Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM DE PESAR PELO FALECIMENTO DA SRA LAURA DANTAS ANDRADE PINTO.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM DE PESAR PELO FALECIMENTO DA SRA LAURA DANTAS ANDRADE PINTO.
Publicação
Publicação no DCN2 de 22/06/1995 - Página 10658
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, LAURA DANTAS ANDRADE PINTO, MÃE, ORADOR.

O SR. LAURO CAMPOS (PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, por coincidência, tivemos hoje um dia em que festejamos, de um lado, Eros, a vida, através do retorno do Senador Sebastião Rocha e dos natalícios do companheiro Eduardo Suplicy e da Senadora Júnia Marise; de outro, os necrológios feitos e os panegíricos tecidos em torno da morte de dois Deputados, um Estadual e outro Federal, por Senadores representantes do Ceará, principalmente pelo Senador Lúcio Alcântara.

Eu gostaria de aproveitar esse clima para fazer aqui uma abertura de certas sensações, de certas emoções que deveriam encontrar, talvez, outros canais mais propícios de externação do que o plenário do Senado. Mas, ficamos o dia inteiro nesta Casa e não temos como manifestar certos sentimentos que a vida faz penetrar na nossa sensibilidade.

No mês passado, perdi alguém que foi para mim uma segunda mãe. Por coincidência, a minha segunda mãe se parecia muito e tinha afinidades com a minha mãe biológica. Tenho em mãos duas cartas: de uma, apenas os seus trechos finais que dirigi uma certa ocasião em que a angústia e o medo tomaram conta da minha pessoa. E, talvez, tenha procurado encontrar algum reconforto na lembrança de minha mãe natural, de minha mãe biológica.

À noite, minha solidão escuta, no barulho infinito do mar, a totalidade dos sons da natureza. Assustei-me pela primeira vez em que esta denominação sonora se apoderou de mim. Desci e procurei pelos vizinhos algum rádio, televisão ou grupo musical. Nada. Eu estava completamente só nestas cem casas e nestes quilômetros de areia e água. Eu me encontrava escondido.

Voltei à janela e, de novo, a totalidade sonora que devem sentir os místicos ao se identificarem com a natureza que lhes pronuncia o "om" sagrado e cósmico, os mortos que refletem na algidez dos lábios a universalidade do silêncio de sua paz interior e os poetas e músicos nos seus momentos de levitação inspiratória, de transcendência e de libertação criadora, me envolveu em suas bachianas de Chico Buarque, em seus cânticos gregorianos de serestas de Ouro Preto e Diamantina, em quartas sinfonias de Caymmis, nos dengue-delê folclóricos de Mozarts desconhecidos.

E havia sinos de templos submersos, órgãos de catedrais atlantes, ondas sonoras de espumas e risos que uma louca genialidade ignorada de si mesma, sem afetação, naturalmente, articulava por esta boca linda e negra do mar imenso.

      De manhã, quando o sol domina a imensidão aquática e as gaivotas, setas arrependidas de seu itinerário, deixam de ondear por sobre as ondas e se precipitam céleres, retas e decididas na verticalidade implacável de sua queda; de manhã, quando se esmeralda em alegria e agitação a quietude do breu, quando o crepe soturno do mar noturno renasce magicamente infantil, puro e sem mentiras, agitando, menina, sua saia verde com babados de ondas brancas e singelas; é então que este despertar da visão torna inaudível aquela totalidade sonora; de manhã, ela inexiste ou pertence à outra personalidade do mar, desconhecida e profunda.

      Se eu fosse poeta ou músico, expressaria o que se passa quando o mar cósmico e noturno entoa sua música da qual a nossa é mera representação, esquema metodizado, sinótico e humanamente limitado e pobre.

      Venha, com seus olhos de poesia, ver e ouvir estas coisas que alma do mundo expressa.

      Lauro."

Tinha também aqui uma outra carta, que certa ocasião dirigi a minha outra mãe, aquela que procurei, e encontrei, pelos laços não da biologia, mas da afinidade, da compreensão mútua e do respeito.

Eu tinha 17 anos de idade e ela me telefonava perguntando e pedindo meus conselhos, como, por exemplo, em qual colégio matricular seus filhos, como tomar esta ou aquela decisão. Eu era um menino de 17 anos e ela tinha, entre outros conselheiros possíveis, o Senador Milton Campos, que era seu cunhado. Mas ela me procurava para socorrê-la nesses momentos. Foi, então, que me senti homem aos 17 anos.

O SR. PRESIDENTE (Antonio Carlos Valadares) - Gostaria de avisar ao nobre orador, muito embora seu discurso seja carregado do brilhantismo que sempre o caracteriza na tribuna, que o tempo da sessão está esgotado há dois minutos. V. Exª tem um minuto para terminar.

O SR. LAURO CAMPOS - Para encerrar, lerei a carta que escrevi para D. Laura Dantas Andrade Pinto, que faleceu no mês passado. E quem tem duas mães tem duas alegrias, mas chora duas vezes.

      "Brasília, 19 de novembro de 1992.

      Minha santa e querida Dona Laura,

      Há certos momentos em que a vida parece se condensar de forma que os poros do tempo, os instantes vazios e perdidos desaparecem. A vida é, então, intensa e plenamente vivida. Esses raros períodos de nossa existência são reveladores de parte dos mistérios infinitos do mundo, trazem à tona da consciência potencialidades latentes, permitem que falem e se expressem vozes mudas e emoções dormentes. Assim foi, para mim, o mês de novembro, quando, em vez de uma viagem tola, de turismo mercantilizado, superficial, geográfico e chão, fiz uma viagem pelo tempo, um percurso emocional do passado, um turismo que me fez levitar pelos caminhos da sensibilidade da cultura.

      E foi a senhora, D. Laura, que me deu o impulso inicial, e foi a senhora o princípio dessa maravilha. Comoveu-me tanto o nosso encontro, surpreendeu-me e engrandeceu-me tanto saber tão bem querido pela senhora que a satisfação plena, a alegria infantil que senti veio, de mãos dadas, com a sensação de humildade. Sinto que não mereço ser o objeto de seu maternal afeto. Se, até hoje, fui um filho distante, um filho mau, prometo que darei o melhor de mim para merecer ser o seu filho atemporal, o que não veio pela maternidade biológica mas pelos passos do conhecimento mútuo, do respeito, da compreensão e da amizade.

      Quando escrevo para a senhora, D. Laura, está ao meu lado, como uma parceira luminosa, a minha outra mãe, Dolores, amável, tranqüila e brilhante como a senhora conheceu e sabe. E é então que me sinto radiante, alegria potencializada, sublimação amorosa, e a plenitude beatificada me envolve. Quem poderia merecer neste mundo a graça ímpar de ter duas mães abençoadas e de tão elevado e sublime porte? Certamente que eu, apenas eu, não poderia esperar tamanha sorte.

      Transformar em palavras o silêncio do que não foi dito durante tantos anos de separação imperdoável é o que desejaria fazer. Mas, D. Laura, o tempo que nos levou tantas pessoas e coisas preciosas é o mesmo que nos brindou com novos afetos, com emoções rejuvenescidas, com sabedoria decantada. Mas ele já me levou a força e a energia que a emoção de continuar a escrever, agora, para a senhora, consumiria intensamente. Por isso, paro aqui de escrever, mas continuo, como sempre fiz, a pensar na senhora, em seus gestos, em sua postura, em sua delicadeza comigo, desde os tempos em que eu era criança.

      Beijo suas mãos, seu filho primeiro, o mais velho.

Lauro."

Agora, no mês passado, com a Bíblia nas mãos, passou do sono para a eternidade aquela que foi uma das santas mães que eu tive o privilégio de ter nesta minha modesta vida.

Quem tem esse privilégio tem que pagar seu preço, tem que chorar e prantear duas ausências impreenchíveis.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 22/06/1995 - Página 10658