Discurso no Senado Federal

REFLEXÃO SOBRE A APOSENTADORIA ESPECIAL PARA OS JORNALISTAS.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
IMPRENSA.:
  • REFLEXÃO SOBRE A APOSENTADORIA ESPECIAL PARA OS JORNALISTAS.
Publicação
Publicação no DCN2 de 31/05/1995 - Página 9210
Assunto
Outros > IMPRENSA.
Indexação
  • TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO, ARTIGO DE IMPRENSA, PUBLICAÇÃO, JORNAL, JORNAL DO BRASIL, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), AUTORIA, ZUENIR VENTURA, ESCRITOR, JORNALISTA, RELAÇÃO, INCLUSÃO, NOME, CATEGORIA PROFISSIONAL, IRREGULARIDADE, REIVINDICAÇÃO, DIREITOS, APOSENTADORIA ESPECIAL, RESULTADO, ARBITRARIEDADE, AUSENCIA, CRITERIOS, IMPRENSA, COMPROMETIMENTO, REPUTAÇÃO, PROFISSIONAL LIBERAL, PROFISSIONAL AUTONOMO, PAIS.
  • COMENTARIO, CONVENIENCIA, POLITICO, JORNALISTA, ANALISE, COMPLEXIDADE, MATERIA, NECESSIDADE, DISCUSSÃO, INJUSTIÇA, DANOS, PESSOAS, RESULTADO, FALTA, ETICA, MEIOS DE COMUNICAÇÃO, LUTA, OBTENÇÃO, AUDIENCIA, OPINIÃO PUBLICA.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, é do conhecimento de todos uma interessante e instigante crise surgida no seio da atividade jornalística brasileira. Alguns jornalistas, utilizando-se do direito que lhes dava uma lei relativa aos atingidos por razões políticas, entraram com um pedido de aposentadoria especial. Adiante, as próprias organizações jornalísticas foram as primeiras a levantar a existência de outros jornalistas, que, de certa forma, teriam se aproveitado dessa lei para obter auxílios relativos às aposentadorias especiais.

Como alguns jornais e revistas publicaram a lista de todos os nomes, evidentemente que o meio jornalístico se viu abalado nas entranhas, particularmente porque da lista constavam nomes de jornalistas altamente qualificados, pessoas respeitáveis e respeitadas pela própria classe.

Essa matéria nos convoca a uma reflexão, e esta minha presença na tribuna não tem nenhum outro objeto senão o de uma reflexão. A partir do momento em que jornalistas qualificados foram envolvidos numa lista, juntamente, ao que parece, com outros que se aproveitaram de um benefício legal para uma aposentadoria especial, abre-se dentro da imprensa uma discussão deveras interessante.

No sábado último, no Jornal do Brasil de 27 de maio, o jornalista Zuenir Ventura, um dos mais qualificados jornalistas e escritores de sua geração, publica um artigo intitulado Perdas e Danos, para o qual, desde já, peço a transcrição nos Anais desta Casa, porém em relação ao qual eu gostaria de aludir a alguns tópicos.

Diz o jornalista:

      "De repente, você acorda no meio de um escândalo - assim como se estivesse num vôo com alguns passageiros em situação irregular e todos passassem a ser investigados para se descobrir os culpados. No dia seguinte, o seu nome aparece na imprensa entre os suspeitos. Pronto, o estrago está feito. Haverá sempre alguém para dizer: "E Fulano, hein, na lista das fraudes!" Como na velha história, você será sempre "o cara metido naquele crime", por ter passado na hora do assassinato.

      Não deixa de ser engraçado - conquanto que não seja com a gente. Quando se trata, porém, de alguém que morre de medo de transgredir, e nem tanto por virtude, mas por pânico mesmo, sentir-se sob suspeita é um mal-estar estranho. Mistura a sensação de absurdo com dor de nervo-exposto na alma - e uma boa dose de risível paranóia.

      É fácil dizer: "Que bobagem, então as pessoas não te conhecem?" Não adianta. Você tende a dramatizar, fica grandiloqüente, pensa em reputação inatacável, em "construção" de biografia na qual você, todo prosa, trabalhou 64 anos, essas vaidades tolas. Se ainda por cima tem um ego mal-acostumado pelos afagos, aí então parece o fim do mundo.

      Três semanas atrás, escrevendo aqui sobre a arrogância no jornalismo, eu dizia que muita gente hoje tem mais medo de ser condenada pela imprensa do que pela Justiça, já que esta tem regras fixas e instâncias de apelação. O poder da imprensa é arbitrário e seus danos irreparáveis. O desmentido nunca tem a força do mentido. Na Justiça, há pelo menos um código para dizer o que é crime; na imprensa" - não há um código -", não há norma nem para estabelecer o que é notícia, quanto mais ética. Mas a grande diferença é que no julgamento da imprensa as pessoas são culpadas até prova em contrário".*

Interrompo a leitura desse lúcido parecer do jornalista Zuenir Ventura para traçar um doloroso paralelo com a atividade política.

Devo confessar-lhes, Srªs e Srs. Senadores, que, ao ler texto tão luminoso, de alguém que estava ferido por - apesar de uma carreira de alta limpeza e dignidade - aparecer numa lista com outros nomes, para dizer-lhes que a cada parágrafo sentia-me representado no artigo. Mas não me sentia como pessoa isoladamente, como político, sentia a cada um de vós, Senadores, que, como diz o texto de Zuenir Ventura, "de repente você acorda no meio de um escândalo - assim como se estivéssemos num vôo com alguns passageiros em situação irregular e todos passassem a ser investigados para se descobrir os culpados".

Quanta vez a classe política de repente vê-se envolta num escândalo, ou não num escândalo, na meia verdade; ou não na meia verdade, na nota conotativa, que quer dizer algo ligado pela redação à conotação, a um fato que não está presente sequer no texto, o escândalo, a meia verdade, o conotativo?... Mas quanta vez o indício é tomado como sintoma, e o sintoma é tomado como fato?

Na Justiça há mecanismos seculares de análise dessa matéria. Para isto existem os tribunais. No corre-corre, porém, do noticiário de cada dia quem pára? Quem julga? Quem é a instância capaz de colocar indício como indício, sintoma como sintoma, fato como fato? De quantos fatos está composto o noticiário médio despejado sobre esta Nação nos dias de hoje? Talvez muito menos fatos do que indícios, do que sintomas, do que meias verdades.

Tenho a experiência de haver visto na vida - e falo neste momento como jornalista - a junção de meias verdades a conduzir o raciocínio a uma conclusão absolutamente falsa, porque a meia verdade possui esse condão maldito, qual seja o de, pela verossimilhança, fazer supor ser verdadeiro o que apenas tem as características da verdade ou de um pedaço dela.

A reflexão, portanto, que desejo fazer com esta Casa, pelo menos com os Senadores que me honram com a sua atenção, é a de que esta crise vivida dentro da imprensa brasileira, por alguns de seus principais nomes, talvez tenha o condão de levar a imprensa e a todos nós a uma meditação mais profunda sobre a natureza íntima, interna do tratamento da matéria jornalística na contemporaneidade.

Trago, neste momento, o meu ponto de vista. Estamos vivendo tempos não mais da notícia como informação, mas como espetáculo. A notícia como espetáculo não é regida pelas regras da informação, mas pelas regras do espetáculo. E, portanto, é regida pelas regras da dramaticidade.

O espetáculo se caracteriza exatamente por uma forma ilusória com base na verdade, capaz de comover, capaz de mover, capaz de impressionar, capaz de retirar o cidadão da sua passividade e colocá-lo numa atitude positiva ou negativa de adesão ou rechaço. Mas o espetáculo se destina a tirar as pessoas de sua passividade e inundá-las com dados e elementos de natureza emotiva, capazes de sacudir a pessoa, de mobilizá-la na sua atenção.

Então, para o espetáculo é importante a ênfase, para o espetáculo é importante a contradita, para o espetáculo é importante o antagonismo, para o espetáculo é importante o escândalo, para o espetáculo é importante a falcatrua, para o espetáculo é importante o bizarro, para o espetáculo é importante o grotesco, para o espetáculo é importante o feérico.

A partir do momento em que temos a notícia como espetáculo no lugar da notícia como informação, temos fundamentalmente uma alteração substancial no modo de comportamento de uma sociedade, porque ela se acostuma gradativamente a esse tipo de consumo de notícia como espetáculo, não mais aceitando a notícia como informação.

E o hábito gerado no receptor da comunicação acaba por torná-lo o verdadeiro agente da comunicação; passam a ser comuns frases como: dá-se a violência porque o leitor quer a violência, porque o telespectador quer a violência. De fato, se pesquisados forem, leitores e telespectadores revelarão uma preferência pela violência.

Porém, não se está mais a analisar o que motivou esse processo, o que motiva essa preferência, o que faz mobilizar traços sadomasoquistas do comportamento de cada um ou do comportamento das coletividades, e o intercâmbio perverso estabelece-se a partir daquilo que deseja o receptor da comunicação e é alimentado por quem comanda o processo da própria comunicação.

A comunicação, então, sai da instância informativa, com as suas características de objetividade, nem diria imparcialidade até por que ela me parece impossível, mas de objetividade, de vinculação aos fatos, de respeito à individualidade, de preocupação ética com o conteúdo, o sentido e o resultado da comunicação; ela sai desse campo e envereda, como foi dito, pelo campo do espetáculo noticioso, a notícia como espetáculo.

Estamos a viver, não apenas no Brasil, mas, talvez, no mundo inteiro, a presença do espetáculo hiper-real, como o espetáculo do noticiário diariamente despejado sobre a população de todo o mundo.

Como sabem os Srs. Senadores, o Hiper-realismo é um movimento proveniente da Literatura e das Artes Plásticas que se baseia no fato real. E, ao destacar um elemento da realidade, faz com que toda a realidade seja tomada por aquele elemento.

O Hiper-realismo é a tendência mais contemporânea na literatura. A magnífica obra de Rubem Fonseca expressa, com clareza, a força e o vigor do Hiper-realismo.

O Hiper-realismo não é a mentira, nem a verdade, é um pedaço da realidade tomado em lente de aumento, para justificar o todo. Porém esse pedaço da realidade possui tal força, tal pregnância, tal marca, tal intensidade, que a realidade toda é tomada pelo seu detalhe.

Na literatura, o Hiper-realismo funciona como denúncia do horror contemporâneo, da violência, da barbaridade de nossos dias, de todos os delírios humanos. Aliás, é mais fácil e mais eloqüente denunciar pelo Hiper-realismo do que pelas formas até então encontradas pela literatura.

O Realismo já é pequeno como expressão diante do vigor trágico da realidade. As formas românticas estão apartadas da contemporaneidade, porque a contemporaneidade não é regida pelas regras do Romantismo na literatura, na arte em geral. As formas surrealistas, enveredando pelo inconsciente, tiveram o seu tempo de duração.

Talvez restem, hoje em dia, dentre as tendências contemporâneas da Literatura e das Artes Plásticas, o Expressionismo e o Hiper-Realismo.

O Expressionismo significa a tomada do elemento emotivo como predominante. O elemento emotivo é levado ao exagero para que ele expresse a realidade desejada, a ira, a revolta, enfim, algo de grande grau de ênfase.

Costumo apelidar o Hiper-realismo de "a mentira da verdade". Por que verdade? Porque o Hiper-realismo sempre é montado sobre um aspecto da realidade. Por que mentira? Porque a realidade, no seu todo, é tomada pelo seu detalhe; pelo detalhe enfatizado com a finalidade de fazer alguma denúncia.

Pois bem, a meditação que gostaria de fazer em relação à notícia como espetáculo é esta: hoje vivemos a era da notícia como espetáculo hiper-real. A presença do Hiper-realismo se dá desde os comerciais de televisão até a natureza profunda dos noticiários de televisão.

E por que o hiper-real? Porque o hiper-real atende a uma realidade extra-informativa, que é a da competição entre as empresas que produzem informação. Essa competição leva ao caminho da busca da maior audiência ou da maior leitura, que advém da maior densidade dramática, hiper-real, da maior densidade de espetáculo da notícia, ficando para depois os órgãos que apenas informam, ficando para segundo plano os heróicos jornalistas que apenas informam, subindo ao primeiro plano todos aqueles que envolvem a notícia no teor do espetáculo.

As expressões são comuns e corriqueiras para quem freqüenta as redações de jornal: "esquentar a matéria", "aquecer a nota", "está muito fria", "não deu lide". É preciso mobilizar, é preciso impressionar, é preciso levar a realidade até o seu limite expressivo e ultrapassá-lo, colocando sobre o limite expressivo da realidade a hiper-realidade, o espetáculo noticioso.

Essa reflexão, deixo-a no Senado da República, porque tem muito a ver com algo ainda insuficientemente estudado: as relações entre a política e a informação. Situação das mais complexas, que é comandada inteiramente pelo noticiário mais do que pela política.

Aproveito a lucidez de um jornalista qualificado, como Zuenir Ventura, que vê o seu nome, aos 64 anos, envolvido numa lista. Pode haver - e seguramente há - pessoas que se aproveitaram de uma lei, mas ele é uma pessoa de ilibada moral, merece o respeito dos seus companheiros.

Há três semanas, ele escrevia sobre a arrogância do jornalismo:

      "...eu dizia que muita gente hoje tem mais medo de ser condenada pela imprensa do que pela Justiça, já que esta tem regras fixas e instâncias de apelação. O poder da imprensa é arbitrário e seus danos, irreparáveis. O desmentido nunca tem a força do mentido. Na Justiça, há pelo menos um código para dizer o que é crime; na imprensa, não há norma nem para estabelecer o que é justiça, quanto mais ética. Mas a grande diferença é que, no julgamento da imprensa, as pessoas são culpadas até prova em contrário."

Que palavras sábias de alguém que está a viver na própria carne a dor que nós, muita vez, vivemos nesta Casa, o sofrimento pela impossibilidade do desmentido, a transformação das nossas melhores intenções em atitudes menores, irrelevantes quando não o patrulhamento constante.

Quanta vez, Srªs e Srs. Senadores, senti-me acuado diante de uma série de questões? Quantas vezes sentimo-nos todos aqui violentados nas nossas melhores deliberações? Já vivemos situações aqui de votar matérias que já estavam votadas antes pelos meios de comunicação, e fomos simplesmente massacrados.

Agora, essa foice diabólica, infernal, cega, decepa ilusões de jornalistas qualificados, como Zuenir Ventura, que tem um espaço privilegiado no Jornal do Brasil, numa das colunas mais lidas, onde ele pode dizer com grande lucidez tudo isso. Será que esse evento não trará para nós todos numa visão alta, um debate que os próprios jornalistas qualificados - e eles são a maioria - estão interessados em fazer? Será que não haverá, a partir de agora, a possibilidade de um debate dessa matéria? Uma discussão ética, profunda, dessa relação, que ela possa ser fraternal de lado a lado, que ela possa ter os elementos de respeito que são indispensáveis à condição do bom informante; que, diante de uma pergunta, não tenhamos que adotar a posição de nos defendermos; que possamos nos comportar como pessoas que serão julgadas pela opinião pública, sim, mas que não estão sob suspeita de antemão.

Quanta vez sinto, pressinto, percebo, em mim e nos demais, a sensação de estar sendo julgado de antemão! Pode ser que no momento em que a roda cega da injustiça atinge jornalistas da qualidade de Zuenir Ventura, ele e alguns outros, com o seu prestígio, com a sua força nos meios de imprensa, tenham o condão de provocar internamente um grande debate ético sobre esse poder que não é mais o quarto - é o primeiro -, sobre o uso desse poder que, quando imoderado, causa traumas e dores insuperáveis.

E quem está falando não é pessoa atingida habitualmente pela imprensa. Tenho recebido respeito, consideração. Não falo em nome próprio. Sinto que, talvez, estejamos ficando maduros para a análise daquilo que a vertiginosidade do progresso na área da comunicação determinou: a urgência impensada, a notícia como espetáculo, a luta pela audiência.

Creio que cabe à classe jornalística, particularmente aos jornalistas da trincheira, do dia-a-dia, a compreensão de que este nem é um processo deles. É quase sempre um processo das empresas nas quais trabalham e que lhe cabe um certo grau de resistência a este processo, até porque eles são a matéria-prima, eles são a matéria essencial do labor jornalístico.

A maioria dos jornalistas, que é séria, que não concorda com esse expediente, de repente, se vê envolta também numa onda que, em si mesma, pela violência, pelo tamanho, engolfa a todos, num expediente comum, de operar sobre o hiper-realismo, sobre a notícia como espetáculo, muitas vezes não tendo nem como alcançar, calcular os danos, porventura, causados.

São reflexões as que proponho, não são ataques, não são acusações, não é aquela clássica visão menor do político atingido a se defender, não é nada disso. São reflexões que uma Casa como o Senado deve ter, e uma convocação a jornalistas qualificados, do nível do Zuenir Ventura, tantos deles funcionando nesta Casa, diariamente, com muito brilho, honra, talento, para a análise da complexidade desse tema. Esse é um tema de absoluta precisão, de absoluta emergência, aí está, no nosso dia-a-dia, não propriamente a causar danos, exclusivamente aos políticos, mas está a criar no público uma cultura hiper-real, responsável, sabemos, por graus indiscriminados de violência na sociedade, por comportamentos exaltados, pela perda da noção do que é normal, normalidade virando exceção, a enfermidade virando regra.

Muito obrigado aos Srs. Senadores que me honraram com suas atenções.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 31/05/1995 - Página 9210