Discurso no Senado Federal

TRANSCURSO DO 'DIA DO INDIO'.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA INDIGENISTA. :
  • TRANSCURSO DO 'DIA DO INDIO'.
Aparteantes
Coutinho Jorge.
Publicação
Publicação no DCN2 de 20/04/1995 - Página 5728
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA INDIGENISTA.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA, INDIO, CRITICA, DESRESPEITO, SOCIEDADE, BRASIL, PRESERVAÇÃO, MOTIVO, INTERESSE, AMBITO INTERNACIONAL.
  • PROPOSTA, ABERTURA, DIALOGO, CONGRESSO NACIONAL, SOCIEDADE, OBJETIVO, REFORMULAÇÃO, LEGISLAÇÃO, INDIO.
  • ANALISE, SITUAÇÃO, CONFLITO, TERRAS INDIGENAS.
  • DEFESA, QUALIDADE, REPRESENTANTE, PARTIDO POLITICO, PARTIDO DOS TRABALHADORES (PT), EMPENHO, CONGRESSISTA, CONTINUAÇÃO, TRAMITAÇÃO, ESTATUTO, SOCIEDADE, INDIO, DEMARCAÇÃO, TERRAS INDIGENAS.

A SRª BENEDITA DA SILVA (PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, subo hoje nesta tribuna para prestar extraordinariamente uma homenagem sui generis, pois a homenagem vai tomar rapidamente forma de protesto e de indignação. Trata-se do Dia do Índio. Ora, 19 de abril só pode ser dia de índio para quem não se vê índio. Dezenove de abril é, sem dúvida, o dia de virar índio. Dezenove de abril é dia de reflexão sobre o índio que abominamos lembrar, do índio que esquecemos de ser, do índio que não somos mais!

"Todo dia é dia de índio", já dizia o canto popular. Embora simples e até tautológico, o ditado não deve ser menosprezado, tampouco banalizado em sentido mais profundo. A meu ver, ele insinua críticas em pelo menos três direções que podem ser, grosso modo, sintetizadas assim: a) índio não é singular, é plural; b) índio não é passado, é presente; c) índio não são os outros, somos nós!

Numa interpretação mais filosófica, poderíamos afirmar que tempo e espaço, categorias sociologicamente concebidas dentro dos parâmetros ocidentais de ontologia, carregam necessariamente conteúdos segregacionistas aos quais a consciência pública não presta merecida atenção. Dessa forma, somos levados a enxergar a diferença física intelectual e cultural como elementos depreciadores da alegada "univocidade da espécie humana".

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, tudo isso serve para esclarecer que, de uma vez por todas, o Dia do Índio provoca em nossa sociedade mais embaraço e constrangimento que alegria e orgulho. Como artigo de luxo pendurado em nossas vitrines, pronto para ser devorado, o índio ainda é pensado como elemento exótico que deve ser preservado pela cotação que ostenta no mercado internacional dos direitos humanos.

Enquanto mercadoria "ecologicamente correta" numa era em que prevalece a ideologia intercontinental do verde, o índio brasileiro é paradoxalmente convocado a avalizar a competência do Estado como candidato potencial ao círculo dos "civilizados".

Nos anos noventa, pressionado por forças políticas e éticas que exigem respeito às comunidades indígenas, o Brasil tenta se inscrever no restrito rol dos países sérios, graças a sua simulada tese de confraternização racial e cultural.

Todavia, mais do que uma questão política isolada, o índio integra todo o processo brasileiro de construção e desconstrução da identidade e diferença cultural. De que nos serve manter acesa a chama do romantismo social, se o objeto de nossa contemplação nacional ufanista está abandonado e reduzido em suas dimensões quantitativas e qualitativas? Letra morta, a Constituição Federal é diariamente violada e vilipendiada quando o assunto é o respeito ao art. 231.

A História brasileira nos ensina que a dívida nacional para com as nações indígenas é proporcional ao descaso com que as autoridades costumam pautar seu relacionamento com os índios. Sucessivamente, os governos têm preferido adotar uma política abjeta de completa indiferença ao problema da preservação do homem, sobretudo se esse homem tiver o infortúnio de integrar o quadro das minorias.

Por isso, quando a sociedade brasileira comemora oficialmente o Dia do Índio, a data tende muito mais a esconder significados subliminares de discriminação do que a reparar erros pregressos e a prestar justas homenagens aos nossos representantes nacionais.

Neste 19 de abril os povos indígenas merecem um tratamento diferente. Ao invés das repetitivas e estigmatizadas celebrações em louvor do "bom selvagem", nós, brasileiros, deveremos ensaiar a encenação de um encontro etnográfico às avessas. Vou ser mais clara: dentro das infinitas possibilidades do imaginário histórico, dever-se-ia propor encontrar afinidades físicas e culturais com os múltiplos grupos indígenas brasileiros.

Com esse mergulho na alteridade, maiorias e minorias brasileiras certamente cruzariam suas imagens em infinitos espelhos da representação, cujo reflexo propiciaria um entrelaçamento de identidades e, por conseqüência, a remoção de inúmeros tabus e preconceitos sociais. Confundidos em seus valores mais arraigados, compreenderiam com menos resistência a mobilidade e a relatividade das idéias, da moral e dos costumes.

Daí, com a identidade devidamente ajustada a uma memória nacional de pertencimento pluricultural, tenho convicção de que os brasileiros se debruçariam com bem maior simpatia e interesse, sobre a situação da política indigenista atual. Com o auxílio de uma espécie de mecanismo socioterapêutico, projetaria uma aliança imaginária que reforçaria os seus laços de identidade com esse mundo "primitivo".

Nessa condição, o debate sobre a necessidade de se reformular a lei atual, que rege a relação do Estado brasileiro com os índios, se converteria numa prazerosa conversa coletiva, em cujo eixo parentes próximos e afastados, sangüíneos e afins se confraternizariam dentro de um novo contrato de convivência nacional.

Não posso fugir aos mitos, e é em função deles que inventei tal exercício imaginário. Por séculos, o mito da identidade nacional brasileira corre pelo interior da questão indígena. Como nos adverte o Antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, "é uma presença que moralmente incomoda, pois nos obriga a pensar o índio não mais em si, mas em relação a nós próprios: nossas obrigações civis, nossa responsabilidade moral."

Talvez assim, a concepção abstrata e reducionista de índio se esvaziaria e daria lugar aos concretos povos Araweté*, Tikuna, Terena, Ianomâmi, Kaadiweu, Nambiquara, Guarani- Mbyá, Kaiapó, Krahô, Canela, Txucarramãe, Pataxó, Waimiri-Atroari, Maku e outras centenas de nações irmãs que vivem dentro e fora do Brasil oficial.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, neste sentido, não há como o País fazer de conta que convive bem e cordialmente com os segmentos minoritários da sociedade ao mesmo tempo em que atende interesses que visam, de fato, à exclusão ainda mais radical dessas mesmas minorias. Historicamente, o Estado brasileiro finge, aos olhos das nações ditas desenvolvidas, que sua vocação para o consenso e para a paz social evoca algo de cumplicidade da alma brasileira.

Ora, basta examinar os violentos conflitos que cercam o problema de demarcação das terras indígenas para atestar que o reconhecimento do direito natural de posse e usufruto de parte ínfima do território brasileiro é considerada como questão de segurança nacional. Isso é totalmente descabido!

Sr. Presidente, o Partido dos Trabalhadores não se omite e nem pretende se omitir diante dos problemas que atinge em cheio a sobrevivência e a existência das sociedades indígenas. Como autêntico e mesmo histórico representante das minorias, que constitui a esmagadora maioria da população brasileira, não poderia deixar de lado a defesa intransigente dos direitos legitimamente reivindicados e constitucionalmente conquistados pelos índios.

Nesse sentido, como representante do PT nesta Casa, sinto-me no dever de lutar por aqueles que tradicionalmente ficam de fora dos projetos nacionais de desenvolvimento. Na verdade, nos circuitos mais fechados do poder, progresso e índio são vistos como incompatíveis e necessariamente excludentes. Mas quem se habilita a defender publicamente tal posição? Não quero fazer ouvido de mercador e, muito menos, fazer parte daqueles que não se incomodam absolutamente com nada. O silêncio é covarde!

E foi justamente contra essa mentalidade arcaica de se pensar a integração ou mesmo a autodeterminação das sociedades aborígines que o Partido dos Trabalhadores, associado a outras legendas comprometidas com a luta indígena, apresentou projeto de lei na Câmara Federal sobre esta matéria, ainda em 1991.

Formulado pelo Núcleo de Direitos Indígenas, o projeto teve como autores os Deputados Aloizio Mercadante*, Fábio Feldmann, José Carlos Sabóia e o atual Ministro da Justiça, Nelson Jobim. Ao lado destes, curiosamente, mais dois projetos se agregaram à mesma época. De um lado, o Deputado Tuga Angerami também subscrevia simultaneamente projeto formulado pelo Conselho Missionário Indigenista - CIMI; de outro, o próprio Executivo havia enviado ao Congresso outro projeto que versava sobre a mesma matéria.

Durante três anos, os três projetos foram exaustivamente debatidos dentro de uma Comissão Especial determinada pelo Presidente daquela Casa. Das discussões, que contaram com o envolvimento de várias instituições nacionais, resultou a confecção de um substitutivo que, surpreendentemente, teve o apoio e a aprovação unânime de todos os membros da Comissão.

Intitulado "Estatuto das Sociedades Indígenas", o projeto final teve o mérito de provocar o confronto saudável de idéias e ideais, cuja dinâmica demonstrou a compatibilidade de pontos e interesses que, em princípio, se consideravam completamente divergentes.

É preciso frisar que o êxito do Estatuto das Sociedades Indígenas não é triunfo de nenhum partido político específico. Pelo contrário, trata-se de uma rara ocasião onde prevaleceu a convergência e o consenso de múltiplas perspectivas sobre o tema. Com um total de cento setenta e cinco artigos, agrupados em oito títulos, o Estatuto, entre outras coisas, revoga o dispositivo do Código Civil que aplica aos índios o instituto jurídico da "tutela". Ao invés disso, a situação jurídica do índio se consolida como membro de sociedade diferenciada, detentor de direitos especiais a serem protegidos nas suas relações com a sociedade-estado nacional.

Associado a este avanço, o Estatuto dispõe sobre a regulamentação da exploração dos recursos minerais, da madeira e dos potenciais energéticos. Além de prever ações assistenciais do Governo nas áreas de saúde, educação e atividades produtivas, o instrumento contempla os assuntos dedicados às normas penais. De maneira inédita, estabelecem-se dispositivos de proteção à propriedade intelectual indígena por meio de registro de patentes no caso de criação coletiva das sociedades.

Embora não fosse cabalmente perfeito, o projeto na Câmara dos Deputados representava um progresso jamais visto. A aprovação do Estatuto na Comissão Especial da Câmara Federal aconteceu em 29 de junho de 1994, e tinha poder terminativo. A expectativa era de que o mesmo fosse enviado ao Senado Federal no tempo mais breve possível. Entretanto, a realidade não correspondeu, de forma alguma, aos desenhos da expectativa.

Em dezembro último, chegou recurso junto à Mesa Diretora requerendo apreciação do Estatuto pelo Plenário da Câmara dos Deputados. Pois bem, de lá para cá, o quadro ficou estacionado e tudo indica que o destino do Estatuto será o arquivamento sumário, a menos que as lideranças políticas mais conscientes despertem para o impasse a que chegamos e se mobilizem para a retomada da tramitação regular do Estatuto. Para tanto, é necessária vontade política e disposição de todos os Senhores para agilização do processo de revisão e, se for o caso, da subseqüente aprovação do projeto na íntegra.

Segundo dados colhidos junto ao Instituto Socioambiental, todo o processo de homologação e demarcação das terras indígenas está congelado desde a posse do novo Presidente da República.

De acordo com o mesmo Instituto, vinte e sete processos aguardam, desde o ingresso no novo Governo, a homologação de terras demarcadas. Dessas vinte e sete, no mínimo, três aguardam homologação desde os anos de 1980. Os Tikuna, no Alto Solimões, são, de longe, os mais prejudicados, pois aguardam nada menos do que a homologações de nove áreas já demarcadas.

No Estado do Rio de Janeiro - o meu Estado - os Guarany Mbyá, que conseguiram, depois de muito esforço, a demarcação de suas terras pela FUNAI, em 1994, reivindicam, com muita legitimidade, o encerramento de todo o processo para que, finalmente, possam viver tranqüilos com suas famílias sobre os solos de Parati Mirim, Guarani de Araponga e Guarani de Bracuí.

É humanamente inadmissível e politicamente desalentador que se venha com medidas protelatórias no que se refere à continuidade das demarcações e à continuidade da tramitação do Estatuto das Sociedades Indígenas no Congresso Nacional, dificultando e atrasando as emissões das Portarias de delimitações das terras já fisicamente demarcadas pela FUNAI.

Vele lembrar que foi o próprio Presidente Fernando Henrique Cardoso quem pronunciou, em seu discurso de posse, as seguintes palavras: "Vamos assegurar com energia direitos iguais aos iguais... Aos grupos indígenas, alguns deles testemunhas vivas da arqueologia humana, e todos testemunhas da nossa diversidade... Vamos fazer da solidariedade o fermento da nossa cidadania em busca da igualdade."

Sr. Presidente, Srª. e Srs. Senadores, o dezenove de abril constitui, na verdade, um pretexto simbólico por meio do qual a voz da sociodiversidade se manifesta para reivindicar espaço entre as prioridades das políticas públicas. Nessa linha, cumpre ao Senado Federal não só restabelecer um diálogo mais justo com as "outras nações", compreendidas na Federação, que não se podem fazer representadas, como também promover a discussão e a aprovação do Estatuto das Sociedades Indígenas.

Do Executivo, espera-se que haja maior sensibilidade e agilidade no trato da política indigenista que se pretenda implementar. É preciso que não se interrompa o processo de demarcação das terras, nem se obstrua o andamento da tramitação do Estatuto no Congresso Nacional.

Por fim, cabe à sociedade brasileira, como um todo, envolver-se com mais interesse e disposição no universo de nossa diversidade cultural, a ponto de se buscar um relacionamento mais harmônico, tanto afetiva quanto intelectualmente, com as nossas sociedades indígenas.

Este seria o meu papel, e o faço, neste momento, desta Tribuna, porque entendo que já não precisamos mais dos discursos, não precisamos mais que as nossas escolas públicas, neste dia, façam das nossas crianças índios, que vão para casa com uma peninha na cabeça, mas que os compromissos com essa comunidade não sejam assumidos por nós. Nós que detemos o chamado código do dominante, que detemos e que absorvemos a língua do colonizador; nós que temos um espaço não apenas de denúncia mas no qual podemos, de uma certa forma, politicamente garantir esses direitos, não poderíamos, neste dia, deixar um pouco de lado esse discurso para o "bom selvagem", fazendo a nossa denúncia com uma indignação de solidariedade, para que esta Casa possa resgatar, com todo o seu sentimento e compromisso político, esse Estatuto e fazer valer esse direito. Não é um compromisso apenas desta Casa, foi também assumido pelo Presidente da República e será um compromisso assumido por cada um de nós, que somos representantes de cada um dos nossos Estados, representantes do interesse da União, representantes desse povo brasileiro e dessa comunidade que se caracteriza, pela sua cultura, como a maior responsável para representar o nosso chamado território nacional.

O Sr. Coutinho Jorge - Permite-me V. Exª um aparte?

A Srª Marina Silva - Permite-me V. Exª um aparte?

A SRª BENEDITA DA SILVA - Concedo o aparte ao nobre Senador Coutinho Jorge; em seguida, eu o concederei à nobre Senadora Marina Silva.

O SR. PRESIDENTE (José Sarney) - Senadora Benedita da Silva, V. Exª dispõe de 02 minutos para terminar o seu discurso.

A SRª BENEDITA DA SILVA - Darei 01 minuto a cada um deles e concluirei, Sr. Presidente.

O Sr. Coutinho Jorge - Senadora Benedita da Silva, parabenizo V. Exª pelo oportuno discurso homenageando os nossos índios, sobretudo trazendo as inquietudes e preocupações de V. Exª em relação à política para com o índio brasileiro. Ressalto a V. Exª que, em relação ao problema de demarcação de reservas indígenas na Amazônia, existe o Programa Piloto de Florestas Tropicais. Esse programa é financiado pelos países do G-7, no valor de 250 milhões de dólares, já aprovado por este Senado, praticamente a fundo perdido, que contempla 30 milhões de dólares para concluir a demarcação das reservas indígenas da Região Amazônica. O que quero dizer a V. Exª é que hoje o Governo deu um instrumento financeiro, no caso da Amazônia em especial, para concluir a demarcação daquela reserva. Faltam, portanto, determinação e vontade política para fazê-lo. Esse projeto, esse programa existe; há recursos internacionais a fundo perdido, e a sua denúncia é importante, para alertar o Governo no sentido de que ele precisa cumprir o seu compromisso internacional, assinado com os países do G-7 da Comunidade Européia. Era este o aparte que queria trazer a V. Exª, parabenizando-a pela oportunidade e conteúdo de seu discurso, lembrando que temos meios e instrumentos para solucionar essas preocupações, sobretudo no que diz respeito à demarcação das reservas indígenas no Brasil, particularmente na Amazônia. Meus parabéns a V. Exª.

A SRª. BENEDITA DA SILVA - Agradeço o aparte de V. Exª e também a benevolência da Mesa, lamentando profundamente, Senadora Marina Silva, que eu não tenha mais tempo para conceder-lhe o aparte.

Era o que tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 20/04/1995 - Página 5728