Discurso no Senado Federal

DIA INTERNACIONAL PARA A ELIMINAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL. HOMENAGEM. :
  • DIA INTERNACIONAL PARA A ELIMINAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Aparteantes
Benedita da Silva, Sebastião Bala Rocha.
Publicação
Publicação no DCN2 de 22/03/1995 - Página 3418
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL. HOMENAGEM.
Indexação
  • COMENTARIO, PROPOSTA, ORADOR, DIA INTERNACIONAL, ELIMINAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
  • COMENTARIO, DIFERENÇA, CULTURA, RAÇA, NATUREZA SOCIAL, REGIÃO, FATOR, RIQUEZAS, PATRIMONIO CULTURAL, BRASIL.
  • SUGESTÃO, MINISTERIO DA EDUCAÇÃO (MEC), CRIAÇÃO, COMISSÃO, ANTROPOLOGO, HISTORIADOR, PESQUISADOR, OBJETIVO, VALORIZAÇÃO, CONTRIBUIÇÃO, NEGRO, INDIO, LIVRO DIDATICO, BRASIL.
  • COMENTARIO, HOMENAGEM, CENTENARIO, MORTE, VULTO HISTORICO, DEFESA, DIREITOS, GRUPO ETNICO, NEGRO, PAIS.
  • MANIFESTAÇÃO, NECESSIDADE, ALTERAÇÃO, CULTURA, DISCRIMINAÇÃO, MULHER.

A SRª MARINA SILVA (PT-AM. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sou particularmente a proponente do requerimento que faz desta parte da sessão uma solenidade com relação ao Dia Internacional para Eliminação da Discriminação Racial. A Senadora Benedita da Silva, de forma muito feliz, trouxe hoje para o plenário desta Casa uma discussão que, às vezes, parece óbvia, porque a grande maioria do povo brasileiro é uma mistura de raças, com uma predominância muito grande da raça negra. A Senadora Benedita da Silva pode ter a certeza de que essas diferenças culturais, sociais e religiosas engrandecem muito o conjunto de toda a cultura e formação sócio-cultural do nosso País.

Como a Senadora Benedita da Silva fez aqui um resgate histórico e um belo pronunciamento referente a este dia que, acima de tudo, é simbólico e, ao mesmo tempo, marco de muitas lutas contra a discriminação, vou tentar ser breve porque a paciência dos Srs. Senadores também tem um certo limite.

Abençoado é o nosso povo porque é feito de tantas diferenças. Como é bonito poder ser assim tão branco, negro, índio e misturado. Como são belas as danças, canções e pensamentos que celebram essa saudade que trazemos da Europa, da Ásia, da África, de uma América que existia antes de ser chamada América. Como é profunda essa saudade de um paraíso ancestral. É ela que nos faz sonhar com um paraíso futuro.

É verdade, houve a escravidão e o genocídio . Ainda há o preconceito e a separação. Temos visto negros serem presos apenas porque, sendo negros, são considerados suspeitos. Temos visto índios serem expulsos de suas terras apenas porque, sendo índios, são considerados inferiores. Tudo isso tem tornado o povo brasileiro mais pobre e mais triste. Tem condenado nosso País a um inaceitável atraso, porque impede a união criativa de todas as suas matrizes culturais. Tem lançado nosso povo em uma longa confusão por não compreender que sua legítima identidade é justamente essa grande diversidade.

Não existem raças inferiores, existem homens e mulheres inferiorizados pela escravidão, qualquer que seja a escravidão, qualquer que seja a cor da pele. Na verdade, nem existem várias raças, mas apenas a raça humana que, como disse Gilberto Gil, é o resultado de uma semana do trabalho de Deus, um trabalho que ainda não terminou.

A criação da raça humana estará completa quando todos, vivendo livres e em igualdade, olharem com amor as suas diferenças naturais. No Brasil, essa liberdade, essa igualdade e esse amor formam o mais valioso tesouro que está guardado para o futuro. Para que possamos encontrá-lo, temos que começar desde já a banir de nossa Pátria todo preconceito, toda separação.

Neste momento em que são debatidos, mais uma vez, os rumos da educação brasileira, chamo a atenção para as responsabilidades que as nossas escolas têm na construção do futuro. E faço uma sugestão ao Ministério da Educação. Todos sabemos que a História do Brasil está mal contada. A contribuição dos negros e dos índios na formação da sociedade brasileira tem sido desprezada em nossos textos escolares. Sou professora de História e sei o quanto o negro e o índio aparecem de forma pitoresca nos textos com que educamos. Pensando estar educando, estamos, na verdade, muitas vezes, formando pessoas com uma mentalidade preconceituosa, que desprezam a diferença, em vez de terem o respeito que deveriam ter e de serem capazes de trocas, nesse universo de muitas possibilidades da construção de uma cultura, com muitas variedades de forma e de pensamento.

Recomendo, portanto, que seja formada uma comissão de educadores, antropólogos, historiadores e pesquisadores em geral para avaliar a presença de negros e índios nos textos escolares e sugerir as mudanças necessárias, para que não apareçamos mais apenas como "o negrinho que tangia o boi" ou "o negrinho que cuidava do quintal do senhor", mas como seres humanos que, tanto quanto os outros, têm possibilidades de crescimento, desde que lhes sejam dadas as oportunidades.

No próximo dia 20 de novembro serão completados 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares. Num País onde todos os heróis são brancos, até mesmo os abolicionistas, nenhum esforço é suficiente para honrar a sua memória e a de todos aqueles que lutaram, anonimamente, pela igualdade.

Quero dizer que o preconceito nunca acontece sem que haja uma boa dose de autoritarismo, uma boa dose de intolerância para com aqueles que, por questões meramente circunstanciais, são considerados inferiores.

Desejo acrescentar também, e gostaria de pedir a atenção da Senadora Benedita, que toda ofensa deve ser reparada, e que, neste momento, eu, como negra, solidarizo-me com S. Exª e com todas as pessoas de bem, sejam brancas, negras, amarelas, sejam índios, enfim, com quem quer que lute por uma relação de igualdade e respeito entre os seres humanos.

Quero ainda dizer que poderíamos dar uma grande contribuição, enquanto formadores de opinião. O político pode usar da tribuna, dos meios de comunicação, aos quais tem acesso, para irradiar preconceitos ou para contribuir para a sua eliminação. Que façamos a segunda opção.

O Sr. Sebastião Rocha - Concede-me V. Exª um aparte, Senadora Marina Silva?

A SRª MARINA SILVA - Pois não, Senador Sebastião Rocha.

O Sr. Sebastião Rocha - Quero, nesta oportunidade, participar do momento de emoção contagiante que V. Exª e, ainda há pouco, a nobre Senadora Benedita da Silva, criam, hoje, nesta homenagem, e dizer que sou solidário com essa causa. O Partido do qual sou Vice-Líder no Senado, o PDT, também é sensível a esses apelos, e todas as vezes que V. Exªs precisarem agir em favor desta ou de outras causas, sobretudo das minorias, uma das grandes lutas da Senadora Benedita da Silva e também de V. Exª, estarei junto com V. Exªs para irmos à luta e diminuirmos as desigualdades sociais que ainda persistem neste País. Muito obrigado, Senadora.

A SRª MARINA SILVA - Obrigada pelo aparte, nobre Senador Sebastião Rocha.

A Srª Benedita da Silva - Permite-me V. Exª um aparte?

A SRª MARINA SILVA - Ouço V. Exª com muito prazer.

A Srª Benedita da Silva - Senadora Marina Silva, estou atenta ao que V. Exª está dizendo. V. Exª sabe perfeitamente que essas ofensas, na nossa luta, seja no movimento popular, no racial, no dos direito da mulher e da criança, ou para o desenvolvimento da Amazônia, por um Brasil melhor, nos estimulam a reconhecer que ainda falta muito, que temos um caminho longo pela frente. Quero também sugerir que projetos nessa área não sejam apenas dos que defendem esta causa mais acintosamente, mas sejam de todos nesta Casa, por se tratar de situações que devem ser resolvidas por todos nós. Gostaria também de poder estar com V. Exª nas sugestões de projetos, não apenas como co-autora, mas contribuindo, porque sei que V. Exª tem os mesmos compromissos que eu.

A SRª MARINA SILVA - Muito obrigada pelo aparte, e pode ter certeza, Senadora Benedita da Silva, que trabalharemos irmanadas por esses objetivos e por esses ideais.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, como professora que tem observado a educação, e mais ainda neste mês em que comemoramos o Dia Internacional da Mulher - que nós, mulheres, muito sabiamente, transformamos na Semana Internacional da Mulher, e depois, quem sabe, transformaremos no Mês Internacional da Mulher e, por que não dizer, no Ano Internacional da Mulher, porque precisamos realmente de que todos os dias sejam dias em que nós mulheres sejamos respeitadas, amadas e admiradas -, neste mesmo mês aqui estamos a trabalhar a questão do Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial. Não é à toa que esses dias acontecem; não é simplesmente para que tenhamos um dia para fazer o mea-culpa e bater no peito. É para que, simbolicamente, a humanidade pare para pensar que ainda existem seres humanos que são tratados como seres inferiores.

Recentemente, numa conversa que tive com educadores, em Rondônia, cujo tema era "A Mulher na Educação e as Relações de Gêneros", ou seja, as diferenças entre homens e mulheres, estranhamente observei que eu estava trabalhando a idéia de que a educação é feita quase que exclusivamente por mulheres. O Senador João Calmon, que está à minha frente e pelo qual tenho muito respeito, é uma autoridade em educação e pode até concordar comigo.

Na faixa dos 7 aos 14 anos, ou seja, a educação no ensino básico é responsabilidade, em quase 90%, de mulheres.

Mas como a educação não acontece apenas na escola, acontece também na família, de maneira informal, e a criança fica, geralmente, com mulheres, com a babá, a avó ou a tia, e se considerarmos que a educação também não é resultado somente da escola e da família, é também convívio social, e que 51% da população do Brasil é composta de mulheres, teremos a presença da educadora-mulher nos três momentos: na família, na escola e no convívio social.

Se temos, então, uma responsabilidade tão grande no processo educativo, por que será que a cultura é tão machista e discrimina a mulher? Estaremos nós praticando o machismo? Com certeza, estamos. Esses valores também estão impregnados na professora, na mãe, na educadora e na Senadora que aqui está falando, porque não somos uma coisa à parte dessa cultura que milenarmente vem sendo construída.

E isso ocorre também nos valores de negros contra brancos, ou contra índios, etc. Precisamos inverter e mudar essa cultura. Acredito que no dia que assumirmos esse que é o desafio maior, que é colocar nos textos constitucionais, nas leis - é fundamental que estejam lá, para assegurar direitos, para evitar discriminação -, mas é fundamental que tentemos mudar a cultura do nosso povo, porque sem essa mudança, é muito difícil o cumprimento das leis. Senadora Benedita da Silva e Srs. Senadores, acredito que essas duas frentes se complementem. Nós, aqui, trabalhando leis, para que se fortaleça o princípio da igualdade e da possibilidade para todas as pessoas e, ao mesmo tempo, contribuindo para que os diferentes valores sejam respeitados. Eu sempre digo que o pressuposto fundamental para a troca é que haja a diferença. Mas para que haja troca é preciso que haja liberdade, porque quando não há liberdade não há troca, há imposição. E só existe respeito numa troca onde há diferença, liberdade e aceitação daquele que quer trocar. A cultura negra está aberta a essa troca. Já demos muito, de forma anônima, e precisamos fazer isto agora, gritando aos quatro cantos do mundo que nós também temos a nossa parcela de colaboração a oferecer.

Neste mês em que se comemorou o Dia Internacional da Mulher e neste dia solene, eu gostaria de homenagear a Senadora Benedita da Silva, em nome de todas as mulheres negras e brancas e de todos os homens e mulheres do País, dizendo uma poesia - com licença do nosso Senador poeta - que aprendi há muito tempo, ainda adolescente, cujo autor, infelizmente, não me lembro o nome. O nome do livro é Álbum de Mulheres.

      "Quando nasceu a menina

      Seu Deus Pai, dono do mundo

      E sua Mãe, de espinha curva

      Decretaram o seu destino

      Serás flor amordaçada

      Cama e mesa de marido

      Terra de frutos futuros

      e depois canteiro murcho

A presença das Senadoras Benedita da Silva, Júnia Marise, Emília Fernandes e Marluce Pinto nesta Casa é uma demonstração de que nós mulheres negras, brancas, enfim, não somos canteiro murcho. Não queremos ser flores amordaçadas, não queremos apenas ser terra de frutos futuros. Queremos ser canteiros vivos na multiplicidade da nossa cultura e na possibilidade de trocarmos, com homens e mulheres, os valores que temos e que aprendemos da cozinha a este Senado. Muito obrigada. (Palmas)


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 22/03/1995 - Página 3418