Discurso no Senado Federal

COMENTANDO DECLARAÇÕES DO SOCIOLOGO BETINHO ASSUMINDO PUBLICAMENTE AS DOAÇÕES DO JOGO DO BICHO A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DA AIDS.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • COMENTANDO DECLARAÇÕES DO SOCIOLOGO BETINHO ASSUMINDO PUBLICAMENTE AS DOAÇÕES DO JOGO DO BICHO A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DA AIDS.
Aparteantes
Cid Sabóia de Carvalho, José Richa, Pedro Simon.
Publicação
Publicação no DCN2 de 08/04/1994 - Página 1654
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • SOLIDARIEDADE, HERBERT DE SOUZA, SOCIOLOGO, MOTIVO, DECLARAÇÃO, RECEBIMENTO, DOAÇÃO, RECURSOS, JOGO DO BICHO, DESTINAÇÃO, ASSOCIAÇÃO NACIONAL, SINDROME DE IMUNODEFICIENCIA ADQUIRIDA (AIDS).

    O SR. EDUARDO SUPLICY (PT-SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, no momento em que tantas vezes há dificuldade em se dizer a verdade, em se reconhecer fatos duros da vida, mais uma vez, o sociólogo Herbert de Souza surpreende o País, pelo fato de reconhecer algo difícil para si próprio. Ontem, ele transmitiu à Nação brasileira que, de fato, a Associação Brasileira Interdisciplinar da AIDS, a ABIA, que passava por séria crise financeira, recebeu recursos daqueles que, de alguma forma, estão relacionados ao jogo do bicho.

    Betinho tomou para si toda a responsabilidade pela negociação com aqueles bicheiros, que teve a intermediação do então advogado criminalista Nilo Batista, atual Governador do Rio de Janeiro. Ainda ontem o jornalista Jânio de Freitas, na Folha de S. Paulo, revelou esse fato, colocando-o na devida perspectiva.

    Betinho disse que desconhecia, na época, o envolvimento daqueles que transacionam com o bicho e com o tráfico de drogas, mas disse: "Foi um erro pegar doação de quem provoca a AIDS, mas na época essa pareceu como única solução para a ABIA, e esta postura assumida por mim, na época, foi equivocada e errônea, e hoje quero comunicá-la publicamente".

    Também o Governador Nilo Batista confirmou que sugeriu ao sociólogo que buscasse ajuda dos bicheiros diante da grave crise por que passava a ABIA, que é uma associação que resolveu com coragem assistir aqueles que são atacados por esta doença terrível do final do século XX, uma doença, conforme há pouco comigo dialogava o Deputado Tilden Santiago, que é como a lepra de épocas passadas, quando não tinha cura.

    Betinho, ele próprio um portador do vírus HIV, tem, há alguns anos, se empenhado para que aqueles que, como seus irmãos, Henfil e o compositor Mário, por serem hemofílicos, por terem tantas vezes recebido transfusão de sangue e por esta via acabaram tornando-se portadores do vírus da AIDS e que acabaram falecendo, portanto, tendo ele próprio e seus familiares sido vítimas, resolveu, ao longo desses anos, desenvolver uma luta dramática em favor daqueles que sofrem essa doença.

    Em certo momento de 1990, em julho ou agosto, sendo então Nilo Batista conselheiro da ABIA, segundo informa hoje o Correio Braziliense, foi aquela doação sacramentada na casa de uma senhora caridosa, após reunião, sem a presença de Betinho. A senhora caridosa era a mulher do bicheiro Turcão, Teresinha Petrus, que, segundo Betinho, aceitou fazer a doação. Nos livros contábeis de Castor de Andrade, as contribuições foram da ordem de 58 mil dólares e foram repassadas à ABIA, conforme reconhecimento público de Hebert de Souza.

    Quero registrar a minha solidariedade ao Betinho, Sr. Presidente - transmiti-lhe há pouco por telefone - porque é muito importante que pessoas com atuação pública tenham a dignidade e a coragem de reconhecer seus erros publicamente. Estamos vivendo momentos de trauma na vida do Congresso Nacional. Muitas vezes, só depois de muitas provas, documentos e testemunhos serem trazidos à tona é que se consegue obter o reconhecimento público - e isto nem sempre acontece com pessoas que tenham cometido erros.

    Os erros são parte da vida do ser humano, mas é importante que se os reconheça, principalmente quando decorrem de razões de extrema gravidade ou por solidariedade humana. No caso da ABIA, tentava-se obter recursos para a sua sobrevivência, uma instituição que dá apoio a aidéticos que estão morrendo e, portanto, precisando de uma última esperança, um último sopro de vida enquanto prossegue a luta da ciência para achar a cura da doença. Betinho resolveu procurar ajuda de quem pudesse dá-Ia e acabou obtendo os recursos de bicheiros.

    Aliás, ontem, Jânio de Freitas revelou que, no diálogo entre Herbert de Souza e o advogado Nilo Batista em 1990, este disse que um dos seus alunos era amigo do filho de um bicheiro e que, quem sabe, o Betinho pudesse, através dele, obter recursos para a ABIA. Foi através desse diálogo que se encontrou a maneira de conseguir a ajuda.

    Hoje, Herbert de Souza tem conhecimento de que os bicheiros estão ligados ao tráfico de drogas, e como as drogas são uma maneira de se contrair ou de se propagar a AIDS, maior ainda foi a sua preocupação em reconhecer publicamente o seu erro, o que acabou fazendo. Isso não desmerece de forma alguma o Betinho; ao contrário, devemos cumprimentá-lo por ter reconhecido publicamente o seu erro. Isto, no meu entender, fortalece a figura humana de Betinho e a sua campanha pela solidariedade, na Ação contra a Fome e a Miséria e pela Vida e na Ação pela Cidadania.

    Essa iniciativa da Ação contra a Fome e a Miséria merece a atenção maior do povo brasileiro e das autoridades. Não foi à toa que o próprio Ministro Rubens Ricupero dedicou uma parte importante de seu pronunciamento de posse exatamente a Herbert de Souza, ao afirmar como o Governo Itamar Franco deve estar atento aos apelos de Betinho. Este, inclusive, chamou a atenção, duramente, do Ministro da Fazenda que antecedeu Rubens Ricupero.

    Ainda, há poucos dias, na Folha de S. Paulo, em seu artigo, Betinho dizia que, se, de um lado, o Brasil havia conseguido acumular 35 bilhões de dólares de reservas externas, por outro lado, ainda caminhava a passos muito lentos no combate à fome e à miséria; que não se pode simplesmente pensar na estabilização da moeda, que é muito importante para se ter o desenvolvimento econômico e para se acabar com a concentração de renda; mas que é necessário ao mesmo tempo se combater a fome e a miséria com igual energia e importância.

    O Ministro Ricupero, em seu pronunciamento de posse, salientou que vai dar importância à questão do social, do combate à fome e à miséria, à questão da distribuição da renda. Nesse sentido, transmiti ao Ministro a sugestão de considerar seriamente o Programa de Garantia de Renda Mínima, que introduz o Imposto de Renda negativo no Brasil.

    Conversei também sobre isso, anteontem, com o Presidente Itamar Franco, e sugeri a Sua Excelência que se experimente o Programa, no segundo semestre deste ano, em uma área mais pobre ou talvez num Estado como o Piauí, de menor renda per capita. Quem sabe se poderia escolher dois Estados, um da Região Norte e outro da Região Nordeste, para fazer duas experiências que reputo muito importantes.

    Há pouco, falei ao Ministro do Planejamento, Beni Veras, sobre isso e coloquei-me à disposição para expor, ao Conselho de Segurança Alimentar, numa reunião que será realizada ainda hoje às 11h, o projeto do Programa de Garantia de Renda Mínima como uma alternativa a ser considerada e proposta ao Governo.

    Lembremo-nos de que diversas iniciativas foram tomadas em relação à fome, por recomendação do Conselho, em decorrência do flagelo da seca no Nordeste, como a distribuição de 1,5 milhão de cestas básicas à população, no período dezembro/93 a março/94.

    Agora chegam as chuvas, mas para muitos o flagelo continua; e o Governo ainda não pensou no próximo passo. Penso que seria mais adequada e eficiente - tendo sido inclusive a palavra de Betinho há pouco - a introdução do Imposto de Renda negativo para todo aquele que não recebe salário num patamar mínimo que seria definido pelo Congresso Nacional, em cima da proposta de 45 mil cruzeiros de abril de 91, hoje equivalente a 250 UFIRs, cerca de 140 mil cruzeiros.

    Avalio que está chegando o momento maduro de a Câmara dos Deputados apreciar este projeto. O Deputado Germano Rigotto já tem o parecer favorável e considera, inclusive, a possibilidade de convidar Betinho para debater o assunto por ocasião da apreciação do projeto na Comissão de Finanças e Tributação, da Câmara dos Deputados. Tal projeto foi praticamente aprovado por unanimidade no Senado Federal, em dezembro de 1991, tendo, inclusive, à época, recebido parecer favorável daquele que foi Ministro da Justiça, Senador Maurício Corrêa, então Líder do PDT, e o encaminhamento favorável de quase todos os Srs. Líderes de Partidos. O Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, qualificou-o de uma utopia realista, uma utopia com os pés no chão, aperfeiçoada prudentemente pelo Senado, tornando viável o projeto, com as diversas sugestões encaminhadas pelos Srs. Senadores.

    O Sr. José Richa - Permite-me V. Exª um aparte?

    O SR. EDUARDO SUPLICY - Com muita honra, nobre Senador.

    O Sr. José Richa - V. Exª abordou, no início do seu discurso, o episódio do Betinho. Ontem, assisti, na televisão, àquilo que já havia sido noticiado: que a campanha contra a AIDS teria recebido auxílio dos bicheiros para poder desenvolver suas atividades. É evidente que nenhum de nós podia aprovar uma atitude dessas, e nem o Betinho a aprovou. Ele próprio, confessando o seu erro, disse que foi o desespero de tentar salvar vidas que o levou a aceitar dinheiro de uma fonte ilícita como essa. Pude sentir o drama estampado na face do Betinho e tenho que louvar uma coisa: o reconhecimento do seu erro já é um mérito muito grande, no momento em que o País inteiro é sacudido, não só a classe política mas toda a elite brasileira, por uma onda de corrupção nunca vista. É até confortante alguém reconhecer o erro, e podemos perceber, na sua fisionomia, o constrangimento de admitir que houve esse erro, cuja justificativa era de tentar salvar vidas. Conheço o Betinho desde o tempo de estudante, fomos conterrâneos de militância na política estudantil; ele sempre foi militante político e mais recentemente, com esta fatalidade que o atingiu de ter contraído o vírus da AIDS, passou a ter uma atuação com reconhecimento nacional e até internacional. É dolorosa a constatação do fato, mas nos mostra que este País pode ter conserto, na medida em que as pessoas, todas elas, tendo alguma coisa de boa dentro de si, possam reconhecer o erro e começar vida nova neste País. Não dá mais, Senador Suplicy, para o Brasil conviver com coisas que diariamente a imprensa traz a público. E é incrível, mas quase toda a elite - desde a política até a do Judiciário, da imprensa, da Polícia, de empresários a lideranças de trabalhadores - está envolvida. Este País tem que começar uma vida nova. Acho que o gesto do Betinho, ontem, merece ser aplaudido por esta razão: ainda é tempo de o Brasil começar uma vida nova.

    O SR. EDUARDO SUPLICY - Agradeço o aparte de V. Exª As suas palavras são exatamente no sentido do que aqui tentei expor. É muito importante quando as pessoas reconhecem um erro publicamente. Este exemplo do Betinho pode frutificar, porque qualquer pessoa pode cometer erros na vida, mas quando enfrentamos esses erros com a disposição de esclarecer e dar passos no sentido da correção de nossos caminhos, crescemos e é assim que o Brasil crescerá.

    O Sr. José Richa - V. Exª disse bem, quanta gente que depois de denunciada e diante de tantas evidências continua negando, continua mentindo. É isso que quero louvar no gesto do Betinho ontem, de ter reconhecido o erro. Pude ver que, e fiquei bastante sensibilizado, a expressão dele era realmente de desespero ao ter que reconhecer, mesmo por uma causa nobre, a aceitação de dinheiro de uma fonte escusa. É importante louvarmos essa atitude. Se todo o mundo que cometeu erros fizesse a mesma coisa, penso que este Brasil podia caminhar diferente daqui para a frente.

    O SR. EDUARDO SUPLICY - O importante é que o Betinho assume inteiramente a responsabilidade pelos atos. Se porventura houver qualquer sanção por isso, ele a assumirá, porém, ele coloca, com clareza, as razões pelas quais cometeu o erro.

    O Sr. Cid Saboia de Carvalho - Permite-me V. Exª um aparte?

    O SR. EDUARDO SUPLICY - Ouço o aparte do nobre Senador Cid Saboia de Carvalho.

    O Sr. Cid Saboia de Carvalho - Quero dizer que absolvo inteiramente o Betinho. Na verdade, o desespero da AIDS no Brasil, o que essa síndrome vem causando na sociedade brasileira, é algo extraordinário. E a origem de um recurso talvez faleça na sua importância no momento em que o objetivo é inteiramente nobre, principalmente quando a origem é uma contravenção penal socialmente tolerada. O problema do jogo do bicho, no Brasil, tem origem na tolerância social que há para com essa contravenção.

    Devemos estar atentos para uma diferença entre o crime e a contravenção. Estamos tratando, evidentemente, de uma contravenção. Talvez o jogo do bicho, tão flagrante, existente de modo tão fácil de ser constatado, talvez isso não tenha gerado pejo a essa grande personagem da vida nacional, que é Betinho, diante do objetivo magno, do objetivo excepcional, diante do objetivo altamente grandioso que movia a campanha pela qual ele se batia naquele momento. Mas, na verdade, este cidadão é um grande homem e não se enodoa por causa disto. Muito pelo contrário, dá, - como muito bem acentua o nobre Senador José Richa - acima de tudo, uma lição de humildade, que em si contém uma coragem e uma sinceridade. Tudo isso é qualidade de alma. Essas qualidades de alma, apenas os grandes homens as têm. Somente os grande homens alcançam, Senador Eduardo Suplicy, essas condições. Então, não há o que julgar com relação a essa criatura que se chama Betinho, que sempre se envolve em causas nobres. Uma pessoa está com fome, ganha um pão, e não o recebe porque foi o Sr. Castor de Andrade que mandou? "Eu não como". Pelo amor de Deus, isso não é possível! Acho que certos imperativos como a fome, a AIDS, a miséria e outros tantos levam a uma falta de exame mais profundo que uma origem como esta, principalmente quando se trata de uma contravenção tolerada neste País pelos setores policiais. Porque, a história do jogo do bicho é uma história muito complicada. E a minha impressão é de que banqueiros do jogo do bicho tenham contribuído, em causas nobres, em muitos Estados. Isso já ouvi falar de há muito tempo. Inclusive, nos meus longos períodos de vida jornalística, eu tinha essas informações. Por isso, se V. Exª está na tribuna para dar essa explicação sobre uma criatura notável como o Betinho, faz muito bem, se conduz de modo magnífico e é justa também a causa que V. Exª defende neste momento para não permitirmos que uma personagem desse quilate, desse valor venha a se nodoar num episódio tão triste.

    O SR. EDUARDO SUPLICY - Agradeço as palavras do Senador Cid Saboia de Carvalho, que mostra compreensão ao gesto de coragem de Betinho, o exemplo que, às vezes, falta em nosso País de reconhecer a verdade.

    O Sr. Pedro Simon - Permite-me V. Exª um aparte?

    O SR. EDUARDO SUPLICY - Com muita honra, Senador Pedro Simon.

    O Sr. Pedro Simon - Creio, nobre Senador, que não há dúvida nenhuma com relação ao carinho e ao respeito que o País tem pelo Betinho. Trata-se de uma pessoa que se impôs à admiração do Brasil, sofrendo, vivendo dificuldades de ordem física. Poderia tranqüilamente estar pensando em si e equacionando o seu problema. Ele me lembra muito a figura de Teotônio Vilela, que, com 4 cânceres, percorria o Brasil e dizia: "Eu poderia estar na Europa, poderia estar fazendo tratamento; mas acho que a melhor maneira de eu viver o final da minha vida é percorrendo o Brasil, chamando a atenção para as coisas difíceis que o Brasil está atravessando"! O Betinho está fazendo isso. O programa que V. Exª e o Lula me apresentaram, em meu gabinete - depois encaminhei o Lula ao Presidente da República -, hoje é um grande programa de Governo, que tem em Betinho e no Bispo de Duque de Caxias seus grandes coordenadores. Trata-se de um plano de ação social que não é o ideal, pois o ideal não é distribuir comida, mas sim trabalho, a fim de que as pessoas possam viver com dignidade. Todavia, num País que tem 32 milhões de pessoas passando fome, não se pode dizer que fazer caridade, distribuir comida, por exemplo, está errado e que temos de distribuir emprego. Inclusive, a segunda etapa do Plano da Cidadania é conseguir emprego. Mas a primeira, no entanto, é tentar reduzir essa cifra de 32 milhões de brasileiros que passam fome. Nunca tivemos, na História do Brasil, um plano de distribuição de alimento tão bem organizado pela sociedade, sem objetivos eleitoreiros, sem participações demagógicas. Esse programa deve estar, hoje, beneficiando mais de 10 milhões de pessoas. O Betinho é uma pessoa que se impõe pelo respeito e pela admiração que desperta em todos nós. Creio que ninguém tem dúvida de que, se ele se envolveu nessa questão, foi por uma razão sadia, por uma disposição de buscar, de acertar, de equacionar a questão daquela entidade de combate à AIDS. Não me passa pela cabeça - penso que a imprensa deveria ter inclusive respeito com relação ao fato - que alguém esteja aqui questionando o problema do Betinho. Mas creio, se V. Exª me permite, que a questão é mais profunda. Temos de ter cuidado inclusive, porque, se o Betinho se envolveu - o ideal era que isso não tivesse ocorrido -, como aqui disseram os Senadores muito bem, numa questão dramática como essa, não há por que dizer não! E temo que não analisemos o assunto com a devida profundidade. O que está acontecendo no Rio de Janeiro demonstra que é chegado o momento de resolvermos esse impasse. A Juíza Denise Frossard foi quem teve a coragem - e foi ali que se iniciou uma nova realidade neste País - de colocar os bicheiros na cadeia; a partir daí iniciou-se o debate sobre essa questão. Agora, com o surgimento desses livros que estamos analisando, não tenho muita preocupação. Senador, com relação a apurar as responsabilidades. Até porque entendo que - meu Deus! - deve haver meio mundo envolvido! Estou preocupado com a situação daqui para frente; com relação ao que devemos fazer daqui para o futuro. Portanto, não estou querendo saber qual é o nome do livro, se há ou não o envolvimento de Ministros. Mesmo porque, no fundo, trata-se do que V. Exª acabou de dizer: se até o Betinho pegou dinheiro por uma causa nobre, daqui a pouco a Deputada vai dizer que também aceitou dinheiro para o asilo, etc. Algumas pessoas dizem que se deve fazer uma distinção entre o dinheiro que é dado para a campanha política - e a lei permite que empresas dêem dinheiro para este fim - e o dinheiro que vem da contravenção. Temos, portanto, que analisar essa questão daqui para diante, e entendo que temos de ter a coragem para tanto. Em outra época que atuei como Senador, em mais de uma oportunidade entrei com projetos de lei para acabar com a contravenção do jogo do bicho. Eu entendia que esta era a primeira questão com a qual eu deveria me preocupar. Em um País que é uma imensa loteria - creio que não há no mundo uma loteria tão grande quanto o Brasil - é um escândalo proibirmos o jogo do bicho. Alguns afirmam que 40% das correspondências dos Correios são destinadas às loterias das televisões. O jogo entra em nossas casas através das propagandas, sem o nosso desejo. Por ser o Brasil um país que permite que a televisão tenha jogo de loteria, por se tratar de um país em que a Caixa Econômica Federal é uma imensa casa lotérica, onde são realizadas inúmeras loterias por semana, acredito que devemos solucionar essa questão; devemos equacionar definitivamente o problema. Quando fui Governador do Rio Grande do Sul, o jogo do bicho foi uma das primeiras questões que apareceram em minha mesa. A metade da Polícia, no Rio Grande do Sul, controlava o jogo - metade da Polícia! Não havia policiamento para os assaltos e as ruas estavam vazias. Acontecia, portanto, o que todos esperávamos: de repente, estourava uma banca ali, outra aqui. No meu Governo, fui para o rádio e para a televisão e afirmei que a Polícia estava proibida de mexer com o jogo do bicho; no meu Governo, podiam jogar à vontade. Disseram que eu deveria chamar os bicheiros para fazer uma distribuição e que, inclusive, eu poderia pegar dinheiro com eles. Eu disse que não queria, que esse problema poderia contaminar e dar confusão. Eu dizia que a Polícia não deveria se envolver com esse problema, que era federal. Jogaram à vontade! Mas tirei metade da Polícia que estava envolvida na contravenção e eu a coloquei em outros lugares. Dessa forma, ela passou a trabalhar com mais produtividade.

    Aconteceu algo fantástico, não vou negar: no Rio Grande do Sul, jamais houve uma greve na Polícia. Depois que agi dessa maneira, passou a ser uma guerra a reivindicação salarial da Polícia, porque perdeu a complementação de salário que recebia. A polícia, até então, nunca havia se queixado do seu salário, estava sempre satisfeita. Depois, houve essa confusão toda. Tínhamos, na Brigada, o coronel, até porque a disposição da Brigada é diferente da do Exército. No Exército, tem-se o coronel, o general-de-brigada, o general-de-divisão e o general-de-exército; na Brigada Militar, o cargo máximo termina no coronel. Então, os brigadeiros se aposentam como coronel, com 43, 44 anos, para que os outros companheiros possam ascender também. Na polícia, os delegados de quarta classe permanecem trinta anos na função e não querem se aposentar. No início do meu Governo, que foi o primeiro após a Revolução, e tinha havido muitas coisas ali, imaginava que aquelas pessoas eram da linha dura. Que coisa fantástica, como são fanáticos, não queriam ir para casa! Quando Governador, quis escolher o chefe de polícia e dizia que queria uma pessoa que tivesse dignidade e que não estivesse envolvida, no passado, com a tortura, pois poderia aparecer algum companheiro em meu gabinete e ver que ali havia alguém envolvido com a tortura. E era difícil. Por quê? Porque havia pessoas que estavam lá há 20, 25 anos e não se aposentavam. Então, percebi que assim procediam porque teriam que viver do salário de delegado, e enquanto estivessem trabalhando tinha essa questão toda. Entendo que se deva terminar com isso, devolver a seriedade. Reparem que começou com a polícia e, agora, já há Procuradores, Deputados, Senadores, membros do Poder Judiciário. O que é mais grave é que parecia uma coisa bonitinha, envolvida com o carnaval, parecia algo muito positivo, porque as vilas e as favelas faziam um grande movimento em torno disso, e terminou acontecendo o que tinha que acontecer: o tóxico está entrando! Agora, ficamos com pena quando vemos os filmes mostrando o que está acontecendo nas favelas do Rio de Janeiro. E aí não é mais jogo do bicho, porque o jogo do bicho não está dando mais dinheiro. É muito insignificante o que está dando o jogo do bicho. Então, aquela organização que existia em torno do jogo do bicho passa a ser utilizada em torno do tóxico. Acho que o Congresso Nacional, o Presidente Itamar Franco, o Poder Judiciário, todos temos a responsabilidade. Repito: não estou muito preocupado em buscar o fulano ou o beltrano, quem fez o quê e puni-lo com relação ao que fez. Agora é a hora, é o momento de olharmos para a frente, é a hora e o momento de se equacionar em definitivo essa questão e resolvê-la. Em primeiro lugar, na minha opinião, o jogo do bicho não é contravenção; em segundo, devemos discutir a maneira como vamos regularizá-lo, como vamos regulamentá-lo, e o que é que vamos fazer daqui para adiante. Felicito V. Exª pelo seu pronunciamento e digo-lhe, com toda a sinceridade, que essa é uma das questões sérias que estamos vivendo, porque, se afastamos um Presidente da República por corrupção, se estamos aqui com Parlamentares sendo envolvidos e analisados por atos de corrupção, de repente, perante a opinião pública, o mal que isso está fazendo é muito grande. E agora não somos só nós, agora é o Judiciário, são outras entidades que estão envolvidas nessa questão, que tem a ver com liberalidade em relação aos princípios da moral e aos princípios da ética. É muito delicado. Ouvi o ilustre Senador do Ceará dizendo - e S. Exª tem razão - que, se uma pessoa está com fome, importa se o pão veio do Castor de Andrade ou não veio do Castor de Andrade? É uma pergunta dura de ser feita. Se o meu filho passa fome, eu quebro a vitrina para pegar o pão que está lá do outro lado da vitrina ou não pego? É a mesma questão, e acho que equacioná-la é uma questão de honra nossa. O momento é agora. Eu não sou dos que estão preocupados em ver quem fez, até porque dizem que uma das questões diabólicas dessa gente é - já que essas listas um dia podem ser entregues, podem aparecer na mão de alguém - colocar pessoas que nada têm a ver com isso misturadas com pessoas que têm, que é exatamente para conturbar. Eu não estou preocupado em olhar e punir quem fez ou deixou de fazer; estou preocupado em olhar para a frente. Aliás, nesse sentido, vi uma manifestação que, se não me engano, foi do Castor de Andrade. Ele chegou e, de repente, disse: "Mas quem é que fez esse negócio todo aí?" "Não, quem fez foi a polícia especializada tal e fulano de tal." "Mas como? Vocês não me disseram. Eu não sabia que tinha essa gente. Eu não sabia que tinha essa polícia. Ninguém me avisou. Eles não entraram na lista porque eu não sabia. Nunca ninguém me disse que tinha esse setor." Então, reparem V. Exªs que, daqui a pouco, ou nós resolvemos ou o Sr. Castor já sabe que tem esse setor.

    O SR. EDUARDO SUPLICY - Agradeço muito o aparte de V. Exª, Senador Pedro Simon, porque inclusive mostrou como, na sua experiência de Governador do Rio Grande do Sul, precisou enfrentar essa situação do jogo do bicho. E V. Exª encontrou uma solução de bom-senso em relação ao que poderia ser feito à época, para que os responsáveis pela segurança no Estado estivessem mais preocupados com a segurança das pessoas e não tanto com algo que, conforme salientou o nobre Senador Cid Saboia de Carvalho, atualmente é um tipo de contravenção praticamente aceito do ponto de vista social.

    V. Exª inclusive, salientou muito bem, nobre Senador Pedro Simon, que as principais redes de televisão do País - começando pelo SBT, que iniciou com a “Telesena”, depois a Rede Globo - resolveram acompanhar, com uma outra espécie de jogo pela televisão.

    Então, há todo tipo de jogo no Brasil, sejam os promovidos pela Caixa Econômica Federal - Loteria Esportiva, Loto, Sena, etc. - sejam os promovidos pelas redes privadas de televisão, que colocam o jogo na casa das pessoas.

    Seria este, portanto, o momento apropriado para que o Congresso Nacional viesse a resolver essa questão com maior profundidade. Estou de acordo com V. Exª quando diz para olharmos para a frente. Vamos gastar a energia do povo brasileiro e a do Congresso com coisas que, realmente, são mais relevantes para se alcançar o bem-estar da população. Se política é a procura do bem-estar, vamos dar racionalidade à nossa ação política.

    Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 08/04/1994 - Página 1654