1ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA
57ª LEGISLATURA
Em 20 de março de 2023
(segunda-feira)
Às 9 horas
15ª SESSÃO
(Sessão Especial)

Oradores
Horário

Texto com revisão

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O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS. Fala da Presidência.) - Bom dia a todos e a todas, Senadores, Deputados, autoridades, Embaixadores, Ministros, representantes de ministros, sociedade civil organizada.
Neste momento, vamos dar abertura à nossa sessão.
Declaro aberta a sessão.
Sob a proteção de Deus, iniciamos nossos trabalhos.
A presente sessão especial foi convocada em atendimento ao Requerimento nº 47, de 2023, de nossa autoria e de outros Senadores e Senadoras, aprovado pelo Plenário do Senado Federal.
A sessão é destinada a celebrar o Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial e todo tipo de preconceito.
Convidados. A Presidência informa que esta sessão terá a participação dos seguintes convidados: Sra. Roberta Eugênio, Secretária-Executiva do Ministério da Igualdade Racial, representando a Ministra de Estado Anielle Francisco da Silva; Sra. Marina Lacerda, Chefe de Gabinete do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, representando o Ministro de Estado Luiz de Almeida; Sra. Nilma Lino Gomes, Ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos no período de 2015 a 2016; Sra. Mariana dos Santos, massoterapeuta, atleta e deficiente de baixa visão; Sra. Lívia Santana e Sant'Anna Vaz, Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia; agora o meu querido amigo, Vossa Reverência, o Sr. Frei David Santos, fundador e Diretor-Executivo da ONG Educafro-Brasil; Sra. Lilian Oliveira de Azevedo Almeida, Procuradora do Município de Salvador, Bahia; Sr. Douglas Belchior, cofundador do movimento por educação popular e do combate ao racismo da Uneafro Brasil; Sr. Martvs Chagas, Secretário Nacional de Combate ao Racismo do Partido dos Trabalhadores; e Sr. Toni Reis, Diretor-Executivo da Organização Brasileira LGBTQIA+, chamada Grupo Dignidade.
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Neste momento vamos cantar o Hino Nacional.
Todos em posição de respeito, por favor.
(Procede-se à execução do Hino Nacional.) (Pausa.)
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O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Neste momento, anuncio que teremos duas mesas. Cada convidado terá em torno de oito a dez minutos para fazer a sua exposição.
Nessa primeira mesa, chamamos a nossa querida amiga, a jovem Deputada Federal Dandara. (Palmas.)
Chamamos a Secretária-Executiva do Ministério da Igualdade Racial, Sra. Roberta Eugênio, representando a Ministra de Estado da Igualdade Racial. (Palmas.)
Convidamos a Promotora de Justiça do Estado da Bahia, Sra. Lívia Santana e Sant’Anna Vaz. (Palmas.)
Neste momento, faço um breve pronunciamento em nome da Presidência da Casa.
Senhoras e senhores, celebramos nesta sessão especial do Senado o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, 21 de março, que é no caso amanhã, data instituída pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 1960.
Queremos fazer uma fala muito realista, dizendo de imediato que, apesar dos esforços individuais e coletivos de décadas de muita luta e persistência, o racismo, o preconceito e a discriminação continuam a impregnar de ódio, de violência e de intolerância a sociedade e as instituições.
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Estão enraizados, presos às cotidianas estruturas políticas, sociais e econômicas. Agridem, reprimem, verbalizam iras e sentimentos viscerais de repulsa e aversão contra negros e negras, quilombolas, indígenas, LGBTQI+, mulheres, pessoas com deficiência, idosos, pobres, asiáticos, judeus, palestinos, migrantes e refugiados, as chamadas minorias étnicas.
Lembro aqui que a obra Kaputt - quebrado, calado, destroçado -, de Curzio Malaparte, lançado em 1944, já dizia sobre o relato das crueldades da Segunda Guerra, do extermínio de pessoas, do racismo e da xenofobia. Um oficial nazista diz a um menino que não foi ele quem inventou os conflitos, a discriminação, os preconceitos. Então, propôs um desafio ao menino: "Escuta [disse ele], eu tenho um olho de vidro. É difícil distingui-lo do verdadeiro, mas, se você acertar qual o verdadeiro, você não será sacrificado; se você descobrir qual é, eu deixo você ir embora, você estará livre". O menino não hesita e diz: "É o olho esquerdo". O oficial espantado pergunta: "Mas como você descobriu?". Então, o garoto explica: "Porque, dos dois olhos, somente um tem algo de humano, de humanitário, é o olho esquerdo". E assim ele acerta e salva sua vida.
Quando nos afastamos da condição da natureza e da existência humana, perdemos toda a essência da humanidade. A verdade é que deixamos de ser gente, perdemos a excelência da alma e nos transformamos em monstros. Ninguém nasce odiando ninguém. A criança não nasce racista, preconceituosa, ela é ensinada a discriminar; da mesma forma os mais jovens, conscientes ou de súbito. São ensinamentos por mentes e corações sem amor, gente com olhos desumanos, gente sem compaixão, sem bondade, sem generosidade, sem tolerância, gente aprisionada em pensamentos doentios.
Somos reféns de uma educação... Infelizmente - e eu sempre digo que a educação liberta -, somos reféns ainda de uma educação que não liberta, que não inclui, que não questiona, que não expõe as tragédias humanas do preconceito e do racismo. Até hoje a verdadeira história da formação do povo negro no Brasil... Nós temos uma lei que manda e até hoje ela não é aplicada. Nós não temos 20% dos municípios que aplicam essa lei. Somos reféns de um Estado que se cala ao arbítrio covarde de uma sociedade, que se cala aos donos do poder e aos seus aparatos políticos e administrativos de governos que, por séculos, modelaram, formaram ou plasmaram métodos e discursos de que uma pessoa negra, uma pessoa deficiente ou uma pessoa com outra orientação sexual é inferior às outras. Uma pessoa por ter a pele diferente e ser pobre não tem os mesmos direitos de um cidadão, segundo eles.
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O racismo é, sim, de todas as formas na sociedade brasileira muito forte, está em todos os cantos, está no ar, está aqui dentro, está lá fora, está nas empresas, está nas praças, nas ruas, no campo e na cidade, no setor público e privado, nas falas, muitas vezes, entre familiares e vizinhos.
É só vocês verem que está explodindo, em pleno século XXI, em praticamente todos os estados - eu estive com você numa região do Rio Grande - o trabalho escravo. Hoje mesmo, o Ministro Luiz Marinho está se deslocando para uma região do nosso país para ver in loco o trabalho escravo. Li, hoje de manhã, que descobriram, nessa semana, aqui em Goiás, mais de 212 trabalhadores sob o regime de escravidão - podem crer que 90% são negros e negras. Aí vai Pernambuco, aí vai aqui em Minas Gerais. Não tem um estado em que, se você for a fundo, não vai encontrar trabalhadores sob o regime de escravidão.
O racismo é repugnante, traiçoeiro, mesquinho, desumano. Digo-lhes que ninguém deve ser neutro nessa luta. Quem é neutro é cúmplice. Por isso, todos nós temos que ter uma posição muito firme nesse combate. Não podemos desistir, em hipótese alguma, de combater esse mal que nos envergonha tanto. Somos muitas vezes como aquela criança tão bem descrita pelo poeta célebre do desassossego: em momento de extrema dor, de amargura, de vazio, de alma ferida, de vida no fundo do poço, em vez de dizer, "tenho vontade de chorar", eu vos digo que tenho vontade de lágrimas e lágrimas.
Nossa negritude e nossa brasilidade impõem uma condição única que é de não nos calar, jamais, jamais, frente às injustiças e aos descaminhos. Que nossas lágrimas que caem pelos jovens negros que morrem por balas perdidas façam sempre o bom combate!
Lembramos aqui as mães santas negras. Escorrem, pelas nossas pálpebras, lágrimas quentes conscientes pelo menino negro ou pela menina negra, pelas injustiças, pelos que foram constrangidos por seguranças, por exemplo, no shopping, como foi o caso de Porto Alegre. Meu amigo Beto foi morto dentro do shopping, porque ele era negro. O negro tem direito, sim, como todos têm, a entrar no supermercado, fazer suas compras e que a mãe não tenha que dizer: "Ah, vai para a aula, mas se cuide muito. Você pode morrer se acontecer qualquer movimento maior nas ruas. Se cuide". O negro infelizmente é o primeiro alvo. Temos o direito de ser tratados como seres humanos. Inclusive, aqui eu destaco...
Estou vendo no Plenário o meu querido amigo Deputado Lindenmeyer.
Está lá na Câmara um projeto que nós aqui aprovamos. A Coalizão Negra por Direitos fez um papel fundamental - não é, Douglas? -, que foi a abordagem policial. Não podemos...
Estou com o cartão para não errar seu nome, Lindenmeyer. Alexandre Lindenmeyer, não é?
Não podemos permitir que a abordagem policial continue como é hoje. É um absurdo o que acontece na abordagem policial quando se refere a um cidadão negro. Aprovamos, por unanimidade, aqui neste Plenário e agora está na Câmara. Então, eu faço um apelo para que a gente, como outros países estão fazendo no mundo todo, mude a abordagem policial, porque, no Brasil, é o seguinte: a abordagem policial, quando é negro ou negra, é de uma forma - vocês todos sabem disso, não estou contando novidade aqui - e, quando não é negro ou negra, principalmente num bairro nobre, aí é totalmente diferente.
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Mas, enfim, mata-se no Brasil pelo olhar, pelo silêncio, pela omissão; mata-se com a destreza dos abatedouros, com o fio afiado em pedra úmida.
Neste país de muitas reticências e idolatrias nas esquinas, palácios e porões, mata-se a mulher negra, a mulher branca. O feminicídio queima como o fogo da inquisição. É o país onde mais são assassinadas mulheres, negras e brancas. Discriminam as pessoas com deficiência, os migrantes, os refugiados, os ciganos, os pobres; discriminam pela orientação sexual, pela escolha de religião. Discriminam até mesmo aqueles que desistiram de viver: mesmo mortos eles continuam sendo discriminados. Forjam testemunhas, enterram os miseráveis, os humildes, os esquecidos. Que país é esse em que vivemos em que a verdade e a memória são violentadas?
A vida humana deve ser prioridade; jamais a barbárie. Não, não à barbárie! Buscamos sempre os direitos humanos na sua totalidade. Quando uma vida é levada, sangrada, esquartejada, quando famílias inteiras são destruídas pelo vil racismo brasileiro, pela estupidez da discriminação, todos nós - todos nós - perdemos um pouco da nossa alma e da nossa própria vida.
O Senado tem agido para combater o racismo, a discriminação e os preconceitos. Aprovamos muita coisa, mas é pouco ainda; temos que aprovar mais. Dois mil e vinte e dois foi um ano produtivo para esta Casa: aprovamos mais de 20 projetos de lei, que estão na Câmara dos Deputados. Mas estamos muito aquém. É preciso avançar.
O Congresso brasileiro tem que ser exemplo nesta luta constante que todos nós temos que fazer. Os projetos são tantos que eu vou destacar somente três aqui, porque a minha fala é muito na linha de acharmos caminhos para combater a discriminação, o racismo, a violência contra o povo brasileiro.
O PL 5.231, de 2020, já aprovado no Senado, tramitando na Câmara, trata do que destaquei, abordagem policial. Esse, para mim, é um dos principais projetos.
Outro projeto: 482, de 2017, que prevê 20 de novembro, dia de Zumbi dos Palmares, feriado nacional. Seria um dia de reflexão: como trata esse país os refugiados, como trata os imigrantes, como trata os negros, as negras, as mulheres, os idosos, as crianças, os adolescentes? Enfim, como trata toda a nossa gente? Seria um dia de reflexão, pegando o símbolo maior que é o nosso líder Zumbi dos Palmares, feriado em nível nacional. Aprovamos aqui, Dandara - refiro-me a você porque você é negra como eu e está lá na Câmara dos Deputados. Aprovamos por unanimidade; e a Câmara não vota também. Não votou também, Lindenmeyer. Fica aqui esse apelo, não de crítica, mas um apelo de carinho, de solidariedade ao nosso povo, à nossa gente, para que a Câmara também avance nessas políticas.
PL 859, de 2023, que proíbe a terceirização da atividade fim. Por quê? Porque ela é a porta, ela potencializa o trabalho escravo. Vou dar um dado para vocês aqui, rapidamente, da terceirização: de cada dez trabalhadores da terceirização... De cada dez trabalhadores que são salvos do trabalho escravo, de cada dez, nove são terceirizados. De cada dez trabalhadores encontrados no trabalho escravo neste país, nove são terceirizados.
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Nós lutamos tanto contra a terceirização na atividade fim! Viajamos nos 27 estados, arrancamos cartas de cada estado, trouxemos para o Senado, e o Senado, então, não aprovou aqui a terceirização da atividade fim, mas, infelizmente, a Câmara desarquivou um projeto lá - de lá atrás, antigo, tirou não sei de onde - e aprovou que se podia terceirizar a atividade fim. E, assim, o que aconteceu? Cada vez mais, escancarou-se o trabalho escravo no Brasil!
Lembro que, no dia 11 de abril, com a participação de todos os senhores e as senhoras -a Dandara foi fundamental na coleta de assinaturas -, vamos lançar a Frente Parlamentar Mista Antirracismo, composta até o momento por mais de cem Parlamentares, Câmara e Senado.
Eu queria agradecer a todos vocês por estarem aqui. Eu sei que é um dia de semana em que cada um deixou suas atividades e se deslocou para cá, mas podem saber que sempre vale a pena quando a causa não é pequena. É uma causa justa, é uma causa nobre, é política humanitária, é salvar um povo que até hoje, infelizmente, ainda sofre os grilhões da escravidão!
Quando eu estou visitando algum estado onde se encontra trabalho escravo, Martvs, chega a me vir à mente: "Será que voltamos à peleia entre abolicionistas e escravocratas?". Nós somos - todos vocês aqui - abolicionistas, mas os escravocratas estão aí, estão no chamado grande mercado... Nessa aqui que eu vi hoje, em Goiás, são grandes grupos econômicos, e 212 foram lá salvos pelos fiscais - eu digo "salvos", porque iam morrer do jeito que estavam lá.
Por fim, eu quero aqui, neste momento, além de agradecer a presença de todos vocês neste dia, agradecer aqui também à equipe daqui, do Senado. Eu agradeço à Secretaria-Geral da Mesa e ao Cerimonial - eles estavam preocupados ainda aqui, pois faltavam alguns, já eram 9h, mas todos os nossos convidados foram chegando - pelo excelente trabalho de preparação desta sessão.
No meu encerramento, em que a gente sempre faz uma fala um pouquinho mais forte e busca o aplauso, eu queria que, neste meu encerramento, vocês batessem palmas não para mim, mas para o nosso povo, tão sofrido, para toda a nossa gente; que batessem palmas para os fiscais de trabalho que foram massacrados há 19 anos aqui, em Unaí... Eu apresentei um projeto para que fossem heróis da pátria os quatro que foram massacrados há 19 anos por um fazendeiro aqui, em Unaí; o fazendeiro está solto, os que fizeram o crime estão presos e disseram: "A ordem era matar um. E nós perguntamos para o mandante...". Assim me contaram as viúvas do massacre de Unaí, que disseram que eles mesmos contaram que o mandante disse: "Mate os quatro. Torre todos!". É a expressão que eles usam. Eu queria que a gente desse uma salva de palmas a todos aqueles que morreram nessa luta permanente. Lembro aqui o nome por quem eu tenho o maior carinho, fiz o poema mais bonito da minha vida, que é o do Abdias. Grande Abdias! Então, eu queria que nós, todos de pé, déssemos uma grande salva de palmas às políticas humanitárias e a todos aqueles que lutam contra o racismo e todo tipo de preconceito!
E aqui encerro o meu pronunciamento! (Palmas.)
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Houve uma unanimidade aqui na mesa. Como a Dandara está com todo pique, coletou mais de cem assinaturas, e eu aqui as outras no Senado, com muita satisfação, a essa jovem negra vou passar a palavra.
Concedo a palavra a S. Exa. a Sra. Deputada Dandara, Deputada Federal pelo Estado de Minas Gerais. Aqui diz que é por cinco minutos, mas são oito, dez; nós estamos em casa.
A SRA. DANDARA TONANTZIN SILVA CASTRO (Para discursar.) - Bom dia a todos, todas, "todes".
É uma alegria imensa participar de uma sessão solene de tamanha importância neste espaço legislativo e perceber que este Plenário tem, neste momento, a diversidade, a cara, a cor do povo brasileiro. Oxalá tenhamos essa mesma característica em dias normais de sessão!
Quero agradecer imensamente ao Senador Paim pelo compromisso histórico, pela dedicação de uma vida inteira com essa luta que é tão cara e tão preciosa para nós. Saudar também a Profa. Nilma Lino Gomes, que nos acompanha de forma remota.
Eu tenho o privilégio de poder viver e conviver com a minha ancestralidade em vida e sei o quanto isso é rico para nós.
Também quero saudar a Secretária Executiva do Ministério da Igualdade Racial, Sra. Roberta Eugênio. Leve o nosso abraço à Ministra Anielle Franco, do nosso tão sonhado, lutado e defendido Ministério da Igualdade Racial. Que bom que está de volta!
Também quero cumprimentar a Sra. Lívia Sant'Anna, uma grande jurista da Bahia que tem tudo para, cada vez mais, nos representar em espaços onde o povo negro precisa, necessita estar.
Também quero cumprimentar o nosso Secretário de Combate ao Racismo, do PT, meu companheiro Martvs das Chagas, que, na condução da Secretaria de Combate ao Racismo, vem fortalecendo lideranças negras. Nós temos, pela primeira vez na história, um número recorde de Parlamentares negros no nosso partido. Nós tínhamos a grande Benedita da Silva. Hoje nós somos sete mulheres negras Deputadas Federais. Obrigada por estimular.
Também quero cumprimentar a nossa grande liderança, que conduz debates muito importantes em nível internacional, Douglas Belchior, representando também a Coalizão Negra. Também cumprimentar o nosso grande Frei David e toda a Educafro, que está por aí.
Olha, dos 500 anos oficiais de história do nosso país, quase 400 foram de um modelo formal de escravização de negros e negras. Nesses pouco mais de cem anos de falsa abolição, nós não conseguimos promover as reparações de que o nosso povo tanto precisa. Pelo contrário, no dia 13 de maio, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, ela só aboliu os crimes que os senhores de engenho cometeram contra a humanidade. Nós, negros e negras, ou continuamos na condição de escravizados ou fomos expulsos das terras dos senhores. Não recebemos acerto, férias, décimo terceiro, seguro-desemprego, um pedacinho de terra para plantar ou para colher. Para acabar de completar, no pós-abolição, o Estado brasileiro organizou ainda um conjunto de leis para continuar mantendo hierarquia de privilégios, para continuar mantendo a desigualdade racial. Até o ano de 1910, apenas dois tipos de pessoas não podiam frequentar a escola: primeiro, pessoas com lepra ou doenças contagiosas; segundo, pessoas negras, mesmo que libertas. Isso significa dizer que a minha bisavó não pôde estudar; a minha avó só foi até a 4ª série primária e já era muito para ela; a minha mãe trabalhou mais de 20 anos como empregada doméstica e hoje é professora como eu. Eu entrei na universidade pública graças a uma lei que é luta histórica do movimento negro brasileiro, graças à Lei de Cotas...
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(Soa a campainha.)
A SRA. DANDARA TONANTZIN SILVA CASTRO - ... e também entrei no mestrado graças a essa política de reserva de vagas. Eu fui entender a importância da educação quando eu já estava na universidade, porque muitas vezes entrar na universidade era muito mais o sonho que a minha mãe projetava em mim do que propriamente o meu sonho, mas eu entendi a capacidade que a educação tem de transformar vidas, de alterar a realidade.
E por que essa luta foi tão central durante tantos anos para o movimento negro brasileiro? Desde a Frente Negra Brasileira, o Teatro Experimental do Negro, a luta por reparação a partir da educação, das ações afirmativas sempre foi central. E hoje, como Deputada Federal neste espaço, nesta Casa de Leis, eu tenho o orgulho e a responsabilidade de assumir a relatoria da revisão da Lei de Cotas, para que, quando aqueles racistas perguntarem onde estão os cotistas ou ousem cogitar que as cotas reduzem ou fazem cair a qualidade do ensino superior, nós mostremos onde estão os cotistas: sentados ao lado, na mesma mesa, debatendo de igual para igual.
A política afirmativa no nosso país precisa alavancar e alcançar patamares à altura dos desafios desse tempo. Ao longo desses dez anos de Lei de Cotas, nós conseguimos ter experiências que aprimoraram e aperfeiçoaram a aplicação dessa lei. Olhem a experiência das comissões de heteroidentificação, que combatem as fraudes e a afroconveniência! Eu estou convencida, Douglas, de que as comissões de heteroidentificação precisam estar como parte integrante da nossa nova Lei de Cotas neste relatório. Eu também acho que os NEABIs (Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas) cumpriram um papel fundamental (Pausa.) ... no processo de construção da educação antirracista. Os NEABIs precisam ser valorizados no âmbito das instituições federais. Os NEABIs precisam ter papel de monitoramento e acompanhamento no dia a dia da Lei de Cotas para que não se faça revisão ou avaliação a cada dez anos, mas se tenha um monitoramento permanente.
A universidade brasileira tem um tripé: ensino, pesquisa e extensão, mas, sem garantir a permanência estudantil, nós não efetivamos nenhum desses pontos do tripé. Nós precisamos reformular a educação pública brasileira para que permanência e assistência estudantil sejam um eixo estrutural e estruturante, porque isso diz diretamente sobre os nossos jovens negros, os nossos estudantes negros de periferia, que lutam muito para entrar e, quando entram, lutam mais ainda para permanecer e se formar com qualidade.
Também acho que é fundamental nós avançarmos em legislações que garantam que as políticas de promoção da igualdade racial tenham recursos para serem executadas, porque num país em que quase 400 anos foram destinados à exploração política, social, cultural, ambiental do povo negro, nós não conseguiremos fazer reparação sem a destinação séria e dedicada de recursos a isso.
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Por isso, Paim, acho que é fundamental o projeto de lei que cria o fundo nacional de reparação da escravidão, porque esse recurso tem que sair de algum lugar. E Oxalá esteja presente nesse debate a reforma tributária que nós estamos fazendo, porque nós sabemos que quem é rico e quem é herdeiro neste país têm as mãos sujas de sangue porque essa riqueza, a manutenção das desigualdades e da opressão vêm do legado escravocrata.
Nós queremos que esse fundo nacional de combate ao racismo tenha realmente, na sua centralidade, o financiamento de políticas públicas voltadas para a reparação histórica, a reparação que nunca chegou, que nunca bateu na porta do povo preto.
Também acho que é fundamental cada vez mais nós andarmos em bando, nos aquilombarmos, nos irmanarmos, porque para combater o racismo estrutural, estruturante, o racismo institucional da nossa sociedade, nós não conseguiremos fazer isso de forma individual ou isolada.
Para finalizar quero ler uma poesia do Nêgo Bispo, em que ele diz assim:
Fogo!… Queimaram Palmares,
Nasceu Canudos.
Fogo!… Queimaram Canudos,
Nasceu Caldeirões.
Fogo!… Queimaram Caldeirões,
Nasceu Pau de Colher.
Fogo!… Queimaram Pau de Colher…
E nasceram, e nasceram tantas outras comunidades que os vão cansar se continuarem queimando.
Porque mesmo que queimem a escrita,
Não queimarão a oralidade.
Mesmo que que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados.
Mesmo queimando o nosso povo
Não queimarão a [nossa] ancestralidade.
Muito obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Convidamos agora, depois dessa brilhante exposição... Eu sei que todas serão brilhantes, não é? E olha que aqui nós estamos com três mulheres na mesa. Quando a gente está na Comissão, o pessoal lá do interior do Brasil fala: "Paim, não tem mulher nessa mesa?". Eu respondo: "Calma, calma, porque eu estou chamando já". Com orgulho, estamos aqui com três mulheres na mesa.
Uma grande salva de palmas para essas mulheres guerreiras aí. (Palmas.)
Com essas palmas, eu concedo a palavra a S. Exa. a Sra. Roberta Eugênio, Secretária-Executiva do Ministério da Igualdade Racial, representando a nossa querida e amiga Ministra de Estado Anielle Francisco da Silva.
O tempo aqui que nós tínhamos colocado era de cinco minutos para cada um. Eu, por livre e espontânea vontade - por isso que a campainha tocou algumas vezes -, já a alertei de que ela poderia falar de oito a dez minutos - e ela ficou nove minutos. Ficou bem, viu?
A palavra é sua.
A SRA. ROBERTA EUGÊNIO (Para discursar.) - Muito obrigada, Senador. Deixe-me só ajeitar aqui.
Bom dia a todas, todos e "todes". É uma honra estar aqui no Plenário, neste momento representando a Ministra da Igualdade Racial Anielle Franco.
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Agradeço ao Senador Paulo Paim pela iniciativa de abrir esta sessão, de realizar esta sessão em celebração, em memória, em convite, em chamada à responsabilização sobre a promoção da igualdade racial neste país.
Em relação ao Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, quero, neste momento, aproveitar para saudar a mesa, a Deputada Dandara, a Promotora de Justiça Lívia Santana Vaz, a professora e nossa eterna Ministra Nilma Lino Gomes, o Secretário Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do PT, Martvs Chagas, e também a Douglas Belchior, da Coalizão Negra por Direitos.
Eu começo esta minha fala trazendo uma memória sobre o que é necessário para a promoção da igualdade racial dentro do Brasil. A promoção da igualdade racial, sem dúvida, faz parte de um dos desafios institucionais mais ousados e igualmente mais urgentes, porque o que será preciso para efetivamente atingirmos a igualdade racial neste país? Sem dúvida, passa por revolver a nossa história e lidar com a profundidade dos desafios do enfrentamento ao racismo, da responsabilização por todos os danos provocados a toda a população negra e pela promoção de direitos para toda essa população, de direitos que efetivamente garantam uma vida com dignidade.
Assim, essa referência, esse Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial marca o massacre de Sharpeville, ocasião em que 20 mil pessoas negras protestavam na cidade de Joanesburgo contra a discriminação racial em função de uma lei do passe, que obrigava que essas pessoas portassem cartões de identificação, especificando os locais da cidade por onde tinham permissão de circular...
Mais de 60 anos se passaram, e, ainda hoje, o massacre de Sharpeville e essas restrições ao deslocamento, às questões que, frequentemente, fazem com que os corpos negros tombem a partir de uma violência promovida pelo próprio Estado, fazem com que esse Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial seja uma data que fala de uma responsabilidade nossa no hoje. No Brasil, justamente pelo simbolismo dessa data, o Presidente Lula criou, em 2003, a então Secretaria Nacional de Políticas de Promoção para a Igualdade Racial (Seppir), com o objetivo de promover a igualdade racial, de combater o racismo, assim como de criar políticas públicas voltadas para a proteção de direitos de indivíduos, de grupos étnicos que compõem a maioria deste país, uma maioria, como dizia Lélia Gonzalez, minorizada, ainda muito silenciada, embora, em dias como hoje, aqui, neste Plenário, nós vejamos uma maioria de negros, que é o que compõe este país.
Nesse ponto, vale ressaltar que, infelizmente, já que o racismo faz parte da estrutura brasileira, como aponta Grada Kilomba, ele também se configura a partir dessa exclusão, que, embora não se dê aqui, faz parte de um dia a dia que nós, frequentemente, encontramos em todos os espaços de poder e tomada de decisão, faz parte de uma maioria que é invisibilizada ainda nos meios de comunicação, nos postos de decisão dentro de universidades, autarquias, e também que configuram todos os privilégios que garantem de modo silencioso que pessoas brancas avancem sem se responsabilizar pelas penúrias que pessoas negras sofrem.
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Trata-se, portanto, de um fenômeno estrutural, perpetuado no Brasil de maneira social, econômica, cultural, política e, inclusive, normativa, a despeito do importante e transformador trabalho de Deputados, Senadores, como o Senador Paulo Paim, como a Deputada Dandara e tantos outros, que contribuíram para os grandes avanços que ainda podem não ter transformado toda a realidade dessa sociedade, mas já garantem que esse debate não mais seja um debate que trate sobre os absurdos de falarmos de um país supostamente democrático racialmente. Se hoje podemos falar que o mito da democracia racial está assoreado, é a partir da contribuição de todos aqueles que lutaram incessantemente, ainda que muitas vezes de modo solitário, em espaços de poder, em espaços de produção de normas, dentro do Governo ou ainda, mesmo durante esses 20 anos da Seppir, de modo aquilombado. Foram todos esses esforços que transformaram esse país.
Diante desse cenário, a criação da Seppir representa, sim, um marco na história do Brasil, um marco que se relaciona com a institucionalização do enfrentamento às desigualdades raciais a partir de uma responsabilidade que o Estado enfim assume, relacionando a promoção da igualdade racial como um objetivo necessário para a consolidação da democracia.
A Lei 12.288, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, é um desses marcos. E, embora, ainda hoje, o estatuto não tenha totalmente se consolidado, é a partir dele que muitos dos nossos esforços puderam avançar, como a institucionalização da Lei de Cotas, a lei que reserva 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos e, mais recentemente, a Lei 14.531, que equipara o crime de injúria racial ao crime de racismo.
A Seppir, hoje Ministério da Igualdade Racial, foi a raiz fundante do que hoje nós temos como as políticas institucionais de promoção da igualdade racial no Brasil.
Nesse sentido, o Ministério da Igualdade Racial, aqui representado por mim, reafirma o seu papel na construção de políticas públicas voltadas: à promoção da igualdade racial e étnica; ao fortalecimento e à ampliação das ações afirmativas; ao combate e à superação do racismo; à proteção e ao fortalecimento dos povos de comunidades tradicionais de matriz africana, povos de terreiro e quilombolas.
E, justamente para o cumprimento de tais objetivos, na data de amanhã, a data que enfim celebra o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, mas consolida essas duas décadas da Seppir ao Ministério da Igualdade Racial hoje, com muito orgulho, nós podemos dizer que, ainda com um orçamento que talvez não seja aquele devido para a consolidação de tudo que precisamos para a promoção da igualdade racial no Brasil, mas...
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(Soa a campainha.)
A SRA. ROBERTA EUGÊNIO - ... com o maior orçamento da história da CPI e do Ministério da Igualdade Racial, lançaremos uma série de atos normativos, como o Programa Brasil Quilombola, a titulação de cinco territórios quilombolas, a criação de grupos de trabalhos interministeriais, com a retomada do Plano Nacional de Ações Afirmativas, do Plano Juventude Negra Viva, entre outros.
É importante, ainda assim, pontuar que o trabalho do Ministério da Igualdade Racial é um trabalho transversal, o que significa que a elaboração das políticas públicas que promovam a igualdade racial no Brasil precisa passar e ser pauta de todos os demais ministérios como uma luta que não é apenas da população negra, mas de todo este país para que todos, enfim, tenham acesso pleno à educação, à saúde, a um trabalho digno, à moradia, a saneamento e à justiça. Isso perpassa por todos os órgãos do poder público, e não apenas pelo Poder Executivo. Assim sendo, o Ministério da Igualdade Racial conta com a colaboração de todos e se coloca aqui, mais uma vez, à disposição para construir um país mais equitativo e efetivamente justo para as suas maiorias até que nenhuma pessoa negra mais esteja em situação de indignidade, de violência, de precariedade, de ausência, de ausência de direitos. O Ministério da Igualdade Racial é um órgão que deve ser um órgão de Estado até que o racismo não mais seja parte do nosso dia a dia.
Eu quero, para finalizar a minha fala, fazer aqui memória do Valdemar Rufino, um homem negro, idoso, de 66 anos, que foi vítima da violência racial, da violência institucional racial, no Rio de Janeiro, na última semana. Para quem não acompanhou essa história, o Valdemar Rufino era um homem negro, morto por uma bala, durante um confronto dentro da comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, que já tinha perdido seu filho assim, num massacre como poderíamos registrar, o massacre de Sharpeville, que aconteceu na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Um homem trabalhador que não teve direito a uma aposentadoria digna e, por isso, ainda se mantinha trabalhando, agora, deixa seus dois filhos, que, com uma revolta própria de quem não sabe o que fazer da vida num Estado que não promove direitos para a população negra e retira vidas de modo contumaz, hoje...
(Soa a campainha.)
A SRA. ROBERTA EUGÊNIO - ... estão órfãos de pai, de mãe, sem irmão, ainda residentes dentro dessa comunidade, em que a realidade e a promoção da vida não é aquilo que abriga o seu dia a dia. Aqui, então, fazendo memória do Valdemar, eu faço memória de todas as vítimas fatais e todas aquelas que ainda se insurgem, mas, ainda assim, parte de nós sempre fica pelo caminho, toda vez em que o racismo nos atravessa, e isso acontece diuturnamente. O Ministério da Igualdade Racial se coloca, então, de pé, a postos, para que nenhuma vida negra mais tombe por conta de uma violência institucional, de uma violência que deveria ser evitada, quando o correto seria que todas e todos nós aqui estivéssemos debatendo hoje...
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(Soa a campainha.)
A SRA. ROBERTA EUGÊNIO - ... sobre a garantia de direitos e não aqui fazendo memória ainda, mesmo após 400 anos de escravidão, sobre a derrubada das nossas vidas, que acontece diuturnamente.
Eu fico por aqui e agradeço ao Senador e a todos que se encontram neste Plenário.
Bom dia. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Muito bem. Meus cumprimentos, Secretária-Executiva do Ministério, Sra. Roberta Eugênio, representando a Ministra de Estado da Igualdade Racial.
Neste momento, passamos a palavra à Promotora de Justiça do Estado da Bahia, Sra. Lívia Santana e Sant´Anna Vaz, que tem nos ajudado muito aí nos encaminhamentos de alguns projetos.
A SRA. LÍVIA MARIA SANTANA E SANT´ANNA VAZ (Para discursar.) - Bom dia a todas as pessoas presentes nesta muito especial sessão.
Eu queria iniciar parabenizando o Senador Paulo Paim por este dia, por esta celebração, por esta sessão especial, e, acima de tudo, agradecendo-lhe por sua postura, por sua trajetória e pela concretização da luta pela eliminação da discriminação racial no nosso país. Também quero cumprimentar a Ministra, Professora e Doutora querida Nilma Lino, que nos acompanha aqui virtualmente; e cumprimentar a Sra. Deputada Federal Dandara, que terá uma importante missão de concretização da igualdade racial a partir da revisão da Lei de Cotas e do aprimoramento de política pública tão importante para a igualdade racial no nosso país. Cumprimento também a Secretária-Executiva do Ministério da Igualdade Racial, Sra. Roberta Eugênio - peço que leve meus cumprimentos à nossa querida Ministra Anielle Franco.
Com isso, quero iniciar a minha fala com a leitura que talvez muitas pessoas aqui não conheçam, mas que diz respeito à nossa história.
Apenas pessoas livres podem frequentar as escolas (Lei Provincial nº 13, da Província de Minas Gerais, de 1835).
Proibição de frequentar as escolas para todas as pessoas que padeçam de moléstias contagiosas, escravos e pretos africanos, ainda que livres ou libertos (Lei nº 1, da Província do Rio de Janeiro, de 1837).
Criação na capital da Província do Rio Grande do Sul de um colégio de artes mecânicas para ensino de órfãos de pobres expostos e filhos de pais indigentes que tenham chegado à idade de dez anos sem seguir alguma ocupação útil. Admitem-se nas oficinas todas as pessoas, todos os moços, excetuados os escravos.
São proibidos de se matricularem nas escolas meninos não vacinados ou que padeçam de moléstias graves, bem como escravos (Decreto nº 1.331-A, Decreto Coutto Ferraz, de 1854).
Eu poderia seguir aqui por alguns minutos listando a legislação brasileira que proibiu ou restringiu o acesso de pessoas negras e escravizadas por quase um século, Senador Paulo Paim, neste país.
E, se a educação é um instrumento fundamental de ascensão social, de que mérito nós estamos falando?
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Nós estamos hoje há, quase, 135 anos da lei que declarou a abolição da escravidão no Brasil, dedicando apenas dois artigos, Deputada Dandara, para dar conta de quase quatro séculos de escravização. E, mesmo depois desses 135 anos, o fator raça, Frei David, segue sendo determinante de todas as desigualdades no nosso país. Se eu falar em mortalidade infantil, crianças negras são as que mais morrem. Se eu falar em mortalidade materna, violência obstétrica, violência doméstica e familiar, violência sexual, Douglas Belchior, feminicídios, mulheres negras são as maiores vítimas. Se eu falar em encarceramento em massa, em violência policial letal, no erro no reconhecimento de pessoas, jovens negros são o alvo. E, se eu falar em expectativa de vida em todos os estados da Federação brasileira, segundo o IBGE pessoas negras vivem menos que pessoas brancas.
Portanto, nós não estamos falando de um fator tangencial, de um fator que possa ser considerado de menor importância. É um fator que determina as nossas vidas no Brasil, do nascimento até a morte.
A leitura dessas leis provinciais neste espaço, nesta Casa Legislativa, é muito emblemática porque, se o Estado brasileiro participou, a partir das suas leis, da construção dessa realidade persistente de racismo, esta Casa tem também a missão, a obrigação, o compromisso de concretizar a nossa Constituição Federal para desfazer e desconstruir essa realidade e promover igualdade racial.
A nossa Constituição Federal Cidadã, de 1988, não apenas trata o racismo como crime imprescritível e inafiançável, mas tem como princípio no seu art. 4º, que trata das relações internacionais do Brasil, o repúdio ao racismo. Trata-se, portanto, de um compromisso do Estado brasileiro internacionalmente. Não podemos nos esquecer da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial; e, mais recentemente, da adesão do Brasil à Convenção Interamericana contra o Racismo. Deputada Dandara, essa convenção é texto constitucional. Aprovada na modalidade do art. 5º, §3º, da Constituição, ações afirmativas hoje são letra da nossa Constituição e não podem ser desconsideradas, para que nós efetivamente consigamos promover igualdade racial neste país.
Não se pode falar efetivamente na democracia se o racismo segue sendo essa chaga. Um Estado que se pretenda democrático de direito precisa refletir minimamente a diversidade do seu povo em todos os espaços de poder e decisão, e isso não acontece no Brasil, seja no Poder Legislativo, seja no Poder Executivo, seja no Poder Judiciário. É a nossa missão, de todos e todas nós, mudar essa realidade. Nós não podemos seguir nos omitindo diante de tanta crueldade. Se nós estamos aqui hoje, Dra. Lilian Azevedo, foi a partir do derramamento de muito sangue e suor do nosso povo, das nossas ancestrais, e nós precisamos honrar essa luta abrindo caminhos para que outras pessoas negras, outras mulheres negras possam ocupar esses espaços.
Portanto, eu gostaria de finalizar a minha fala lembrando Nelson Mandela. Se hoje a gente lembra do massacre que deu causa a esse Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, é importante parafrasear a nossa referência da África do Sul, que dizia que nós não nascemos odiando outras pessoas pela cor da sua pele e, se nós aprendemos a odiar, podemos também aprender a amar.
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Quando Nelson Mandela difunde o princípio ubuntu, não se tratava apenas de retórica. Nós precisamos assumir, valorizar o ubuntu neste país como uma pedagogia ancestral viva de concretização de uma democracia que pessoas negras nunca vivenciaram neste país, salvo em Palmares. Que possamos fazer Palmares de novo.
E encerro com o poema Vozes-Mulheres, de Conceição Evaristo, para homenagear e celebrar esta mesa - agradecendo pela abertura de caminhos ao Senador Paulo Paim -, que diz assim:
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.
A voz [...] [das minhas filhas, me permitam]
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz [...] [das minhas filhas]
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de [...] [minhas filhas]
se fará ouvir a ressonância,
o eco da vida-liberdade.
Muito obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Muito bem. Os nossos cumprimentos à brilhante fala também da Promotora de Justiça do Estado da Bahia, que já esteve algumas vezes aqui conosco conversando sobre o belíssimo trabalho que continua fazendo e vai fazer, se Deus nos iluminar, em outras instâncias. Não vou falar aqui; se cito com antecedência, crio um problema.
Meus parabéns à Promotora de Justiça do Estado da Bahia, Sra. Lívia Santana e Sant’Anna Vaz.
Então, a essa mesa agora nós vamos pedir as nossas... Eu vou pedir que elas, as três, retornem ao Plenário, com uma salva de palmas, e nós vamos para a segunda mesa. (Palmas.)
Enquanto nós vamos chamar e preparar a segunda mesa, nós garantimos a palavra neste momento a nossa querida, também amiga, lutadora, guerreira, S. Exa. a Sra. Nilma Lino Gomes, ex-Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do Brasil.
O tempo é seu, Ministra - sempre Ministra, não é?
A SRA. NILMA LINO GOMES (Para discursar. Por videoconferência.) - Bom dia, muito bom dia, Senador Paim, muito bom dia a todas as pessoas que estão aí presentes nesse encontro e também ao meu colega Toni Reis, que está aqui comigo virtualmente.
Senador Paim, eu quero abrir a minha fala também homenageando (Falha no áudio.)... todo o seu trabalho e quero dizer que, diante de tudo que as pessoas já falaram, com que eu concordo, para mim o senhor representa duas coisas muito importantes na nossa luta antirracista, que é a sabedoria e a experiência.
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Eu quero cumprimentar a mesa, que está se desfazendo, na sua pessoa, em nome da sua sabedoria, da sua experiência (Falha no áudio.) as mulheres presentes na pessoa da nossa querida Deputada Federal Dandara, que esteve também nessa mesa. Então, que todas as pessoas se sintam cumprimentadas nas pessoas de vocês.
Eu quero agradecer o convite, a compreensão - eu estou viajando, então não pude estar presencialmente, não posso estar presencialmente - e sua gentileza e generosidade de me deixar participar virtualmente, Senador.
Eu quero reforçar a sua fala de que o racismo é realmente um mal. E ele é um mal que não só atinge as suas vítimas, mas atinge toda a sociedade. Então, concordando, uma sociedade que se cala, uma sociedade que é conivente com o racismo é uma sociedade doente e é um caminho muito fácil para outras violências, como, por exemplo, para o fascismo se alastrar. Então, hoje, quando falamos tanto na ameaça fascista que o Brasil viveu e tem vivido nos últimos anos, é importante a gente entender que a luta contra o racismo também faz parte da luta contra o fascismo, porque, como eu disse, o racismo é um caminho muito fácil, muito propício para que muitas outras violências se instalem. Eu acho que muitas vezes nós não articulamos essas duas dimensões, e isso é muito importante.
Eu também queria destacar que o dia de hoje não é um dia de comemorar. O dia de hoje, já antecedendo o dia 21, que é o marco central internacional da luta antirracista, é um dia de marcar politicamente e com muita força que a luta antirracista é uma luta de todas, todos e "todes". Então, Senador Paim, a Frente Parlamentar Mista Antirracista que vai ser instaurada, parece-me, no dia 11 de abril, é um avanço, é um compromisso político ético muito importante nesta caminhada rumo à eliminação, à superação do racismo na nossa sociedade, nas instâncias políticas, na educação, como foi muito citado aqui, nos mais diversos setores da nossa sociedade. E ela é um compromisso de todos, todas e "todes" Parlamentares .
Eu quero dizer, Senador, que é com muita honra e muito prazer que eu acompanho a sua trajetória no Senado, principalmente na aprovação de vários projetos de lei - alguns deles o senhor citou aí. Eu acho que há um compromisso muito forte que o senhor e o Senado Federal têm mostrado para o Brasil nesse sentido e que nós esperamos que a Câmara dos Deputados dê continuidade a esses projetos de lei com a sua aprovação - e, quem sabe, amanhã vai ser um dia muito propício para que a Câmara dos Deputados também faça gestos como gestos que serão feitos pelo Presidente Lula, pela Ministra Anielle Franco, da Igualdade Racial, com uma série de ações antirracistas em nível nacional, para que a gente se coloque frente a frente com esse racismo e o supere na nossa sociedade.
Às vezes eu falo em superação e as pessoas pensam que é algo muito edílico, algo muito utópico, mas eu penso que, ao lidar com fenômenos perversos como o racismo, nós temos que fazer um projeto de ação que atinja radicalmente a existência e nós temos que projetar no futuro a sua eliminação, a sua superação. E essa eliminação e a superação vão se dar com a ação cotidiana que nós fazemos, que é o combate ao racismo. Por isso, acho que o nosso dever, a nossa chamada política é não só combater o racismo, mas que, através das várias medidas, projetos, legislações, ações cotidianas antirracistas de combate a esse racismo, nós tenhamos como alvo a superação desse fenômeno. Pode ser que isso não seja algo que eu, na minha existência, vá verificar, viver ao vivo e a cores, mas outras gerações poderão, sim, viver num país mais democrático e antirracista, com superação de várias formas de esse fenômeno se enraizar e com essa superação construída neste presente que nós vivemos, porque este presente que nós vivemos, esta cerimônia da qual nós participamos seriam impensáveis, Senador Paim, em outros momentos. A sua própria história política, em outro momento das nossas próprias
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(Falha no áudio.) principalmente a mesa constituída, que agora se desfaz para a passagem dos outros colegas que vão ministrar as suas falas, é o retrato vivo de que passos foram dados, sim, na superação do racismo por meio do combate ao racismo. A própria presença de mulheres negras na política, a própria presença de mais mulheres negras na política ainda é incipiente perto daquilo que deveria ser, e isso já mostra que o nosso combate também tem passos de superação. Eu penso que esse é o nosso alvo e acho que é isso que esta cerimônia de hoje nos ajuda a pensar e a refletir. O que eu queria também considerar, Senador, pensando nesse combate ao racismo, na superação do racismo, é que tudo isso é muito importante e faz parte deste momento que nós vivemos de reconstrução democrática do nosso país, deste momento que se instaurou nas eleições de 2022, em que uma parte da população brasileira disse "sim" para esse projeto, "sim" para esse outro projeto de democracia e "não" para o projeto autoritário que nós tínhamos vivido, que vivemos aqui nos últimos quatro anos, além do golpe de 2016. Então, é pensando nessa população brasileira e numa outra parte da população que mesmo não tendo expressado pelo seu voto a reconstrução democrática, faz parte do país e precisa, sim, ter os olhos alertados e ser inclusive politicamente reeducada diante da diferença entre um Estado autoritário e um Estado democrático de direito. (Falha no áudio.)
de vida, extremamente fascista e extremamente conservador e reacionário. Mas eu falo de parte da população brasileira que ainda é politicamente reeducável, porque eu acredito que isso pode acontecer, sim, nesse processo de reconstrução democrática que estamos iniciando, que o Presidente Lula lidera com uma grande frente e, principalmente, com os passos que nós vamos dar para toda a sociedade brasileira. E acho que esses passos estão consolidados aí no seu trabalho e de tantos outros Parlamentares que entraram agora nesse momento e que já continuam. Então, o que eu queria dizer é que é preciso que nós consideremos que um projeto de reconstrução democrática da nossa sociedade tem que ser explicitamente antirracista. E acho que este é o desafio que nós vivemos hoje: explicitar as nossas intencionalidades de uma reconstrução democrática e de que essa democracia seja uma democracia radical, como eu sempre venho falando.
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E um dos aspectos de uma democracia radical é que essa democracia seja explicitamente antirracista, que o antirracismo não seja retórica, mas que o antirracismo e o combate ao racismo sejam prática, sejam ações.
Eu vejo essa mesa, eu vejo esse momento, eu vejo o que vai acontecer a partir de amanhã, as iniciativas nacionais que nós veremos, as iniciativas locais que nós veremos não só como marcos de momentos de celebração, mas que sejam marcos de momentos de tomada de posição. E essa tomada de posição na história precisa, sim, de lideranças, que liderem essa tomada. Por isso é muito importante que nós estejamos aqui, que esse plenário esteja representativo de tantas pessoas dessa luta antirracista, que seja o senhor, Senador Paim, a chamar esse evento mais uma vez, e que sejamos nós que estamos aqui com uma renovação, com a presença da juventude, que vem também caminhando nessa luta antirracista.
E essa luta antirracista, essa democracia radical também tem que ser anticapitalista, ela também tem que ser contra as formas de exclusão, de exploração que nós vivemos na nossa sociedade; e ela também tem que ser anti-LGBTQIA+fóbica, porque não adianta combater um único fenômeno, uma única violência, sendo que todas estão de alguma forma imbricadas, enraizadas; e ela tem que ser antimachista. Assim, a gente tem aí dimensões estruturantes de fenômenos perversos contra os quais nós sabemos que temos que lutar e contra os quais nós temos construído uma caminhada, mas ela não pode ser sozinha. E eu acho que todas as vitórias que nós já conseguimos no meio de tantas violências acontecem pela ação coletiva que nós temos realizado.
Muito fizemos, há muito o que fazer. Não somos iludidos para pensar que estamos numa situação confortável. Não somos, mas nós sabemos olhar para trás, olhar para os nossos ancestrais (Falha no áudio.) hoje em outro momento, não só de cobrança, mas também de ação e de cobrança para que as ações continuem, para que a nossa sociedade como um todo usufrua do bem que o combate ao racismo e a superação do racismo faz para todas as pessoas.
O combate ao racismo nos retira do lugar da ignorância. O racismo nos coloca, nos aprisiona no lugar da ignorância, nos aprisiona no lugar do preconceito e da discriminação, e é preciso que a sociedade seja libertada desse estado de coisas. E essa libertação se faz por meio de ações, ela não é somente intersubjetiva ou subjetiva, mas ela também tem que ser política, ela também tem que ser prática. E é por isso que nós estamos aqui hoje.
Muito obrigada, Senador, muito obrigada a todas as pessoas que me escutam. E vamos em frente, porque nós estamos juntas, juntos e "juntes". Muito obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Eu que agradeço muito a S. Exa. a Sra. Nilma Lino Gomes, ex-Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do Brasil. Meus cumprimentos pela bela exposição.
Nesse momento, nós vamos chamar a segunda mesa, e você, Toni, vai abri-la. No momento em que a mesa for formatada, o Toni vai abrir a segunda mesa.
O Toni chegou de um voo ontem à noite, e eu consegui localizá-lo, nós estávamos a sua procura. Ele estava no exterior - ele vai citar onde ele estava - e felizmente conseguiu entrar para participar do nosso debate.
Vamos convidar a segunda mesa.
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A Presidente da Associação Nacional dos Procuradores Municipais, a Sra. Procuradora Lilian Oliveira de Azevedo Almeida. (Palmas.)
O Secretário Nacional de Combate ao Racismo do Partido dos Trabalhadores, lutador de todos os tempos, o Sr. Martvs das Chagas. (Palmas.)
O representante da Frente Nacional Antirracista, o Frei David dos Santos. Esse é guerreiro também! (Palmas.)
Todos aqui são guerreiros e guerreiras, não é? Parabéns! Quase todos já estiveram na Comissão de Direitos Humanos nos períodos em que lá presidi - agora voltei a presidir.
O representante da Uneafro Brasil, Sr. Douglas Belchior, grande jovem lutador, que tem nos ajudado na formatação de projetos. (Palmas.)
E, agora, o Presidente da Aliança Nacional LGBTQIA+, o Sr. Toni Reis, a quem eu peço que use a palavra neste momento para abrir esta mesa.
É com você, Toni.
O SR. TONI REIS (Para discursar. Por videoconferência.) - Bom dia. Bom dia a todas as pessoas.
Bom dia, Senador Paulo Paim. Parabéns pela sua garra, pela sua história de luta. O senhor realmente está no panteão dos lutadores pelos direitos humanos. Parabéns, então, pela recondução à Presidência da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. É muito bacana... E o senhor sempre, quando a gente procurou, esteve do lado dos direitos humanos.
Eu estou muito emocionado aqui ouvindo todas as pessoas que me antecederam.
Nossa querida amiga Nilma, Ministra querida, sempre me lembro dos seus discursos, sempre aprendo muito com você, li seus livros.
Quero também saudar a Deputada Dandara, que não conheço pessoalmente, mas já conheço sua história, seu lindo discurso; o nosso querido Frei David, de tantas as lutas que nós temos por aí; e a Promotora Lívia Santana.
Citando essas pessoas, quero dizer que estou muito feliz aqui.
E por que eu, um branco, aqui neste quilombo que tomou conta do Plenário do Senado?
E é muita linda esta imagem, Senador Paim: o Plenário da Casa Maior do nosso país para discutir o racismo.
Eu quero dizer para o senhor que fiquei muito feliz ontem, quando recebi o seu convite. Se eu tivesse mais... Eu estaria aí presente, mas eu fui convidado por algumas redes internacionais, e estávamos em Marraquexe - é para lá de Marraquexe - discutindo a questão das discriminações, dos preconceitos. E sempre vem esta questão: nós não podemos esquecer que o racismo, o machismo e a LGBTfobia têm que ser trabalhadas, e a gente tem que estar irmanados.
Eu me emocionei muito na fala da Promotora Lívia (Falha no áudio.)... anos na luta pelos direitos humanos da comunidade LGBT+, eu e meu esposo decidimos, em 2000, adotar filhos. Então, nós adotamos dois filhos e uma filha: o Filipe, a Alice e o Alyson, os três são negros, das comunidades do Rio de Janeiro. Eu quero dar esse depoimento, porque eu senti na pele o racismo... Eu sou branco e, então, eu não tenho como falar do racismo, mas os meus filhos, o racismo que eles sofreram (Falha no áudio.)... um menino parrudo, forte. Ele falou: "Pai, quero culpar você; eu podia ter resolvido tudo lá na minha escola, e o senhor fala que eu tenho que ser... não posso ser violento, não posso espancar as pessoas, que a gente tem que discutir nas ideias e não no braço". Eu falei: "Por que, meu filho, você está bravo comigo?". "É porque eu fui chamado de feijoada, cabeça de caixa d'água e nariz de batata", dessas três coisas.
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Eu fiquei emocionado e fui até o colégio, Profa. Nilma. No colégio, eu fui falar com a equipe pedagógica. Eu estudo sobre a LGBTfobia, estudo sobre os direitos humanos e entendo algumas questões do racismo. Eis que a equipe pedagógica me falou: "Senhor, o senhor tem que procurar um psicólogo para o seu filho". Aquilo me deu um... Eu saí do colégio, assim, muito triste, porque quem precisava estar procurando um psicólogo talvez fosse a equipe pedagógica e a própria escola, que não tem ferramentas para atacar esse racismo, mas estava falando, explicando que eram apenas brincadeiras.
Então, hoje, como pai de três pessoas negras, eu sei do racismo no shopping center, no supermercado, no restaurante (Falha no áudio.)... uma pessoa negra ainda no país. E eu estou falando isso de forma muito emocionada. Então, quero dizer para vocês, para todas as pessoas que estão nos assistindo, compartilhando, que eu estou junto nessa luta contra o racismo para que a gente possa falar.
Nesse sentido, eu estava pensando: o que eu vou estar comentando? Eu não gosto de ser muito professoral, mas tem alguns momentos em que a gente precisa. Eu fui buscar o conceito, porque amanhã nós vamos comemorar a eliminação da discriminação racial, fui buscar um texto de 1960, da Unesco, que diz que discriminação é:
[...] qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência que, por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião pública ou qualquer outra opinião, origem nacional, social, condição econômica ou nascimento, tenha por objeto ou efeito destruir ou alterar a igualdade de tratamento [...].
É contra isto que nós temos que lutar: a questão de destruir a autoestima das pessoas. E eu vejo isso nos nossos filhos.
Uma professora negra aqui da APP-Sindicato sempre falou: "Toni, sempre elogie os cabelos dos seus filhos, sempre elogie a cor dos seus filhos. Elogie! Porque destruir uma pessoa é você descriminá-la, é você separá-la".
Também aqui, quando fala de alterar a igualdade de tratamento, todos nós temos que ter tratamento exatamente igual: um branco, um japonês, um senegalês, uma pessoa do Quênia. Todos nós temos que ter o mesmo direito ao tratamento.
E aí vem a outra definição de que eu gosto muito, e eu tenho trabalhado nisso, que é a do preconceito. Preconceito, sim, é algo que está na nossa cultura. Todos nós temos a nossa religião, a nossa não religião, nós temos os nossos autores, as nossas autoras, nós temos os nossos partidos políticos, nós temos... E a gente tem algumas restrições.
Aí, o Borges define o que é preconceito:
O preconceito é uma primeira compreensão, em geral, parcial, incompleta, fosca [eu gosto desta palavra: "fosca"], de alguma coisa, uma opinião formada sem reflexão. Talvez por isso muitos preconceitos têm um sentido negativo. O preconceito pode ser um ponto de partida que, se for bem desenvolvido, pode tornar-se um conceito, ou seja, um conhecimento mais amplo e completo. O preconceito só se torna negativo quando ficamos nele, sem desenvolvê-lo. Aí ele nos limita, nos impede de ver as coisas de uma maneira mais desenvolvida, ampla, transparente.
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Então, com esses dois conceitos, o preconceito existe na nossa sociedade, mas nós não podemos admitir o crime da discriminação, seja ela contra negros e negras, seja contra mulheres. (Falha no áudio.)... Como diz, ensina o nosso educador Paulo Freire, a gente tem que denunciar, mas a gente também tem que anunciar.
Por que eu acho que é importante a organização? Eu acho que nós precisamos estar organizados, precisamos estar nos organizando, como a Deputada Dandara, organizando a Frente Parlamentar Antirracismo, a frente parlamentar em defesa dos direitos humanos LGBT, das mulheres, das pessoas ribeirinhas, enfim, de todas as populações que o Senador citou no início da sua fala, porque nós vencemos. Nós da comunidade LGBTI+ recebemos muitos nãos, infelizmente, da maioria tanto do Senado como da Câmara dos Deputados. Mas mudamos de prédio: fomos ao Supremo Tribunal Federal e lá nós tivemos guarida, porque lá a Constituição Federal (Falha no áudio.)... podemos casar, podemos adotar, podemos doar sangue, temos a nossa identidade de gênero respeitada. Por omissão das duas Casas Legislativas, e omissão, Senador Paim - e aí todos os nossos Parlamentares são nossos aliados -, que ainda está na minoria, a gente conseguiu que o Supremo Tribunal Federal, no dia 19 de junho de 2019, reconhecesse a LGBTfobia como um tipo de racismo. Então, a vitória de vocês, do povo negro também ajudou a comunidade LGBTI+. E nesse sentido eu e o nosso movimento devemos ser eternamente gratos à luta de vocês, porque, como não tinha uma lei, o Supremo reconheceu que era um tipo de racismo. Claro que nós queremos aprovar nossas leis e nós só conseguimos isso através da organização. E aí, mais uma vez, citando Paulo Freire, digo: "Ninguém se liberta sozinho, ninguém liberta ninguém, nós nos libertamos em comunhão", juntos e juntas, para que possamos ter um mundo sem racismo, sem LGBTfobia, sem machismo e que possamos trabalhar juntos e juntas de forma bem organizada. Muito obrigado. Foi um prazer estar com vocês aqui. Quero continuar assistindo e aprendendo com vocês. Obrigado.
(Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Obrigado, Toni Reis, Diretor Executivo da organização brasileira LGBTQIA+, o chamado Grupo Dignidade. Repito, ele estava viajando do exterior para o Brasil e, chegando em casa, me liga e diz: "Não, Paim, pode contar que eu vou estar lá amanhã de manhã". E é bom lembrar que essa decisão da ONU sobre esse dia é um símbolo de luta contra todo e qualquer tipo de preconceito - todo e qualquer! -, por isso fizemos questão de estarem aqui representados todos os setores da sociedade. Queria lembrar que a...
Nesse momento convido para compor a nossa mesa a Sra. Mariane dos Santos, deficiente de visão, massoterapeuta e atleta. (Palmas.)
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A nossa convidada Lilian chega aqui à mesa.
Eu quero justificar a não presença da Ministra de Estado dos Povos Indígenas, Sra. Sônia Guajajara. Ontem ainda ela falou comigo e disse: "Paim, eu vou lá, estarei lá". Ela, que representa a nação indígena tão bem, estava vindo e estava chegando aqui à Chapelaria. A minha assessoria desceu para buscá-la, quando ela foi chamada por motivo, de fato, de força maior. Então, eu queria dar uma salva de palmas para ela.
O ministro convidado que não veio mandou um representante, e a nossa querida Ministra Sônia Guajajara infelizmente não pôde de vir por motivo de... Estava chegando, mas teve que voltar. Em resumo, é isso.
Uma salva de palmas para ela. (Palmas.)
Concedo a palavra neste momento ao nosso amigo, a S. Reva. o Sr. Frei Davi dos Santos, fundador e Diretor-Executivo da ONG Educafro Brasil.
O SR. DAVID SANTOS (Para discursar.) - Querido irmão Paim, guerreiro de muitos anos.... Se vocês não sabem, o único Parlamentar que está nesta Casa, Câmara e Senado, desde a Constituição de 1988 é o Senador Paim, para quem peço uma salva de palmas. (Palmas.)
Eleito sucessivamente.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Aí eu vou envelhecendo mais. Eu e o Renan. Só tem dois: eu e o Renan também. O Renan Calheiros...
O SR. DAVID SANTOS - Ah, o Renan também? Mas o Renan saiu e voltou.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Sim, sim. O Renan foi Constituinte...
O SR. DAVID SANTOS - Você não saiu?
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Eu nunca saí.
O SR. DAVID SANTOS - Então você está na frente.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Os culpados são vocês por eu estar aqui. (Risos.)
O SR. DAVID SANTOS - Bem, gente, este é um momento muito bonito. Que bom! Parabéns, Senado, através do meu irmão, Senador Paim, por essa solenidade.
E aí eu vou ser direto em alguns assuntos, Senador. Você não vai mandar a polícia me tirar daqui, não é?
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Com certeza não, Frei David.
O SR. DAVID SANTOS - Então está bom.
O primeiro ponto, irmão, é que eu estou muito machucado com a falta de investimento político dos Governadores de cada estado, de direita, de centro e de esquerda - até do PT! -, na questão de deixar a milícia mandar no governo. Olha a Bahia, querido Paim! Há quantos anos é governada pelo PT? E lá é o estado que mais mata negro. Não pode, Senador. Temos que fazer um apelo aos Governadores: "Por favor, controlem suas polícias. A vítima é o meu povo negro!". Não pode continuar assim.
Então eu faço um apelo para que todos os Governadores revejam sua postura e procurem respeitar a vida da população negra. Esse é o primeiro ponto que eu quero deixar de cerimônia.
O segundo ponto é um apelo para as mulheres. Eu tenho visto que o Brasil tem um racismo muito pesado e doentio contra os negros. Ah, o tema da mulher, vai; o tema do negro, fica. E por quê? Porque o tema da mulher não é só sobre mulher negra, mas também sobre mulher branca. E a mulher branca tem mais poder, está mais próxima do poder branco do homem, masculino. E com isso, Paim, o tema da mulher vai e o tema do negro está sempre para trás. Então eu faço um apelo às mulheres de todos os grupos de mulheres: procurem lincar a demanda de vocês à demanda do povo negro, que é muito semelhante - muito semelhante. "Somados somos mais fortes", o mundo inteiro fala isso, mulheres do Brasil inteiro.
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Vamos, por favor, somar nossas lutas para que a gente consiga avançar. Olhem agora as mulheres avançando em várias pautas, nos deixando para trás. E aí, mulher negra, por favor, fale com suas irmãs brancas. Não pode continuar assim, não, Senador Paim, isso é falta de solidariedade. Afinal de contas, o tema da mulher, que é um tema grave, é a solidariedade dos homens brancos, poderosos, com as mulheres brancas, mas por que as mulheres brancas não são solidárias às mulheres negras e a nós, negros? Falta de alguém falar abertamente, e hoje decidi falar abertamente. Espero que você não fique chateado comigo.
O ponto três, Senador. Estamos sofrendo demais nos quatro cantos do Brasil. O Governo Federal, os sucessivos - desculpe - de esquerda, de centro e de direita, têm sido irresponsáveis com monitoria, fiscalização e punição de quem está fraudando as cotas, tanto nas universidades como no serviço público. Eu estou vindo, há tempo, de Rondonópolis; Senador, de cada dez vagas para negro em medicina, de cinco a oito foram fraudadas por brancos. Isso é inaceitável.
Teria mais coisas a falar sobre isso; se vocês quiserem perguntar depois eu posso falar, mas vou só dizer que precisamos que qualquer governo sério - espero que o PT consiga fazer isso -, que o Governo consiga valorizar a monitoria, a fiscalização e a punição em todas as políticas públicas, especialmente as do povo negro e das mulheres.
Aqui, Senador, o ponto quatro é um apelo aos Senadores e Deputados. Senadores e Deputados, vocês sabem que a Lei de Cotas é de iniciativa do Executivo. É comum que vocês, por amor a nós, se antecipem e façam o máximo possível. Parabéns! Parabéns! No entanto, eu faço um apelo: por que não unir Deputados, Senadores e Executivo? Ora, nós sabemos que a Lei de Cotas tem uma certa ojeriza de alguns de esquerda e alguns de direita. São alguns; outros são a nosso favor.
Então, qual é o meu pedido? Que permitam - Senadores, Deputados, pois já há mais de 50 projetos circulando aqui, na Câmara e no Senado, sobre cotas para negros nas universidades, renovando a lei que tinha que ser renovada em 2022, há mais de 50 projetos rolando -, por favor, tentem uma união, um seminário, uma comissão de trabalho entre Ministério da Educação, Ministério Igualdade Racial e Ministério das Mulheres... Ou melhor, Ministério dos Indígenas, porque a temática é indígena. Que esses três ministérios tenham o protagonismo de chamar todos os Deputados e Senadores para uma reunião para fazer uma redação única e não correrem 50 projetos aqui dentro, porque, no final, vai haver muita briga, muita disputa de ego, e a nossa causa vai ficar para trás.
Minha querida Lívia, eu estou sendo muito doido aqui em falar isso? Por favor, não me bote em enrascada, não.
Senador, o outro ponto é dizer que hoje, ligando a TV Globo, uma notícia me deixou mais chateado do que já sou normalmente com a grande maldade da sociedade brasileira contra nós, negros. A Globo falou hoje - e todos sabem disso - que o desemprego dos jovens é o dobro do resto da população brasileira. O desemprego dos jovens, jovens em geral, não falou jovens negros; imagina dos jovens negros, Senador. Então, Senador, nós solicitamos que haja programas, agora, sim, de iniciativa do Senado, de iniciativa da Câmara, em sintonia com o Executivo, para que se combata essa questão do desemprego do jovem negro.
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E aqui, Ministro do Trabalho, Marinho, meu irmão, nós temos aí no Ministério do Trabalho uma fortuna de dinheiro cujo o nome é... Quem lembra? No Ministério do Trabalho tem lá uma Comissão... Gente, até eu me esqueci também. Fui perguntar a vocês e também me esqueci. Há lá uma comissão que é o Fundo de Amparo ao Trabalhador. É uma fortuna! E quem é a comissão que coordena esse fundo? São banqueiros, são industriais, e não está a população negra. Senador, é uma fortuna de dinheiro, e que não é investido no jovem negro e não é investido no jovem branco. Então, por favor, Ministro Marinho, nós queremos que o Fundo de Amparo ao Trabalhador seja destinado 100% aos jovens no Brasil, porque a juventude está sendo humilhada por esses sucessivos governos que estão no Brasil.
Senador Paim, um outro ponto da minha dor é...
Não, vamos pegar uma coisa positiva também, não é? Por que só coisa ruim? Qual é a coisa positiva? Senador, olha que incrível: a gente gastou talvez duas solas de sapato, mas rodamos várias universidades de São Paulo e conseguimos 5 mil bolsas de estudos com as faculdades particulares, que vão de 50% a 100% - 5 mil bolsas de estudo. E aí acabou o sapato, pegamos o chinelo e fomos sentar com o Prefeito e conseguimos 4 mil estágios de 30 horas apenas por semana, R$1.500 por mês, R$25 por dia para vale-refeição e mais vale-transporte. Senador, isso é uma coisa positiva, mas tem uma coisa negativa aí, olha só: 90% do povo afro-brasileiro não tem esse dinheiro por mês - 90% do povo afro-brasileiro não tem esse dinheiro por mês. E nós acabamos de fazer um acordo com a Prefeitura de São Paulo e com essas universidades...
(Soa a campainha.)
O SR. DAVID SANTOS - ... e nós temos, então, 5 mil bolsas disponíveis para o Brasil inteiro e 4 mil estágios.
Para o ingresso, é só ele atender as demandas e pode ingressar em uma semana.
Então, você do Brasil inteiro, faça contato por telefone, pelo zap (11) 96173-6869. Repetindo: faça contato - do Brasil inteiro, de Manaus a Porto Alegre - pelo zap (11) 96173-6869. Você jovem negro... Ó, desculpa, hein? Esse é um programa de ação afirmativa: é só voltado para negras e negros. Então, você do Brasil inteiro, jovem, ou não jovem... Jovem de 40 anos, de 50 anos também pode recorrer esse benefício, porque você foi vítima. Na sua idade legal, você não teve oportunidade; vai ter agora então. Portanto, Senador, é para qualquer um.
Um outro ponto que nos machuca é o seguinte, Senador: o Ministro Lula vai agora para a China. Vai levando mais de 200 pessoas. Eu não vi negro indo nessa delegação de Lula. Ainda está em tempo, ainda. Lula, por favor, meu irmão, queremos negro nessa delegação para a China.
Segunda coisa, olhei a pauta da delegação, Ministro Paim, não vi nenhuma temática popular do nosso povo. Ministro Paim, Ministro Paim, nós do Brasil somos 56,1% do Brasil; Paim, no mundo da tecnologia, como desenvolvedor e como programador, nós não somos 2%. Não queremos coisas novas com vícios velhos. Meu apelo: Lula, inclua, na sua ida à China...
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(Soa a campainha.)
O SR. DAVID SANTOS - ... a ida de negras e negros, ou não, mas pessoas compromissadas em fazer um acordo com a China para levar para lá mil jovens negros para aprenderem chinês e fazerem o curso de TI, e, assim, ajudar o Brasil a entrar, no mundo da tecnologia, com o pé direito e com plenitude, jogando a comunidade negra nesse espaço, que é o futuro do Brasil e do mundo!
Senador, para concluir, eu quero partilhar uma notícia boa. Há mais de três anos, estamos lutando com os sucessivos ministros presidentes do CNJ para combaterem uma ousadia, um atrevimento, uma maldade dos presidentes dos tribunais de Justiça do Brasil. Ora, em 2014, conquistamos cota para negro nos concursos públicos. Cartório é concurso público, mas os donos dos tribunais de Justiça do Brasil, que usam os cartórios para negociata com os seus amigos, não deixavam ter cota para negro nos cartórios. Eis que, por uma estratégia feita, um mês antes de o Ministro Fux assumir a Presidência do CNJ, a gente teve uma conversa com ele, bem olho no olho, em uma sala fechada. Ele falou: "Frei David, em 30 dias da minha posse, eu vou fazer com que o Conselho Nacional de Justiça aprove cota para negro no concurso de cartório", e conseguimos.
Então, com isso, eu concluo, comunicando a todos os irmãos e irmãs negras do Brasil, do mundo do Direito: disputem vaga para vocês entrarem nos cartórios! Gente, tem duas maneiras de você ficar rico rápido, no Brasil: primeiro, abrindo uma boca de fumo...
(Soa a campainha.)
O SR. DAVID SANTOS - .... não faça isso; segundo, sendo dono de cartório, faça isso!
Um abraço. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Parabéns, Frei David! Frei David, sempre incisivo, cobrando, solicitando, mas com resultado, não é, Frei David? (Pausa.)
Você é um homem de resultados. Eu sei da sua história e fica aqui o meu carinho, o meu respeito à sua pessoa. Não é de graça que, no meu gabinete, ele colocou dois: o Tiago e a Isabel. O Tiago depois foi para outros voos; a Isabel está, até hoje, lá.
Vamos em frente! Convido, agora, a nossa querida painelista, que, eu digo, já na Comissão de Direitos Humanos, toda vez em que foi convidada, foi lá e fez uma exposição belíssima. Concedo a palavra a S. Exa. a Sra. Lilian Oliveira de Azevedo Almeida, Procuradora do Município de Salvador, Bahia.
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A SRA. LILIAN OLIVEIRA DE AZEVEDO ALMEIDA (Para discursar.) - Bom dia a todos, todas e "todes"!
Que honra estar aqui! Eu já vim dali, com todo o meu "baianês", meu jeito despojado de ser, falando sobre a honra de estar aqui e o quanto é simbólico para mim, Senador Paim, o momento de hoje, por várias demandas, seja porque a gente caminha e, muitas vezes, Frei David, caminha sozinha... O senhor trouxe aqui, e já me permita ir cumprimentando cada um, mas quebrando um pouco o protocolo, porque falar da questão da população negra é falar também sobre uma quebra de paradigma em que não necessariamente a forma de ser litúrgico e de ser competente ou ser inteligente tem que seguir apenas uma determinada maneira de ser, não é? Nós somos muitos, nós somos diversos e nós temos que abraçar essa nossa diversidade. E a população negra, em sua grande parte, na sua história, mostra isso, mostra a nossa alegria, mostra a nossa tristeza, mas mostra também a nossa valentia.
Então, Senador Paim, eu quero começar dizendo o quanto eu sou honrada por hoje pisar aqui nesta Casa, por hoje ter esta oportunidade, porque, como mulher negra, Frei David, muitas vezes nós estamos na base da sociedade e estamos nessa encruzilhada entre a branquitude e entre o movimento negro, porque, se formos, por um lado, lutar pelas mulheres, muitas vezes nós não nos encontramos, não nos reconhecemos, estamos sós nesses espaços, e, se, por outro lado, nós vamos lutar pela pauta racial, muitas vezes nós também somos mulheres sozinhas. Então nós estamos nessa encruzilhada. Muito obrigada por este momento aqui de hoje.
Eu saúdo todos aqui presentes, na pessoa do Senador Paim, e aproveito também para trazer um pouco de partilha da minha história, da história que eu venho construindo como Procuradora do município, nesse lugar, e também como Presidente hoje da Associação Nacional dos Procuradores Municipais.
Quando a gente pensa na questão racial e nós mergulhamos aí nessa aula que a Deputada Dandara nos trouxe aqui, e tantos outros, sobre a repercussão da questão racial desde o nosso Brasil colônia, desde lá dos povos originários, desde toda a nossa história, a nossa estrutura, nós percebemos hoje, na prática, quais são as consequências de tudo isso. É importante fazermos essa reflexão sobre onde estamos, o que conseguimos, em que avançamos e em que não avançamos, mas é importante a gente entender hoje os efeitos do racismo na prática.
E, nesse sentido, eu gosto muito de trazer à tona a questão do local do município. Afinal de contas, nós falamos da União, nós falamos do estado, mas eu gosto sempre de lembrar que a vida pulsa é nas cidades, a vida pulsa é nos municípios. E foi lá como Procuradora do Município de Salvador, uma cidade que é considerada a Roma Negra, uma cidade onde 84% da população são de pessoas negras, por muito tempo eu, há 12 anos, entrei sendo a única Procuradora negra desse local. É por isso que isso me atravessa demais quando a gente traz aqui toda essa caminhada, porque eu estou numa cidade onde a maioria da população é negra, e a gente pergunta: onde está essa população negra? Onde estamos? Que espaços estamos ocupando?
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A partir desse olhar, nós temos que pensar num viés de responsabilidade. O que está acontecendo? De que maneira nós estamos aqui hoje discutindo, pensando em leis importantes, em projetos importantes, na questão orçamentária?
Mas o que está acontecendo que, entre a ponta, vamos dizer, muitas vezes da União, se repassa quantia fundo a fundo para fundos de crianças e adolescentes, para fundos dos idosos, para fundos da assistência, o que acontece que, quando chega à ponta, você não vê refletida essa política pública? - e não só em relação à questão racial como aqui foi dito. Não é uma discussão identitária: é uma discussão em que a gente, havendo um problema, localiza os demais problemas, seja da mulher, seja da população LGBTQIA+ e de tantas outras que nós aqui citamos ao longo da nossa narrativa. O que está acontecendo?
Nós temos que perceber que a questão racial, para além de complexa, permitam-me, é uma questão cínica. Por que é uma questão cínica? Porque o racismo vai se adaptando, ele vai se moldando para criar cada vez mais barreiras para que a população negra não tenha acesso.
E aqui eu vou trazer só alguns exemplos dessa minha caminhada, quando nós vimos, por exemplo, na ideia de se modernizar a cidade, se urbanizar a cidade, quanto ao espaço geográfico, você escolher os espaços onde você tem mais acesso a políticas públicas e colocar uma população de determinada cor, e em outros espaços mais subalternos, os espaços do lixão da cidade, você destinar à população negra. Quando você pensa, por exemplo... Nessa minha caminhada, além de Procuradora, eu fui Secretária de Promoção Social e Combate à Pobreza e trabalhei muito de perto com as pessoas em situação de rua, e eu tenho alguns casos assim que são emblemáticos, onde, em um determinado momento, uma pessoa que, enfim, eu não sei se tinha algum problema mental, mas era uma pessoa que estava em situação de rua, era uma pessoa que não tinha um padrão, vamos dizer assim, de uma pessoa em situação de rua - era uma pessoa branca, era uma pessoa de olhos azuis -, e, de repente o telefone da secretaria estava congestionado porque todos queriam saber por que aquela pessoa estava ali: "É um absurdo! Como assim?". E a gente: "Não, a gente já está tomando providência". Mas não era o suficiente, eram manifestos, eram e-mails, eram mensagens, porque "não era lugar daquela pessoa estar ali", enquanto milhares de crianças - e eu já trago aqui a questão das crianças - ficam na fila, muitas vezes, dos benefícios com suas mães e ninguém se abala, não é?
Então nós temos que observar que sociedade é essa que nós estamos incentivando e criando.
Quando eu penso, por exemplo, na questão dos terreiros das religiões de matriz africana e das dificuldades desses terreiros de conseguirem imunidade tributária enquanto outros espaços, outras manifestações de fé, que também têm suas dificuldades, mas conseguem alcançar... E, se a gente faz uma pesquisa, a gente percebe quantos terreiros não conseguem a documentação. Não se olha que isso é um problema histórico de perseguição às religiões de matriz africana, que tudo isso chega à burocracia do poder público, e nós estamos alimentando essa segregação.
Trago aqui, como exemplo também, a própria dimensão da educação, não é? - quando o Senador Paim bem pontuou que a educação liberta. Mas ela também mata, e mata não só, vamos dizer, no momento em que uma criança dessa venha a ser combalida, mas também no mental dessa criança, porque muitas vezes nós partimos para a escola para dizer a falácia de que a nossa história começou simplesmente na escravidão, enquanto há uma riqueza história da população negra que não é contada - não é contada nem nas escolas, não é contada nos museus -, então é uma responsabilidade da cultura em relação a isso. Então, há uma mistura de ignorância e perversidade.
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Já dentro da ANPM, como Presidente da Associação Nacional dos Procuradores Municipais, e, mais, e desde a gestão passada, em que eu tinha ao meu lado o Presidente Gustavo, nós, Senador Paim, pensamos no que fazer e instituímos uma premiação, que é a premiação Esperança Garcia. A Esperança Garcia é no sentido de você buscar...
(Soa a campainha.)
A SRA. LILIAN OLIVEIRA DE AZEVEDO ALMEIDA - ... boas práticas nos municípios e sair divulgando como bom modelo em outros municípios.
E pasmem, só para dar um último exemplo: a gente percebe o quanto as capitais - eu não estou nem falando dos 5.570 municípios, mas simplesmente as capitais -, até hoje, em sua grande parte, não implementaram a política de cotas.
Então, a minha fala é sobretudo no sentido de alertar que é importante uma ação articulada e que os procuradores e as procuradoras dos municípios, que estão na ponta orientando gestores, seja preventivamente, seja na fase judicial, são um elo importante para que essas políticas públicas possam acontecer. Precisamos pensar isso nos três níveis. Precisamos pensar na União, nos estados, nos municípios e precisamos juntar todos esses atores para ações sistemáticas, senão estaremos simplesmente enxugando gelo.
E eu termino minha fala achando que foi extremamente simbólico. Eu, Senador Paim, assumo agora, em fevereiro, a Presidência da ANPM, uma instituição que vai fazer 25 anos, e sou a primeira negra a ocupar esse espaço, primeira Presidente negra. Nós temos uma carreira que tem quase 20 mil colegas, e estou nesse espaço pela primeira vez como Presidente. Fico muito honrada e aproveito o dia de hoje para lhe prestar uma homenagem.
Desde 2021, seu nome foi votado na nossa assembleia como um dos representantes extremamente importantes na nossa luta de fortalecimento da advocacia pública municipal. O senhor sempre pontuou a necessidade de constitucionalização dos procuradores e procuradoras municipais. Nós, então, ali resolvemos que iríamos lhe dar uma das nossas premiações, que é o prêmio Raymundo Faoro...
(Soa a campainha.)
A SRA. LILIAN OLIVEIRA DE AZEVEDO ALMEIDA - ... que foi um grande jurista, advogado do Rio Grande do Sul, Procurador do Estado do Rio de Janeiro, que tem toda uma caminhada, membro da Academia Brasileira de Letras.
Eu quero, com muito orgulho, na data de hoje, ofertar-lhe essa premiação, não só - hoje eu entendo - pela sua questão com os procuradores e procuradoras municipais, mas pelo seu exemplo de vida. Nós precisamos de eventos, nós precisamos de força e de coragem. E hoje, para mim, como eu lhe disse, é um momento de eu recarregar as baterias, saber, com tantas vozes que eu ouvi aqui hoje, que nós estamos, sim, no caminho certo e que nós podemos, sim, ter a utopia de criar sobretudo os municípios antirracistas.
Muito obrigada, Senador Paim, e eu quero lhe conceder agora, neste momento, essa honraria e lhe agradecer por toda a sua história. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Eu que agradeço muito, viu, Procuradora Lilian Oliveira de Azevedo Almeida, por tudo que falou, mas eu achei muito importante ter citado também que as escolas têm que contar a verdadeira história do povo negro, e é uma lei que existe há décadas - não é, Frei Davi?
O SR. DAVID SANTOS - Exatamente.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Esse trabalho de vocês é brilhante. (Pausa.)
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(Procede-se à entrega de homenagem ao Sr. Paulo Paim.) (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Depois deste momento de muita emoção... A gente chega a uma idade em que se começa a ofertar prêmios e mensagens como esta, e o coração bate mais forte. Mas é bom que ele bata mais forte.
Muito obrigado.
Concedo a palavra neste momento ao meu querido amigo Martvs Chagas, Secretário Nacional de Combate ao Racismo do Partido dos Trabalhadores.
O SR. MARTVS CHAGAS (Para discursar.) - Meu bom dia a todas as pessoas aqui presentes e àquelas que não estão presentes, mas que estão nos acompanhando via internet.
Senador Paulo Paim, eu quero muito agradecer não só a sua parceria, mas a sua história de vida.
Eu costumo dizer que o Rio Grande do Sul, por mais que a gente entenda também que é um dos estados onde o racismo é muito forte, nos premia com determinados presentes, e você é o nosso maior presente que o Rio Grande do Sul pôde nos ofertar. A gente agradece àquele estado, àquela militância negra que tem naquele estado. Muito obrigado por você se tornar essa pessoa e esse símbolo de luta para todos nós.
Eu também quero deixar um abraço aqui à minha companheira Nilma, que está nos assistindo de maneira remota e, na pessoa da Nilma, cumprimentar todas as mulheres que estão presentes.
Senador, por incrível que pareça, a gente fala da história, mas há 20 anos - olha só, lá se vai tempo - eu estava aqui em Brasília. Estava aqui em Brasília porque, no dia 22 de dezembro de 2002, era para ter sido anunciada a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que era a Seppir. E todos os outros ministérios foram criados, Senador; a Seppir não. Eu e a ex-Ministra Matilde estávamos aqui em Brasília exatamente fazendo esse trabalho, juntamente com várias pessoas do movimento negro brasileiro, vários estudiosos, intelectuais, para criar a Seppir. E qual foi a nossa surpresa no dia em que todos os ministérios e secretarias foram anunciados, menos a Seppir?
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Eu não vou lhes dizer o porquê não foi criado, não, porque eu estou escrevendo um livro e, se eu contar aqui agora, vocês não lerão o meu livro. Então, vocês vão ler, no meu livro, porque não foi criado.
No entanto, no dia 27 de dezembro, voltamos eu e a ex-Ministra Matilde aqui para Brasília para exatamente saber o que é que houve e de que forma poderia se recolocar esse tema em tela. Discutimos muito - naquela época, eu era Secretário Nacional de Combate ao Racismo do PT pela primeira vez e tinha sido indicado pelo Governo como interlocutor junto à sociedade civil para a criação do ministério -, dialogamos muito e depois de um tempo falaram: "Ah, nós vamos recriar, foi um erro cometido, não poderia ter deixado de existir. Então, nós vamos recriar". Mas aí a gente nessa nossa resiliência preta, eu mais a Matilde conversamos: "Vai criar, mas não vai criar no dia que vocês quiserem, não. Nós vamos criar a Seppir, mas vai ser no dia 21 de março, que é o Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial". E por que nós decidimos por esse dia e não pelo dia 10 de fevereiro conforme tinham proposto? Porque a gente entendia que o fato de a Seppir não ter sido criada era parte de mais um lapso da história branca do Brasil, que, independentemente de estar dialogando conosco, estar junto conosco, nos esquece, nos deixa de lado, nos abandona por vezes e mais vezes.
Estou dizendo isso porque amanhã a gente celebra 20 anos de criação da Seppir, e eu me vejo, há 20 anos, com o coração bastante atribulado, porque a gente estava preparando a atividade, não sabia direito o que ia acontecer, quantas pessoas viriam. Era a primeira vez na história do Brasil que o Palácio do Planalto iria receber a enormidade de pessoas pretas que recebeu - foram mais de 600 pessoas na nossa atividade.
Então, essa lembrança é para também falar um pouco das nossas vitórias. Às vezes, no movimento social, na nossa luta, a gente carrega tanto ranço, tanta carranca que se esquece de falar que, se estamos aqui hoje neste Plenário, com um Senador negro, isso é reflexo da luta histórica do povo negro no Brasil, não é outra coisa, não é de outra maneira, não pode ser encarado de forma diferente, é luta das mulheres e dos homens, é luta de todas as pessoas, é luta dos antirracistas.
E, quando a Dandara faz referência a mim - eu queria agradecer muito à minha companheira Deputada Federal Dandara Tonantzin, lá da cidade de Uberlândia -, eu fico feliz, porque esse papel, Senador, que eu cumpro e resolvi cumprir há muitos anos de estar num partido político e, a partir desse partido, fazer as lutas sociais, é muito solitário. De um lado, tem parte do movimento negro que bate na gente dizendo que a gente é do partido; do outro, tem o partido que bate na gente dizendo que a gente é do movimento negro. E a gente fica um pouco no limbo. Assim sabe? Apanhando de tudo quanto é lado. E você não sabe para que lado que você vai. Aí você se abraça com aqueles e aquelas que estão junto com você ali.
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Mas eu estou citando Dandara porque há a presença de Dandara, a presença de Reginete Bispo - a quem o senhor conhece muito bem e sabe disso - aqui hoje, a presença de Denise Pessôa, duas mulheres negras do Rio Grande do Sul, isso não é pouca coisa. São duas mulheres negras do Rio Grande do Sul e petistas! Não é pouca coisa.
Isso se deve à luta nossa, que não excluímos ninguém, não deixamos ninguém de fora e também não deixamos partidos políticos de fora. Porque às vezes a gente escuta algumas falas que generalizam, pasteurizam os partidos políticos como se todos eles fossem iguais, como se todos fossem da mesma forma, como se todos eles fizessem as mesmas coisas, e foi esse discurso apolítico, despolitizado que foi o germe do bolsonarismo no Brasil. A partir desse tipo de discurso, de deixar a política de lado, de deixar os partidos fora da política é que isso se disseminou, e assim, a luta... Aí falaram: "Não, a luta contra o sistema". O que isso significa na verdade? Que os partidos são do sistema. Aí você tem um assistemático, como o ex-Presidente Bolsonaro, que fez o que fez no Brasil.
Que bom que hoje nós estamos podendo aqui inclusive falar e criar, fazer as nossas críticas entre nós, porque se não fosse a luta democrática que nós travamos, se não fosse a figura de um companheiro como o Presidente Lula, dificilmente a gente estaria com o mesmo espírito e a mesma tranquilidade de falar aqui hoje.
Por fim, já caminhando para o meu encerramento aqui, eu me lembro, Senador, companheiros e companheiras, de que, durante o período da construção do programa de Governo do Presidente Lula - e a Nilma está aqui conosco e ela foi a coordenadora da construção desse programa -, tinha duas questões centrais - não é, Nilma? - que a gente trabalhou, duas questões que eram, no nosso caso, estruturantes. A primeira era a defesa e a promoção da vida da população negra com dignidade. O que significa isso? Significa que a gente não pode deixar que o Sharpeville se restabeleça no Brasil, significa que a gente não pode deixar mais as nossas crianças, os homens, as mulheres negras serem massacradas do jeito que elas vêm sendo. E para isso nós precisamos criar não só programas como o Juventude Viva, um Juventude Negra Viva, mas nós precisamos criar um mecanismo no Brasil onde a defesa da vida passe a ser prioridade. E o que a gente diz de defesa da vida? Não são só aquelas pessoas que já estão situadas ou estabelecidas, mas é desde a criança, é na tenra idade, é quando a gente fala de violência obstétrica, é quando a gente fala de feminicídio, é quando a gente fala das crianças que não têm o que comer, quando a gente fala de insegurança alimentar. E ao mesmo tempo, a promoção dessa vida deve ocorrer a partir do momento em que a pessoa se coloca enquanto cidadão. Nós temos que proteger esse cidadão, essa cidadã.
(Soa a campainha.)
O SR. MARTVS CHAGAS - Vou concluir.
A segunda questão é a inserção da comunidade negra, a inserção econômica da comunidade negra com qualidade. Não é possível... E aí eu falo para os meus colegas ministros do meu partido, para os meus companheiros e companheiras do meu partido que estão no Governo: não é possível que a gente tenha mais um mandato e que a população negra não comece - eu sei que é difícil - a ser inserida de forma verdadeira na economia desse país. Nós temos que criar as condições para que, para além da carteira assinada ou para além da renda, nós tenhamos condições de as pessoas receberem e terem dignidade também, terem qualidade de vida.
Então, Senador, eu digo isso porque eu me lembro de 2009... Foi em 2009? Foi em 2009. Acho que o senhor estava presente, Senador, foi 13 de maio de 2009, quando nós lançamos uma série de políticas que acredito que até hoje permeiam o imaginário e permeiam aqui o Governo Federal.
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Nós lançamos, naquele ano, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Nós lançamos, naquele ano, a política de cotas do Pibic. Nós lançamos, naquele ano, uma revista que era Trabalho Doméstico Cidadão, que permitiu, logo depois, a inserção das mulheres negras - já que a grande maioria são mulheres negras - como trabalhadoras com direitos. E houve uma série de outros programas.
O que eu quero dizer com isso? Nós temos que inovar, nós temos que superar. E isso já foi dado. Eu me lembro de nós andando pelos corredores deste Senado e da Câmara, Senador Paulo Paim, para aprovar o Estatuto da Igualdade Racial em 2010. Que luta que foi aquilo, e, ainda assim, apanhando de um monte de lados também! Creio que o senhor lembra: apanhou de um lado e de outro!
Eu penso que nós temos esse compromisso. Nós que estamos nos partidos, que não estamos nos partidos, que estamos no movimento negro temos o compromisso de superar. E esse é o grande desafio do Governo Lula.
Por fim, eu queria lhe convidar - já mandei o convite formal -, Senador Paim, e convidar a todos os Parlamentares e as Parlamentares, negras e negros, para um encontro nacional que nós vamos realizar com oito partidos, que é a frente ampla que está no Governo do Presidente Lula. Nós vamos fazer, dia 12 de abril, aqui, em Brasília, esse encontro nacional. Nós queremos fazer a primeira jornada nacional de legislação antirracista em todos os sentidos, em todos os níveis. Então, vamos ter aqui: Senador Paulo Paim ou outros Senadores que se autointitularem negros e negras; a nossa bancada na Câmara; Parlamentares estaduais das Assembleias Legislativas; e Vereadores de capital e de cidade polo. Nós queremos juntar todas essas pessoas...
(Soa a campainha.)
O SR. MARTVS CHAGAS - E, ao juntar essas pessoas, queremos criar uma grande rede, rede esta que vai melhorar, acredito, o diálogo que nós já estamos tendo com o Governo, com as instituições.
Por fim, é isso.
Termino dizendo, Senador, que quem não reconhece as vitórias imensas do movimento negro brasileiro não merece falar em nome dele.
Um grande abraço.
Muito obrigado.
Até a próxima. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Muito bem, Martvs Chagas, Secretário Nacional de Combate ao Racismo do Partido dos Trabalhadores. De pronto, aqui, Martvs, eu assumo o compromisso de aceitar o seu convite. Parabéns pela iniciativa.
Eu queria, antes de convidar a nossa Mariane, só fazer um registro que me pediram para fazer. É registro de presença do Diretor do Sistema Nacional de Cultura, Sr. Lindivaldo Oliveira Leite Junior, representando a Ministra da Cultura; de Iêda Leal e equipe, que já esteve comigo, foi uma boa conversa com a equipe dela, que é a Secretária de Gestão do Sistema de Igualdade Racial do Ministério da Igualdade Racial - agora já no ministério, mas muitas vezes antes -; do Diretor de Filiação, Planejamento e Estruturação Adjunto, Wilson Klippel Cicognani Júnior, Procurador de Gravataí, do Rio Grande do Sul - muito bem, lá do meu estado -; e de Ramila Moura, representando a Deputada Federal Reginete Bispo. Muito bem. Vale lembrar a todos que tenho orgulho de dizer que a Reginete Bispo foi minha suplente de Senador.
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Trabalho belíssimo. Ela viajou o estado todo e se elegeu Deputada Federal agora. Está fazendo um belo trabalho, viu? Diga a ela, lá na Câmara, que eu mandei um abraço.
Quero registrar a presença de Sheila Carvalho, Assessora Especial do Ministro da Justiça, Flávio Dino, que mandou uma justificativa dizendo que ele não poderia estar, mas mandaria alguém para acompanhar.
Muito obrigado a todos.
Uma salva de palmas a todos que registraram a presença e àqueles que não registraram também. (Palmas.)
Agora, então, convidamos... Concedo a palavra, com muita satisfação, sei do esforço que ela fez para estar aqui - nós queríamos, neste evento, mostrar toda a diversidade, e conseguimos - à querida Mariane dos Santos, que é massoterapeuta, atleta e deficiente de visão. Ela tem a palavra neste momento.
A SRA. MARIANE DOS SANTOS (Para discursar.) - Bom dia a todos, todas e "todes".
Perdoem-me a emoção, porque, para mim, que sou nascida e resido na maior periferia do DF, mulher negra, deficiente visual, é uma honra estar aqui nesta Casa. Eu queria que todos os brasileiros tivessem esta oportunidade de estar se expressando aqui. Estar aqui é uma honra.
Ouvindo todos falarem, eu me lembro de uma frase que minha mãe sempre me falava. Somos sete irmãos e, desses sete, eu e meu irmão mais velho nascemos com deficiência visual.
Eu gostaria de que vocês se lembrassem das mães que têm filhos com deficiência. Elas penam bastante.
Uma mulher perguntou para a minha mãe se valia a pena o esforço que ela fazia para levar a gente para a escola. A gente estudava aqui... A gente mora perto do Sol Nascente e estudava aqui na L2 Sul. Todos os dias ela pegava esse ônibus com nós dois. E ela perguntou se valia a pena.
Hoje cada conquista minha, seja me formando no terceiro ano... Eu fui a única que fez formatura no terceiro ano, porque meus irmãos tiveram que parar os estudos para poder trabalhar - essa é a realidade de muitas famílias brasileiras -, e eu, por ter deficiência, não pude fazer isso, não pude parar de estudar para trabalhar, nem isso eu tive. Ou eu estudava ou, então, ficava em casa. Como disse uma pessoa uma vez, um dono de uma empresa de ônibus que reside aqui em Brasília, eu tinha que esperar a morte chegar. Era isso que a gente ouvia.
Como a gente não tem muito, nós, pessoas jovens de periferia, não temos muito espelho. Embora estudasse aqui, numa área nobre de Brasília, era como se colocassem a gente numa bolha. Parecia que a gente estava em mundos diferentes.
Eu nasci cega total. Tenho catarata congênita. Aos três anos fiz cirurgia dos dois olhos, então, eu enxergo um pouco. Estudei na escola de deficientes visuais até os dez anos. Quando se é criança, a gente não tem tanta noção do que é preconceito, a gente pensa que é brincadeira. Embora machuque, a gente pensa que é brincadeira. Eu usava óculos - depois de vinte anos, eu voltei a usar óculos, inclusive, este ano -, e era chamada de quatro olho, cabelo pixaim, e isso a gente tentava levar numa boa. Aí, vem a adolescência. Na adolescência, eu me lembro de um fato. Quando eu entrei na 5ª série, 6ª série, eu queria usar roupa de manga longa e touca para poder esconder a minha cor. Acho que o que mais pesou em mim não foi, nem tanto, a minha deficiência, foi a cor.
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A gente tinha vergonha, eu tinha vergonha porque... E isso é tão sério, o racismo é uma coisa tão séria que as pessoas falam que é vitimismo, mas não é! Isso machuca até a alma da gente: a gente se sente inferior, a gente tem vergonha até de estar nos lugares porque colocam tanto isso na nossa mente, quando a gente é criança, que a gente pensa que, se for um lugar de nível um pouco mais alto, nosso lugar não é ali. Então, vieram esses desafios.
Eu estudava tão longe que às vezes eu tinha que ficar o dia inteiro para o lado de cá de Brasília. Como algumas matérias eu não consigo pegar na sala de aula, então eu tinha que ficar o dia inteiro, às vezes até sem alimentação. Então, assim, tudo se engloba na minha vida, tanto a deficiência, como a cor... E aí eu falava... Poxa, o meu sonho era... Como a gente não tem muito em quem se espelhar, o meu sonho era lavar louça nas casas dos outros, porque era o que eu via a minha mãe fazendo, era o que eu via: minhas irmãs parando de estudar para poder fazer. E o sonho de um jovem de periferia é ir para a esquina, é o que eles acham, é o que eles veem. Parece que, indo para a esquina, você já adquiriu a maioridade ao máximo que você consegue.
Então, veio o ensino médio. Estudei no Setor Leste, aqui, que alguns devem conhecer. E lá os professores tinham um trabalho de colocar a gente no teatro, na música... E lá eu comecei a me soltar um pouco mais no teatro. E aí veio 2008, e eu conheci um projeto, do qual faço parte até hoje, chamado DV na Trilha, que leva deficientes visuais para pedalar. Lá tem pessoas de todos os níveis: temos pedreiro, temos juiz... Lá eu consegui me encontrar; lá eu consegui ser aceita através do esporte. O esporte me... Eu já tinha consciência, porque tempos atrás... Eu gosto muito de cantar, e tinha o rap, que é uma forma de expressão, uma forma de protesto. Então, graças a Deus, eu não entrei nas drogas, eu não entrei no mundo do crime por causa do rap. O rap não é uma dança, é para você entender a letra, entender o porquê de aquela pessoa estar ali falando aquela palavra para você. E o mundo que eu vivo era isso. Era só... Muitos dos meus amigos morreram por causa das drogas, porque, para a mulher de periferia, é aquilo: ou você entra no mundo do crime ou você se envolve logo com qualquer pessoa, engravida logo... E não era isso o que eu queria para mim! Então, eu entrei nesse projeto, e foi o esporte que me salvou. Hoje, pelo esporte, eu me sinto incluída.
Quando terminei o ensino médio, eu falava para mim assim: eu só vou fazer... Aí vem o desafio da faculdade, todo mundo sonha em ter faculdade, mas eu falei que eu só ia fazer faculdade quando eu passasse no concurso, porque o jovem tem aquela... Ou ele se alimenta ou ele estuda. E, embora eu recebesse um BPC, que foi um programa criado pelo Governo, eu não queria só aquilo, eu queria mais! Muitos olham para mim hoje, quando me veem saindo de casa, e dizem: "Por que você não se aposenta?". Porque eu quero mais; eu quero chegar a um lugar e pagar o meu alimento, pagar a minha roupa como qualquer outro cidadão, sabendo que foi fruto do meu trabalho. E as pessoas querem me limitar por causa disso: "Ah, você não precisa estar passando por isso; é deficiente visual!". Sim, mas eu quero ter uma vida como qualquer outro cidadão, eu quero ter os meus direitos como qualquer outro cidadão!
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Então, fiz cursos de massagem e trabalhei de 2010 a 2015 no trabalho informal, e o BPC me ajudava. A maioria dos deficientes que recebem BPC sustentam a casa. São eles que sustentam a família. E nem sempre um salário mínimo dá para o cidadão brasileiro viver, não é?
Devido às cotas que foram criadas para as empresas a partir de cem pessoas - reservar 5% das vagas para pessoas com deficiência - foi que eu ingressei no emprego formal. Hoje já faz mais ou menos oito anos que eu trabalho nessa área, formalmente. Hoje tenho carteira assinada, graças a Deus, não é? Hoje eu posso chegar a um lugar, pagar minhas coisas, sabendo que foi fruto do meu trabalho, não é?
Mas de uns tempos para cá a gente sentiu que isso está um pouco difícil porque o pessoal que foi mandado embora, por exemplo, das empresas, junto comigo, não conseguem mais emprego porque as cotas estão sendo forjadas, não é? É mais fácil aceitar uma pessoa com uma deficiência leve, vamos assim dizer, do que uma pessoa com uma deficiência mais moderada ou grave.
Eu sou baixa visão, mas tem cegos totais que manjam melhor da tecnologia do que eu. Mas as empresas não aceitam porque elas pensam que vai dar mais trabalho. E tudo o que a gente quer é só uma oportunidade. Tudo o que a gente quer - nós, mulheres negras, pessoas com deficiência - é só ter uma oportunidade, como qualquer outra pessoa na sociedade.
E aí eu decidi que eu só... Hoje estudo para concurso, tenho muitos desafios. Às vezes falta de ledor; estudo sozinha, em casa, e às vezes olho dói; eu paro, volto novamente. Mas são desafios que para nós já se tornaram corriqueiros, não é? Mas olhem por essas pessoas.
(Soa a campainha.)
A SRA. MARIANE DOS SANTOS - O jovem de periferia tem muita vontade de crescer, muita mesmo, mas às vezes ele não tem em quem se espelhar, e hoje eu quero ser espelho para os meus irmãos, para os meus sobrinhos, não é?
Hoje eu falo que é muito importante a mídia, essa visibilidade que a gente tem hoje, porque hoje a gente tem em quem se espelhar, hoje a gente tem a quem recorrer.
É isso, pessoal. Agradeço pela palavra. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Meus parabéns à Sra. Mariane dos Santos, massoterapeuta, atleta e deficiente de baixa visão, por ter aceitado o nosso convite, estar aqui neste momento.
A nossa intenção, pessoal, foi de fato que aqui no Plenário hoje nós déssemos o corte da diversidade, não é? Esse mesmo corte que eu digo para vocês que tem no meu gabinete. No meu gabinete tem duas pessoas que não têm visão. O Luciano, deficiente visual, que inclusive é poeta, e o que coordena o gabinete do Rio Grande do Sul, Santos Fagundes, também - e não coordena agora, coordena já há 20 anos praticamente - é um deficiente visual. Temos LGBT aqui num deles. Tem uma exceção porque ele quis botar "não". São diversos que trabalham. Temos LGBTQI+ também que trabalham no meu gabinete. A maioria deles fez universidade dentro do gabinete. Temos negros, temos brancos, temos índios, temos... Só não tem cigano ainda porque eu não consegui; não tem lá em Canoas, mas gostaria muito de que tivesse. Tanto que eu sou o autor do Estatuto do Cigano. Ainda vamos conseguir colocar, quem sabe amanhã ou depois, um cigano.
Eu aproveitei este momento, que é seu, Mariane, para mostrar que é preciso ter o discurso e a prática também, não é? E nós mostramos isso no nosso gabinete. As mulheres lá são chefes de gabinete. Não pensem que são só os homens. Mulher lá é chefe de gabinete, não é, Isabel? A Isabel é uma das nossas assessoras, fez faculdade também, tem nível superior, e tantos outros...
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Mas vamos em frente. Agora, passo a palavra para o último orador deste dia, ao nosso querido amigo e líder Douglas Belchior. O Douglas Belchior é cofundador do movimento pela educação popular e combate ao racismo Uneafro Brasil.
O SR. DOUGLAS BELCHIOR (Para discursar.) - Bom dia a todas e todos.
Senador Paim, muito obrigado por mais esta oportunidade. Eu tenho tido oportunidades de conviver com o senhor, com essa sua história tão importante, referência para aqueles que continuam a luta contra o racismo no Brasil.
Eu quero cumprimentar a Procuradora Lilian; o Sr. Martvs, que fez aqui um discurso importante, recuperando a história desses últimos 20 anos de construção institucional da luta contra o racismo; o Frei David, meu querido companheiro de tantos anos; o Sr. Toni, que está online; a Mariane, que fez um discurso emocionante agora; também a nossa Professora Nilma, que eu tanto admiro, que está online também; quem já passou por aqui, a Roberta Eugênio; a Lívia Santana, que continua com a gente aqui; a Dandara, nossa Deputada. Eu quero também saudar a presença da Ieda Leal, nossa companheira do movimento, representante do MNU; o Cledson, que estava aqui agora há pouco; a Bel, grande companheira de tantos anos da luta do movimento negro; a Jaqueline Lima, que está aqui também, da FES; e a Sheila de Carvalho, que hoje está no Ministério da Justiça. São pessoas que têm uma trajetória de construção junto ao movimento popular, ao movimento negro, e que hoje ocupam espaços importantes.
Amanhã, nós vamos ter um dia importante a ser celebrado, lembrado, revivido, sobretudo porque o Brasil é um país em que a realidade diária da população negra, a violência com a qual o povo negro é tratado neste país historicamente talvez seja bem pior do que os piores momentos que viveu o apartheid, na África do Sul, ou o sul dos Estados Unidos com as leis de Crow. O Brasil não deixa nada a dever para os piores momentos de violência contra a população negra no mundo. Ter esses momentos para lembrar isso é importante.
Eu sou de um movimento, Senador Paulo Paim, de educação, e a gente acredita que enfrentar o racismo passa radicalmente pelo processo educacional, pela formação das pessoas, pela contraposição a uma lógica, a uma hegemonia que naturalizou a violência contra pessoas negras no Brasil. Eu quero, então, aproveitar a oportunidade para agradecer as mais de 400 pessoas que são voluntárias na Uneafro Brasil, como professores, coordenadores de núcleo. Nós estamos bem mais de 40 bairros, espalhados por São Paulo e também no Rio de Janeiro e na Bahia.
Eu quero saudar também a nossa Coordenadora-Executiva do Instituto de Referência Negra Peregum, Vanessa Nascimento, que é uma das responsáveis pelos trabalhos que a gente faz em São Paulo e que, nos últimos anos, tem nos dado condições de acompanhar aqui o Legislativo, tanto Câmara quanto Senado, especialmente, Senador, nesses últimos quatro anos de resistência ao bolsonarismo, de destruição que eles promoveram aqui, mas nunca faltou luta nesses espaços, para a gente impedir a descontrução das nossas políticas.
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Eu quero aproveitar esse momento para deixar com o senhor, Senador Paulo Paim, um estudo que foi promovido pelo Instituto de Referência Negra Peregum, pelo Afro - Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial (Afro-Cebrap), com o apoio do Banco Mundial, que trata sobre a realidade de jovens negros no mercado de trabalho e na educação.
Eu quero falar um pouco sobre a importância de a gente ter um Governo, que é um Governo de grande pacto nacional, é um Governo de transição; mas nós temos que discutir para onde a gente vai transicionar; que frutos nós vamos tirar desse processo que a gente está vivendo no sentido da luta por justiça racial no Brasil. Um governo que pressupõe ou que se dispõe a ser um governo para reconstruir democracia, como já foi dito aqui pela Profa. Nilma Lino, tem que se comprometer com o fim das desigualdades raciais. Então, é preciso colocar em prática e aproveitar esse momento histórico para efetivar políticas.
O Martvs trouxe à nossa memória aqui a lembrança de formulações históricas do movimento negro que foram provocadas nos momentos de construção institucional, nas experiências de governos progressistas. Essas experiências, essas formulações precisam aproveitar esse momento para serem efetivadas de fato. E eu quero pontuar aqui algumas que eu acho fundamental, que o Martvs já citou, mas eu vou repetir.
Políticas de desenvolvimento econômico da população negra. Ou a gente faz isso agora ou quando vamos fazer? Quando é que a gente vai voltar a ter governos...
E a gente precisa entender o contexto político que nós vivemos: é um Governo de grande pacto, é um Governo de uma aliança ampla, é um Governo que está diante de uma força social ultraconservadora, que continua viva na sociedade. O fato de ter ganho o Governo Federal e de ter o Governo Lula hoje como um aliado fundamental da agenda progressista não quer dizer que isso vá continuar. Daqui um ano, em 12 meses, nós estaremos discutindo, em todo o país, as eleições municipais. E que condição e correlação de forças nós temos para enfrentar o que virá daqui pouco mais de um ano, nas próximas eleições? Que nível de condição de articulação das forças progressistas nós teremos para enfrentar isso no território onde as pessoas vivem; onde o conservadorismo é parte radical e cotidiana da realidade brasileira; no território onde as pessoas disputam mais do que aqui no Congresso o debate ideológico; onde as pessoas disputam a posição sobre ser ou não a favor, por exemplo, da violência da polícia como um método na ação do tratamento do Estado contra a população negra?
A efetivação da política nacional da saúde integral da população negra já foi citada aqui, e é preciso repetir, porque nós tivemos uma formulação colocada muito antes do fim da experiência de governos progressistas, e não conseguimos efetivar as políticas. Ou a gente aproveita para fazer isso agora ou quando nós vamos aproveitar para efetivar?
Titulação de terras quilombolas. Ora, quantos territórios quilombolas nós tivemos efetivamente titulados? Em que medida a vida da população quilombola foi protegida nas experiências dos governos progressistas? De novo: ou a gente aproveita para fazer isso agora ou quando?
Então, nós precisamos radicalizar no sentido de aproveitar... E eu penso que o Presidente Lula está nesse espírito. É possível perceber, na narrativa, nos discursos que ele faz, até uma certa impaciência em dar conta de resolver os problemas tão agudos que o Brasil tem. E esses são alguns que a gente tem que lembrar o tempo todo, porque, infelizmente, como o racismo atravessa a realidade de todos os espaços, muitas vezes mesmo os nossos aliados colocam nossas agendas muito para trás nessa fila.
As políticas de ação afirmativa no campo da educação. A gente tem hoje na Secadi uma professora espetacular, muito comprometida com a luta antirracista, que é a Profa. Zara Figueiredo. E a gente tem, então, mais uma oportunidade de efetivar políticas que contemplem a necessidade da população negra.
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O Frei David está aqui, a gente trabalhou junto, por muitos anos, e a gente teve a experiência que deve ser celebrada dos médicos... Como é aquela política pública que os estudantes vão para o... Ciência sem Fronteiras. A gente já tem estudos que, apesar de a gente celebrar a política, demonstram - já tem tese de mestrado e doutorado - que a maioria esmagadora dos jovens que aproveitaram aquela política foram jovens brancos; não foram jovens pretos enviados para fora do país. E a gente sabe que, num país colonizado como o nosso, quando uma pessoa volta de fora do Brasil, com diploma internacional, a condição social dela muda; vai ocupar um grande posto na sociedade. Na medida em que tem uma política pública que lança mão dessa oportunidade para uma maioria de jovens brancos e, quando voltam, voltam ainda mais cacifados, a política tem um efeito contrário, aumenta a disparidade e a desigualdade ao invés de diminuir a disparidade e a desigualdade de oportunidades e de condição de educação entre os jovens.
Sobre a emergência climática - que é um tema que está bastante colocado hoje, na imprensa; é um tema que ocupa uma importância política enorme; que bom que isso tenha acontecido no Brasil -, é importante dizer que, enquanto houver racismo ambiental, não haverá justiça climática. É preciso dizer que o Brasil, se não for o país onde mais morrem pessoas negras em razão das mudanças do clima, é um dos países onde mais morrem pessoas negras em razão das mudanças do clima.
(Soa a campainha.)
O SR. DOUGLAS BELCHIOR - É só olhar para o noticiário e ver o rosto de quem está chorando na matéria da televisão, e a gente percebe quando são noticiadas as enchentes, e os desabamentos, e os desmoronamentos. Então, a população negra é aquela que é a mais afetada pelas mudanças do clima, porque não há investimento e adaptação.
Aliás, eu quero aproveitar aqui, Senador Paim, já para deixar um pedido objetivo, porque eu sei que você é um cara do trabalho. Certo? Aqui no Senado, a Senadora Leila Barros, do PDT, assumiu a Comissão de Meio Ambiente - se eu não estiver enganado -, e sei que o senhor coordena, mais uma vez, a Comissão de Direitos Humanos. Eu quero pedir ao senhor que convoque uma audiência pública para discutir a adaptação - que é um tema em voga, agora -, de repente, em uma reunião conjunta com a Comissão de Meio Ambiente, porque, nas próximas semanas, a sociedade organizada, o campo do movimento social, o movimento climático, o movimento negro, vai lançar mão de um documento. Nós vamos pedir uma reunião interministerial e queremos também entregar aos dois Presidentes das duas Casas, Câmara e Senado, e também promover audiências públicas para discutir a adaptação. Nós temos que forçar as cidades brasileiras a investir em infraestrutura e impedir o assassinato de pessoas negras e pobres cada vez que chove. Nós não podemos tratar isso com naturalidade, continuar tratando isso com naturalidade; é uma agenda e uma demanda que coloco aqui como emergencial e importante.
O tema da segurança pública. O Paulo Paim citou aqui o projeto de lei que a gente formulou em conjunto, sobre a abordagem policial, que é exatamente o tema que o STF tem tratado nos últimos dias e que, infelizmente, agora não tem data para voltar para o plenário do STF, porque aguarda o julgamento; não tem previsão para o retorno do debate do perfilamento racial. Está aqui a Sheila de Carvalho, que foi uma das que provocou esse debate a partir da Coalização Negra e com outras organizações da sociedade...
(Soa a campainha.)
O SR. DOUGLAS BELCHIOR - ... esse debate no STF. E ainda está faltando o julgamento da Ministra Rosa Weber, da Cármen Lúcia, do Fux, do Nunes Marques, do Luís Barroso, do Lewandowski e do Gilmar Mendes. É um tema absolutamente emergencial na sociedade brasileira, na medida em que os policiais militares e as forças de segurança, que sempre foram terríveis contra nós, pioraram a partir da contaminação desse clima político, do bolsonarismo. Eles agem, Senador, à revelia da nossa existência, porque não há nesta Casa nenhuma lei... Isso foi dito brilhantemente em um discurso, há poucos dias, pelo Renato Freitas, o nosso Deputado Estadual que tem sido perseguido no Paraná. Ele disse isto - eu quero repetir, dando crédito a ele -: não há leis que autorizem a atuação policial como ela se dá. E, quando o policial age assim sistematicamente na ponta, ele está desrespeitando toda uma cadeia de organização, inclusive aqui, o Senado Federal, a Câmara, que não deram atributos...
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(Soa a campainha.)
O SR. DOUGLAS BELCHIOR - É esta Casa que legisla. Ele não pode, então, trabalhar contra o que está sendo formulado aqui.
Por fim, eu vou falar rapidamente sobre esta publicação, Senador Paim, que eu quero deixar para o senhor, te entregar formalmente aqui, que é um documento fruto de uma pesquisa que o Instituto de Referência Negra Peregum, junto com o Afro Cebrap e com o Banco Mundial, formulou sobre jovens negros e mercado de trabalho. O Frei David fez menção a um dado que não é exatamente esse, mas é parecido com esse. Quase 40% dos jovens entre 18 e 29 anos não trabalham e não estudam neste momento. O que isso significa enquanto impacto para toda a sociedade brasileira num tempo, num curto espaço de tempo? Então, esse documento foi formulado a partir de uma pesquisa realizada por jovens que não trabalham e não estudam e os impactos da realidade social e econômica nesse momento.
(Soa a campainha.)
O SR. DOUGLAS BELCHIOR - E a gente tem aqui, Senador Paim, 15 recomendações que eu gostaria muito que o senhor e o seu gabinete se atentassem a elas e pensassem em formulações em torno de projetos de lei a partir dessas 15 recomendações.
Eu agradeço mais uma vez a oportunidade e que a gente possa continuar junto em tempos melhores. Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Muito obrigado mais uma vez, Douglas Belchior, cofundador do movimento por educação popular e de combate ao racismo UNEafro Brasil. E de pronto já fica aceita a sua proposta de eu fazer uma audiência conjunta das Comissões de Meio Ambiente e Direitos Humanos. Com certeza não teremos dificuldade nenhuma. Só vamos combinar a data.
Bom, pessoal, só posso agradecer a todos. Inclusive grande parte... Normalmente, essas audiências públicas chegam ao encerramento com meia dúzia, viu? Hoje nós temos um bom número no Plenário. Enfim, só posso agradecer.
Quero agradecer também, me permita aqui, meu secretário que me ajudou muito aqui, ao Presidente Rodrigo Pacheco. Ele tem nos ajudado muito. Todas as pautas raciais ele pautou - todas! - que nós pedimos. Não teve uma que ele não pautou. E a maioria aprovamos, inclusive. E foi lá para a Câmara dos Deputados. Agora, com essa nova turma que chegou, uma turma boa de jovens aí, eu tenho certeza de que vai avançar também lá.
Queria agradecer, além da equipe toda aqui do Senado que trabalhou, ligaram, telefonaram, inclusive viram que havia muitos embaixadores, diplomatas aqui, à minha equipe do gabinete, aqui representada no Plenário pela Isabela e pelo Luciano, à Ivanete, que é a chefe de gabinete e que colaborou muito com toda a equipe lá de cima para que este momento acontecesse. Eu estou feliz - viu? -, dentro da tristeza de tudo que nós vimos aqui, mas feliz por nós sabermos ocupar o momento como esse e os espaços. Como você falou muito bem, deslocaram... Os que estão aqui, a maioria, se deslocaram dos seus estados, vieram para cá para falar para o Brasil, não é? É um espaço privilegiado onde nós estamos falando aqui para milhões de brasileiros.
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Então, vida longa à comunidade negra! Vida longa a todos aqueles que lutam por políticas humanitárias! As políticas humanitárias são um símbolo de um novo amanhã, são um símbolo de qualidade de vida, são um símbolo de se combater o trabalho escravo, tão contundente. Eu quero dizer que o Ministro Luiz Marinho, do Trabalho, está fazendo um belo trabalho. Hoje ele está no Rio Grande do Sul, mas eu já sei que ele vai para outros estados também. Porque é inacreditável que - e eu tenho repetido esta frase -, em pleno século XXI, nós estejamos de novo brigando contra o trabalho escravo. Mas, enfim...
Amigos, estamos juntos! Que Deus ilumine a todos nós!
Obrigado a todos que vieram aqui, todos que estão acompanhando este debate. Essa luta...
O SR. DAVID SANTOS - Senador, só um minutinho.
É possível também uma audiência pública sobre o Fundo de Amparo ao Trabalhador? Machuca-me muito saber que esse fundo não...
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) - Já está assegurada, porque, se eu não assegurar logo: "Então me deem a tribuna, que eu vou defender a causa aqui". (Risos.)
Não, já está assegurada, e vamos fazer uma audiência pública - como vamos fazer uma audiência sobre o Fundo da Igualdade Racial, o fundo para combater o racismo, que é uma PEC de nossa autoria, está pronta para ser votada e não foi votada. Então, vamos pedir para se fazer uma audiência pública, para convencer aqueles que têm dúvida ainda da importância deste fundo.
Uma salva de palmas a todos vocês! (Palmas.)
Vida longa a negros, brancos, índios!
Neste momento, cumprida a finalidade desta sessão especial - e o Secretário me avisa aqui - do Senado Federal, agradeço às personalidades que nos honraram com a sua participação.
Está encerrada a sessão.
Vida longa às nossas lutas! Uma salva de palmas a vocês! (Palmas.)
(Levanta-se a sessão às 11 horas e 58 minutos.)