Discurso no Senado Federal

ASPECTOS DO SISTEMA FEDERATIVO BRASILEIRO.

Autor
Jutahy Magalhães (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/BA)
Nome completo: Jutahy Borges Magalhães
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SISTEMA DE GOVERNO.:
  • ASPECTOS DO SISTEMA FEDERATIVO BRASILEIRO.
Publicação
Publicação no DCN2 de 04/03/1994 - Página 1071
Assunto
Outros > SISTEMA DE GOVERNO.
Indexação
  • COMENTARIO, SISTEMA DE GOVERNO, FEDERAÇÃO, OBEDIENCIA, ESTADOS, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, SIMULTANEIDADE, AUTONOMIA, CONSTITUIÇÃO ESTADUAL, LEGISLATIVO, EXECUTIVO, JUDICIARIO.
  • COMENTARIO, HISTORIA, FORMAÇÃO, FEDERAÇÃO, PAIS.
  • ANALISE, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, NECESSIDADE, DEFINIÇÃO, SISTEMA DE GOVERNO, FEDERAÇÃO, CONSOLIDAÇÃO, AUTONOMIA, ESTADOS, DESCENTRALIZAÇÃO, COMPETENCIA, UNIÃO FEDERAL.

    O SR. JUTAHY MAGALHÃES (PSDB-BA. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores:

    A Constituição de 1988, ao consagrar a forma federativa do Estado brasileiro, manteve uma tradição de toda a nossa história republicana. Tamanho foi o zelo pelo princípio federativo, que a atual Carta Magna respeitou também a tradição republicana de vedar a apresentação de proposta de emenda constitucional tendente a abolir a forma federativa de Estado.

    Com efeito, o sistema federativo distingue-se pelo caráter composto do seu ordenamento político e jurídico, havendo um plano nacional e um estadual ou regional de poderes e órgãos, assim como de competências. Uma verdadeira federação rege-se por dois princípios básicos. O primeiro é o da participação. Através dele, os Estados-membros tomam parte na formação da vontade estatal. O segundo princípio básico de uma federação é o da autonomia, mediante o qual cada Estado-membro é dotado do poder constituinte. Segue-se daí a existência, não apenas no plano nacional, mas em cada Estado-membro, de uma constituição, um legislativo, um judiciário e um executivo.

    Essas características do Estado federativo o opõem à forma unitária de organização estatal, marcada pela existência de uma unidade da ordem política e jurídica. Entretanto, por mais centralizado que seja, nenhum Estado unitário o é em absoluto; há sempre divisões internas em sua composição, mormente na esfera administrativa. Por outro lado, toda federação possui um duplo aspecto: o unitário, expresso na competência centralizadora da União, exercida no interesse de toda coletividade nacional; e o aspecto federativo propriamente dito, que se manifesta na autonomia dos Estados-membros. Disso resulta ser impróprio afirmar, em tese, que uma das formas de organização do Estado seja superior à outra.

    Nossa época é testemunha de como as formas tradicionais de organização estatal vêm sendo desafiadas. Federações centralizadas como a União Soviética e a Iugoslávia desintegraram-se e novas entidades políticas com muito custo tentam se consolidar em seus antigos territórios. De outro lado, há o caso de países que cogitam em conceder novos poderes a entidades supranacionais, como o fazem os membros da Comunidade Econômica Européia. Na realidade, é difícil estabelecer princípios gerais e demais regras para a repartição de prerrogativas e responsabilidades entre um poder central e as unidades federadas ou confederadas. Daí originam-se as quase inevitáveis divergências entre as entidades associadas e entre essas e o governo central.

    Em retrospectiva histórica, é possível afirmar que as coletividades que procuraram se organizar sob a forma de federação tinham em mente os riscos para a liberdade e para o respeito às diversidades culturais e regionais que pode suscitar o caráter centralizado do Estado unitário. Essa preocupação explica o espírito inovador dos “Constituintes de Filadélfia’’. De fato, os “estados’’ norte-americanos haviam sido autônomos entre si na época colonial, unindo-se apenas durante a luta contra os ingleses através de uma confederação. Quando da elaboração da Constituição de 1787, essa aliança provisória deu origem a uma entidade política nova, a federação norte-americana. Nesta, cada membro manteve atribuições e competências próprias. Apenas com o passar dos anos, e após uma guerra civil, conseguiu a União se consolidar, o que se fez, ainda assim, respeitando a autonomia de cada entidade federada.

    Sr. Presidente, Srs. Senadores, o caso brasileiro mostra uma situação inversa, em que uma nação unitária repartiu-se em “estados’’ e adotou uma constituição federal. De fato, apesar das diversidades regionais, o Estado imperial brasileiro caracterizava-se por sua forma unitária. Diversas eram, contudo, as pressões pela adoção de princípios descentralizadores, o que se pode verificar nas rebeliões provinciais que sacudiram o País. Em um momento de fragilidade do governo central foi instituído o Ato Adicional de 1834, pelo qual foram outorgados poderes consideráveis aos Conselhos Gerais Provinciais. Entretanto, passada a crise da Regência, tais atribuições foram atenuadas ou suprimidas pela Lei de Interpretação do Ato Adicional, de 1840. Para fortalecer o princípio de centralização do poder, o governo imperial manteve a tradição da administração pública portuguesa de promover a circulação dos altos funcionários por postos e regiões geográficas. Dessa forma, os presidentes de províncias, que eram nomeados pelo imperador, não precisavam ser naturais das entidades que governavam nem estar de algum modo vinculados a elas; o que interessava era a lealdade ao governo central.

    Sem dúvida, a centralização do Segundo Reinado, como também outros momentos posteriores de fortalecimento do poder central, foram fundamentais na contenção de conflitos de cunho separatista e, portanto, na manutenção da unidade nacional. Ainda assim, é possível concluir que a resistência ao princípio federativo contribuiu em grande escala para a queda da Monarquia.

    Infelizmente, contudo, o advento da federação com a República não foi fruto de uma pressão que envolvesse a vontade inquestionável de todas ou quase todas as antigas províncias. A propósito, muitos eram os republicanos que lutavam, desde os últimos anos da Monarquia, por uma concepção de Estado claramente unitária, inspirada em ideais positivistas. Em grande parte, o interesse dos cafeicultores paulistas, desejosos de afastar os entraves a seus negócios proporcionados pela centralização administrativa imperial, foi o fator decisivo na opção pelo regime federativo. Apesar dessa vitória federalista, o ideal de um regime centralizado, modernizador e ditatorial, herança do racionalismo e do positivismo, viria a se manifestar com enorme freqüência na vida política não apenas dos anos iniciais da República, mas de toda a história subseqüente do País.

    Tão ampla era a autonomia concedida aos Estados pela Constituição de 1891 que eles podiam contrair livremente empréstimos no exterior, cobrar impostos de exportação, criar barreiras fiscais interestaduais e até mesmo manter suas próprias forças armadas. Apesar dessa ampla autonomia constitucional, o princípio federativo foi constantemente eludido pela prática política centralizadora ou pela formação de hegemonias regionais. Assim, e sem querer discutir as razões de cada um, os dois primeiros Presidentes da República governaram como ditadores. Não foram poucas as intervenções federais nos Estados ou os anos em que o poder central governou sob estado de sítio. Outro exemplo de centralização, que expressa a hipertrofia do Executivo Federal no período da chamada República Velha, foi a Comissão Verificadora de Poderes, com sua função de impedir vitórias eleitorais das oposições estaduais, garantindo o apoio das oligarquias no poder ao cada vez mais fortalecido governo central. Por outro lado, o princípio do equilíbrio federativo foi ferido pela aliança dos dois Estados mais poderosos, São Paulo e Minas Gerais, que após 1894 praticamente se revezaram na indicação do Presidente da República.

    A Revolução de 30 tinha em seu espírito uma proposta moralizadora do processo político-eleitoral; porém, trouxe também um novo momento de centralização do poder. Dada a excepcionalidade da ocasião, foram nomeados interventores para o governo dos Estados e dissolvidas as Assembléias Estaduais e as Câmaras Municipais, além do Congresso Nacional.

    O mesmo estilo descentralizador da Constituição de 1891 foi adotado pela Carta de 1934. Contudo, a nova ordem constitucional não conseguiu se manter em virtude da radicalização política do período. Com o golpe do Estado Novo e a imposição da Constituição de 1937, a centralização do poder chegou a seu extremo. Foram proibidas até as bandeiras e emblemas estaduais. A inscrição da forma federativa de Estado no novo texto constitucional em nada era coerente com os mecanismos de fortalecimento da forma unitária do então formulado Estado corporativo, cópia de modelos fascistas europeus.

    A Constituição liberal-democrática de 1946 representou nova tentativa de revitalização do federalismo. Uma medida inovadora presente em seu texto, correlata ao princípio federativo, foi a adoção de um percentual de receitas tributárias da União em favor da região Nordeste. Entretanto, é possível perceber que novamente a consolidação do princípio federativo foi prejudicada pelo fortalecimento da centralização administrativa.

    É preciso lembrar que esse contínuo fortalecimento da União a partir da década de 30 não se deve apenas à tradição político-administrativa brasileira, herança de tempos coloniais e do Império. Manifestava-se no período uma tendência mundial no sentido da centralização política, em virtude da emergência do “welfare state’’. Também no Brasil, de modo especial a partir dos anos 30, o poder central interveio na esfera sócio-econômica com o objetivo de aplainar os conflitos sociais decorrentes da luta entre o capital e o trabalho. Além disso, coube à União a tarefa de coordenar a política desenvolvimentista requerida pelos agudos sentimentos nacionalistas que emergiram nessa época.

    Um novo período de centralização foi proporcionado pelo regime instalado em 1964. A Constituição de 1967, da mesma forma que a Emenda Constitucional de 1969, estabelecia uma série de restrições à autonomia dos Estados, apesar de declarar que cada entidade federada seria organizada de acordo com suas próprias constituições. Na verdade, os Estados passaram a ser entidades tuteladas pelo poder central. Em matéria tributária, a União reteve a maioria dos impostos de base econômica mais sólida e passou a interferir na cobrança de tributos próprios dos Estados e Municípios. Houve, é certo, razoáveis redistribuições federais aos outros níveis de governo através das transferências constitucionais e legais, assim como das chamadas “transferências negociadas’’. Essa situação, entretanto, gerou um certo comodismo das unidades federadas em relação à arrecadação de seus tributos próprios. Além disso, as “transferências negociadas’’ implicaram outra distorção ao sistema federativo, que foi a execução de obras e serviços públicos tipicamente regionais por órgãos da União.

    Como todos sabemos, Sr. Presidente, Srs. Senadores, uma das grandes preocupações dos Constituintes de 1987-88 foi a de garantir a consolidação das liberdades públicas e das instituições democráticas. Nesse sentido, foram estabelecidos no novo texto constitucional dispositivos marcados pela idéia de fortalecimento do princípio federativo como um dos pilares da nova ordem democrática. Assim, os Estados - e também os Municípios, reconhecidos com o status de unidades federadas - passaram a ter maior liberdade no que concerne ao seu poder de auto-organização. Estados e Municípios tiveram também aumentada sua capacidade arrecadadora.

    Persistiu na Carta Constitucional de 1988, entretanto, a tendência centralizadora. A União foi sobrecarregada de obrigações, notadamente na área da seguridade social. Privada de receitas, mas com os encargos mantidos ou até ampliados, a União aumentou a carga fiscal - sobretudo dos tributos não sujeitos à repartição constitucional -, promoveu alterações freqüentes na legislação tributária e se envolveu em longas disputas judiciais. Além disso, as dificuldades geradas por esse aumento de despesas foram responsáveis pela acentuada elevação do déficit público federal, um dos principais fatores de alimentação do espectro inflacionário.

    Com efeito, algumas pesquisas indicam que, mesmo antes da reforma tributária promovida pela Constituição de 1988, havia uma tendência ao aumento da participação dos Estados e dos Municípios na distribuição nacional das receitas. De acordo com estudo publicado na revista Conjuntura Econômica, de outubro de 1991, a disponibilidade tributária dos Estados em relação ao total da receita nacional subiu de 24,3 para 27,4% entre 1980 e 1988. No mesmo período, a disponibilidade dos Municípios elevou-se de 9,5 para 11,4% da receita nacional. Foram fatores importantes nessa tendência de descentralização tributária a pressão das unidades federadas, ante os efeitos adversos da contração econômica do início dos anos 80, e a liberalização política, principalmente após as eleições para governadores de Estado em 1982 e para prefeitos em 1985. Segundo dados preliminares levantados pelo referido estudo, Estados e Municípios retiveram, respectivamente, cerca de 30 e 16% da receita tributária nacional em 1990. Esses dados indicam que, apesar das mudanças promovidas pela Carta de 1988, há ainda no País uma considerável centralização tributária. E como todos sabemos, mesmo retendo a maior parte da receita fiscal, a União enfrenta crônico problema orçamentário, por estar sobrecarregada de responsabilidades.

    A situação relativamente favorável dos entes federados em matéria tributária nos últimos anos não impediu que muitos deles acabassem envolvidos em gastos excessivos. Em conseqüência, por diversas vezes, o Governo Federal acabou assumindo os custos das crises financeiras daqueles, através de transferências, de absorção dos serviços da dívida e de constante renegociação dos créditos junto às instituições financeiras centrais. Os notórios vínculos entre esse comportamento do poder central e nebulosos esquemas de manipulação política explicariam a existência, em diversos setores da administração pública, de uma forte resistência à criação de regras e ações mais disciplinadoras das relações econômico-financeiras entre a União, os Estados e os Municípios.

    Podemos ver assim, Sr. Presidente, Srs. Senadores, que a presente ordem constitucional, apesar de ter possibilitado um avanço no que diz respeito ao sistema federativo, ainda não representou a formação de um sistema equilibrado entre o poder central e as entidades federadas. A atual Constituição promoveu uma reforma tributária incompleta e deixou de efetuar a transferência de responsabilidades entre as esferas de governo.

    O que se constata hoje é a necessidade de redefinir alguns papéis no sistema federativo brasileiro. A importância de consolidar a autonomia das entidades federadas é inquestionável. Isso poderia ser feito mediante a transferência de competências da esfera federal para a dos Estados e Municípios e o conseqüente estabelecimento de uma base tributária mais sólida para os mesmos. Com certeza, essa descentralização exigiria maior responsabilidade fiscal e orçamentária por parte das entidades federadas, pois é preciso que estas se preocupem mais com os problemas macro-econômicos do País. A União, por sua vez, deveria ter suas atribuições limitadas às questões de caráter estritamente nacional, além de exercer suas funções redistributivas, como na correção das desigualdades regionais. Dessa forma, passariam a ser da responsabilidade privativa dos Estados e dos Municípios as obras e os serviços públicos que podem ser melhor executados e prestados pelos governos que se encontram mais próximos da população. Não faz sentido, por exemplo, que programas de distribuição de merenda e material escolares sejam conduzidos pelo Governo Federal. Por outro lado, deveriam ser estabelecidas regras mais rígidas de controle dos gastos públicos em geral, assim como de disciplina nas relações econômico-financeiras entre os níveis de governo. Por fim, cabe mencionar a necessidade do fortalecimento, em todos os níveis de governo, de uma postura ética que represente a rejeição a qualquer comportamento que envolva trocas ilegítimas de favores.

    Julgo serem esses os caminhos adequados para se combater o centralismo, a irresponsabilidade e o clientelismo, vícios causadores das históricas distorções do ideal federalista em nosso País.

    Era o que eu tinha a dizer, Sr. Presidente, Srs. Senadores. Muito Obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 04/03/1994 - Página 1071