Discurso no Senado Federal

TRANSCURSO DO DIA 13 DE MAIO, DEDICADO AS COMEMORAÇÕES DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA NO BRASIL. CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ASPECTOS DA HERANÇA DA ESCRAVIDÃO NA FORMAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA.

Autor
Jutahy Magalhães (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/BA)
Nome completo: Jutahy Borges Magalhães
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL. HOMENAGEM.:
  • TRANSCURSO DO DIA 13 DE MAIO, DEDICADO AS COMEMORAÇÕES DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA NO BRASIL. CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ASPECTOS DA HERANÇA DA ESCRAVIDÃO NA FORMAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA.
Publicação
Publicação no DCN2 de 12/05/1994 - Página 2247
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL. HOMENAGEM.
Indexação
  • REGISTRO, IMPORTANCIA, DATA NACIONAL, COMEMORAÇÃO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, PAIS.
  • COMENTARIO, ENTREVISTA, RUBENS RICUPERO, MINISTRO DE ESTADO, MINISTERIO DA FAZENDA (MF), PERIODICO, VEJA, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), REFERENCIA, ESCRAVATURA, FATOR, DETERMINAÇÃO, DESEQUILIBRIO, DISTRIBUIÇÃO DE RENDA, PAIS.
  • COMENTARIO, ESTUDO, AUTORIA, JOSE DE SOUZA MARTINS, SOCIOLOGO, RELATORIO, ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT), PUBLICAÇÃO, JORNAL, O GLOBO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), CONFIRMAÇÃO, EXISTENCIA, ESCRAVATURA, TRABALHADOR RURAL, PAIS.
  • REFERENCIA, ARTIGO DE IMPRENSA, PERIODICO, REVISTA DE INFORMAÇÃO LEGISLATIVA, AUTORIA, AFONSO ARINOS, EX SENADOR, DECLARAÇÃO, IMPORTANCIA, ATUAÇÃO, CONGRESSO NACIONAL, PROCESSO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA.
  • COMENTARIO, HISTORIA, ATUAÇÃO, SENADOR, LUTA, DEFESA, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA.

    O SR. JUTAHY MAGALHÃES (PSDB-BA. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, no calendário cívico, o dia 13 de maio é dedicado às comemorações da abolição da escravatura no Brasil. A data reveste-se, sem dúvida, de transcendental importância e, graças à magnitude dos muitos

aspectos que o evento traz à mente dos brasileiros - povo sofrido e desprovido de cidadania -, enseja profundas reflexões.

    O Brasil é um país medularmente marcado pela escravidão. O escravismo se incrustou no País no início de sua colonização, pelos idos de 1530. Dessa maneira, cerca de quatro quintos de nossa história desenvolveram-se sob a influência do trabalho escravo. Foram três séculos e meio de escravidão, antes de 1888. E são mais de cem anos, após a chamada Lei Áurea, período em que, infelizmente, não conseguimos apagar da alma nacional os hediondos efeitos do escravismo, que se traduzem nos mais abjetos problemas sociais existentes no Brasil, como a perversa concentração de renda, os miseráveis salários pagos aos trabalhadores brasileiros, a discriminação contra o negro e tantas outras injustiças sociais que fazem com que o País tenha hoje, às vésperas do século XXI e do Terceiro Milênio, nada menos que 31,7 milhões de indigentes, isto é, pessoas que não têm renda sequer para se alimentarem, além de milhares de pessoas diretamente submetidas ao trabalho escravo.

    Ainda há pouco, o Exmº Sr. Ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, em entrevista à revista Veja, edição de 20 de abril último, referindo-se a afirmações que fizera em seu discurso de posse naquele órgão, dizia não ser coincidência a inflação crônica e o desequilíbrio da distribuição de renda existentes no Brasil.

    Segundo S. Exª, "...o desequilíbrio da riqueza e da renda no Brasil tem raízes históricas muito antigas, e entre os fatores que o determinaram talvez o mais importante seja a escravidão".

    Discorrendo sobre o tema, o Sr. Ministro diz ser impossível entender o Brasil sem entender a importância da escravidão no País. Esclarece que o escravismo em nosso país foi muito diferente do de outras nações da América, nas quais exerceu um impacto muito menor.

    O impacto foi de menor monta nos países platinos, por exemplo, porque acabaram com a escravidão muito cedo. Em outras nações, porque encontraram mão-de-obra nas populações indígenas. E nos Estados Unidos, porque, ali, a escravidão ficou confinada a uma das duas regiões do país e não, naquela destinada a fixar os padrões culturais, políticos e econômicos. "No Brasil", afirma o Sr. Ministro, "a escravidão foi praticamente a razão de ser do País, ela é que o tornou possível".

    Para explicar as grandes marcas deixadas na cultura brasileira pelo escravismo, o Ministro Ricupero cita, na entrevista, uma frase muito significativa de um grande estadista do Império, Bernardo Pereira de Vasconcelos, segundo o qual "A África civiliza a América". Interpretando a afirmação à luz do contexto da época, S. Exª ensina que existia, no Império, uma distinção entre civilização material e civilização moral. Assim, o comentário de Pereira de Vasconcelos queria realçar que, sem o braço escravo, não se poderia jamais domar a natureza e construir uma civilização material no País.

    Segundo o Sr. Ministro, o Brasil é resultado dessa visão baseada no divórcio entre civilização material e civilização moral, visão que teve grandes reflexos econômicos e políticos na cultura brasileira, assim muito bem sintetizados na entrevista de S. Exª:

    "Na véspera da Independência, em 1817 ou 1819, calculava-se que o Brasil tinha 1,3 milhão de brancos livres e 3,9 milhões entre negros e mulatos, quase todos cativos. Era uma proporção de três para um. E, evidentemente, um país de escravos, como disse Joaquim Nabuco, é um país sem povo. O povo é o conjunto de cidadãos. Nossas mazelas vêm daí. A falta de democracia, a falta de espírito comunitário, a tendência até hoje a aviltar o trabalho humano, que é o fator de produção menos remunerado, a pouca importância dada à vida humana, à vida dos trabalhadores que se perdem em grandes obras... O ser humano é um objeto que você substitui. Morrem vinte, você compra o último navio que chega de Angola. Aí está a raiz do desequilíbrio e da renda."

    Afirmei, há pouco, que, no Brasil, existem milhares de pessoas submetidas a trabalho escravo. Dezoito mil brasileiros nessa situação é o número contabilizado pela Comissão Pastoral da Terra - CPT, que está concluindo relatório sobre o tema a ser divulgado durante o corrente mês. Comparativamente ao número registrado no relatório do ano passado, referente ao ano de 1992, a Comissão está detectando aumento dessa prática infame em nosso país, porquanto, conforme consta do relatório Conflitos no Campo - Brasil 1992, nesse ano tinham sido detectados 16,4 mil pessoas submetidas ao trabalho escravo, em 18 casos. Em 1992, declara o relatório, o número de pessoas nessa situação triplicou em relação a 1991, quando a Comissão Pastoral da Terra tinha registrado 4,8 mil pessoas envolvidas em 27 casos.

    Consta do relatório que os casos de trabalho escravo denunciados e registrados pelo Setor de Documentação do Secretariado Nacional da CPT representam apenas parcela de uma realidade de que não se conhece a verdadeira dimensão, pois não existe pesquisa que a dimensione em sua totalidade. No entanto, segundo o sociólogo e professor da USP, José de Souza Martins, estima-se que, por ano, o número de trabalhadores do campo que são submetidos ao trabalho escravo chegue a 60 mil.

    Já a Organização Internacional do Trabalho - OIT se refere à existência de 80.886 mil escravos no Brasil. Esse é o número relativo ao Brasil, segundo consta de relatório da entidade sobre a exploração ilegal do trabalho - Escravidão branca - no mundo, divulgado no ano passado, conforme matéria publicada em O Globo, edição de 9 de março de 1993. O Brasil está incluído, ao lado do Peru, Haiti, República Dominicana, Tailândia, Índia, Paquistão, Sudão e Mauritânia, entre os nove países onde se detectaram os problemas mais sérios de escravidão. De acordo com Max Kern, autor da pesquisa, 53 trabalhadores, em 1992, foram assassinados por pistoleiros no Brasil, quando tentavam fugir de campos de trabalhos forçados.

    Segundo a OIT, a prática mais usual no Brasil para escravizar pessoas é a utilização dos chamados "gatos", agenciadores de mão-de-obra que trabalham para os fazendeiros. Eles recrutam trabalhadores em comunidades pobres, com a promessa de bons salários. Os recrutados são levados a trabalhar a mais de 1.500 quilômetros de suas casas, onde descobrem que o pagamento é bem menor do que o prometido, nada lhes restando para retornar à sua região de origem. O relatório da OIT denuncia, ainda, a exploração, no Brasil, de crianças, que trabalham até 18 horas diariamente.

    Existem, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra, diversos mecanismos para manter pessoas em situação escrava: sujeição caracterizada pela dívida, presença de pistoleiros que impedem os trabalhadores de deixar a área de serviço, existência de cantinas no interior das propriedades nas quais os trabalhadores são obrigados a adquirir mercadorias a preços extorsivos, maus tratos e condições de trabalho, alimentação e moradia não condizentes com a dignidade humana.

    Em resumo, são três as formas de trabalho não-livre existentes: a escravidão, condição de uma pessoa que fica sujeita a outra, de modo que esta possa exercer sobre ela os mesmos direitos emanados do direito de propriedade; a servidão, situação na qual, em troca do direito de acesso à terra, o trabalhador fica obrigado pela lei, pelo costume ou por acordo, a viver e a trabalhar na terra do proprietário, prestando-lhe serviços com ou sem direito à remuneração e sem possibilidades de mudar essa condição; peonagem por dívida, caracterizada pela prestação de serviços como garantia de pagamento de dívida, sem que o valor dos serviços prestados seja aplicado na liquidação da dívida de forma razoável e sem que a duração e a natureza dos serviços estejam claramente definidos.

    As formas de trabalho não-livre não se esgotam, infelizmente, Sr. Presidente, Srs. Senadores, nas três modalidades que acabo de enumerar. Há uma outra modalidade de escravidão, fruto da pressão econômica, caracterizada por perda, permanente ou temporária, por parte do trabalhador, da liberdade de colocar no mercado sua força de trabalho como mercadoria. Nesse caso, as formas de coerção não são, muitas vezes, claramente percebidas ou evidentes, nem se baseiam em repressão física e violenta. Mas há a pressão imposta pelo sistema, que dele exclui as pessoas. No Brasil, são milhões os excluídos, os marginalizados: são todos os despossuídos, os analfabetos, os favelados, os desempregados, os subempregados; são, enfim, todos os indigentes que, em nosso País, totalizam 31,7 milhões.

    Sr. Presidente, Srs. Senadores, a escravidão, como é sobejamente sabido, foi a fórmula que as metrópoles européias encontraram para explorar as terras americanas, que constituíram os vastos impérios coloniais. No Brasil, o escravo negro substituiu o índio, com intensa atividade em todos as regiões e em todos os setores econômicos: nas lavouras de Norte a Sul, nos serviços domésticos, nas ruas dos centros urbanos.

    Longa foi a luta para a extinção do cativeiro no Brasil. A batalha, que durou cerca de um século, diferentemente do que se escreveu durante tanto tempo nos compêndios de história pátria, não galvanizou de imediato a opinião pública, fazendo calar as vozes discordantes. A luta foi assinalada por breves avanços e longos recuos, pequenas vitórias e grandes derrotas, circunstâncias que fizeram do Brasil o último país cristão e dito civilizado a abolir o escravismo.

    Muitas resistências tiveram de ser vencidas antes de se promulgarem as diversas leis que decretaram o fim da escravatura no Brasil. No Parlamento, medidas libertadoras de longo alcance não foram promulgadas, senão em forma de leis moderadas e dilatórias, que só serviram para conter e retardar o impulso reformista. É como recorda o Professor José Honório Rodrigues: "Com essas leis, procurava-se abafar o inconformismo e conjurar o perigo maior, isto é, a perda da propriedade escrava".

    Estudos e pesquisas recentes estão reformulando a visão da historiografia tradicional da escravatura no Brasil. Tem-se consciência, hoje, de que a abolição não foi um fenômeno meramente político, impulsionado apenas pela ação de um grupo de idealistas com profundos sentimentos humanitários, que teria agido em nome de uma bela utopia. Ao contrário, cada vez mais a historiografia acentua atualmente que a abolição foi um fenômeno vinculado às mudanças econômico-sociais que se processaram no País, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, considerada a nítida conexão existente entre o desenvolvimento do capitalismo industrial e a superação do cativeiro.

    Segundo essa ótica, constata-se que a evolução dos interesses capitalistas, em uma primeira etapa - a da chamada fase mercantilista -exigiu o aparecimento da escravidão nas áreas coloniais, para, mais tarde, a partir do momento em que a produção industrial passara a comandar as atividades econômicas, determinar a extinção do cativeiro.

    A transição, porém, ocorreu de forma lenta e gradual, pois eram os interesses escravistas, na Colônia e no Império, por demais poderosos. O processo iniciou-se, como se sabe, com a interrupção do comércio negreiro, que deveria culminar com a abolição do cativeiro, tudo feito sempre de acordo com a lei. A esse respeito, aliás, os abolicionistas procuraram, primeiramente, fazer valer seus ideais, com a prudência de se movimentarem no estreito limite da lei, ocupando os espaços que ela lhes tornava disponíveis. Foi com essa estratégia - diga-se de passagem - que o Parlamento, a imprensa, as associações tornaram-se veículos da luta abolicionista.

    A par dessa estratégia, no entanto - e diante da recalcitrância dos escravocratas -, tiveram os abolicionistas de lançar mão, depois, de outros recursos mais radicais: aproveitando o aguçamento das contradições internas que precipitavam a desagregação do sistema servil, lançaram-se eles à luta subterrânea, que os fez ultrapassar os limites legais, surgindo daí nova face do abolicionismo, com a fuga em massa do cativeiro, que acabou por desarticular de vez o escravismo, até que ele fosse extinto, como se sabe, na forma da lei.

    Acrescente-se a isso, que o escravo negro também renegava sua condição e a falta de liberdade que lhe era imposta. Com efeito, ele lutou contra o cativeiro, lançando mão de todos os meios de que dispunha, como as fugas, os quilombos, os crimes contra os senhores, as insurreições. No entanto suas formas de luta não obtiveram maiores resultados porque tinham de enfrentar intensa e organizada repressão. Dessa maneira, seus protestos somente conseguiram êxito quando passaram a ser apoiados pelo branco. E assim, segundo as palavras de Otávio Ianni, a abolição tornou-se negócio dos brancos: "Não é a casta dos escravos que destrói o trabalho escravizado, muito menos vence a casta dos senhores. (...) A escravidão sempre foi extinta devido a controvérsias e antagonismos entre os brancos ou grupos e facções das classes dominantes".

    Feitas essas considerações, Sr. Presidente, Srs. Senadores, alcanço importante ponto que pretendo, ainda, abordar, neste pronunciamento: o papel do Senado do Império na abolição da escravatura.

    De plano, pode-se afirmar que a instituição teve destacado papel no processo abolicionista. Muito se fez pela causa não só no plenário do Senado, como também fora dele, principalmente nos momentos finais da escravidão, quando a idéia da abolição se desenvolveu celeremente no Parlamento.

    Em artigo publicado na Revista de Informação Legislativa, edição de outubro a dezembro de 1976, intitulado "O Senado e a abolição", o Senador Afonso Arinos de Melo Franco, de saudosa memória, declara que, no Brasil, a abolição foi um processo parlamentar, um processo que decorreu dentro do Parlamento. Foi um processo legislativo, uma conquista da lei, uma conquista da legalidade.

    Na galeria dos senadores ilustres que lutaram pela abolição, o Dr. Afonso Arinos relaciona primeiramente o nome do Marquês de Queluz, João Severiano Maciel da Costa (1769-1833), senador do Império, governador da Guiana Francesa, várias vezes ministro. Publicou, em 1821, uma memória sobre a necessidade de abolir a introdução de escravos no Brasil. Sustentava a inviabilidade do progresso agrícola através da rotina do trabalho escravo. Propunha, em conseqüência, a imigração e a libertação dos escravos.

    No rol dos senadores abolicionistas, são da maior importância os nomes de Euzébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara e de José Maria da Silva Paranhos, Visconde de Rio Branco.

    Euzébio de Queirós (1812-1868), nasceu em Angola, mas considerava-se um brasileiro de fato. Foi deputado geral, de forma intermitente, a partir de 1842; senador em 1854; membro do Conselho de Estado em 1855. Obteve grande destaque enquanto esteve à frente do Ministério da Justiça, no período de 1848 a 1852. Foi o autor e principal executor da Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850, que estabeleceu medidas para a repressão do tráfico de africanos no Império. Essa lei foi regulamentada pelo Decreto nº 708, de 14 de outubro de 1850, que regulava também a execução da Lei que estabeleceu, em 1831, medidas para a repressão do tráfico de africanos no Império. Constam do Decreto três títulos: I - Dos apresamentos feitos em razão do tráfico, e forma de seu processo na 1º Instância; II - Do processo e julgamento dos réus em 1º Instância; 3 - Dos sinais que constituem presunção legal do destino das embarcações ao tráfico. A Lei nº 581 e o Decreto nº 708 fazem referência à Lei de sete de novembro de 1831, do Governo Feijó, que declarou livres todos os escravos vindos de fora do Império e impunha penas aos importadores dos mesmos escravos. Essa lei, durante décadas, foi letra morta. Euzébio de Queirós, no entanto, conseguiu, com os instrumentos legislativos de 1850 e com sua atuação no Ministério da Justiça, tornar realidade a abolição do tráfico de escravos. Para tanto, teve o Senador Euzébio de Queirós de enfrentar os potentados, que eram os grandes fazendeiros: mandou a polícia para as fazendas, exigiu a comprovação da documentação, colocou os transgressores na cadeia, expulsou os famosos negreiros, verdadeiros negociadores de carne humana.

    Ao lado do nome do Senador Euzébio de Queirós, coloca-se o do Senador José Maria da Silva Paranhos (1819-1880), Visconde de Rio Branco. Foi escolhido Senador em 1862. Durante o curso do Gabinete por ele presidido, em 28 de setembro de 1871, foi aprovada e promulgada a Lei nº 2.040, conhecida por Lei do Ventre Livre ou Lei Rio Branco, que dava liberdade aos nascituros de escravos, ao completarem 21 anos.

    Leis de teor semelhante ao dessa lei tinham sido aplicadas em vários países. Estabeleciam etapas naturais do processo de abolição. Através delas, os filhos dos escravos tornavam-se livres, e, com o decorrer dos anos, a escravidão era extinta.

    Segundo declara o Senador Afonso Arinos no artigo já mencionado -"O Senado e a abolição" -, a Lei nº 2.040 faz parte da história da instituição. Foi o Senador Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente, quem, adaptando leis estrangeiras similares, apresentou os primeiros projetos que, mais tarde, se tornariam a Lei do Ventre Livre. Foi, porém, o Visconde de Rio Branco o grande defensor da lei, estranhamente, diga-se de passagem, contra o Partido Liberal, especialmente contra o Senador Zacarias de Góes Vasconcelos.

    O grande nome no Senado, na última fase do processo abolicionista, foi o de Antônio Prado (1840-1929). Proprietário de fazendas em São Paulo, tinha sido contrário à abolição, tornando-se, depois, incentivador da imigração européia, como solução para o problema da substituição da mão-de-obra escrava pelo braço livre.

    Sr. Presidente, Srs. Senadores, muitos outros senadores tiveram realce na luta abolicionista: muitos projetos de sua lavra tramitaram pela instituição buscando a liberdade dos escravos, fato que demonstra a importância do Senado do Império na luta em favor da abolição.

    Essa luta, aliás, tanto mais ganha vulto quanto mais se levam em consideração as características da instituição à época: ela era composta por senadores designados pelo Imperador, com mandatos vitalícios, circunstâncias que permitiam a S.M. exercer grande influência no âmbito da Casa, com poderoso grau de centralização de suas decisões políticas.

    Dessa maneira, segundo os historiadores, em uma estrutura como a do Império brasileiro, cuja elite era preponderantemente sustentada pela propriedade agrária, somente uma dissensão interna de nossas classes dirigentes poderia levar à aprovação de uma lei que abolisse a escravatura no País. Isso, diga-se a propósito, foi muito bem percebido pelo Senador Dantas, que, ao apresentar projeto de lei relativo ao problema escravo, teceu as seguintes considerações em sessão realizada a 3 de junho de 1887:

 

    

    "Entrego o projeto à consciência, à justiça e ao patriotismo do Senado; e, sem entender que o eixo da política brasileira está deslocado da Câmara para o Senado, força é confessar que é impossível em todo o tempo, e principalmente nas circunstâncias que atravessamos, esperar que triunfe qualquer idéia, por mais generosa, se ela não é protegida pelos ilustres senadores, por si mesmos e pelas relações de influência natural, legítima, que exercem sobre muitos dos membros do outro ramo do Poder Legislativo: poderão, pois, fazer muito para que dentro do prazo marcado neste projeto, se não antes, seja resolvido este problema.

    De fato, essa influência do Senado se fez sentir pela própria urgência com que o Parlamento tratou a matéria em 1888."

    Para se ter uma idéia mais precisa e completa a respeito da participação do Parlamento na abolição da escravatura, examinemos a tramitação, nele, do projeto que extinguiu a escravidão no Brasil.

    Ela se processou em apenas seis dias, com breve batalha parlamentar, diferentemente do que ocorrera na aprovação das Leis do Ventre Livre e dos Sexagenários, quando, mediante conciliação, liberais e conservadores encontraram um meio termo, segundo o qual o sistema escravocrata foi prolongado. Em 1888, no entanto, a urgência na tramitação do projeto foi imposta pela necessidade de solucionar a crise que afetava a Nação desde os primeiros meses do ano, quando, em rápida sucessão, municípios libertavam seus últimos escravos. Livres, os ex-cativos dirigiam-se em grande quantidade às cidades. Temia-se, então, a possibilidade de ocorrerem conflitos. De fato, havia uma incerteza em relação à situação social, que parecia deteriorar-se rapidamente, estando os libertos ameaçados de miséria e os fazendeiros, em dificuldades e impossibilitados de planejarem satisfatoriamente suas atividades.

    Diante dessas circunstâncias, os setores mais previdentes sabiam da inutilidade da resistência, mas o Gabinete Cotegipe, que se encontrava no poder, insistia em reprimir com violência as agitações e fugas, em nome de uma legislação que, em nada mais, refletia os anseios da sociedade de então.

    O gabinete Cotegipe - desacreditado - tinha sido substituído pelo de João Alfredo Correia de Oliveira, conservador que se havia unido ao Senador Antônio Prado em 1887, no anseio de uma solução definitiva para o problema da escravatura.

    É importante salientar que vários projetos tinham sido apresentados em 1887, propondo a libertação dos escravos, mas estabelecendo certas condições: compensação monetária para os proprietários, obrigação dos libertos de permanecerem trabalhando durante determinado número de anos para seus proprietários ou de se fixarem durante certo tempo no município em que fossem emancipados.

    Com tais condições não concordava a Câmara dos Deputados, que já se tornara, então, mercê da maioria liberal, um instrumento de ação radical. Daí, ter o Gabinete de João Alfredo optado pela abolição completa da escravatura, não incluindo em sua proposta qualquer exigência que dificultasse a incondicional libertação dos escravos.

    Também no Senado a escravidão era, em maio de 1888, uma instituição praticamente sem defensores, como, em longa, minuciosa e abalizada pesquisa que teve por fonte os Anais do Senado de 1888, bem o demonstra o Dr. Walter Faria na Revista de Informação Legislativa, edição de janeiro a março de 1972, em artigo intitulado "O Senado do Império e a abolição".

    No início de 1888 - repito -, a abolição já se tinha tornado uma perspectiva irresistível. Nesse ano, as sessões preparatórias da Câmara dos Deputados instalavam-se a 27 de abril, porém a sessão legislativa somente foi aberta, oficialmente, como era de regra, no dia 3 de maio. A Fala do Trono foi lida pela Regente do Império, Princesa Isabel. Um dos tópicos do documento referia-se à abolição:

    "A extinção do elemento servil, pelo influxo do sentimento nacional e das liberalidades particulares, em honra do Brasil, adiantou-se pacificamente de tal modo que é, hoje, aspiração aclamada por todas as classes, com admiráveis exemplos de abnegação por parte dos proprietários. Quando o próprio interesse privado vem espontaneamente colaborar para que o Brasil se desfaça da infeliz herança, que as necessidades da lavoura haviam mantido, confio em que não hesitareis em apagar do direito pátrio a única exceção que nele figura em antagonismo com o espírito cristão e liberal de nossas instituições."

    Apresentando à Câmara no dia 7 de maio o novo Ministério, seu Presidente, João Alfredo, afirmou em discurso:

    "Direi somente que o Ministério, se tiver o apoio do Parlamento, há de esforçar-se quanto for possível para que esse programa se converta em realidade, e, sobretudo, para que se efetue, quanto antes, a reforma do elemento servil, que é a aspiração nacional, e que o gabinete tem o empenho em fazer tão perfeita quanto a opinião pública a indica e quer. Amanhã será apresentada a proposta do Poder Executivo para que se converta em lei a extinção imediata e incondicional da escravidão."

    A proposta foi enviada à Câmara dos Deputados no dia 7 de maio. Continha, em dois parágrafos, redação objetiva e incisiva. O primeiro dispunha: "É declarada extinta a escravidão no Brasil". Já o segundo estabelecia que eram revogadas as disposições em contrário.

    Aprovado na Câmara no dia 13 de maio, passou o projeto, no mesmo dia, ao Senado, onde falaram a favor os Senadores Souza Dantas, autor da Lei dos Sexagenários de 1885, e o Presidente do Conselho, João Alfredo. Contra o projeto, discursou o Senador Paulino de Souza.

    Apenas dois senadores foram contrários ao projeto que propôs a extinção da escravidão no Brasil, em 1888: Paulino de Souza e João Maurício Wanderley, Barão de Cotegipe. Igualmente na Câmara, os escravocratas contaram com pequeno apoio: somente nove dos 92 deputados manifestaram-se contra a proposta.

    Lacônico, o projeto que se converteria na Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888, a chamada Lei Áurea, expressava a atmosfera de radicalização a que se chegara, no País, relativamente ao problema escravo, a qual não comportava mais nenhuma concessão ao escravismo, nem postergação da data em que se deveria efetivar sua abolição. É que os abolicionistas tinham conseguido exprimir e potencializar politicamente as contradições econômicas que já se encontravam plenamente amadurecidas. Sobre esse ponto, aliás, Suely R. Reis de Queiroz escreveu em A abolição da escravatura:

    "Os sucessos ocorridos no transcorrer do século XIX: interrupção do tráfico e progressiva diminuição do número de escravos; expansão do café dinamizando a urbanização e promovendo a transferência interna de braços; o declínio produtivo de algumas áreas cafeeiras e o ascenso de outras, o clamor externo, aguçaram as contradições e minaram a escravidão."

    Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, para que se tenha uma idéia mais completa da atmosfera que envolvia o Senado em 1888 e das discussões que a abolição ensejou, vale a pena ir buscar nos anais da Casa as manifestações de alguns Senadores, a começar pelos dois que se opuseram ao projeto.

    O voto de Cotegipe teve motivações políticas, mas, ao mesmo tempo, refletiu temores reacionários. Embora reconhecesse o mérito do projeto em acabar com o que chamou de anarquia - ataques contra a propriedade e contra a ordem pública -, chamou a atenção do País e do Governo para as tendências que já apareciam, ou seja, a divisão das terras e a república. Quanto à questão da terra, enfatizou o Senador: "Dada a diferença entre o homem e a coisa, vê-se que a propriedade sobre a terra também não é direito natural". O que pretendia dizer era que, se com o projeto da abolição da escravatura se punha fim à propriedade do homem sobre o homem, logo o Estado poderia decretar, com base no mesmo fato, a expropriação sem indenização das terras. O Senador, aliás, pouco tempo após a abolição, tentou obter, através de um projeto que não conseguiu aprovação, que os proprietários de escravos fossem indenizados.

    Quanto ao voto de Paulino de Sousa, sua posição contrária à abolição da escravatura justificava-se sobretudo porque pertencia a um dos segmentos da elite dos tempos imperiais que tivera no braço escravo a base de sua prosperidade. Refiro-me à decadente cafeicultura fluminense, que tudo fez para evitar que o progresso se deslocasse para outras regiões do País, principalmente São Paulo. Para ele, a medida da abolição da escravatura era "francamente revolucionária": segundo suas palavras, destruía e aniquilava para sempre uma propriedade legal, garantida, como todo o direito de propriedade, pela lei fundamental do Império entre os direitos civis de cidadãos brasileiros, que dela não podiam ser privados senão mediante indenização de valor".

    Diferentes preocupações teve, porém, a Comissão Especial encarregada de apreciar o projeto. Formada por cinco senadores (Dantas, Affonso Celso, Teixeira Júnior, Visconde de Pelotas e Taunay), entendeu que a abolição dos escravos se estava realizando de forma incondicional, pois a Lei abolia "todas as obrigações de prestação de serviços provenientes da legislação em vigor, ou de libertações condicionalmente conferidas, por entender que isto se acha virtualmente compreendido" na proposta.

    Para o Senador Affonso Celso, no entanto, era estranho que, na Fala do Trono, tivesse havido referências a medidas colaterais de organização do trabalho. Para ele, o escravo, com o projeto, passava a ser um indivíduo livre, e esta liberdade não deveria vir sob condições, pois o liberto deveria entrar para o regime comum. Resumidamente, o Senador entendia que nenhuma proteção de ordem legal deveria partir do Governo, fosse em benefício de proprietários, fosse em benefício dos ex-escravos. O ponto de vista de Affonso Celso era que a liberdade deveria ser imediata e incondicional.

    Já o Senador Dantas, também liberal, tinha outra visão da medida, tinha um entendimento muito mais amplo. Entendia ele que a libertação dos escravos alargaria o campo à prosperidade e ao engrandecimento nacional. Para ele, a abolição era o termo de uma caminhada, mas, ao mesmo tempo, a abertura para outras reformas liberais.

    O voto do conservador Escragnole Taunay foi o que se baseou em idéias mais amplas. Com efeito, o Senador percebeu com maior acuidade o cerne da questão, porquanto considerava os acontecimentos em uma dimensão em que o trabalho produtivo era o fator que poderia impor uma reorientação aos efeitos negativos da escravidão. Para Taunay, não se tratava apenas de substituir uma relação por outra bem mais avançada, mas de compreender que os malefícios do trabalho escravo, marcando profundamente a existência nacional, somente se extirpariam pela dignidade que se desse ao esforço voltado para a produção de riquezas. E para o Senador, isso se conseguiria através de reformas radicais, sem as quais o Brasil não poderia chegar ao grau de pujança física e moral a que tinha direito.

    Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ainda hoje não conseguimos, no Brasil, resolver muitas das questões discutidas pelos Senadores do Império em relação ao fim da escravatura. Pode-se dizer que o escravo negro está livre do cativeiro. Mas estará ele livre também da condição de inferioridade que nossa sociedade injusta lhe impõe, como também impõe aos 31,7 milhões de brasileiros indigentes e despossuídos?

    Estamos, mais uma vez, às vésperas do dia 13 de maio. Novamente a data nos conduz a refletir sobre a legião de miseráveis que, no Brasil, se encontram em postos de trabalho em troca de remuneração desprezível ou sem remuneração alguma.

    O que o Parlamento atual está fazendo para ajudar na libertação desses milhões de irmãos nossos, os escravos brasileiros do século XX?

    Encerro meu pronunciamento, Srs. Senadores, com palavras do Exmº Sr. Ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, extraídas de sua entrevista à revista Veja, que nos apontam a necessidade de um nova utopia no Brasil: "Precisamos formar um novo sonho brasileiro, e esse sonho só pode ter por objetivo redimir o País da monstruosidade social que herdamos de quatro séculos de escravidão."

     Era o que tinha a dizer, Senhor Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 12/05/1994 - Página 2247