Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DOS 32 ANOS DA CRIAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE AFRICANA-OUA.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DOS 32 ANOS DA CRIAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE AFRICANA-OUA.
Publicação
Publicação no DCN2 de 26/05/1995 - Página 8773
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA INTERNACIONAL, CRIAÇÃO, ORGANISMO INTERNACIONAL, UNIDADE, CONTINENTE, AFRICA.
  • HISTORIA, ANALISE, ORGANISMO INTERNACIONAL, CONTINENTE, AFRICA, EFEITO, COLONIZAÇÃO, PREJUIZO, NATUREZA ECONOMICA, NATUREZA SOCIAL, NATUREZA POLITICA, PROCESSO, INDEPENDENCIA, RESGATE, CONSCIENTIZAÇÃO, EXISTENCIA, APOIO, OPINIÃO PUBLICA, AMBITO INTERNACIONAL, EXTINÇÃO, APARTHEID.
  • DEFESA, RELEVANCIA, RELAÇÕES INTERNACIONAIS, NATUREZA CULTURAL, NATUREZA COMERCIAL, BRASIL, PAIS ESTRANGEIRO, CONTINENTE, AFRICA, MOTIVO, COMISSÃO DE RELAÇÕES EXTERIORES E DEFESA NACIONAL, SENADO, REALIZAÇÃO, SEMINARIO.
  • HISTORIA, NEGRO, BRASIL, CULTURA AFRO-BRASILEIRA, DEFESA, NECESSIDADE, DIVULGAÇÃO, CONTINENTE, AFRICA.

A SRª BENEDITA DA SILVA (PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, hoje é dia da África. Há exatos trinta e dois anos, precisamente no dia vinte e cinco de maio de 1963, era criada a Organização da Unidade Africana - OUA -, a mais numerosa das organizações do chamado Terceiro Mundo. O histórico encontro de Chefes de Governo e de Estado em Adis-Abeba, Capital da Etiópia, propiciou a assinatura da Carta Africana, que buscava definir uma nova ordem para o continente.

A criação da Organização da Unidade Africana representou "o primeiro passo no caminho de uma verdadeira emancipação", tal como se entendia à época. Seu texto constitutivo reafirmava, com ênfase convincente, a necessidade e o valor do conceito da unidade africana para o embate contra o imperialismo e o colonialismo de todos os matizes e em todas as suas formas.

Das resoluções aprovadas na Conferência de Adis-Abeba, julgo conveniente destacar: a luta contra o Apartheid e a discriminação racial; a solicitação de boicote diplomático e econômico da África do Sul e de Portugal; o aceno com o fornecimento de apoio militar interafricano às forças nacionalistas contra os colonialistas.

Constituindo-se em um sistema diplomático razoavelmente eficaz e especificamente africano, a Organização da Unidade Africana instituiu, pouco depois de sua criação, o Comitê de Liberação Africana, com o claro objetivo de coordenar a assistência financeira e o treinamento para os combatentes africanos da liberdade. Tal demonstração de força influiu decisivamente para a mudança da política ocidental em relação a Portugal e à África do Sul.

Pela extraordinária importância da Conferência de Cúpula, transcorrida em momento de acentuada efervescência, que encerrava a primeira etapa do desenvolvimento da África pós-colonial, o vinte e cindo de maio passou a ser comemorado como o Dia da África. Eis, pois, uma data que, a despeito da justa celebração, requer e exige, de todos nós, uma acurada reflexão em torno das circunstâncias históricas que geraram a África contemporânea.

Compreender a África de nossos dias, Sr. Presidente, com toda sua complexa diversidade e inúmeras vicissitudes, é tarefa a ser empreendida com o indispensável auxílio do conhecimento histórico. A história é, seguramente, o único caminho a nos permitir superar as iníquas barreiras impostas pela arrogância, pela ignorância e pelo preconceito.

Por ignorância, é ainda grande o número de ocidentais que acreditam não ter a África uma história.

Por arrogância, ainda há quem pense ter a história africana tido o seu início com a chegada dos europeus.

Por preconceito, ainda estamos sujeitos a ouvir expressões que indicam a "incapacidade africana" de resolver seus impasses.

É esse quadro que, árdua e penosamente, está sendo transformado. O renovado interesse pela África reflete, em boa medida, a emergência de nações independentes no continente. Ao mesmo tempo, multiplicam-se pelo mundo afora vozes solidárias e comprometidas com a construção de uma sociedade fraterna, justa e cidadã.

O primeiro ponto a destacar é que as raízes mais profundas da crise africana estão assentadas na secular exploração colonial. Não há estudioso sério no mundo contemporâneo que desconheça o fato de o passado colonial, a intervenção continuada das antigas potências colonialistas e novas influências estrangeiras serem os maiores responsáveis pelos problemas africanos.

Afinal, contando com 30 milhões de quilômetros quadrados - o que representa 22,5% das terras do globo -, a África possui cerca de um terço dos recursos minerais do mundo: 66% do diamante; 57,5% do ouro; 45% do cobalto; 23% do antimônio e do fosfato; 17,5% do manganês; 15% da bauxita e do zinco; 10% do cromo e do petróleo. Eu disse mundialmente falando!

Esses dados, sem dúvida, explicam a crescente internacionalização da crise africana e o intricado jogo das grandes potências nela envolvidas.

A presença colonial européia em solo africano trouxe conseqüências que, em muito, extrapolam o caráter de exploração econômica. Talvez um dos males mais terríveis da dominação ocidental sobre a África tenha sido a configuração do mapa político da região segundo a ótica e os interesses metropolitanos.

Com efeito, a partilha da África, conduzida pelas potências européias em 1885, no Congresso de Berlim, promoveu uma autêntica "balcanização" da África: fronteiras artificiais, às vezes extravagantes, ora separando etnias homogêneas, ora englobando na mesma área grupos rivais. Quando dos movimentos de independência, viu-se que esse tipo de divisão arbitrária contribuía para dificultar a aproximação dos que lutavam pela emancipação. Assim, a fragmentação jogava a favor do imperialismo.

Creio, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, que a questão crucial que se coloca neste momento é a de saber em que medida o processo de emancipação dos Estados africanos está se completando. Para tanto, é preciso, preliminarmente, desmistificar a tese pela qual as independências se constituíram em ato de doação. Nada mais falso!

A grande historiadora brasileira Maria Yedda Linhares, em livro publicado há alguns anos, chamou atenção para o fato de que "é forçoso reconhecer que o fim dos impérios coloniais dos séculos XIX e XX não resultou de uma decisão metropolitana ou do desejo de abdicação do poder, e sim da capacidade de revolta que é inerente ao oprimido". A conclusão da autora é categórica: "A liberalização do sistema colonial, sobretudo na década de 1950-1960, resultou muito mais de uma necessidade ou de uma imposição do que propriamente de uma escolha unilateral por parte do poder metropolitano mais ou menos democrático, mais ou menos esclarecido ou mais ou menos bondoso. A própria resistência de Portugal à idéia de "descolonizar" pôde ir até o momento em que a revolta das colônias se tornou irresistível e que mesmo os interesses capitalistas garantidos nos seus territórios africanos se defrontaram com a insurreição armada".

O difícil caminho da construção de uma África livre, a partir do final da II Guerra Mundial e, muito especialmente, após a década de 1960, deixou lições preciosas. A primeira delas, por certo, é a de que a solidariedade na luta aproxima e fortalece os povos submetidos à longa exploração colonial.

Nesse sentido, a Conferência de Bandung, em 1955, foi o grande sinal dado pelo mundo afro-asiático de que o apoio mútuo seria pré-condição para a conquista de uma nova ordem. Especificamente em relação à África, a Conferência de Adis-Abeba, oito anos depois, reafirmava o mesmo princípio e avançava em propostas para concretizá-lo.

Parece claro, hoje, que o mais denso, fundamental e complexo desafio enfrentado pelas nações africanas seja o de superar a pesada herança colonial. Em verdade, as marcas do projeto colonizador mostraram-se demasiadamente fortes, de tal modo que a conquista da independência não foi suficiente para apagá-las.

Exatamente por isso, os Estados surgidos com a emancipação política lograram êxito apenas parcial; o maior de todos os desafios consiste em promover a reorganização do Estado, orientando-o para as reais demandas da sociedade civil.

O importante, Sr. Presidente, é que há uma crescente conscientização, por parte dos povos que sofreram a dominação colonial, de que na raiz do racismo e da alienação cultural situa-se o esteio de sustentação das estruturas coloniais: a brutal e brutalizante exploração do homem pelo homem.

Ter consciência disso é o primeiro e insubstituível passo para construir-se a nova sociedade em bases justas, livres e democráticas. A África, que sofreu o mais duro e completo processo de espoliação que se conhece - em homens, recursos materiais e valores culturais -, está respondendo ao desafio. Sua verdadeira história começa a ser escrita pelos africanos. A própria memória coletiva de um passado comum, antes apagada ou suprimida, vai sendo resgatada.

Talvez resida nesse ponto o mais interessante aspecto a ser celebrado nesta data festiva: a prodigiosa força que brota do íntimo de povos que, submetidos, subjugados e espoliados, levantam-se para construir, eles próprios, a sua História.

O espaço de tempo entre o início do desmonte dos impérios coloniais na África e os dias de hoje - espaço pequeno se comparado com os séculos de dominação - é o bastante para garantir a irreversibilidade de um movimento que subverteu o mapa político do mundo. Se, num primeiro momento, a meta era a conquista da libertação nacional, hoje, o objetivo é a estruturação de um Estado voltado para a Nação, identificado com os anseios da maioria da população.

Se grande é o desafio, maior é a vontade de enfrentá-lo e vencê-lo. A amparar e apoiar essa luta está presente a opinião pública mundial. A mobilização, em todos os continentes, pelo fim do Apartheid e pela libertação do Líder sul-africano Nelson Mandela é exemplo emblemático de uma sociedade que não admite pactuar com a intolerância e o preconceito.

O êxito da luta dos povos africanos é a vitória de todos os que, em qualquer parte do mundo, acreditam na liberdade, na justiça e na democracia como razão de ser da História.

Sr. Presidente, trago um outro assunto à tribuna:

A Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional realizou hoje um seminário sobre a importância do relacionamento comercial e cultural entre o Brasil e países africanos. O Presidente da Comissão, Senador Antonio Carlos Magalhães, sensível à proposta apresentada, conduziu com responsabilidade o seminário, que entendo ser muito importante.

Sr. Presidente, quero falar da inegável significação do relacionamento cultural e comercial do Brasil com os países do continente africano, que certamente trará para nós um enriquecimento não apenas histórico.

A História nos aproxima. Os africanos construíram o Brasil. Foi o suor negro que cultivou as grandes plantações de cana-de-açúcar, que fizeram a riqueza desta imensa colônia no século XVII. Mudado o ciclo econômico, o mesmo sangue trouxe à luz o ouro, a prata e o diamante das novas terras em exploração.

O negro transplantou para cá sua cultura. O Olimpo africano até hoje povoa museus, movimenta centros de candomblé e umbanda, alimenta o imaginário da literatura. A língua portuguesa tem incontável contribuição do léxico do povo que para cá veio à força, sobrevivendo ao banzo. A música confunde os dois continentes num só ritmo.

Já se definiu o Brasil como a terra do futebol, carnaval e samba. Futebol é inglês. Mas carnaval e samba trazem a marca e o ritmo requebrado da África.

Qual é a comida típica brasileira? Aquela que, olhada, traz a marca registrada do Brasil? Aquela que não parece de segunda mão, cópia malfeita ou bem-feita de pratos portugueses, espanhóis, franceses ou italianos?

É a comida da senzala; é a feijoada, feita de carnes que a casa grande desprezava; é o vatapá, o caruru, o xinxim; é o acarajé; é a cocada.

Não vou me estender, Sr. Presidente. Quis apenas lembrar o óbvio, que salta à vista, ao cheiro, aos ouvidos, ao coração; lembrar o papel primordial da África na formação da textura sócio-econômica brasileira.

Tantos pontos em comum abrem caminho para o estreitamento de relações em todos os sentidos. Amplas áreas estão a exigir ações práticas e objetivas.

Uma delas é uma política de divulgação. Ouso dizer que o povo brasileiro não conhece a África. A imagem veiculada pela mídia mostra países devastados pela fome, pelas guerras, pelas pragas, pelos mais letais vírus que a humanidade conhece.

A África tem isso, mas não é isso. Ou não é só isso. Como reverter esse quadro preconceituoso criado ao longo de séculos?

Só encontro uma resposta. Propiciar um conhecimento mais profundo sobre o continente africano. A ignorância é a raiz dos preconceitos, que criam barreiras claras ou veladas entre os povos.

Por que não introduzir nos currículos escolares - já no primeiro grau - a disciplina História da África? O brasileirinho descobrirá que tanto nós quanto eles lutamos contra o colonialismo, derramamos muito sangue na busca da liberdade e da dignidade humanas.

Os acordos culturais também precisam ser intensificados. Queremos conhecer os artistas plásticos, os cantores, os poetas, os ficcionistas, os museólogos, os etnólogos, o folclore africano; e os africanos querem conhecer os brasileiros.

Esse desejo ou, até diria, imposição dos novos tempos vem ao encontro dos objetivos e prioridades da política externa brasileira na África. Cito quatro deles:

a - intensificação dos laços culturais, econômicos, comerciais e políticos;

b - reforço da idéia de que a cooperação com o Brasil é desprovida de intenções hegemônicas, em contraste com a experiência vivida com os países do chamado Primeiro Mundo;

c - sedimentação da imagem brasileira de combate intransigente ao racismo, reafirmada sempre pela condenação histórica ao Apartheid;

d - maximização das forças de apoio ao crescimento africano, sem assistencialismo, tendo em vista o enorme potencial da África e a certeza de que, a longo prazo, o desenvolvimento brasileiro se confundirá com o do continente africano.

A diplomacia, Sr. Presidente, aplanou terrenos. A continuada e coerente atuação pelas grandes causas africanas de combate intransigente à discriminação racial e ao colonialismo e de luta pela superação do subdesenvolvimento propiciou a solidez de uma indispensável base política.

Dezessete embaixadas residentes no continente africano permitem conhecer melhor a realidade africana e aprofundar o relacionamento cultural, comercial e tecnológico, tão necessário nestes tempos de globalização econômica.

O Brasil já atingiu elevado nível de desenvolvimento industrial e tecnológico, que pode - e deve - ser colocado à disposição dos países africanos. Na esteira da cooperação técnica, o papel que o Brasil pode executar é de primeira grandeza.

A agricultura é um deles. A extensão continental obrigou nosso País a diversificar as culturas e buscar soluções para os diferentes desafios do clima, do solo, da vegetação. Com problemas semelhantes aos de muitos países africanos, é hora de estreitar a cooperação no campo da planificação, concepção e gestão de políticas agrícolas.

Digo estreitar, Sr. Presidente, porque desde a década de 70 o Brasil participa de programas de cooperação técnica nas áreas de agricultura e educação. A crise da década de 80, que atingiu tão duramente os países latino-americanos e africanos, freou o ímpeto do processo.

Agora, atenuada a crise, é hora de nos valermos de fórmulas criativas e compensatórias para intensificar a cooperação em outros setores, como administração pública, energia, transportes, siderurgia, metalurgia, comunicações, construção civil, criação de pequenas e de médias empresas.

A Nigéria, para citar um exemplo, foi, há dez anos, nosso terceiro parceiro comercial. Vinha atrás dos Estados Unidos e do Iraque.

Hoje, a situação mudou. O abandono dos esquemas contracomércio, a tenaz oposição dos parceiros tradicionais daquele país e os problemas financeiros redimensionaram, drasticamente, o comércio bilateral.

Já fomos o segundo fornecedor mundial do Zaire. Nossas relações com a Costa do Marfim e o Senegal conheceram dias melhores.

A África Austral tem significado especial para o Brasil. Ali estão Angola e Moçambique, a África do Sul e a recém-criada Namíbia, países que guardam estreita relação histórica, cultural ou comercial com o Brasil.

A criatividade se impõe nesta hora. Novos esquemas de cooperação técnica e industrial poderão permitir ao Brasil reconquistar, ampliar e diversificar posições no continente.

A África, Sr. Presidente, nobres Srs. Senadores, é uma fronteira em expansão. Marquemos presença naqueles limites. Nós, Parlamentares, temos responsabilidade nessa tarefa. Não nos omitamos. O momento é agora.

Na Comissão de Relações Exteriores, por ocasião de um seminário realizado hoje, nós tivemos, por parte do nosso Ministro de Relações Exteriores, a palavra firme de que o Governo Federal se interessa e dá prioridade a um parceiro recente, que é a África do Sul, para iniciar o processo de ampliação da parceria com o nosso País junto aos países africanos, para um desenvolvimento econômico, para um desenvolvimento das nossas relações culturais e para que haja harmonia, para que haja, realmente, a paz entre as etnias, entre os países, e que as nossas diferenças não sejam constituídas em desigualdades.

Que nós possamos, com todo ardor e política, fazer com que o Brasil corra, e vá mesmo à frente para liderar esse processo integrado de parceria econômica com a África do Sul e os demais países de nossa tão querida e sofrida África.

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente. (Muito bem!)


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 26/05/1995 - Página 8773