Pronunciamento de Gilberto Miranda em 27/04/1994
Discurso no Senado Federal
REFLEXÃO SOBRE O SIGNIFICADO E O ALCANCE SOCIAL DE UMA REFORMA CONSTITUCIONAL.
- Autor
- Gilberto Miranda (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AM)
- Nome completo: Gilberto Miranda Batista
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
REFORMA CONSTITUCIONAL.:
- REFLEXÃO SOBRE O SIGNIFICADO E O ALCANCE SOCIAL DE UMA REFORMA CONSTITUCIONAL.
- Publicação
- Publicação no DCN2 de 28/04/1994 - Página 2033
- Assunto
- Outros > REFORMA CONSTITUCIONAL.
- Indexação
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- ANALISE, CRITICA, PROPOSTA, AUTORIA, NELSON JOBIM, DEPUTADO FEDERAL, RELATOR, REVISÃO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, REDUÇÃO, QUORUM, APROVAÇÃO, EMENDA CONSTITUCIONAL.
- COMENTARIO, IMPORTANCIA, NORMAS, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, FUNDAMENTAÇÃO, ORDEM SOCIAL, DEMOCRACIA, PAIS.
- QUESTIONAMENTO, POSSIBILIDADE, DEMORA, TRABALHO, REVISÃO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, MOTIVO, AUSENCIA, ENTENDIMENTO, POLITICO, CONCEPÇÃO, TAREFA, REFORMA CONSTITUCIONAL.
O SR. GILBERTO MIRANDA (PMDB - AM. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Sras e Srs. Senadores, em tempos recentes, temos assistido a diversas experiências em que sistemas sociais redefinem as bases de sua organização.
Principalmente, lembro a reunificação alemã, assim como a fragmentação da antiga União Soviética.
Esses são exemplos muito relevantes, sobretudo porque contrapõe os que "perderam" (no sentido do sistema que "ruiu") aos que "ganharam" (no sentido do sistema que ainda se mantém).
Por outro lado, há casos menos dramáticos, porém igualmente notáveis, por seu exemplo quase didático da construção das bases de uma nova ordem social. A comunidade Européia é uma outra construção que acentua o significado de se dispor de uma Constituição efetiva.
Vale ainda lembrar o Canadá que vem passando por uma "crise constitucional", com características muito peculiares, mas igualmente significativa como exemplo de resolução de delicados problemas de organização social, tais como a integração de minorias.
De todo modo, as evidências corroboram o crescente reconhecimento de que a opção por uma estrutura de direitos econômicos e políticos condiciona, significativamente, as chances de progresso de uma sociedade.
Menciono todas essas referências, Sr. Presidente e Srs. Senadores, para que possamos melhor avaliar o momento constitucional brasileiro que, deploravelmente, vem sendo tratado por uma perspectiva tão restrita, clientelista, e potencialmente perigosa.
Agora mesmo, no último dia 11 de abril, os jornais noticiavam que o Relator da Revisão, Deputado Nelson Jobim propôs a redução do quorum necessário para aprovação de emendas constitucionais.
Todavia, Sr. Presidente e Srs. Senadores, temo que esse seja exatamente o caminho errado para que se possa empreender a modernização de nossas instituições.
Chamo a atenção para o perigo que tal recurso envolve: pretende-se, em verdade, ajustar o consenso social - que a Constituição, por definição representa - por meio da pura e simples redução numérica desse consenso!
Algo como: se não der para passar reformas com maioria qualificada (3/5), que tal metade-mais-um?
Muito embora o constituinte de 1987-1988 tenha reservado o uso eventual da maioria absoluta para as tarefas revisionais (art. 3º do Ato das Disposições Transitórias), não se pode, agora, querer transformarem permanente tal critério de decisão.
Para que se avalie em toda extensão o absurdo dessa proposta, lembro que a importância das regras constitucionais na vida da sociedade democrática.
São essas regras que condicionam a obtenção dos resultados das escolhas sociais.
São essas regras que estabelecem os limites da ação e o poder dos governantes.
E, certamente, é pela preservação dessas regras que poderemos aspirar à construção de uma sociedade em que se promova a liberdade e o progresso.
Todavia, como ter essa aspiração, se a oportunidade de se alterar essas regras é tão freqüente?
Como deixar de pensar que - face às necessidades de uma conjuntura econômica adversa - o Governo não será tentado a alterar as regras constitucionais pré-estabelecidas?
Que contrato social é esse que se sujeita a ser alterado em qualquer circunstância por critério tão permissivo?
Imaginemos, Sr. Presidente e Srs. Senadores, a presteza com que a burocracia fiscal do Governo irá propor alterações no regime tributário da constituição.
De fato, a situação estará muito próxima daquela sonhada por esses burocratas: ter, enfim, as mudanças no sistema tributário sendo promovidas pela legislação ordinária!
Devemos todos temer por nossas liberdades econômicas e políticas.
Numa economia em que as Medidas Provisórias são recurso habitual - e não, extraordinário - da implementação de planos governamentais, a possibilidade de transferir à Constituição a tarefa de resolver os problemas da conjuntura econômica liquidará em definitivo com a aspiração de uma ardem social estável no Brasil.
É muito importante, portanto, que nos perguntemos: afinal, para que serve uma Constituição?
Em resposta a essa questão eu arrolaria três grandes razões.
Primeiro, as Constituições estabelecem condições básicas para o exercício da liberdade e dos direitos da pessoa humana - o que certamente tem um valor, em termos de utilidade, por si mesmo.
Segundo, por que essa liberdade e certos direitos, como o direito de propriedade, são essenciais no atendimento de outras necessidades que se realizam através da atividade econômica.
Terceiro, as Constituições servem para limitar o clientelismo e a tirania - que são inerentes à atribuição de poder ao Estado.
Se, por um lado, é muito complexo mensurar esse efeito das instituições sobre o bem-estar social; por outro, a experiência de diversas sociedades contemporâneas oferece uma irrecusável evidência de que as instituições que preservam as liberdades individuais têm um decisivo impacto na promoção do progresso econômico.
Contudo, é necessário reconhecer, Sr. Presidente e Srs. Senadores, a diferença que há entre uma regra constitucional efetiva e o simples "entrincheiramento" de um princípio constitucional.
Apenas para comparar, tomemos o caso do Japão e da Etiópia.
A Constituição japonesa, diferentemente da Constituição da Etiópia, não lista direitos à educação, ao trabalho, à saúde, à previdência social, ao lazer, etc.
Ao mesmo tempo, estima-se que a liberdade econômica - como medida pelo Índice Scully - que leva em conta atributos como: o nível de liberdade do regime cambial, de informação, e de movimentação do cidadão, entre outros - é oito vezes maior no Japão do que na Etiópia!
Lamentavelmente, Sr. Presidente e Srs. Senadores, em termos de promessas de garantir direitos constitucionais, estamos mais para Etiópia do que para Japão.
A Constituição brasileira tem uma extensa lista de entrincheiramentos, como logo se pode notar no rol dos chamados direitos sociais. Ou seja, há direitos escritos na Constituição que não têm qualquer efeito positivo no bem estar econômico do cidadão brasileiro.
Muito pelo contrário, o efeito pode ser mesmo perverso, na medida em que tal entrincheiramento cria expectativas que acabam não se realizando.
Toda essa garantia de direitos tem tido um custo político elevado, não apenas em decorrência da cobertura do desequilíbrio que provoca nas contas pública, mas também pela tensão que provoca no relacionamento entre as jurisdições de Governo.
A própria instituição do federalismo fica abalada pelo entrincheiramento constitucional.
A Constituição também tem-se revelado pouco efetiva, em relação a outros aspectos de nossa estrutura política.
Lembro as ocorrências observadas no processo eleitoral de 1989, o escândalo da Comissão Mista de Orçamento, e o recente confronto entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
É certo que precisamos rever o conjunto de nossas regras constitucionais. Em grande parte como decorrência desse excesso de entrincheiramento.
Todavia, há que, primeiro, encontrar um denominador comum para essa Revisão, sobretudo para que seu resultado decorra de um verdadeiro esforço consensual.
Porém, como obter esse consenso, se admitimos - como propõe, agora, o Relator da Revisão - que a Constituição é um contrato de pouca estabilidade, na medida em que suas regras possam tão facilmente ser alteradas?
Num ano que precede a inauguração de um novo Congresso e uma nova Administração Federal, a proposta tem implicações que, por certo, não deverão escapar à percepção das facções políticas que almejam integrar o Governo, em 1995.
Fatalmente, esse será um fator a mais na polarização política que vai tomando conta do processo eleitoral.
Cada facção política antecipará a flexibilidade de ação com que contará a outra facção, uma vez instalada no poder, em 1995.
Teremos, em verdade, Sr. Presidente e Srs. Senadores, o oposto do que se faz necessário no Brasil: um Governo que nem mesmo precisará prestar atenção às amarras constitucionais, pois estas serão "afrouxadas", ante a exigência de um quorum legislativo mais permissivo.
Envolvida em toda essa questão está nossa própria concepção do que seja "Governo".
Habitualmente, tomamos o Governo como uma instituição que meramente cuida da provisão de bens e serviços públicos, e da correção das deficiência detectadas no funcionamento dos mercados.
Em grande parte, essa é a concepção subjacente ao texto constitucional de 1988. O Governo é o provedor de tudo, a todos, durante todo o tempo.
Contudo, há que pensar diferente.
O Governo é, em realidade, um mecanismo para a resolução do dilema básico de nossa sociedade: como dispor de regras que levem à interação social por um caminho de vantagens mútuas para todos os cidadãos.
É o velho dilema de que nos falava o filósofo Thomas Hobbes, já em 1651!
No processo político de nossos dias, isso significa ter instituições que incentivem os políticos e partidos políticos a minimizarem seus interesses paroquiais, restritos a sua sobrevivência eleitoral.
Enquanto, por outro lado, ampliam seu empenho em atender ao interesse geral, com maior dedicação às políticas que dispersem seus benefícios por uma ampla base de incidência.
O oposto disso, bem sabemos - hoje, no Brasil - como pode funcionar...
Frente a instituições políticas deficientes, as minorias organizadas não encontram dificuldades para exercer um controle do processo político que lhes estenda seus ganhos exclusivos.
O Orçamento da União foi o instrumento que concretamente viabilizou essa ação predatória. Todavia, foram regras constitucionais ineptas que - em última instância - possibilitaram tanta desenvoltura na ação desse grupos.
Assim sendo, Sr. Presidente e Srs. Senadores, se queremos que, de fato, todos os fatos deploráveis com que o Congresso Nacional conviveu nos últimos tempos não venham a repetir-se, não basta desenharmos o contrato social adequado.
É, igualmente, imperioso que ele seja posto a salvo de arroubos e rompantes daqueles que se disponham a alterá-lo, em interesse próprio.
Por isso não conheço pior iniciativa do que a proposta de redução do quorum pelo qual se possa promover uma mudança na Constituição.
Enfim, é muito provável que a demora com que se processa o trabalho revisional talvez não decorra tanto do desinteresse dos políticos em empreender a tarefa, mas da enorme dispersão em torno da concepção do que seja a própria tarefa de rever a Constituição.
Sem esse entendimento comum, é difícil induzir atitudes e comportamento cooperativos.
Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.