicação. E eu venho de uma geração que conheceu as putas que chegaram depois da guerra no Brasil, refugiadas, pessoas com cultura, pessoas sábias, e essas pessoas realmente me fascinavam. Então, eu sempre aprendi muito com esse tipo de gente. Os padres eu detestava, porque, desde criança, eu já sabia que eles gostavam de pegar os garotinhos. Então, nunca admiti estudar em colégio de padre. E, como já falei, eu tive um pai maravilhoso, que, desde criança, sempre me ouviu e me respeitou. Então, o que eu falava o meu pai acatava, desde criança. E eu fui descobrir isso só adulto, porque não percebemos esses privilégios. Mas, então, vivi, desde criança, alerta e atento aos perigos externos.
Aos 12 anos, eu tive uma explosão hormonal. Os meus hormônios explodiram. Então, fui uma criança que começou uma vida sexual com dois anos e meio, três, e aos 12, quando pintou a sexualidade, meus hormônios explodiram, e eu virei um vulcão ambulante. Comecei a ter problemas de pele e comecei a me identificar com as minhas tias, que estavam na menopausa e que tinham aqueles calores infernais. Eu e me identificava com aquelas senhoras aos 12 anos: por que eu tinha aqueles calores? Por que eu explodia? Por que o meu sangue fervia? Então, isso me marcou muito.
Mas, sempre na defensiva, a partir dos sete anos, comecei a ler muito. Então, a literatura me deu possibilidades de saída, o imaginário e o mundo fantástico da imaginação.
Tive o prazer de participar, em 1961, da legalidade com o Brizola, que me marcou muito, que eu achei que seríamos revolucionários e que poderíamos mudar o Brasil.
Aos 17, eu tive a desilusão da revolução do golpe militar, e isso me marcou muito, porque houve um afastamento. O meu pai era militar da linha getulista e PTB. Na minha casa se parou de falar de política, mas, ao mesmo tempo, o meu pai nunca proibiu o que eu fizesse ou a minha irmã. Nós tínhamos liberdade. Só o respeitávamos, porque ele trabalhava muito, era um pai provedor; trabalhava a semana inteira em dois, três empregos, e isso nos dava o respeito para não levar a parte política, a parte social do centro acadêmico.
Comecei a trabalhar muito novo na linha de show, e, por ser filho desse homem, desde cedo eu fui muito... O meu pai sempre foi considerado um homem de caráter, e, por isso, eu acho que, desde criança, eu recebi alguma parte disso e, desde novo, eu comecei a trabalhar na parte social dos centros acadêmicos e na parte financeira. Naquela época, por ser filho de militar, eu levantava o dinheiro dos eventos para a esquerda e não sabia direito onde era empregado o dinheiro; me poupavam, porque o meu pai trabalhava no quartel general. Então, eu, como filho de militar, podia circular e aprendi, desde pequeno, a dar ordem-unida, sem precisar gritar e dar esporro, e a polícia me respeitar. Então, desde pequeno, eu me senti um privilegiado por esse lado, porque eu sempre soube dar uma ordem-unida, sem nunca ter ido ao Exército, e comandar um esquadrão. Isso me deu certo privilégio na articulação da minha vida social.
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Mesmo assim, em respeito à minha família, não conseguindo me aceitar, querendo amar... Só que, um dia, em 1961, aos 14 anos, a televisão chegou a Porto Alegre, e eu vi Lennie Dale, que é o coreógrafo dos Dzi Croquettes dançando, e assumi para mim que eu estava desejando um homem e que eu queria conhecer aquele cara que dançava daquela maneira, porque eu queria dançar. Isso me marcou muito. Aos 14 anos, eu olhei a televisão e disse: "Eu quero conhecer esse homem e estou excitado por esse homem".
Essa é a minha vida. Aos 17, com o golpe militar, a estrutura social ficou meio esgarçada, e eu comecei a desbundar, a viajar, a conhecer o Brasil. Nessas viagens, fui para a Bahia, tentei viver na Bahia. A Bahia é maravilhosa. A melhor coisa na Bahia é não fazer nada, porque vem tudo na sua mão. Quando eu tentei trabalhar na Bahia, foi um horror. Então, na Bahia, eu vivia muito melhor sem fazer nada, curtindo.
Eu tinha de tomar uma atitude. Eu estudava arquitetura, queria deixar de estudar e resolvi ir para São Paulo. Cheguei a São Paulo, comecei a fazer cinema, Boca do Lixo, teatro amador, fiz de tudo em São Paulo, e comecei a trabalhar na Record. Fui para São Paulo para trabalhar na linha de show, porque eu trabalhava, no Rio Grande do Sul, em musicais; e fui para São Paulo trabalhar na Record. Mas o festival não saía.
E eu sempre fui um homem que as mulheres adoravam, e as putas sempre foram apaixonadas por mim. Então, onde eu chegava, se tinha puta, elas vinham atrás de mim. Eu andava com meia-dúzia sempre atrás de mim. Quando vi, queriam que eu virasse cafetão de puta. Eu digo: "Não, eu não tenho idade para ficar cafetinando mulher para machista reprimido que não sabe ganhar mulher".
Aí comecei a fazer teatro amador, cinema na Boca do Lixo. Considero o meu primeiro filme muito marcante, Vozes do Medo, que foi um filme proibido durante anos, com coordenação do Roberto Santos, no qual eu fiz dois episódios, um revolucionário e um caixeiro-viajante. Um dos episódios era um episódio gay. Eu fui atrás do diretor e disse: "Eu quero fazer esse de gay", porque era uma história louquíssima, com os gays mais loucos de São Paulo, e não me deixaram fazer porque disseram que eu não tinha perfil para fazer esse filme. Na época, todo mundo dizia que eu seria um galã; e tudo que eu não queria ser na vida era um galã. Eu queria ser um ator, um artista, queria dançar, mas galã eu achava o ó. Hoje em dia, eu me arrependo, porque galã ganha muito bem, mas na época eu não queria. Eu enfrentei o diretor, bati boca, e ele dizia: "Você não tem perfil para fazer personagem gay". Revoltado, eu não fiz, mas considero meu primeiro filme, porque é de um grande diretor, o Roberto Santos, é um filme emblemático que mostra a situação brasileira nos anos 70 em São Paulo e que foi proibido durante anos. Um filme com Guarnieri, Roberto Santos, grandes atores, grandes diretores, Capovilla. Então, eu considero esse o meu primeiro filme.
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Aí, fui trabalhar em arquitetura em São Paulo. A mulher do meu arquiteto era professora de voz, só que o regime militar prendeu os dois. Então, eu abandonei a arquitetura e virei modelo fotográfico. Um fotógrafo de uma agência me chamou e, em um ano, eu virei o modelo fotográfico mais fotografado, com três outdoors de rua. Comecei a fazer teatro, e a crítica falou que finalmente um modelo era bom ator.
De desbunde, de ácidos, drogas e sexo, fui para o Rio de Janeiro, e a gente fundou o grupo Dzi Croquettes, que me deu espaço para eu assumir a minha sexualidade. Na realidade, o que eu sempre buscava era o amor, não era o sexo. O sexo, para mim, nunca foi o principal, a minha primeira meta. A minha meta era amar e ser amado. Era muito complicado, porque as pessoas me desejavam, as pessoas me queriam, até pretendiam me usar, mas eu botava mil barreiras. Eu era superpopular, superconhecido, o povo achava que eu era a maior das putas, mas, na hora do pega pra capar, eu sempre pulava fora, porque o que eu buscava era o amor, um amor utópico que não existia. Então, eu sempre me protegi dessa parte do contato sexual.
Não sei se importa aqui, mas quero dizer que minha formação foi com o Brizola como prefeito e governador de Estado. Então, eu sou brizolista de vivência; sou Getúlio de nascença e brizolista de vida, de infância e de crescimento. Continuo atuando, buscando saídas, mas Brizola foi meu líder que nunca conseguiu chegar aonde nós gaúchos e brasileiros almejávamos. Estive com ele no Rio de Janeiro, nessa época em que ele voltou, mas, devido a circunstâncias que não vêm ao caso.
Aí começou a minha sina no Dzi Croquettes. Foi aquele mundo, mil pessoas atrás, homens, mulheres, diretores, príncipes, banqueiros, astros. Então, a gente tinha na nossa porta pessoas fantásticas, supercultas, todas nos desejando, todas querendo nos levar para a cama, mas essa não era a minha meta. A minha meta era o trabalho de grupo, fazer um trabalho social e, através de uma comunidade, conseguir transformar o mundo, o que era uma busca da gente nessa época. Só que a realidade era outra, a gente conseguiu existir durante nove anos no Brasil, França, Itália, Bélgica e Portugal, que eram os países em que a gente trabalhou. Marcamos a cultura na França, influenciamos a moda e a televisão na França. Depois voltamos para o Brasil, em 1980, fizemos um espetáculo que se chamava TV Croquettes Canal Dzi. Depois a TV Globo fez a TV Pirata, que era bem em cima do espírito desse nosso espetáculo. Então, durante anos, o Dzi Croquettes influenciou o Fantástico, TV Pirata, moda, cinema, teatro de besteirol, mas o nosso espaço foi meio oculto com a chegada da aids. Com a chegada da aids, eu não aguentava mais. Eu me vesti de mulher durante nove anos, eu parti para moda e fui fazer Embaixada de Marte, que era um ateliê de moda, artesanato em couro, que vestiu Erasmo Carlos, Moraes Moreira, Ney Matogrosso, no primeiro Rock in Rio, Elis Regina, Simone, todas as estrelas, e exportávamos para o mundo inteiro. Era Governo Sarney. Começamos a nos expor pelo mundo, porque, com as nossas roupas do Rock in Rio, os roqueiros do mundo inteiro vieram atrás da gente, só que, na época em que a gente era exposto no mundo inteiro, a Eberle parou de fabricar os metais que a gente usava nas roupas dos roqueiros; o couro brasileiro começou a ser exportado, e você não comprava mais; houve o Plano Cruzado, e Brasil inteiro parou de comprar da gente. A gente exportava para Londres, Nova York, Paris, para as quatro principais capitais do mundo os nossos artigos eram vendidos. O Brasil parou de comprar, até os Territórios pararam de comprar. Eu tive 60 funcionários com carteira registrada e desisti para nunca mais ter funcionários, porque, artista fazendo teatro, tive de ir a Justiça do Trabalho, em Caxias, naqueles processos intermináveis. Até que um dia rodei a baiana, despedi o meu advogado, me esculhambei na frente do juiz. O juiz adorou, mas, quando ele viu, eu comecei a esculhambar meus funcionários, os advogados e a Justiça. Aí o juiz suspendeu a audiência. Logo a seguir, os funcionários todos me procuraram e fizeram acordo, porque eu mostrei para eles que a gente ia pagar advogado, perder tempo, e que eles iriam ganhar menos do que eu estava propondo, e que eu iria pagar muito mais do que eu estava propondo para eles. Então, cheguei a esse acordo.
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Não sei se estou fugindo do assunto, mas é para mostrar a minha trajetória dentro dessa vida.
Mais uma vez, eu me dediquei ao trabalho comunitário de formar, na Baixada Fluminense, num lugar de gente superpobre. Eu comecei a empregar menores de idade e a pagar um salário mínimo como salário inicial. Tive mais uma vez ameaças... Já tive diversas ameaças de morte na vida. Nessa época, eu tive outra ameaça de morte, porque estávamos pagando salário mínimo para menores de idade na Baixada Fluminense. Com a nossa chegada lá, nos anos que passei lá, houve um crescimento econômico na região, e crianças começaram a ser arrimo de família, a sustentar os pais. Tanto que queriam que eu entrasse para a política nessa época, mas eu nunca quis entrar para a política, porque a minha preocupação não era fazer carreira dentro da política; a minha preocupação era fazer na sociedade, na vida, na transformação. Sempre tive esse foco.
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Já tive possibilidades de enriquecer, já tive propostas de casamento maravilhosas, já tive todas as possibilidades que as pessoas sonham de ascensão social e sempre abri mão pelo meu caráter, pela formação e pelos meus ideais de vida. Continuo fiel ao que eu imagino. Sou um artista de terceira idade, marginal, que vim aqui para falar de solidão, mas adoro a minha solidão, quando é para o meu crescimento...
(Soa a campainha.)
O SR. BAYARD TONELLI - Acabou o meu tempo?
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI. Fora do microfone.) - Não, pode continuar.
O SR. BAYARD TONELLI - O meu problema com a solidão é a solidão social que discrimina, humilha, exclui a guetos e leva as pessoas ao suicídio. Essa solidão social que é imposta pela sociedade e pelas leis, que aqui há esse grupo tentando transformar, buscando uma saída... É por isso que estou aqui, porque eu me sinto gratificado de ver que não sou só eu que tenho essa preocupação, pois precisamos transformar a nossa sociedade.
Eu vou falar uma poesia bem curta para acabar e dizer o que eu penso:
De olho no furacão, me perco no redemoinho
Levado pelo vento, me perco do redemoinho
E me torno mais um desastre ambiental.
Hoje em dia, eu acredito que nós somos 7 bilhões de desastres ambientais no mundo.
Enquanto nós não nos conscientizarmos de que a Terra é um organismo vivo que respira, que transpira, que tem fogo interno e que precisa ter respeito e consideração...
E, quanto à questão de gênero, o meu sonho de vida é que, no futuro, todos sejamos trans. Que todos consigam transcender, porque, enquanto o ser humano não transcender na Terra as picuinhas, as misérias, as hipocrisias, as falsidades, não vamos conseguir transformar a nossa vida, o nosso País, o nosso continente e o Planeta.
Este é o meu discurso inicial. Eu não sei se eu saí um pouco do foco, mas é...
(Soa a campainha.)
O SR. BAYARD TONELLI - ... para me colocar em relação a isso tudo, porque nós precisamos transformar, e essa nova palavra trans, que é tão discutida, que está no início de tantas palavras, tem que ter a sua força entendida e respeitada, como o Planeta, o ser humano e todas as diferenças que fazem este mundo em que vivemos. Cada um tem a liberdade de ser o que quer ser, sem dominação, sem escravidão, sem imposição.
Obrigado. (Palmas.)
João é um querido. Fizemos um filme muito bom, juntos: De Gravata e Unha Vermelha. Diversas pessoas que estão aqui se apresentando estão nesse filme. Você também fez?
(Intervenção fora do microfone.)
O SR. BAYARD TONELLI - Desculpe. Eu achei que você tinha feito também.
Através do cinema, da arte, da poesia e da dança, eu procuro celebrar e transformar, no que eu puder fazer para melhorar a vida.
Quando eu era jovem, eu achava que eu ia mudar o mundo. Agora, se eu puder mudar o meu próximo e mudar a mim mesmo, eu já estou no lucro.
Obrigado. (Palmas.)
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A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Duas histórias lindas, embora o tema, o foco, a questão do envelhecimento, tenha sido... Mas, em algumas falas do João, aconteceu a questão... Eu não compreendo, não aceito: como é que você não tem uma aposentadoria? Perdeu a identidade, porque mudou a documentação?
O SR. BAYARD TONELLI - Eu também não tenho aos 71 anos e comecei a trabalhar em 1965.
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - E como é que é essa busca? Depois, vou voltar para vocês. Há uma pessoa no plenário que quer falar. Depois, volto para vocês.
O SR. BAYARD TONELLI - Não temos aposentadoria...
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Eu já fico com este questionamento: como é que pode perder o título? Que Justiça é essa que deu uma coisa de um lado e tirou de outro? Você perde seu título, sua profissão. Como é a busca de resgatar isso? Você fala depois também.
Para a plateia são cinco minutos - para eles, foram vinte.
É Rai...?
O SR. RAICARLOS COELHO DURANS - Raicarlos.
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Raicarlos. Então, ele vai usar cinco minutos da palavra. Se mais alguém quiser usar... Depois, eu retorno para eles, porque eu também tenho outras comissões a que eu tenho que ir, pois tenho que apresentar relatórios, mas eu vou voltar para vocês da Mesa também. Então, são cinco minutos, Raicarlos, do Pará.
O SR. RAICARLOS COELHO DURANS - Eu sou um homem trans e solicitei a fala, porque só temos nós três aqui, com o João Nery e o artista Bayard, com os servidores e os assessores da Casa. Então, eu me sinto na obrigação de falar.
Eu não fui convidado para a audiência como palestrante, pois não sou palestrante, mas eu quero dizer que o envelhecimento é o que determina a vida de todos nós.
Eu quero contraditar o João, porque nem tudo está perdido. João faz um diagnóstico muito arrasador, muito para baixo. Nós precisamos reestruturar o Estado brasileiro. Eu sou um homem político. Eu não sou artista, Bayard, não sou compositor, não sou poeta; eu sou um homem político. Nós precisamos reestruturar o Estado brasileiro. Primeiro, o golpe, que acabamos de viver há dois anos. A economia está toda desestruturada, e a sociedade, por sua vez, também fica desestruturada. E as pessoas trans têm um limite de militância muito tenro; não se conquista nada neste País em luta política, sem organização política. Não se conseguem as coisas no anarquismo, cada um faz o seu. Não existe isso.
Eu tenho 57 anos e estou a minha vida inteira na luta política, Senadora Regina. E eu sou seu fã, eu a admiro muito quando a senhora está lá, ilhada, na tribuna do Senado, e aquele golpista Zé Medeiros falando lá o tempo inteiro, soprando, quando a senhora fala - pode me processar, não tem problema, não.
Eu acredito ainda na organização política popular da sociedade. Sem isso, não há como sobrepor o que nós estamos vivendo hoje.
Sobre as questões de gênero, de sexualidade, o João deu uma aula. Eu não trato dessas questões, porque eu trato dos vieses políticos. Eu entendo que nós estamos em campos ideológicos demarcados, nós estamos de um lado da sociedade, nós somos do lado da maioria, nós somos do lado que não comunga com a burguesia. Então, nós estamos num Estado burguês, onde a correlação de forças é determinada pelo poder econômico histórico de 518 anos. Não se muda nada num tempo tão longo.
E nós pessoas trans, homens e mulheres... Eu sou um homem trans, sempre vivi a minha transexualidade.
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Na ditadura, eu fui preso, João. Eu estava militando na ditadura e fui preso. Eu nunca admiti ser chamado de ela.
Eu consegui reaver todas as minhas questões de aposentadoria. Consiga a sua também. Eu consegui reverter as minhas.
Eu tenho formação filosófica, sou bacharel em Direito, sou militante dessa causa, mas também sou militante das causas maiores do povo brasileiro. Não se consegue nada sem organização política. O que acontece hoje no mundo LGBT - e aí eu me incluo, porque eu também sou LGBT - é falta de organização política. É um monte de organizações, cada uma puxando para o seu lado. Isso divide as forças no mesmo campo de atuação político-ideológica.
Eu não posso falar diferente, Senadora Regina. Eu falo assim. Eu vim para este Senado e para a Câmara dos Deputados, para o debate logo mais à tarde, para falar disso. Nós estamos envelhecendo, e a nossa vida é rápida. Nós somos muito vulneráveis. Eu passei minha vida inteira me protegendo. Eu não vou dizer como me protegi, mas eu me protegi desde a militância política...
(Soa a campainha.)
O SR. RAICARLOS COELHO DURANS - Já concluo, tenho mais 58 segundos.
Eu me protejo desde a militância política. Quem me protege e me protegeu, Senadora Regina, foi a militância política na esquerda. Eu sempre fui da esquerda, eu sou comunista.
Ora, ora, nós temos que rasgar o véu! Hoje, nós temos avanços imensos no Estado brasileiro - luta nossa, João! Luta nossa! Se as coisas não chegam aonde as pessoas querem... Querem chegar hoje e amanhã já estar tudo resolvido! Isso não pode, não existe, nem com dinheiro nos Estados Unidos. Eu estou indo para os Estados Unidos em setembro, fazer o meu último desejo, que é o último pedaço que falta no meu corpo, com meu dinheiro. Não estou ocupando o Estado, nem as pessoas.
Eu também não vou salvar ninguém, não estou salvando ninguém, nem oriento, porque eu acho que a orientação... E nos cabe fazer isso, mas eu acho...
(Soa a campainha.)
O SR. RAICARLOS COELHO DURANS - ... que eu não tenho essa prerrogativa.
Definitivamente, concluindo, esta audiência devia estar aqui lotada de pessoas interessadas do meio LGBT. Nós precisamos falar para nós mesmos e para esta Casa. Nós estamos sendo vistos. Eu não sei como, mas, lá em casa, eu vejo todo mundo dessas Comissões. Então, nós estamos nos vendo, e todo mundo vê, todo mundo emite opiniões, todo mundo tem a sua participação de contribuição nesta luta.
Eu, como um homem trans, não acho que a luta está derrotada, eu não acho que nós estamos derrotados e eu não acho também que não tenhamos para onde ir; nós temos, sim, aonde ir, nós sabemos aonde ir, nós já estamos fazendo esse caminho.
Meu muito obrigado. (Palmas.)
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Obrigada, Raicarlos. Você tem razão na questão da divulgação. Eu acho que talvez tenhamos que melhorar, mas, geralmente, uma audiência é pedida por um grupo ou por uma instituição, e imaginamos que esse grupo que pede para fazer a audiência vai mobilizar...
O SR. RAICARLOS COELHO DURANS - Eu não sei quem pediu, Senadora.
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Eu também não sei, porque foi a Marta... Aí depois a pessoa pediu para fazer conjunta com a CDH.
(Intervenção fora do microfone.)
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Na verdade, pediram - deve estar nos arquivos - na Casa, e a Marta achou que era melhor juntar...
(Intervenção fora do microfone.)
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Também há o pessoal na Câmara, porque lá já começou também. Então, dois eventos na mesma hora...
O SR. RAICARLOS COELHO DURANS - Mas nós temos muita gente! Dá para encher Brasília.
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A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Eu sei. Eu também tenho reclamado muito dessa presença. As pessoas pedem e não mobilizam as pessoas que precisam escutar isso.
E não é só na questão LGBTI, mas, em todas as questões, nas audiências, a gente faz um esforço para trazer pessoas de fora e aí, na hora, das pessoas que pediram, vem só uma pessoa ou nem vem, às vezes.
Mas, de qualquer forma, como você falou, a gente está sendo visto, o Brasil inteiro está vendo a gente e vai ser repetido certamente hoje ou amanhã à noite - geralmente se repete. Então, isso é importante, porque as pessoas vão tomando conhecimento das histórias que a gente ouviu aqui e que pouca gente deve saber. Então, ficaram vendo o que é.
E a questão da temática que você tratou eu acho que é também importante a gente saber, até porque, como é um assunto mais recente, a gente vai ter as primeiras gerações de idosos LGBTI. Antes as pessoas eram aquela coisa escondida, como você falou, no "armário". Então, a gente vai ter a primeira geração idosa mesmo. Embora a gente, com 68 anos - eu tenho 68 anos também -, não se sinta ainda idoso, mas vai haver uma geração de idosos. Quem está cuidando? Aí já há o caso aqui: não há aposentadoria. Tem que se cuidar, tem que haver o cuidado com as pessoas, tem que haver o acesso à saúde, há políticas para isso, e esta audiência vai ajudar a gente a pensar nessas políticas.
Mais alguém do plenário? (Pausa.)
Então, eu retorno...
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS - Eu tenho direito à réplica?
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Sim, você vai falar, vai haver uma volta para a Mesa, já que...
A SRª ROSILENE GOMES DA SILVA - Senadora Regina, posso só pautar aqui uma questão?
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - A Rosi quer pautar.
A SRª ROSILENE GOMES DA SILVA - O jornal O Globo, em 2014, fez uma matéria que fala sobre a questão da depressão do gay e, de uma maneira geral, sobre a população LGBT não envelhecer, além das dificuldades dos direitos: a questão da aposentadoria, a questão até do ambiente para conviver. Então, isso tem gerado a questão dos maus-tratos, da solidão. Eles colocam, inclusive, que, muitas vezes, nessa idade, voltam-se para o "armário" justamente por uma situação de não ter um local adequado de viver a sua velhice.
Então, eu queria que vocês comentassem sobre isso, sobre essa questão da depressão, sobre esse retorno depois de várias atividades políticas, sociais, as lutas pelos direitos de vocês todos, inclusive fazendo um recorte de que, a partir do governo Lula, que fez a primeira conferência LGBT no País - é inédito um Presidente abrir uma conferência LGBT... Então, a gente tem que dar esse crédito, fazer esse resgate sobre essa possibilidade de buscar as políticas públicas, não é? O Programa Brasil sem Homofobia foi um programa com várias ações de combate à homofobia, além de outros decretos que foram garantidos.
Então, como é que fica tudo isso e, ao chegar à velhice, como a gente pode garantir esses direitos realmente de fato?
É isso.
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Obrigada, Rosi.
Eu quero dizer que a questão do abandono do idoso não é própria da população da LGBTI. Os idosos neste País estão abandonados, a família abandona, deposita num asilo. Então, realmente é muito sério e, claro, para a população LGBTI, há mais essa questão de recolher a sua opção para poder ser aceito, porque, mesmo nos asilos, se você liga para um asilo desse aí e pergunta se há algum idoso gay, ou idosa lésbica, ou trans, eles dizem que não, porque eles não identificam.
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS - Não aceitam.
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Vou retornar para você, por cinco minutos.
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS - Para responder a questão dela, só existem duas teses sobre esse assunto. Se as travestis envelhecem? Muito raro, só as artistas, as transformistas, que não querem falar sobre velhice. Andei tentando entrevistá-las, mas é muito difícil, porque elas passam a vida investindo no corpo, em silicones líquidos, correndo risco de vida e, quando chegam à velhice, não têm filhos, não têm família, porque foram expulsas de casa menores de idade e, enfim, quase todas caem na prostituição.
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Não existe asilo para transexuais. Aceitam os gays, mas eu conheço, por exemplo, mais de um caso de transexual feminino - no caso, se montou como mulher - que se vestiu de homem para poder entrar num asilo e, quando descobriram, expulsaram-no.
Assim, para ter tratamento médico, eles também voltam a se vestir de homem para poder ter assistência médica, porque a documentação é masculina. Então, você abre mão da sua identidade de gênero para poder ter acesso à saúde e talvez à família também - a família só aceita se você voltar a se vestir de homem ou de mulher, enfim.
Então, na velhice, eu só conheço eu de homem trans velhos, depois dos 60. Há o Raicarlos ali.
(Intervenção fora do microfone.)
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS - Você tem 58 anos, ainda não é, pelo Estatuto do Idoso, velho, mas, como um trans, você é um sobrevivente, como eu. Então, já pode ser considerado um velho.
Enfim, eu não sou um cara pessimista, não. Eu estou aproveitando este espaço aqui para exatamente fazer um registro do que nós passamos, o que não é fácil, somos super-heróis. Enfim, eu tenho oito próteses no meu corpo, eu tenho uma artrose sistêmica e nenhum médico... Já me ofereci ao Ministério da Saúde para ser cobaia, e eles não quiseram. Não me procuraram, apesar de manifestar interesse. Ninguém sabe. Eu fui ao maior especialista em testosterona. Eu tomo testosterona há 40 anos. Eu entrei na menopausa aos 27 e, em vez de tomar estrogênio, eu tomo testosterona. Mas não existe nenhum estudo relacionado entre testosterona e artrose.
Eu tenho, como disse, oito próteses, eu já tive um infarto, eu tenho quatro stents no coração, uma placa na coluna, eu já fiz duas operações de quadril totais de prótese, e ninguém sabe - nem a minha geriatra, a minha reumatologista é capaz de dizer - se a causa são os hormônios.
Eu estou com câncer agora, estou com metástase. Fiz uma quimioterapia há dois dias, por isso vocês me desculpem eu estar um pouco cansado, porque agora é que começam os sintomas.
Mas eu estou na luta. Enquanto eu estiver vivo, eu estou escrevendo, porque é um registro que fica, e eu sei que eu sou o primeiro, estou na frente, não tenho nem em quem me basear.
Então, eu teria muitas coisas ainda a dizer.
Quanto à minha aposentadoria...
(Soa a campainha.)
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS - ... eu não paguei INSS. Quer dizer, paguei enquanto era mulher; depois de homem, eu tive biscates, chofer de táxi, essas coisas todas. Acabei, naquela época, nem pagando INSS, essas coisas, mas o Estado nunca me ressarciu dos danos morais que me causou.
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É isso.
Eu trouxe uma mala de meus livros para vender, que é uma das formas de eu ganhar dinheiro, para também divulgar o que é vida de um homem trans e para diminuir o preconceito, que é baseado na ignorância.
Enfim, eu torço. Eu sei perfeitamente que meu pai foi cassado, foi exilado, foi comunista também. Eu tenho noção.
(Soa a campainha.)
O SR. PAULO ALBERNAZ MELLO BASTOS - Não foi só a sexualidade que me atravessou, também a política me atravessou.
E conheci Brizola, conheci Jango, conheci Darcy Ribeiro, que foi meu mentor intelectual no Uruguai. Meu pai foi exilado no Uruguai.
Enfim, eu também tenho noção dessa importância da economia e da política como uma estrutura social, mas isso não faz com que eu deixe de mencionar, sobretudo em relação ao Ministério da Saúde, as falhas enormes que precisam ser corrigidas para atendimento ao trans. A sua própria Região Norte não tem um SUS com processo transexualizador; só há um ambulatório em Belém, que, graças a você, foi criado. Então, todos os trans homens que moram na Região Norte estão complemente abandonados em termos de cirurgia. Eu sei disso. E as tentativas de suicídio que eu recebo pelo Facebook são quase diárias.
Muito obrigado. (Palmas.)
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Bayard, por cinco minutos.
O SR. BAYARD TONELLI - A gente sabe que, na nossa sociedade, como é estruturada, o idoso não tem direito a quase nada: ou você consegue atravessar a barreira e construir uma estrutura, porque não há respeito pela vivência, pela sabedoria, pelo que aprendeu, poucas pessoas conseguem atravessar isso... Dentro das minorias, então, é bem mais terrível.
No meu caso, eu comecei a trabalhar em 1965 para a Prefeitura de Porto Alegre; em 1970, comecei a fazer teatro e cinema, mas numa época em que, para fazer teatro, você comprava nota, poucas pessoas registravam na carteira de trabalho. Então, eu tenho não sei quantas peças, já devo estar chegando a 30 longas, devo ter mais de 50 curtas, alguns médios, mas isso tudo acaba quase não contando.
Eu consegui provar para minha aposentadoria seis anos em que eu tive uma firma e o tempo em que eu trabalhei para a Funarte. Eu trabalhei duas vezes na Funarte: uma vez no governo Collor, fui demitido pelo Collor; e outra vez que eu trabalhei agora no governo Lula, no Arte sem Barreiras, que trabalhava com artistas especiais, onde eu aprendi muito, onde eu me libertei de muitos preconceitos que a idade estava me dando, porque eu comecei a trabalhar com artistas especiais: cadeirantes que dançam, cego que cantam, pessoas que, com muita dificuldade, conseguiram desenvolver seu trabalho artístico. E essas pessoas me ensinaram muito, porque eu era um pouco preconceituoso. Eu era daqueles que, como eu tinha feito grandes espetáculos, filmes com diretores famosos, quando me chamavam para trabalhar, eu queria saber quem era o produtor, quem era o diretor, qual era a estrutura. E a poesia... E essas pessoas me libertaram, porque eu vi que muitas vezes o diálogo com uma pessoa você pode conseguir um resultado muito maior do que você fazer uma audiência para 200 pessoas. Muitas vezes, tocando uma pessoa, você consegue muito mais do que você falando para 200 pessoas que não se tocam com o seu discurso. Então, isso me deu uma outra dimensão.
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Mas continuo. Tenho um processo no Ministério da Justiça, tentando validar os anos que eu trabalhei no exterior, porque eu trabalhei anos no exterior divulgando o Brasil. Trouxemos muito turistas, levamos o Brasil para a moda francesa, para o teatro.
E saí duas vezes do Brasil devido ao regime militar: pressão, ameaças de morte, humilhação, a primeira vez; e a segunda por pressão de jornalistas. Então, eu saí duas vezes. Tenho provas comprovando isso. Aqui eu entrei tarde, porque eu nunca fiquei muito tempo preso. As minhas prisões sempre foram rápidas. Sempre havia alguém para me tirar. Eu nunca fiquei muito tempo preso, mas saí duas vezes do Brasil por causa do regime militar. Tirei documentos na França. No final, voltei para o Brasil e continuei trabalhando comprando nota, porque uma época eu resolvi sair dos palcos e fiquei dez anos trabalhando como produtor de grandes espetáculos. E para isso me pagavam, mas eu tinha que comprar nota, porque ninguém queria registrar.
Em 1965, foi meu primeiro trabalho. Tenho 47 anos de teatro e cinema. Tenho 53 anos...
(Soa a campainha.)
O SR. BAYARD TONELLI - E acontece isso: eu consigo provar só 11 anos. Tentei agora fazer uma aposentadoria por essa mixaria do salário mínimo, este Governo me trancou. Então, eu tenho duas aposentadorias trancadas. Eu me banco. Há dois, três anos eu comecei a ter problemas econômicos e parei de pagar plano de saúde, mas sou uma pessoa privilegiada, porque tenho amigos. Se eu precisar tenho médico, se eu precisar tenho hospital. Eu tenho pessoas que me garantem essa estrutura, mas por ser um artista respeitado pelo meu perfil, pela minha vida e pelas minhas amizades, não por nada governamental. Apoio eu não tenho nenhum. Eu sou marginalizado.
Por isso, quando me chamaram para cá, eu disse que eu ia falar sobre mágoas e misérias de um artista marginal da terceira idade na tentativa de...
(Soa a campainha.)
O SR. BAYARD TONELLI - ... sobreviver e transcender à hipocrisia social reinante no nosso País.
Sobre o que eu poderia falar aqui? Ficar contando as maravilhas do sucesso que eu fiz no meu passado, ou contar a miséria que eu vejo, a desgraça, as pessoas e os amigos assassinados, os conhecidos, as pessoas se suicidando e a aids voltando a matar nossa juventude? Não sei se vocês sabem que há agora - a Márcia Rachid está vindo aí para falar disso - uma nova geração de 18 a 24 anos que, quando vai procurar médico, já está morrendo. Estão morrendo de aids de novo.
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Então, as coisas conseguem evoluir até um certo ponto, e, quando as pessoas acham que está resolvido, há a retomada, como há a retomada do fascismo, dos reacionários, e tudo isso é a pressão da manutenção.
Eu, de vez em quando, coloco como a luta de milênios, como se o terceiro milênio ainda não tivesse conseguido se instalar, e as forças retrógradas do milênio e do século passado tentam sobreviver.
Então, a gente está nesse conflito, e nesse conflito a gente tem um papel importante, mas também o nosso tempo é curto. Eu já estou com 71 anos, sou da terceira idade, já estou indo para a quarta. E eu nem sei o que eu sou, porque eu adoro fazer um general fascista, reacionário, mas gosto também de fazer deusas, rainhas, e fotografo hoje em dia muito para mulheres. As mulheres me chamam muito para fotografar nu. Então, eu agora resolvi, aos 71 anos, tirar a roupa, quando o motivo é artístico e bom. E normalmente é mulher. Os homens não me chamam, mas as mulheres me chamam muito para tirar a roupa, e eu estou tirando, enquanto eu estiver vivo e alguém quiser ver, porque eu sou um artista que eu me expresso em diversas áreas. Estou aí dançando, de vez em quando quase morro, porque o povo quer que eu dance, estou com 71 anos, tem que ter uma preparação e a dança exige muito, e aí eu quase morro depois dos espetáculos, mas pedem e eu danço, estou lá. E pretendo morrer de pé. Quero estar de pé. As pessoas que eu mais admirei na minha vida são pessoas que, na véspera da morte, estavam de pé. Então, espero, na véspera da minha morte, estar de pé para não poder...
Agora, a solidão para mim tem os dois lados; tem o lado social, que é triste, degradante, humilhante, que não deixa espaço, que vai sufocando, vai estrangulando e jogando como lixo da história. É sobra o idoso no Brasil. A gente vê isso nos asilos, a gente vê isso nos amigos e pessoas que têm até vergonha de mostrar as suas deficiências. Eu acho muito importante a gente mostrar os processos, como o João faz aqui, falar tudo que acontece, porque a gente tem o privilégio de poder falar e de dar uma outra possibilidade para essas pessoas que não tem praticamente nada, nada e nada. Eu, que tenho tão pouco, me sinto privilegiado.
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Obrigada, Bayard.
A gente poderia ficar ouvindo vocês aqui a manhã inteira. Eu sei que vocês têm muito o que contar, e o Brasil tem muito o que saber, mas, infelizmente, eu estou sendo aqui cobrada porque a Marta não está conseguindo abrir a Comissão dela porque essa audiência é conjunta, e só abre lá quando eu fechar aqui. Então, estou sendo cobrada para encerrar a reunião.
Agradeço a disposição de vocês terem vindo aqui. Sei que não é simples chegar, que há muita burocracia e problemas de saúde, inclusive, mas vieram aqui e enriqueceram o conhecimento das pessoas que estão assistindo, com certeza, e da gente que está aqui. Só tenho a agradecer.
Nada mais havendo a tratar, declaro encerrada esta audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e da Comissão de Assuntos Sociais.
(Iniciada às 9 horas e 04 minutos, a reunião é encerrada às 10 horas e 25 minutos.)