12/07/2018 - 73ª - Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa

Horário

Texto com revisão

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A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Bom dia a todos e a todas!
Declaro aberta a 73ª Reunião, Extraordinária, da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal da 4ª Sessão Legislativa Ordinária da 55ª Legislatura.
A audiência pública será realizada nos termos do Requerimento nº 115, de 2018, desta Comissão, de minha autoria.
Será um debate sobre "a promoção de autonomia de comunidades indígenas com iniciativas que visem a geração de renda e aumento do bem-estar de povos originários".
Esta audiência pública será realizada em caráter interativo, com a possibilidade de participação popular. As pessoas que tenham interesse em participar com comentários ou perguntas podem fazê-lo por meio do Portal e-Cidadania, no link www.senado.leg.br/ecidadania, e do Alô Senado, através do número 0800-612211.
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Informo que estamos ao vivo pela TV Senado.
Tivemos a iniciativa de discutir essa questão porque nos chegou uma solicitação para debatermos algumas questões e experiências que acontecem pelo Brasil e que a gente nem sabe, não conhece. A gente só ouve falar do conflito, que, inclusive, é visível, e muitas coisas boas que acontecem a gente não vê. Então, para saber se são boas mesmo, a gente tem de ouvir das pessoas que as estão vivendo.
O conflito interno no Brasil se instalou já na colonização, quando a invasão e a ocupação dos territórios indígenas se fizeram sem o respeito aos seus legítimos donos. E a solução para esses conflitos precisa partir da colaboração e do entendimento entre as partes, com a devida solução do Estado. O Estado brasileiro deve garantir os territórios indígenas, e a preservação da paz entre nossos povos é feita a partir da colaboração e do compartilhamento de culturas, conhecimentos, tecnologias.
Por esse motivo, solicitei esta audiência, que busca soluções a partir de experiências que têm tido êxito em promover uma cultura de paz entre agricultores e povos indígenas.
Como já falei, o debate será sobre a promoção de autonomia de comunidades indígenas com iniciativas que visem geração de renda e aumento do bem-estar de povos originários. É fundamental para construirmos os avanços que superem conflitos.
A gente tem tido muitas audiências aqui com indígenas, inclusive há o acampamento todo ano. A gente levanta os problemas, leva para quem de direito e, no ano seguinte, a gente está sempre repetindo as mesmas demandas, porque as soluções demoram e há retrocessos. Basta lembrar o que a gente já viveu na questão da Funai, para a qual nomeia-se um, nomeia-se outro. E quem sofre com isso são os povos indígenas.
Primeiro, quero pedir desculpas. Teremos uma audiência rápida, porque, para o Nordeste é verão, e achar uma vaga em um avião para o Nordeste não é fácil. E só consegui uma vaga para hoje ao meio-dia. E não há mais ninguém aqui. Se procurar um Senador aqui hoje... Então, vamos fazê-la, dando 10 minutos a cada um, com a devida prorrogação, mas às 10h30 eu tenho de sair. Então, teremos uma hora e vinte para a audiência; acho que dará tempo de a gente conversar sobre aquilo que é essencial nesta questão.
Chamo agora os nossos convidados.
Convido a tomar assento à Mesa o Sr. Omar Ortiz Taleb, engenheiro e produtor rural. (Palmas.)
Convido o Sr. Maradiles de Souza, liderança indígena da aldeia Lima Campo, de Mato Grosso do Sul. (Palmas.)
Convido o Sr. Antonio Hilario Aguilera Urquiz, antropólogo e professor. (Palmas.)
Convido o Sr. Luiz Eloy, Assessor Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que tem sido parceira em todos os nossos debates aqui. (Palmas.)
Convido o Sr. Cleber César Buzatto, representante do Conselho Indigenista Missionário. (Palmas.)
E convido a Drª Daniela de Souza Osório, Defensora Pública Federal. (Palmas.)
Já começo com o primeiro convidado, a não ser que alguém tenha preferência para falar. (Pausa.)
Está na ordem em que eu chamei?
Está bom.
´É que, às vezes, a pessoa pede para falar primeiro ou por último.
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Com a palavra o Sr. Omar Ortiz, engenheiro e produtor rural.
O SR. OMAR ORTIZ TALEB - Bom dia! Gostaria de agradecer o convite de V. Exª, Senadora Regina Sousa, também ao Ronald, que nos recebeu por duas vezes no gabinete de V. Exª...
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI. Fora do microfone.) - Aquele relógio marca o tempo, são dez minutos. Mas sempre temos paciência, podemos prorrogar.
O SR. OMAR ORTIZ TALEB - Está ótimo.
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI. Fora do microfone.) - Há um toque de campainha quando falta um minuto.
O SR. OMAR ORTIZ TALEB - Combinado.
Gostaria de agradecer ao Ronald por duas conversas, que na verdade foram duas aulas, primeiro, quando a gente veio ao Senado para expor o que a gente pensava e a intenção do nosso projeto. Então, foram duas aulas que alimentaram muitas ideias depois disso.
E agradeço a presença dos outros convidados e das senhoras e senhores que estão aqui.
Sem querer chover no molhado, eu vou tentar falar um pouco do histórico da região, da questão fundiária no Mato Grosso do Sul, principalmente no sul do Mato Grosso do Sul, porque isso é importante para entender qual é o sentimento, a motivação que me levou a tentar essa iniciativa com a Aldeia Lima Campo.
A ocupação daquela região do Brasil foi fomentada por meio da Marcha para o Oeste, iniciativa do governo Getúlio Vargas que, tendo o Estado como fiador, chamou migrantes a ocuparem aquela região, que tinha sido, na perspectiva histórica, recém-anexada, recém-conquistada na Guerra do Paraguai e precisava de uma... Isso estava alinhado a uma política de Estado que era uma política de industrialização no litoral, que prescindia de matérias-primas, prescindia de produtos que fossem oriundos da produção agrícola, e o interior do Brasil seria importante nesse processo.
As populações indígenas obviamente já ocupavam aquele espaço e naturalmente, naquele momento, já houve conflitos, não sei de que tamanho, de que natureza, mas já houve ali um choque de culturas e um choque pelo espaço. Aquilo devia ter sido olhado pelo Estado e não foi.
Finalmente, na Constituição de 1988, que trouxe de forma muito legítima os direitos das populações indígenas, essa distensão, essa tensão que veio crescendo ao longo dessas décadas tomou uma proporção maior. Na medida em que amparadas pela Constituição cidadã, as demarcações começaram a ser feitas, inicialmente muito mais ao norte do Brasil, mas, depois disso, nas regiões em que o Estado havia titulado, terras tituladas pelo Estado, que é o caso do sul do Mato Grosso do Sul. Então, este sempre foi um questionamento meu: por que nunca foi trazida à baila a responsabilização do Estado pelo conflito, uma vez que a gente está tratando aqui de um conflito de direitos?
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A Constituição fala em nulidade de títulos quando se trata de terras indígenas, mas o que você faz com as pessoas, com aqueles migrantes que vieram, seus herdeiros e seus sucessores, que, fiados pelo Estado, foram para lá? Não são necessariamente pessoas sacrificadas, abnegadas, mas foram para lá fiados pelo Estado. Décadas depois, promulga-se uma Constituição que declara, muito corretamente, os direitos dos povos originários e cria-se um conflito. O campo ali está formado para esse conflito. E isto sempre me incomodou demais: por que, em nenhum momento, o Estado foi responsabilizado por essa situação toda?
Especificamente com relação à Aldeia Lima Campo, Jatayvari, a aldeia começou a se formar em 1998, com a ocupação de uma área que hoje formalmente pertence ao Banco do Brasil. A partir dessa ocupação começaram os estudos para implementação da terra indígena. Eles ocupam hoje uma área de duzentos e poucos hectares, e a pretensão da Funai é de uma terra indígena em torno de 8,8 mil hectares. Mas, 20 anos depois disso, a situação ali segue a mesma.
Apesar de o processo administrativo ter caminhado, a situação... No momento em que eu tive contato com a aldeia, eu perguntei: "O que mudou aqui nesses 20 anos?" A única mudança que eles reconhecem como sendo benéfica para eles foi o advento do Luz Para Todos, que permitiu água, que permitiu a implantação de um posto de saúde que ali ainda existe, mas, tirando isso, que é extremamente importante, nada foi feito em termos de promover a autonomia ou a geração de renda.
Existe uma omissão do Estado com relação a uma situação que tem um status quo que é absolutamente favorável ao produtor rural. O produtor rural está contestando judicialmente, como é seu direito, as pretensões da Funai. E, conhecendo a Justiça que a gente tem, não é impossível dizer que essa é uma situação que pode seguir indefinida por mais, sei lá, muitos anos. E esse status quo só é favorável aos produtores, que estão - legitimamente, repito - contestando as pretensões da Funai. Não estou falando aqui de episódios de violência, que têm que ser absolutamente condenados, nem nada disso, estou falando de contestação jurídica e administrativa, inicialmente administrativa, mas depois jurídica, das pretensões de demarcações pela Funai, porque, afinal de contas, eles estão ali fiados pelo Estado. O Estado deveria ser o principal garantidor de direitos e de segurança jurídica. Nesse caso não é.
Então, essa é uma provocação que eu sempre faço. Com pessoas muito mais ligadas aos movimentos indigenistas, eu falo: "E o que vocês vão fazer? Vocês vão insistir nesse caminho de demarcações de terras extensas, que tem como contrapartida uma resistência jurídica muito forte e em muitos casos uma resistência até violenta, o que é absurdamente condenável mas existe?" Vamos seguir nesse caminho? Ou vamos tentar tratar do tema sem tabus, tratando da possibilidade de fazer concessões de lado a lado em busca de uma pacificação?
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O Mato Grosso do Sul é um Estado recente, é um Estado que tem 30, 40 anos. E agora está tentando talvez buscar a sua vocação na inserção nacional, uma vocação no agronegócio. É um Estado logisticamente muito favorecido por ter divisas com Estados produtores e consumidores. E não dá para crescer com esse apêndice, com esse drama social que é ter a segunda população indígena do Brasil e tê-la confinada daquela maneira.
Isso é responsabilidade do Estado brasileiro. A responsabilidade individual pelos atos de violência praticados contra indígenas, em suas situações de retomada e tal, é daqueles indivíduos que promovem isso, mas a responsabilidade da distensão como um todo, uma distensão que tem sido criada e potencializada ao longo de décadas, é do Estado brasileiro. O Estado brasileiro nunca foi trazido como responsável, é como se ele colocasse as figuras ali, ligasse o botão de um determinado processo e ficasse assistindo ao drama,...
(Soa a campainha.)
O SR. OMAR ORTIZ TALEB - ... que é infinitamente maior para os indígenas do que obviamente para os produtores, sem a menor sombra de dúvida.
O meu tempo está acabando. Eu vou tentar falar agora mais do projeto especificamente e espero, mais adiante, conseguir dar mais detalhes. Em contato com a aldeia, meses atrás, eu propus a implantação de um herval. A erva-mate é um produto de origem do Estado do Mato Grosso do Sul, um produto que o Estado tem até tentado iniciativas para promover a produção maior, mas isso não tem acontecido a contento.
Eu sou produtor de erva-mate, e a erva-mate poderia servir como indutor - além da geração de renda e da autonomia - do resgate das questões de ancestralidade e culturais das populações indígenas do sul do Mato Grosso do Sul. E a nossa ideia é... Já estamos... Sábado agora, começou o plantio da erva - o Maradiles depois pode falar disso, como foi; eu não estava lá -, e já temos como parceiros também a Embrapa, na intenção de estudar outras espécies que podem ser cultivadas no mesmo espaço, de forma a aumentar a geração de renda. A erva-mate é um produto que tem um tempo longo de corte. São cinco anos até o primeiro corte; depois, são cortes anuais. Mas, então, a ideia seria promover mais rapidamente a geração de renda por meio do plantio de outras espécies ali.
E, para isso, eu estive com o Prof. Urquiza, que tem sido um dos maiores, talvez o maior apoio que a gente tem tido.
(Soa a campainha.)
O SR. OMAR ORTIZ TALEB - E tem sido uma experiência fantástica, a não ser por algumas barreiras que a gente tem enfrentado no que diz respeito principalmente ao endosso que a gente gostaria de receber, e ainda não recebeu - sobre isso também o Maradiles pode mencionar -, da Funai como aquele órgão que ampara, vem aos indígenas e fala: "Olha, de fato, isso pode ser interessante. O que vocês acham?" Porque a aldeia mesmo é composta por pessoas de diferentes cabeças e tal, obviamente.
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Existem diferenças internas das quais eu não posso tratar. Isso ultrapassa uma barreira que eu coloquei ali. Eu não posso entrar nessas questões internas da aldeia, mas a Funai poderia ser um agente conciliador das diferenças internas que possibilitariam a promoção desse projeto.
(Soa a campainha.)
O SR. OMAR ORTIZ TALEB - Eu gostaria de chamar aqui a atenção para isto, para a responsabilidade e para a facilitação que aconteceria, se houvesse a participação dos agentes responsáveis pelo amparo às populações indígenas.
Obrigado.
Era isso o que eu tinha para falar por agora. Espero que a gente consiga debater isso mais adiante. (Palmas.)
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Obrigada, Sr. Omar Ortiz.
Vamos passar para o Sr. Maradiles de Souza, que é da liderança indígena da Aldeia de Lima Campo, no Mato Grosso do Sul.
O SR. MARADILES DE SOUZA - Bom dia a todos, bom dia a V. Exª.
Eu, Maradiles de Souza, líder da Aldeia Lima Campo, estou aqui presente pela primeira vez nesta reunião muito importante para mim. É uma honra estar aqui presente para buscar uma melhoria para a minha aldeia.
Entramos em 1998, quando eu apenas tinha 13 ou 14 anos. Agora, estou com 33 anos, e não temos nenhuma melhoria na nossa aldeia. A única coisa que ganhamos foi um postinho de saúde, que, aos poucos, estava caindo, mas conseguimos a renovação dele; a água; e a energia.
Moramos há 20 anos ali. Nossas crianças estudam a quase 30km da nossa aldeia, correndo riscos, sem serem cuidadas pelas mães. Gostaríamos de ter uma escola na nossa aldeia indígena, porque temos bastantes crianças menores de 5, 6 anos, que precisam estudar, e não estudam porque a escola rural é longe, a quase 30km da nossa aldeia. Gostaríamos muito de ter uma escola na nossa aldeia e uma área de lazer.
Agradeço muito ao Sr. Omar, que se dedicou à nossa aldeia, olhou para ela, e se propôs a nos ajudar com o plantio de ervas. A comunidade está muito alegre e agradece muito. As crianças também se dedicaram a esse plantio. É o único meio para que possamos buscar algum alimento para as nossas crianças. Quando essa erva estiver produzindo e no ponto de ser comercializada, poderemos trocá-la nem que seja por algum agasalho ou cestas básicas para as nossas crianças.
Gostaria muito de que... O povo da minha aldeia me pediu: "Liderança, leve o nosso pedido até o Senado. Queremos um ginásio coberto com iluminação, nem que seja apenas isso dentro da nossa aldeia para o nosso lazer."
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Eu trouxe até foto, eu filmei as crianças. A área de lazer deles é um quadrinho de terra de chão, onde eles brincam. Eu tenho vontade de chorar por ver as minhas crianças, a minha comunidade perecer sendo esquecida. Não temos ajuda, não temos ajuda de alguém que pode entrar e nos ajudar ali. Com muita dificuldade, no meu governo, eu consegui 36 toneladas de calcário para que eu possa jogar nas pequenas roças de 0,5 hectare que cada família tem. Nós não temos condições porque temos o trator, mas não temos óleo diesel, não temos calcalhadeira para podermos movimentar um trabalho em que podemos produzir ali dentro alimentos.
Recebemos a cesta básica do Governo uma vez por mês, mas eu gostaria muito que tivéssemos ajuda ali dentro para que pudéssemos não depender somente da cesta básica, para que pudéssemos desenvolver o nosso trabalho ali, mostrar o nosso trabalho ali dentro.
Pela primeira vez, o Sr. Omar se dedicou a nos ajudar no plantio de ervas. Eu tenho certeza de que a ajuda que ele nos deu vai servir muito, vamos conseguir, através daquilo ali - eu tenho certeza -, algum desenvolvimento para nossa aldeia.
E o pedido que eu faço nesta manhã, no Senado, é para que descubram onde está o recurso que foi destinado para a aldeia Lima Campo, para a construção da escola, porque da última vez em que foi a equipe naquele lugar, limpou uma área de quase uns 30m2 para a construção da escola. A comunidade se alegrou, porque ali iria nascer uma escola para educarmos nossos filhos, mas, de repente, desapareceram. Não sabemos por que parou, apenas foi limpada a área onde iria ser construída a escola. Mas, dali para frente, não ouvimos mais falar da escola na nossa aldeia. Eu gostaria de saber, a comunidade gostaria de saber onde foi parar o recurso destinado à construção da escola ali na nossa aldeia Lima Campo.
A minha comunidade também pede... Mandaram um documento assinado para que o Senado vote e para que faça para as crianças ali, para a comunidade, um ginásio coberto e com iluminação. Apenas essas duas cosias que a comunidade pediu ao Senado e a todas autoridades que estão à frente da lei.
Esta é a minha palavra que eu dou nesta manhã. Eu agradeço muito o convite do Senado e da Regina Sousa, que olhou por nós. Eu acredito que Deus vai abençoar todos nós. Que atenda o pedido da comunidade que foi enviado através da minha pessoa!
Esta é a minha palavra nesta manhã. (Palmas.)
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Obrigada, Maradiles.
Vamos ouvir agora o Antonio Hilario Aguilera Urquiza, Professor e Antropólogo.
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O SR. ANTONIO HILARIO AGUILERA URQUIZA - Bom dia a todos!
Eu começo agradecendo o convite e a iniciativa da Senadora Regina Sousa. É bastante louvável apoiar uma iniciativa como essa.
Cumprimento o Omar, cumprimento o Cleber, a Defensora Pública, o nosso Cacique e o Luiz Eloy, representando a Apib.
A minha fala - como venho da área da Antropologia e acompanho bastante os guaranis do sul de Mato Grosso do Sul, exatamente quanto ao tema desse encontro - é sobre a promoção de autonomia. E eu destaco a autonomia de comunidades indígenas com iniciativas que visem à geração de renda e ao aumento do bem-estar.
Então, a primeira reflexão é fundamentada na própria Constituição Federal de 1988, que reconhece essa autonomia dos povos indígenas. E, no seu art. 231, a Constituição começa dizendo que se reconhecem esses direitos aos povos indígenas. Então, não é a Constituição que institui; ela reconhece, porque esse direito é de povos originários, direito às suas terras, às suas tradições e às suas culturas.
E a questão da autonomia também tem a ver com o ordenamento jurídico internacional. E eu destaco aqui a Convenção 169 da OIT, que foi ratificada pelo Brasil em 2002, e sobretudo no art. 7º - e eu coloco ali alguns grifos -, que diz que os povos indígenas...
(Intervenção fora do microfone.)
O SR. ANTONIO HILARIO AGUILERA URQUIZA - Ah, sim, desculpe.
Agora passou. Isso.
Então, os povos indígenas deverão ter direito de definir suas próprias prioridades no processo de desenvolvimento - o anterior; isso -, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições. Então, a ênfase é que eles têm o direito de definir as suas prioridades e eles também têm direito ao desenvolvimento. Passou a época em que a Antropologia ou qualquer outra ciência imaginava e queria que o índio ficasse congelado lá no meio da selva, até porque a cultura nunca foi congelada; a cultura é dinâmica. Claro que esse dinamismo também não pode ser imposto, mudança imposta de fora para dentro simplesmente. Mas, acreditando na dinamicidade da cultura, é que nós também reforçamos esse art. 7º da Convenção 169, que trata do direito dos povos indígenas ao desenvolvimento e a serem consultados.
Ainda no art. 7º, ele diz que a melhoria das condições de vida - que é o subtítulo do encontro de hoje - e de trabalho, saúde e educação, com a sua participação, colaboração e cooperação, deverá ser considerado uma prioridade. E há aquilo que disse, no começo desta audiência, o produtor rural Omar, que os povos indígenas têm direitos de que o Estado estimule esse desenvolvimento, que tenha planos para o desenvolvimento dessas comunidades, o que não está acontecendo, não por má vontade da Funai, mas por falta de vontade política do próprio Governo Federal, que esvazia a Funai, esvazia os seus recursos, e ela não tem nem óleo diesel, para ajudar a comunidade a se desenvolver e a fazer seus plantios de roças comunitárias.
E, por último, em relação à OIT, os governos deverão tomar medidas em regime de cooperação com os povos indígenas para proteger e preservar o meio ambiente. Então, em qualquer proposta dessa de desenvolvimento, de agricultura em áreas indígenas, primeiramente tem que se pensar no quê? No respeito ao meio ambiente. Nada mais agressivo ao meio ambiente do que você desmatar milhas e milhas de hectares e meter soja em cima. Isso é uma agressão ao meio ambiente. Então, os indígenas não pensam assim.
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Para fechar esse primeiro item da autonomia, pergunto: o que seria a não autonomia? Seriam projetos e políticas públicas que vêm de fora para dentro, desrespeitando completamente a comunidade, não perguntando o que ela quer.
O que seria, ainda, a não autonomia? Projetos e propostas para as comunidades formulados sem consultá-las e sem respeitar a sua cosmovisão, como se índio fosse tudo igual. E não é assim, há mudanças muito importantes conforme as regiões deste País, assim como há mudanças importantíssimas que se observam em cada etnia, em cada povo e em sua respectiva relação com o meio ambiente.
E, por último, o que é uma não autonomia? Imposição de nossos modelos de desenvolvimento. Querer simplesmente transportar propostas ou ideias nossas para dentro das aldeias não dá certo, como já provou a nossa história - foi assim com a monocultura, arrendamento de terra etc. Isso seria a não autonomia.
O item 2, então, o etnodesenvolvimento. Que palavra é essa? Ela descreve o desenvolvimento sustentável por meio da realidade étnica de cada povo. É um desafio permanente que eles têm: se reproduzir como sociedades etnicamente diferenciadas e lidar, ao mesmo tempo, com condições materiais de existência cada vez mais adversas. Basta ver o relato aqui do nosso cacique da liderança. Eles têm o calcário, têm a terra, têm a semente, o trator, mas não têm o óleo. Então, essa é uma diversidade que não tem sentido.
Ainda sobre a questão étnica: são povos que mantêm o seu diferencial sociocultural mesmo com direito ao desenvolvimento. E aqui eu elogio o Taleb quanto à proposta do plantio da erva. Por quê? Porque é uma planta que foi domesticada pelos guaranis muitos anos atrás. Então, não é a soja - nada contra a soja -, mas é um plantio tradicional, próprio desses indígenas, dessa comunidade.
E, para fechar, alguns princípios básicos para esse etnodesenvolvimento. Então, tem-se a satisfação de necessidades básicas do maior número de pessoas da comunidade e da aldeia, não é só para um grupo pequeno ou para um proprietário rural; a visão endógena, ou seja, a partir de dentro: valorizar e utilizar conhecimento e tradições locais - é isso que o Omar está propondo, trata-se de valorizar o conhecimento dos indígenas no trato desse plantio, ir junto, fazer o plantio consorciado, ou seja, entre a erva-mate, as árvores, plantar a mandioca, plantar o milho, plantar outros produtos que são próprios dos indígenas -; preocupar-se em manter relação equilibrada com o meio ambiente, como eu já falei, e; visar a autossustentação e independência dos indígenas quanto aos procedimentos técnicos. Então, o que a gente espera é que, no futuro, a partir desse primeiro empurrão, Omar, eles tenham autonomia e possam se desenvolver com suas próprias forças, inclusive tecnológicas.
Nesses termos, quando a gente se refere, então, às sociedades indígenas do Brasil, há alguns indicadores: aumento populacional e segurança alimentar, coisa que eles não têm. Se se perguntar hoje para uma comunidade kaiowá ou guarani de Mato Grosso do Sul, se perceberá que eles querem produzir os próprios alimentos, eles não querem ficar dependendo, como estão dependendo há mais de dez anos, de cesta básica. E, no dia em que entrar um maluco no Governo e parar com a cesta básica? Todo mundo morre de fome? Eles sabem disso e, por isso, eles querem produzir os seus próprios alimentos.
Aumento do nível de escolaridade. Então, a produção aqui deve vir atrelada a outros insumos. A educação é fundamental, a gente sabe que qualquer sociedade humana precisa da educação.
Procurar pelos bens do branco, porém sem perder autonomia e independência. E ter pleno domínio das relações dessas comunidades na sua relação com o Estado brasileiro seja no nível local, dos Municípios, quanto no da Funai e de outras agências.
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O mais importante nessa experiência é que todas tenham como referência a vocação histórica e cultural específica da sociedade indígena - esse é o ponto dois já: comunidades indígenas e desenvolvimento sustentável. Além disso, que elas tenham o controle interno do tempo para produção para o mercado. Então, parte dessa produção da erva certamente vai ser vendida. Mesmo nesse processo de produzir e vender para fora, é a autonomia, é o tempo da comunidade que conta, não o tempo do mercado. Eles têm que ser respeitados quanto a isso.
Os pressupostos. É necessário que haja equipes técnicas, apoio dos funcionários locais da Funai - daí a importância desse diálogo com a Funai -, parceiros de outras organizações, como ONGs e organizações indígenas. Aqui se fala também da importância de haver um antropólogo acompanhando - e elogio mais uma vez a sensibilidade do Omar - para discutir e elaborar projetos com as lideranças dessas comunidades. E o mais importante está em destaque: a participação plena das comunidades indígenas envolvidas, desde o começo da ideia, em todo o processo de implantação do projeto e no desenvolvimento do projeto. Nada vai para frente se for feito à revelia ou de fora para dentro - temos experiências disso.
(Soa a campainha.)
O SR. ANTONIO HILARIO AGUILERA URQUIZA - E, terminando, o terceiro ponto: comunidades indígenas e experiências de desenvolvimento sustentável, ou seja, quais as experiências que já estão dando certo e estão em curso?
A primeira que eu coloco aqui é a aldeia Te'yikue, de Caarapó, que há quase 15 anos tem projetos muito interessantes, com apoio da UCDB, que é a universidade comunitária: desenvolvimento ambiental, recuperação de microbacia, na educação, produção familiar tendo como base um banco de sementes, além de represas para piscicultura.
A aldeia Mãe Terra, uma proposta em desenvolvimento ainda, que é uma área de retomada no Município de Miranda: uma produção consorciada de alimentos com ênfase em sementes tradicionais, respeito ao meio ambiente, envolvimento de famílias da etnia terena e kinikinau, e a parceria com o governo (PNGATI) - parceria com a universidade e parceria com o governo.
E a próxima é uma parceria com a iniciativa privada, que é a aldeia Ofaié, de Brasilândia: construção de moradias, conforme a cultura, que é circular, porque é um povo jê; incentivo ao artesanato, com oficinas, monitoramento, compra de produção; e essa parceria com a Fibria.
Aqui, só para mostrar o mapa da aldeia Te'yikue; e ali a recuperação de microbacias e de corredores florestais.
Para fechar, então, um comentário sobre o projeto ora apresentado nesta audiência.
O incentivo à produção agrícola; as características que o Omar está apresentando para a gente. E eu o apoiei desde quando ouvi essa história pela primeira vez - ainda que com desconfiança, confesso.
Conversa antecipada com a comunidade. Essa é a primeira condição.
Autonomia para decisões acerca da participação local; modalidades e responsabilidades.
Respeito ao ritmo da comunidade em execução.
Consulta a outros agentes: Ministério Público, Funai, especialistas, políticos. Ele foi atrás de um monte de parceiros para consultar: "Escuta, eu estou louco ou o caminho é por aqui?"
Plantio de erva-mate. Excelente a ideia! É por aí; é começar com o plantio daquilo cuja tecnologia os indígenas dominam.
(Soa a campainha.)
O SR. ANTONIO HILARIO AGUILERA URQUIZA - Plantio consorciado, monitoramento, garantia de compra da produção e, no caso desse exemplo, a parceria com o produtor rural, ou seja, com a iniciativa privada.
Eu termino com essa foto. Não comentei no início, mas é a foto de um grupo familiar indígena kaiowá, de uma retomada chamada Laranjeira Nhanderu, em que eles estão tomando a erva-mate, às 6h da manhã, naquele friozinho gostoso do final do mês de maio, para mostrar como a erva-mate faz parte do dia a dia dessas comunidades, faz parte da cultura deles.
Obrigado. (Palmas.)
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Obrigada, Prof. Urquiza.
Vamos ouvir o Luiz Eloy, que é Assessor Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
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O SR. LUIZ ELOY - Bom dia a todos e a todas!
Eu gostaria de cumprimentar a liderança guarani kaiowá que está presente, bem como a Senadora Regina Sousa e os demais companheiros de Mesa.
Agradeço o convite que foi feito à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Hoje, nós não pudemos ter um representante da Coordenação, uma liderança indígena, por isso estou fazendo as vezes como assessor jurídico, ainda porque também sou do povo Terena de Mato Grosso do Sul.
Esta audiência, para mim, é muito interessante e muito importante, porque, como advogado, eu já acompanho há um bom tempo a situação das comunidades indígenas de Mato Grosso do Sul e de outros Estados do Brasil, e a realidade trazida aqui pelo produtor rural, enfim, e também pela liderança indígena é uma das questões que a gente sempre tem levantado, dada a realidade de várias comunidades indígenas que, nos últimos anos, têm retomado os seus territórios, têm retornado às suas terras tradicionais diante mesmo da ausência sistêmica do Estado brasileiro.
Nós já sabemos da situação, do contexto de violência que existe nesse tipo de realidade, especialmente em Mato Grosso Sul, mas não só em Mato Grosso do Sul. Também no Rio Grande do Sul e no sul da Bahia, os conflitos explodem a todo momento. E nós temos situações também de comunidades indígenas acampadas.
Também esse tema, para mim, é importante, até mesmo tomando como exemplo o povo terena, o meu povo, que já foi citado até no eslaide do Prof. Antonio Hilario, ou seja, de como as comunidades indígenas, cada uma com a sua especificidade, com a sua cultura, é lógico, têm uma profunda capacidade de promover a sua autonomia, têm uma profunda capacidade de valorizar a sua cultura e uma profunda capacidade também de se desenvolver. Então, este debate, necessariamente, perpassa a concepção de desenvolvimento que as comunidades indígenas têm.
Assim, o primeiro ponto que eu gostaria de abordar aqui seria o de pensar também essa relação colonial e como foi a relação do Estado brasileiro com os povos indígenas nesses 518 anos. Nós temos ainda uma realidade em que as comunidades indígenas, não só por parte da União, mas por parte de vários Municípios onde há a presença de povos indígenas em suas circunscrições, ainda são vistas como um empecilho ao dito desenvolvimento. Vários são os prefeitos e vereadores, gestores locais, enfim, que ainda veem essas comunidades como um estorvo quando elas estão ali presentes no seu Município ou na sua territorialidade. Então, ainda nós temos isso a vencer.
Outra questão, que também foi levantada, é o enfraquecimento da Funai. Durante muito tempo era SPI; depois, passou a ser Funai e, já mais recentemente, com o paradigma constitucional de 1988, a Funai deixou de ser a tutora dos povos indígenas. Hoje, os índios respondem por si, ou seja, eles têm autonomia, mas ainda nós temos a Funai como o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro, uma instituição que, nos últimos anos, pelo menos nesses 30 anos - este ano a Constituição completa 30 anos -, vem sendo enfraquecida do ponto de vista financeiro, orçamentário, político, com várias das suas atribuições sendo retiradas.
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Então, a Funai chegou a um ponto em que até mesmo a sua única atribuição hoje, que é a de iniciar processos de demarcação de terras indígenas e também implementar a política indigenista brasileira - até isso! - está sendo retirada dela. Portanto, esse cenário que nós estamos vivendo hoje torna esse debate fundamental.
Então, são estas duas coisas que o Prof. Hilario, como antropólogo, e eu também, como alguém da antropologia, gostaríamos de frisar. Primeiro, a autonomia dessas comunidades indígenas, pensar o desenvolvimento. E aí nós falamos muito em "etnodesenvolvimento". Esse "etno" vem trazer uma qualificação à palavra "desenvolvimento", justamente para não se pensar o desenvolvimento apenas pelo viés econômico, mas pensar o desenvolvimento a partir do desabrochamento das potencialidades locais dessas comunidades indígenas.
Então, se estamos diante de uma comunidade terena, por exemplo, que nós sabemos que tem hábeis agricultores, ali temos uma realidade propícia à implantação de determinados projetos voltados à produção agrícola. Mas nós vamos encontrar povos, por exemplo, que são colheiteiros, que têm outra relação com as comunidades indígenas; nós vamos encontrar povos que são criadores de gado, por exemplo, que já têm outro tipo de relação com o seu território também.
Então, pensar o desenvolvimento e a autonomia dessas comunidades indígenas é pensar nessas capacidades locais que elas têm. Trata-se, portanto, de pensar um desenvolvimento no local e não para o local; de pensar um desenvolvimento que eles chamam de endógeno e não exógeno, quer dizer, algo que vem de dentro para fora. E isso requer do Estado brasileiro uma coisa que o Estado não está disposto ainda a fazer, que é, primeiro, reconhecer a autonomia desses povos, reconhecer a capacidade desses povos também de pensar os seus desenvolvimentos e, além disso, reconhecer a especificidade cultural desses povos. Ressalto, a propósito, que nós temos a todo momento expedientes administrativos, nas mais diversas áreas do Estado brasileiro, seja em nível municipal, estadual ou federal, negando essas especificidades, negando essa autonomia - na maioria das vezes, vêm de pessoas que não estão capacitadas ou que não estão abertas a pensar esse tipo de desenvolvimento a partir dessas comunidades indígenas.
Isso também envolve um esforço nosso de olhar para essas comunidades indígenas e ver outros fatores. Os índices de desenvolvimento humano, ou os fatores de desenvolvimento, para as comunidades indígenas são outros. Não envolvem, necessariamente, a questão econômica.
Ouve-se, por exemplo: "o índio está de Hilux", "o índio hoje é diferenciado, ele tem uma casa de alvenaria". Não é necessariamente isso que indica que aquela comunidade indígena se desenvolveu. Para os povos indígenas, os índices de desenvolvimento são os índices de felicidade humana. Leva-se em conta o sentimento de estar dentro do seu território, o sentimento, por exemplo... Se você vai numa retomada, o índice de crianças que falam o idioma materno é maior do que o das crianças que estão lá na reserva, por exemplo. Então, esse número - ter mais crianças falando o idioma materno - é um índice de desenvolvimento na perspectiva indígena. Você ter mais crianças reproduzindo as práticas culturais é um índice também de desenvolvimento a partir da lógica indígena. E, aí, os representantes estatais têm de estar abertos a pensar o sentimento de felicidade, o sentimento de viver bem, que é esse bem viver que as comunidades indígenas têm a oferecer à sociedade brasileira.
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Então, a partir disso, nós, como movimento indígena, como Apib, que congrega várias organizações indígenas do Brasil, temos acompanhado isso e feito o esforço de incidir sobre as instâncias do Estado brasileiro no sentido de se quebrar, na maioria das vezes, o racismo, que ainda existe, contra as comunidades indígenas, no sentido de quebrar também esses estereótipos que existem ainda por parte de muitos gestores que estão administrando a máquina pública e que veem essas comunidades indígenas ainda como um empecilho a um dito desenvolvimento. Lembro que o desenvolvimento, na perspectiva dos povos indígenas, não é necessariamente o econômico, mas é necessariamente aquele obtido a partir do ponto de vista da sua cosmovisão, do seu modo de ver e de entender a sua realidade. Isso implica, necessariamente, um desenvolvimento junto com a questão ambiental. Essa é uma coisa que fica muito clara na fala das nossas lideranças, no sentido de pensar a proteção desses territórios, no sentido de pensar também a proteção da mãe Terra e de tudo o que nela há, fauna, flora e, inclusive, os seres que habitam esses lugares.
Então, a esse sentido de pensar essa cosmovisão, o Estado brasileiro, os agentes representantes do Estado brasileiro, em todas as suas instâncias administrativas, devem...
(Soa a campainha.)
O SR. LUIZ ELOY - ...estar atentos. Eles devem estar atentos a essa especificidade. Essa é uma imposição da própria Constituição Federal, é uma imposição da própria legislação internacional, que o Estado brasileiro já se comprometeu a respeitar.
Então, Senadora, essas são as contribuições que temos a trazer, lembrando, mais uma vez, que essa realidade trazida aqui pela liderança e também pelo produtor rural é uma realidade muito latente em Mato Grosso do Sul. E é latente não só em Mato Grosso do Sul; muitas comunidades estão recebendo, após anos de luta pela terra, o seu território totalmente pelado, sem nada. Na maioria das vezes, há apenas braquiária, uma terra totalmente acabada depois de ser usada, por anos e anos, pelo agronegócio, pela pecuária extensiva. E aí se quer que a comunidade, em cinco anos, em dez anos, recupere aquela área e viva plenamente com o meio ambiente totalmente degradado. Na maioria das vezes, nem há mais rio, nem córrego ou muito menos uma nascente, porque tudo isso já foi eliminado pela extensa atividade agropecuária que se estabeleceu naquela região há muitos anos.
Então, essas são nossas contribuições.
Quero dizer que a Apib continua à disposição para dialogar e para acompanhar essas questões aqui, no âmbito da Comissão de Direitos Humanos.
Obrigado. (Palmas.)
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Obrigada, Luiz Eloy, representante da Apib.
Falará agora Cleber Buzatto, representante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que também tem sido um grande parceiro nas nossas audiências, nas nossas conversas sobre os povos indígenas.
Com a palavra Cleber Buzatto.
O SR. CLEBER CÉSAR BUZATTO - Bom dia, Senadora Regina!
Obrigado pelo convite.
Quero cumprimentar todos da Mesa, os que estão presentes nesta sala de reuniões da Comissão de Direitos Humanos do Senado e também todos e todas que acompanham esta audiência via televisão e outros canais de comunicação do Senado.
Preparei uma fala de cunho mais teórico e abrangente.
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Depois, a gente entra nos aspectos mais específicos do caso concreto aqui trazido para esta audiência.
Inicio esta reflexão fazendo referência a duas falas de duas lideranças indígenas no Brasil, uma da Região Norte e outra da Região Sul. A primeira é da liderança kurá kanamarí, do Amazonas, da Terra Indígena Vale do Javari, uma terra indígena já demarcada: "Estamos lutando para viver com nossa cultura, falar nossa língua, comer o peixe pescado na hora, sentir o cheiro da floresta. Isso é bem viver. Não é bem viver estar à beira da estrada, passar fome, sem a nossa terra, que é a nossa mãe. Nós somos a terra." E há uma fala de Maurício da Silva Gonçalves, do povo guarani-mbya, do Rio Grande do Sul:
Hoje, olhando para o povo guarani, vemos que a maioria das terras foi tomada. E, daquelas de que ainda temos posse, a maioria não foi demarcada pelo Governo, e, por isso, verificamos que os guarani vivem uma situação dramática. Muitas de nossas famílias vivem em beiras de estrada, debaixo de lonas, entre rodovias e fazendas. Nessas condições, o bem viver para os guarani não é possível.
Na sequência, faço uso, enfim, de uma contribuição do teólogo Paulo Suess, assessor teológico do Cimi. Ele fez o seminário "O bem viver dos povos indígenas: crítica sistêmica e proposta alternativa para um mundo pós-capitalista", durante o Simpósio Internacional Filosófico-Teológico da Faje, em Belo Horizonte. Dele retirei alguns extratos, com algumas ideias-chave, que passo a apresentar.
Na construção do “bem viver”, dois eixos são sumamente importantes: o “bem viver” para todos, quer dizer, o combate contra uma sociedade de classes e privilégios, e o “bem viver” para sempre, que é o “bem viver” com memória histórica, o bem viver não apenas dos sobreviventes e vencedores, mas o bem viver que dá voz e ouvido aos vencidos, construtores de um mundo sem vencidos [...].
[...]
No Brasil, hoje, seis pessoas possuem capital acumulado equivalente à metade mais pobre da população brasileira, ou seja, seis pessoas têm capital igual a mais de cem milhões de pessoas aqui no Brasil. No mundo, oito indivíduos têm capital acumulado equivalente à metade mais pobre do Planeta, ou seja, oito pessoas têm capital igual ao que possuem os 3,5 bilhões de seres humanos mais pobres.
[...]
A concentração privilegiada do capital é uma trava estrutural para o bem-estar da maioria.
[...]
A América Latina tem cerca de 45 milhões de indígenas, que representam 8,3% da população, revela o relatório “Povos Indígenas na América Latina”, apresentado em 22 de setembro de 2014, na sede das Nações Unidas, em Nova York, durante a Primeira Conferência Mundial sobre os Povos Indígenas, que foi um dos eventos especiais da 69ª Sessão da Assembleia Geral da ONU. O documento foi elaborado e apresentado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Segundo a Cepal, o número de 45 milhões de indígenas em 2010 representa aumento de 49,3% em dez anos.
[...]
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A pergunta central para nós é: o paradigma do "bem viver" dos povos indígenas é capaz de dar algumas respostas para aquilo que está travado e que falta na sociedade do capitalismo globalizado?
Os aspectos centrais da concepção [...] do "bem viver", como nos foram apresentados nos últimos anos por lideranças indígenas do mundo andino dos quéchua [...] e do mundo guarani [...], podem ser resumidos em algumas palavras-chave: terra/território, comunidade, harmonia aprendida do ritmo da natureza, simplicidade, partilha, reciprocidade e ruptura. Cada uma dessas palavras ou programas representa uma crítica do mundo vivencial globalizado, com seus dogmas dinâmicos, falsas promessas e alienações.
Podemos elencar cinco desses contrastes com o mundo indígena, sem os quais o capitalismo não funciona:
- a propriedade privada que faz da terra uma mercadoria;
- a acumulação concorrencial do capital na mão de poucos, o que impossibilita a reciprocidade e, muito mais ainda, a gratuidade;
- a necessidade do crescimento produtivo desigual que considera a partilha uma meta improdutiva;
- [...] personificação e idolatria do mercado em função do lucro;
- a sociedade de classe, que produz uma riqueza de poucos através da mão de obra barata.
[...]
Elencamos cinco propostas transversais do bem viver indígena: comunidade, harmonia, desaceleração, simplicidade, ruptura, autodeterminação territorial.
[...]
A autodeterminação territorial permite proteger o sistema cultural indígena das interferências destruidoras do sistema que gira em torno dos eixos capital e mercado.
[...]
O bem viver pressupõe a autodeterminação dos povos indígenas, a demarcação de suas terras e de seus territórios, a descolonização das condições de sua vida, o reconhecimento de sua alteridade, que vai muito além de uma tolerância que encontra o "tolerado" apenas suportável e não amável. O bem viver pressupõe a reprodução da vida material e espiritual nos parâmetros da cultura própria de cada um dos povos.
Retiro do site De Olho nos Ruralistas alguns dados que nos permitem entender melhor o contexto vivido pelos guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul, base necessária para a busca de alternativas efetivamente estruturantes e duradouras que possibilitem uma verdadeira autonomia dos povos indígenas naquele Estado e, de forma análoga, nos demais Estados da Federação.
Palco de um dos maiores conflitos indígenas do País, Mato Grosso do Sul tem 92% do seu território em terras privadas. É a maior abrangência de propriedades particulares do Brasil. Os dados são do Atlas Agropecuário, um projeto do Imaflora, em parceria com o GeoLab, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP).
[...]
Enquanto o latifúndio e a propriedade privada concentram o Estado, os Guarani e Kaiowá - entre outras oito etnias - aguardam pela demarcação de suas terras. Em 2007, o Ministério Público Federal em Mato Grasso do Sul (MPF-MS) teve que afirmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Funai, para que ela cumprisse o estudo de identificação e delimitação de 18 territórios da etnia. Onze anos depois, apenas quatro relatórios de identificação e delimitação foram publicados. No entanto, essas quatro terras [...], ainda assim, não foram demarcadas.
[...] " - A concentração fundiária está ligada à grande desigualdade que existe no Brasil em todos os segmentos da economia, mas que é muito intensa no meio rural. E ela é consequência de um modelo de produção, pesquisa e política agrícola que privilegiou um pequeno grupo de produtores de algumas culturas e em certas regiões do País, aumentando ainda mais a desigualdade. Enquanto a política agrícola deslanchou em uma direção, a política agrária, que deveria cuidar da distribuição das terras, nunca saiu do papel e não teve efeito em uma distribuição mais equilibrada da terra."
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(Soa a campainha.) O SR. CLEBER CÉSAR BUZATTO -
Ao visitar o Estado em 2016, uma comitiva liderada pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) declarou que a etnia [guarani-kaiowá, no caso] vive uma tragédia humana.
Intitulado "Tekoha: Direitos dos Povos Guarani e Kaiowá", o relatório divulgado após a visita critica o Poder Público de forma abrangente. Ao percorrer seis Municípios e diversas cidades no Estado, a comitiva se deparou com um cenário que envolve fome, reservas minúsculas, contaminações por agrotóxico e acampamentos à margem de rodovias.
É importante salientar que, "antes do processo de colonização de Mato Grosso do Sul, a etnia se estendia por aproximadamente 40 mil quilômetros, espaço reduzido gradativamente após a Guerra da Tríplice Aliança. O século XX foi palco do processo de reservamento, que submeteu as etnias aos microespaços das atuais reservas, tudo [por meio do Estado] por ação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que antecedeu a Funai [e também, como já foi falado, pela iniciativa privada]. Os 92% dos territórios privados no Estado são resultado da Marcha para o Oeste [como o produtor rural Omar já fez referência], período no Brasil em que o Governo brasileiro provocou a colonização dessa região e submeteu os índios às margens dessa ocupação".
Diante desse contexto, a autonomia dos povos indígenas pressupõe necessariamente o reconhecimento e a demarcação de suas terras por parte do Estado brasileiro. Associada a essa ação urgente e estruturante, é de fundamental importância a implementação de políticas públicas que valorizem e promovam mecanismos próprios, sempre de acordo com os usos, os costumes e as tradições dos povos indígenas de autonomia alimentar e de geração de renda.
A valorização de mecanismos próprios de produção, de alimentos e geração de renda entre os povos pressupõe...
(Soa a campainha.)
O SR. CLEBER CÉSAR BUZATTO - ...o usufruto exclusivo pelos povos de suas terras tradicionais demarcadas.
Com base nessas questões, Senadoras, Senadores e demais, considerando também as apresentações aqui feitas, eu vejo com bons olhos a iniciativa do projeto que aqui foi apresentado, uma vez que - inclusive com base na manifestação do próprio professor - está fundamentado num processo de participação, o que também é uma demanda da comunidade envolvida. Acho que esses são elementos, do ponto de vista fático, importantes e necessários para um bom êxito ou um potencial bom êxito da iniciativa.
(Soa a campainha.)
O SR. CLEBER CÉSAR BUZATTO - Ressalto, enfim, de qualquer maneira, que o plantio da erva-mate, na fala da liderança indígena, é um dos destaques, nessa iniciativa, que pode permitir ou possibilitar que eles consigam alimento e agasalho. Ele fez referência a esses dois aspectos.
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Então, acho que esse é um indicador importante, junto com outra informação que ele trouxe, a de que eles recebem cesta básica do Estado, mas não têm acesso a óleo para trator, para poder mexer a terra e plantar o próprio alimento. Ou seja, há uma demanda por alimento, mas não existem as condições. Aliás, ao contrário, a ação do Estado vai na contramão dessa demanda, tanto em relação à questão estruturante, que é a não demarcação efetiva da terra dos povos em geral, quanto em relação à questão específica, digamos assim, dessa autonomia alimentar, que mantém a comunidade nessa dependência externa.
Nesse aspecto, é importante salientar que tanto a condição estruturante vivida pelos guarani-kaiowá quanto a perpetuação dessa condição são obras do Estado brasileiro. Isso é uma opção do Estado. Portanto, é preciso romper com essa cultura e com esse privilégio do Estado em relação aos grupos sociais que vivem no nosso Território brasileiro.
Só para ter um dado comparativo, o Plano Safra para o agronegócio, nos últimos anos, tem girado em torno de R$200 bilhões, que são emprestados a juros subsidiados.
(Soa a campainha.)
O SR. CLEBER CÉSAR BUZATTO - A Presidente Dilma foi derrubada do poder em 2016 com a falsa justificativa de que fez as pedaladas fiscais. E as pedaladas fiscais foram uma demora em repassar para o Banco do Brasil o subsídio do Plano Safra, R$8 bilhões ou R$10 bilhões. Ou seja, o Estado brasileiro, todo ano, tem repassado em forma de subsídio para o agronegócio, só no Plano Safra, cerca de R$8 bilhões e não repassa um centavo para uma comunidade como a dos guarani-kaiowá, para possibilitar que eles tenham acesso a óleo diesel, por exemplo, para plantar o seu próprio alimento.
Então, quero ressaltar a iniciativa, falar da sua importância apenas do ponto de vista teórico.
(Soa a campainha.)
O SR. CLEBER CÉSAR BUZATTO - Só para finalizar, Senadora, quero falar que a demarcação das terras indígenas é um imperativo categórico que precisa ser implementado em Mato Grosso do Sul e no Brasil.
As demarcações - se me permite esta observação, Dr. Omar - não são pretensões da Funai, na nossa avaliação; são direitos dos povos. E essa é uma obrigação do Estado, por meio da Funai e de outros órgãos que existem e que, infelizmente, estão sendo cada vez mais enfraquecidos, em função novamente de uma opção privilegiada a favor de grupos que, por via de regra, se opõem ao modo de ser dos povos indígenas.
Então, ressalto a importância da iniciativa. Também nos colocamos à disposição, na medida das possibilidades, em relação ao caso concreto.
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Quero salientar que a autonomia dos povos passa por essas iniciativas, mas passa também, de forma estruturante, pelo processo de demarcação e pelo usufruto exclusivo. Acho que disso não se pode abrir mão. E é obrigação do Estado brasileiro efetivar isso e apoiar, inclusive, iniciativas como essas que aqui foram apresentadas.
Muito obrigado. (Palmas.)
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Obrigada, Cleber, representante do Conselho Indigenista Missionário.
Agora, passamos a palavra à Drª Daniele de Souza Osório, defensora pública federal.
A SRª DANIELE DE SOUZA OSÓRIO - Bom dia, Senadora!
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Bom dia!
A SRª DANIELE DE SOUZA OSÓRIO - Obrigada pelo convite.
A Defensoria Pública da União se apresenta hoje, aqui, muito mais como ouvinte do que como narradora dessa história e desse projeto que se discute. Ninguém melhor do que as próprias comunidades indígenas para relatar, nesta Casa, os seus projetos, suas ideias, seus anseios e tudo aquilo que é necessário para alcançar a tão almejada autonomia indígena. Então, a nossa fala se resume a reafirmar, nesta Comissão de Direitos Humanos e Minorias, que os povos indígenas têm direito à autodeterminação e à autonomia, que constam não só da Constituição Federal, como também dos tratados internacionais firmados pelo Estado brasileiro.
A autonomia e a autodeterminação já foram bastante exploradas na fala do Prof. Hilario, que explicou para nós todo o conteúdo e toda a dimensão desses dois conceitos jurídicos. A gente sabe que a história brasileira é recheada de capítulos marcados pela luta por essa autonomia. É uma reivindicação tão secular quanto a opressão e a resistência desses povos. Mas, em resumo, a Constituição Federal de 1988 reconhece que o Brasil é multiétnico, reconhece a plena cidadania dos indígenas, reconhece o direito aos territórios, a demarcação de suas terras e, mais do que isso, o usufruto do solo e do subsolo. A Assembleia Constituinte foi que reconheceu aqui, internamente, o respeito às organizações sociais e culturais dos indígenas.
Então, o que se discute aqui, Senadora, não é um favor, mas é um direito. É um direito que existe há quantos anos, não é? Está há mais de 30 anos reconhecido. Então, não se está aqui a inovar, em absolutamente nada.
Dentro desses conceitos de autonomia e de autodeterminação - aí entra o projeto do produtor rural Omar Taleb - está a ideia de empoderamento. Nós só podemos falar em autonomia e em independência, Senadora, se nós empoderarmos as comunidades indígenas, a ponto de que elas tenham representantes que possam falar, dialogar conosco. Nós temos aqui nesta Mesa dois exemplos. Um é de empoderamento acadêmico, pelo próprio Luiz Eloy, que teve o seu empoderamento a ponto de legitimá-lo com a sua formação universitária. Ele está nesta Casa relatando os anseios do seu povo terena e também daqueles povos representados pela associação da qual ele faz parte. O outro empoderamento é o empoderamento político. Nós temos aqui sentada, nesta Mesa, uma liderança indígena guarani-kaiowá.
Então, é nesse aspecto que a Defensoria Pública da União vem lembrar a esta Casa o quanto isso é necessário, o que a sociedade brasileira majoritária tem de fazer. Tem de dar condições para que os povos sejam empoderados, para que ninguém fale por eles. Não é o Cimi, não somos nós, não é o Ministério Público Federal, não são os produtores rurais que têm de falar por eles, mas são eles próprios. Como é que se dá isso? Dá-se através da sua inserção no campo político, no campo escolar e no campo econômico. Nós não podemos esquecer que nós vivemos em uma sociedade capitalista. Sem dinheiro, sem recursos, essas comunidades estão relegadas aos projetos de assistência social, que, infelizmente, são fomentados ou sofrem cortes ao sabor dos ventos das alterações políticas do nosso Brasil.
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Lembrou-se aqui que essas comunidades recebem cestas básicas do governo do Estado do Mato Grosso do Sul. Existe um projeto social lá chamado Vale Renda, que é um decreto, uma lei que existe há mais de 20 anos, mas, veja só, Senadora, volte e meia há algum corte tanto nos recursos quanto no fornecimento dessas cestas. Tanto há cortes que a Defensoria Pública da União, em conjunto com o Ministério Público Federal, lá em Campo Grande, tem uma ação civil pública em andamento, porque, durante uns seis meses do ano de 2016, o Estado não as forneceu a todas as famílias. Quer dizer, nós tivemos que judicializar um benefício assistencial que já estava previsto em lei.
Relegar essas comunidades à pobreza equivale a dizer que, talvez, elas passem fome. É isso. O Vale Renda é um valor mínimo de R$180 por mês para famílias de baixa renda. Para famílias não indígenas, o valor repassado é o dinheiro; para as famílias indígenas, são as cestas básicas - cestas básicas essas cujos alimentos que a compõem nem sempre fazem parte do hábito desses povos. Então, como elas são montadas ali pelo Estado, nem sempre obedecem àquilo que os guarani kaiowás estão acostumados a consumir, àquilo que os terenas estão acostumados a consumir. E nisso a gente tem ouvido relatos muito minuciosos de agentes de saúde do Estado, dizendo que já há casos de subnutrição com sobrepeso. Quer dizer, isso tem um impacto muito grande.
Então, eu acho que o Estado brasileiro tem de fomentar projetos como o seu, como o do Omar, para que nós possamos dar aos indígenas autonomia financeira, para que eles escolham o que eles devem fazer. Não sou eu, Daniele, que vou dizer: "Olha, vocês devem construir uma escola." A liderança veio aqui e disse: "Precisamos de uma área de lazer." Eu tenho certeza de que, com o primeiro recurso que entrar desse projeto, vai ser construída a área de lazer. Então, que as lideranças não fiquem relegadas a apenas pedir; que elas tenham esse empoderamento até para discutir com a sociedade majoritária.
As nossas portas no Brasil se abrem conforme as comunidades votam, conforme as comunidades estão inseridas na sociedade, conforme elas elegem os seus próprios representantes, conforme os seus representantes começam a ser professores nas universidades.
Eu acho que a minha fala é de agradecimento ao projeto e para dizer que a Defensoria Pública da União, depois de ouvir no que se constitui tudo isso, e o plantio da erva-mate, como o Prof. Hilario já disse, é uma coisa cultural da nossa região...
(Soa a campainha.)
A SRª DANIELE DE SOUZA OSÓRIO - ... a gente consegue estabelecer uma parceria aí para prestar assistência jurídica a vocês. (Palmas.)
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Obrigada, Daniele de Souza Osório, Defensora Pública.
Esse é um tema que apaixona, mas o meu tempo está se esgotando aqui. Não posso perder o avião para casa, porque tenho um compromisso hoje a 300km da minha casa, à noite.
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Eu vou ler aqui a participação popular pelo e-Cidadania. Aqui o cidadão participa, e existem três opiniões que eu quero ler. Nem sempre as opiniões são agradáveis, mas eu leio tudo o que vem.
O Artur Alvim, de São Paulo, diz: "Se faz mais do que necessário!! Está mais do que na hora de o povo brasileiro reconhecer os valores dos povos indígenas na sociedade! Praticamente 100% dos brasileiros possuem sangue indígena direta ou indiretamente [...]!!"
A Ana Ortiz, de São Paulo, diz: "Muito pertinente o tema! Parabéns aos envolvidos!"
E o Marcelo Almeida, de Minas Gerais, diz: "Nem em 1400 os índios tinham tanto espaço quanto essas demarcações estão fazendo agora. As tribos eram inimigas, e o território era disputado..." São opiniões que a gente tem que ler e respeitar, porque são do cidadão. Acho que ouvindo aqui, principalmente, o representante indígena, talvez ele mude sua opinião.
Então, essa foi a participação popular.
Quero lhe dizer que o que você falou aqui, as suas reivindicações serão levadas... Inclusive, vou conversar com os Senadores do seu Estado para ver se sensibilizo algum deles a fazer a quadra.
Também quero dizer que o Brasil é campeão em assinar tratados e convenções, só que não cumpre, não é? Também é campeão em não cumprir; tanto é que já foi condenado por organismos internacionais por trabalho escravo e outras coisas.
Quero também dizer que a iniciativa desta audiência não foi por achar que ela seria a solução, mas as experiências que estão acontecendo e que estão respeitando a questão da autonomia, é importante que a gente as divulgue para haver outras iniciativas. Certamente, alguém vai querer ir conhecer lá; outras aldeias vão querer conhecer Lima Campo para sentir como é que está acontecendo e ver o que é que dá certo em outros lugares, para a gente ir crescendo. Isso não significa que a gente abriu mão da demarcação; a principal bandeira é a demarcação, continua sendo, porque existe uma resistência danada.
E tem que haver o combate à cesta básica mesmo, porque não há coisa mais humilhante do que a cesta básica. Nós estamos voltando à era da cesta básica. Os prefeitos já estão começando a comprar cestas básicas para suprir a falta do Bolsa Família, que está sendo tirado de algumas famílias - era pouco, mas, pelo menos, eles tinham a autonomia de comprar o que queriam. E as nossas cestas básicas, a gente tem que reconhecer: primeiro, quem é que lucra com a cesta básica? De quem se compra? Às vezes é alimento que está armazenado há não sei quanto tempo. Então, é da pior qualidade - o arroz é da pior qualidade, o feijão é da pior qualidade -, porque é coisa que está armazenada por aí e que vai vencer na maioria das vezes. Eu digo isso porque fui "vítima" da cesta básica: passei necessidades na vida, e a gente recebia um arroz que tinha que tapar o nariz para poder comer; a massa de milho para fazer o cuscuz a gente tinha que tapar o nariz para poder comer; mas a gente tinha que comer porque alimentava ou, pelo menos, enchia a barriga, como se diz, enchia o bucho. Então, a cesta básica não é... E é humilhante: a pessoa fica na fila, no sol, nas prefeituras, para receber uma cesta que não dá para o mês inteiro, não é? Então, eu acho que a cultura da cesta básica tem que ser combatida. Eu acho que um projeto desses vem, pelo menos, para dar certo fôlego até que a gente tenha a concepção melhor ou que algum governo tenha a concepção de que tem que devolver a terra dos índios. Não é doar, é devolver, porque é deles.
Então, gente, eu quero agradecer e vou passar a palavra, por cinco minutinhos, para dois representantes. Assim - eu acho que vale a pena -, se os outros me permitem, seriam o empresário e o representante indígena, se ele quiser falar; se o Maradiles quiser falar mais alguma coisa, eu vou dar... Quer? Vou lhes dar cinco minutos, para um e para outro, porque eu tenho que pegar a estrada, senão eu perco o avião.
(Intervenção fora do microfone.)
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Pronto, ele quer ler um documento que ele me entregou. Então, concedo a palavra ao Maradiles de Souza, liderança indígena da aldeia Lima Campo.
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O SR. MARADILES DE SOUZA - Mais uma vez...
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Está ligado, pode falar.
O SR. MARADILES DE SOUZA - Mais uma vez, eu dou meu bom-dia a todos.
Eu queria ler um documento da minha comunidade, até mesmo das crianças, com a esperança de receber esse ginásio. Eu trouxe algumas fotos no meu celular. Se alguns duvidarem, eu poderei até passar essas fotos. As crianças ao meu lado tiraram as fotos. A área de lazer deles é um chão duro, um pedaço de chão onde eles fazem a área de lazer deles.
Eu gostaria de ler um documento que eles mandaram através da minha pessoa. Está escrito assim:
Terra Indígena Jatayvari Lima Campo, Município de Ponta Porã.
Nós guaranis kaiowás da aldeia Jatayvari Lima Campo, junto com o nosso líder da aldeia, elaboramos esse documento para as autoridades conforme nossa demanda.
Este documento é para mostrar o nosso único caminho para chegarmos em busca de solução e melhoria das condições da nossa comunidade. Queremos mais projetos, mais recursos para a nossa aldeia.
Estamos falando da construção de um ginásio coberto com iluminação para esporte e lazer na aldeia - a comunidade agradece - e também a construção de uma sala de aula com urgência.
Isso é o que eles mandaram para vocês.
Eu ficaria muito agradecido se fôssemos atendidos nem que seja com um pedido desses que a comunidade mandou.
Essa é a minha palavra. (Palmas.)
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Obrigada, Maradiles.
Vamos ouvir o Sr. Omar Ortiz, produtor rural que está convivendo com os indígenas nessa experiência.
O SR. OMAR ORTIZ TALEB - Obrigado, Senadora.
Realmente é difícil passar 20 anos - que é o contato mais estreito que eu tenho, inicialmente era só visual, com a situação da aldeia - e não se sensibilizar com a condição imutável da comunidade.
Nos contatos que eu tive, ao longo desses meses, com políticos, com a imprensa, com membros da sociedade civil, com sindicato rural, eu recebi algumas vezes a seguinte provocação: "Por que você está fazendo isso? Isso é um ato de altruísmo?" Eu acho que as motivações são diversas. Existe o altruísmo. Obviamente perguntam: "O que você ganha com isso?" O meu benefício, que não é só meu - eu acho que é um benefício da sociedade sul-mato-grossense e brasileira -, pode ser a pacificação desse tema.
Por meio de um projeto como esse, eu pretendo que exista um frescor nas discussões relacionadas às demarcações, o que é um tema tabu, principalmente quando trazido por um produtor rural. Eu sei o meu lugar, eu sei o lugar da minha fala, eu sei que eu não posso falar aqueles clichês que se ouvem muito por aí, como "índio não precisa de terra". Índio precisa de terra, índio precisa de uma série de outras coisas que não estão sendo atendidas.
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E, se a gente teve governos muito mais simpáticos ou pelo menos muito mais abertos a atender as demandas das populações indígenas... Isto eu falo: Fernando Henrique e Lula demarcaram terras indígenas na mesma proporção. A Dilma demarcou muito menos e botou um freio, de certa forma, principalmente no Estado, por conta dos conflitos que apareceram - Buritis foi o principal deles. Não digo que havia ali uma intenção política ou ideológica de brecar tudo, mas uma necessidade, eu acho. Foi o que eu ouvi, na época, de gente do Ministério da Justiça. E, se esses dois governos, Fernando Henrique e Lula, eram muito mais abertos, a gente está numa Legislatura muito complicada do ponto de vista do atendimento às demandas das minorias. E eu tenho a impressão de que o próximo Congresso vai ser pior nesse sentido; acho que a gente vai eleger um Congresso ainda mais distante dessas demandas.
Então, por mais que a demarcação de fato seja importante, por que não abrir esse tema e falar: de fato, o tamanho dessas áreas... Essas áreas são de fato necessárias? Elas são; mas, se você não consegue atender minimamente outros aspectos objetivos, de acesso a equipamentos públicos de saúde, acesso a equipamentos públicos de educação, rodovias e demandas que são menos objetivas, que dizem muito mais respeito às questões culturais e ancestrais das populações indígenas, de que adianta? E eu faço isso com toda prevenção. Eu não estou dizendo aqui que índio não precisa de terra. O que eu estou dizendo é: não adianta você olhar para esse aspecto, se você - você, Estado - não tem meios de promover o restante.
Acidentalmente a Aldeia Lima Campo se torna um caso. Geograficamente ela está relativamente bem localizada; ela está na beira da BR-463, Dourados-Ponta Porã; ela tem acesso a áreas de mata; ela tem acesso a cursos de água; por mais distante que seja a escola, existe hoje o transporte escolar, que atende as crianças da aldeia e atende também...
(Soa a campainha.)
O SR. OMAR ORTIZ TALEB - ... as crianças da fazenda, das propriedades rurais do entorno...
(Intervenção fora do microfone.)
O SR. OMAR ORTIZ TALEB - Obrigado, Senadora.
Por que não repensar o modelo de demarcações; um modelo em que possa haver concessões de ambas as partes?
Eu falo até em doação - doação no sentido jurídico do termo, não que eles não tenham o direito, que não seja deles; mas, uma vez que hoje o título pertence a terceiros, que áreas pudessem ser doadas com contrapartidas, atendendo algumas demandas objetivas das próprias populações. Eles se ressentem com a possibilidade de ficarem distantes do asfalto. Hoje eles estão a 400m, 500m, 600m do asfalto ali; mas, em áreas muito maiores, eles ficariam relativamente isolados, em estradas que hoje são mantidas principalmente pelos produtores rurais.
(Soa a campainha.)
O SR. OMAR ORTIZ TALEB - O Município de Ponta Porã, por exemplo - e isto deve ser realidade em vários outros Municípios -, não tem condições de manter essas estradas. Nós - eu, alguns vizinhos e tal -, no verão de 2016, que foi um verão extremamente chuvoso, gastamos em torno de R$800 mil para manter um trecho de 10km de estrada. E nesse mesmo verão faleceu um bebê na aldeia porque a ambulância não conseguiu entrar para buscar uma gestante que precisava ser levada à cidade para dar à luz - isso porque eles estão a 200m ou 300m do asfalto; que dirá quando essas demarcações de áreas infinitamente maiores do que essa os colocarem isolados. E a realidade é essa.
R
Não estou dizendo que eles não podem assumir o seu território de extensão de tantos hectares. A questão é se o Estado consegue suprir outras demandas que são igualmente importantes. Com esse projeto a minha ideia é provocar essa discussão; que se possa até rever aspectos relacionados às demarcações, que contemplem a sociedade como um todo, além, obviamente, do direito principal, que é o direito aos territórios indígenas dos povos originários.
Muito obrigado.
A SRª PRESIDENTE (Regina Sousa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) - Muito obrigada, Dr. Omar. (Fora do microfone.)
Eu agradeço a cada um e a cada uma que veio aqui, que atendeu ao nosso convite, porque acho que esse debate é importante. Nós estamos ao vivo e a TV Senado tem boa audiência. Esta audiência pública será repetida - sempre o Senado repete à noite. Então, é uma forma também de divulgar a situação, as coisas ruins, mas também as coisas boas que possam acontecer. Isso vai sensibilizando a população.
Como eu estou no meu tempo limite, eu quero agradecer a todos pelos apoios.
Nada mais havendo a tratar, declaro encerrada esta reunião.
Obrigada.
(Iniciada às 9 horas e 07 minutos, a reunião é encerrada às 10 horas e 34 minutos.)