Discurso no Senado Federal

SOLICITANDO A REJEIÇÃO DOS VETOS PRESIDENCIAIS SOBRE A MATERIA QUE REGULAMENTA A DEFENSORIA PUBLICA.

Autor
Ademir Andrade (PSB - Partido Socialista Brasileiro/PA)
Nome completo: Ademir Galvão Andrade
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
JUDICIARIO.:
  • SOLICITANDO A REJEIÇÃO DOS VETOS PRESIDENCIAIS SOBRE A MATERIA QUE REGULAMENTA A DEFENSORIA PUBLICA.
Aparteantes
Humberto Lucena, Lúcio Alcântara.
Publicação
Publicação no DCN2 de 15/06/1995 - Página 10375
Assunto
Outros > JUDICIARIO.
Indexação
  • CONCLAMAÇÃO, SENADOR, REJEIÇÃO, VETO (VET), ITAMAR FRANCO, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, LEGISLAÇÃO, REGULAMENTAÇÃO, DEFENSORIA PUBLICA, CUMPRIMENTO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, PROTESTO, MANIPULAÇÃO, ASSUNTO, MEIOS DE COMUNICAÇÃO.
  • ANALISE, CRITICA, VETO (VET), LEGISLAÇÃO, REGULAMENTAÇÃO, DEFENSORIA PUBLICA.

O SR. ADEMIR ANDRADE (PSB-PA. Como Líder. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, daqui a alguns dias, o Congresso Nacional terá em suas mãos a incumbência de decidir a questão da Defensoria Pública Brasileira. A Lei Complementar nº 80, que regulamenta e organiza a existência do órgão, recebeu nada menos do que 25 vetos do Poder Executivo. Este grande número de vetos significou um obstáculo na luta pelo cumprimento dos direitos constitucionais no Brasil.

Sem qualquer compromisso diante do que prescreve a Constituição Federal, o ex-Presidente da República Itamar Franco praticamente invalidou o espírito fundamental em que se inspirava a lei. Refiro-me especificamente à cassação do dispositivo que assegura o direito da isenção, da autonomia, da independência da Defensoria Pública, que nós classificamos como o mais absurdo dos vetos.

Afinal de contas trata-se, acima de tudo, do cumprimento de uma determinação constitucional que propõe prover os cidadãos mais carentes do legítimo acesso à justiça. Prestar assistência jurídica gratuita à população economicamente menos favorecida é dever insubstituível dos Estados democraticamente constituídos.

E o Brasil teve esse direito reconhecido quando nós, os Parlamentares Constituintes de 1986, redigimos, neste mesmo Congresso Nacional, o art. 134, que declara: "A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV."

Entretanto, em função das alterações radicais do Governo no projeto encaminhado pelo Poder Legislativo, os 25 vetos se prestaram, de fato, a aniquilar com os propósitos constitucionais de se implantar uma instituição de fundamental importância para a estabilidade da democracia no País. Os prejuízos são incalculáveis para o processo de resgate da credibilidade do estado de Direito no Brasil, caso o Congresso concorde com tamanha aberração.

Sr. Presidente, nossa mobilização em torno da rejeição dos vetos e pela permanência integral do projeto original deve ser intransigente. Não há meios termos na discussão. Não há justificativa plausível que sustente a necessidade dos vetos como condição indispensável à existência da Defensoria Pública.

Pelo contrário, numa atitude muito suspeita, a oposição desses vetos corresponde a uma mensagem muito clara: o Governo não se interessa pela regulamentação do dispositivo constitucional, nem quer ver o cidadão comum munido de um instrumento político tão valioso. Nas entrelinhas, podemos constatar as verdadeiras intenções despóticas do Governo.

Isso é um autêntico atentado contra os preceitos de cidadania que fundamentam os princípios da Carta Magna. E, portanto, merece não só nossa desconfiança e nossa crítica como também nossa mais veemente manifestação de repúdio.

Isso deve ser materializado na forma mais transparente de rejeição aos vetos impostos à Lei Complementar nº 80. Quando for colocada em votação no Congresso Nacional, a matéria vai suscitar - tenho certeza - a nossa mais profunda indignação, pois seu excessivo retalhamento, executado pelo ex-Presidente Itamar Franco, despreza os propósitos mais essenciais da Lei.

Apesar de aparentemente extensos, os cento e quarenta e nove artigos da Lei Complementar nº 80, em sua íntegra, representam a formalização legal mais acertada para o funcionamento da Defensoria Pública. De sua instalação dependem milhares de cidadãos brasileiros carentes ou desprovidos de recursos suficientes para se defenderem ou serem representados em ações jurídicas e judiciais.

O Sr. Lúcio Alcântara - Permite-me V. Exª um permite aparte, nobre Senador Ademir Andrade?

O SR. ADEMIR ANDRADE - Pois não, nobre Senador Lúcio Alcântara.

O Sr. Lúcio Alcântara - Ouço com muita satisfação o discurso de V. Exª. O Senador Valmir Campelo e eu - e possivelmente outros Companheiros também -, em mais de uma oportunidade, e agora V. Exª, com a veemência e o brilho de sempre, temos trazido à discussão e ao conhecimento da Casa o que está se passando com a Defensoria. Na verdade, há um defensor: Dr. Jurandir Porto, que está investido inclusive de um mandato. Há uma lei com todos esses vetos que mutilaram gravemente e, o que é pior, há uma dependência constrangedora da Defensoria em relação à questão financeira. Não há orçamento. Já tomei conhecimento de que há dificuldades para o estabelecimento de dotações para o próximo exercício, que se avizinha. Evidentemente, é um desrespeito à própria Constituição. Como V. Exª frisou muito bem, o que acontece é que milhares de brasileiros que não têm condições econômicas estão desatendidos, uma vez que não dispõem da Defensoria Pública para postular seus direitos no que se refere a matéria que tramite na Justiça Federal. Por isso, o pronunciamento de V. Exª é oportuno. O Governo tem que encarar essa questão e tem de dotar a Defensoria de condições mínimas para o funcionamento. Ela herdou apenas um quadro de pessoal das antigas auditorias militares. Portanto, na maior parte dos Estados, não existe Defensoria Pública Federal. Conseqüentemente, essa população que não tem condições econômicas não tem quem patrocine suas causas junto à Justiça Federal. Por isso, quero me associar ao pronunciamento de V. Exª, para pedir que o Governo resolva essa questão de uma vez por todas.

O SR. ADEMIR ANDRADE - Agradeço o seu aparte, Senador Lúcio Alcântara. Considero extremamente importante a posição de V. Exª como um homem do PSDB, como um homem do governo. Espero que possamos, juntos, convencer as lideranças na Câmara dos Deputados a rejeitarem os vetos postos pelo Presidente passado, para que o povo brasileiro venha a ter de fato uma Defensoria e o direito ao advogado pago pelo Estado para defender os seus direitos.

O Sr. Humberto Lucena - Concede-me V. Exª um aparte?

O SR. ADEMIR ANDRADE - Ouço-o com satisfação, Senador Humberto Lucena.

O Sr. Humberto Lucena - Desejo levar também o meu apoio a V. Exª. Sou daqueles que estão lutando justamente pela rejeição desse veto profundamente injusto para essa categoria, cuja presença no quadro de recursos humanos do País e de cada Estado é fundamental, principalmente para aqueles que carecem da justiça gratuita para defender os seus direitos individuais e sociais.

O SR. ADEMIR ANDRADE - Muito obrigado, Senador. Espero também que o PMDB compreenda isso e que todos nós possamos, finalmente, fazer valer um direito que a Constituição incluiu a partir de 1988.

Não podemos admitir evasivas na definição da Defensoria Pública. O entendimento deve ser claro. Sua implementação converteu-se em compromisso inarredável de todos aqueles que se sentem co-responsáveis pelo processo de humanização deste País. Nada que possa impedir ou barrar sua instalação poderá ser aceito pelos Congressistas.

O Governo Federal e alguns veículos de comunicação de massa deste País chegaram a alegar, por ocasião do anúncio dos vetos, em janeiro de 94, que os cortes se justificavam pelo exagerado detalhismo do projeto, além de uma suposta ação corporativista por parte de alguns membros da magistratura e de órgãos de classe dos advogados brasileiros.

Não podemos admitir evasivas na definição da Defensoria Pública. O entendimento deve ser claro. Sua implementação converteu-se em compromisso inarredável de todos aqueles que se sentem co-responsáveis pelo processo de humanização deste País. Nada que possa impedir ou barrar sua instalação poderá ser aceito pelos Congressistas.

O Governo Federal e alguns veículos de comunicação de massa deste País chegaram a alegar, por ocasião do anúncio dos vetos, em janeiro de 1994, que os cortes se justificavam pelo exagerado detalhismo do projeto, além de uma suposta ação corporativista por parte de alguns membros da magistratura e de órgãos de classe dos advogados brasileiros.

Tudo isso poderia ter sido reduzido a um patético arrazoado, se não fosse pela força ressonante que exerceu junto a alguns setores da política nacional, que preferiram interpretar o projeto original como demasiadamente ambicioso. Sem se importarem com o abismo que ainda separa, de um lado, as camadas sociais desfavorecidas e, de outro, a Justiça no Brasil, esses mesmos setores, conscientes ou não, corroboram o sentimento de apartheid que parece atravessar dissimuladamente todo o território brasileiro.

Pior do que isso, naturalmente, foi e continua a ser o descaso com que os meios de comunicação abordam a questão. A indiferença tem sido gritante em relação à necessidade inadiável de se retomar agora o debate sobre o funcionamento da Defensoria Pública.

Sr. Presidente, se fôssemos analisar hoje, ponto por ponto, os vinte e cinco vetos impostos à Lei, não restariam dúvidas sobre o aspecto nitidamente prepotente com que o Estado divide suas relações de poder em nossas democracia. Longe de conceber a Defensoria Pública como um serviço que amplia os horizontes e finca as raízes de nosso frágil "contrato social", o Estado a vê como uma ameaça à hegemonia concentradora que historicamente tem definido sua identidade.

Certamente, não nos vai faltar oportunidade para exercermos o poder de levantar suspeitas sobre cada um dos artigos ou parágrafos vetados. No entanto, mesmo sem desejarmos nos precipitar nessa discussão, considero importante iniciar uma apreciação crítica sobre alguns dos vetos que, a meu ver, são absurdos.

Como já dissemos, o mais ultrajante dos vetos consistiu na supressão do parágrafo único do art. 3º da lei. Literalmente, nele se expressava que:

      À Defensoria Pública é assegurada autonomia administrativa e funcional". Ora, a supressão do parágrafo implica necessariamente o esvaziamento da idéia central contida no enunciado do § 3º, cuja norma prevê que sejam "... princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

Percebe-se neste veto uma contradição de sentidos de difícil compreensão, pois independência funcional pressupõe, obviamente, autonomia administrativa e funcional. Confesso que não consigo acompanhar o raciocínio que norteou os assessores burocratas do Executivo encarregados de analisar a lei.

Completamente equivocado, esse primeiro veto demonstra, sozinho, a visão incorreta, inconsistente e deturpada que predominou durante todo o processo de interpretação de um texto tão exaustivamente debatido no Congresso Nacional. Fica evidente que o Governo Federal não fez o menor esforço para extrair do texto original uma leitura apurada. Com isso, perdeu-se a perspectiva global, a compreensão integral da matéria.

Em todos os vetos percebe-se a mesma incongruência. No art. 4º, que relaciona as funções institucionais da Defensoria Pública, o Executivo não se conteve e suprimiu nada menos que dois incisos e dois parágrafos. Incompreensivelmente, foi suprimido o inciso I que dizia:

      A defesa da criança e do adolescente caberá, especialmente, nas hipóteses previstas do § 3º, do art. 227 da Constituição Federal.

Ora, é inadmissível a restrição imposta ao princípio da integralidade da assistência jurídica! Vedar a quem tem o dever de patrocínio da criança e do adolescente a defesa de seus interesses e direitos difusos e coletivos é restringir, indevidamente, a tutela deste segmento desassistido da população brasileira, com desrespeito ao art. 5 da Constituição Federal.

Mais grave ainda, deve-se denunciar que é falso que o Ministério Público tenha exclusividade da legitimação ativa da Ação Civil Pública, pois a norma do § 1º, do art. 129, da Constituição Federal, diz exatamente o contrário, ou seja, que sua legitimação, nesses casos, "não impede a de terceiros". Trata-se da chamada legitimação concorrente, pois o espírito da lei é o de ampliar o leque de tutela dos direitos coletivos das camadas mais desprotegidas da população.

Do mesmo modo, o veto ao § 1º, do art. 6, surpreende a todos nós pela forma autoritária com que o Executivo quer impor a sua vontade política. O texto suprimido enunciava que:

      A exoneração, de Ofício, do Defensor Público Geral, por iniciativa do Presidente da República, deverá ser precedida de autorização de maioria absoluta do Senado Federal, em sessão secreta.

Ao errar, novamente, pela incoerência, o Executivo deixa de aplicar, no caso de exoneração de Defensor Público- Geral, por iniciativa do Presidente da República, o mesmo tratamento que é dado ao Procurador-Geral da República quando de sua exoneração, sob as mesmas condições. Renunciando ao princípio jurídico do paralelismo das formas, comete-se uma desigualdade injustificável.

Tal como a Constituição cuida de zelar a figura do Procurador-Geral contra abusos e distorções casuísticas do Executivo, este dispositivo da Lei Complementar é emanado do mesmo propósito. Se o Procurador-Geral da República, cuja nomeação exige as mesmas formalidades previstas para o Defensor Público-Geral da União, e só pode ser destituído com anuência expressa do Senado Federal, o mesmo deve acontecer em relação a este último.

Ainda no mesmo art. 6º, suprimiu-se o § 2º, onde se lia:

      O Defensor Público-Geral da União terá as prerrogativas de Ministro de Estado.

Ao arrepio da lei máxima e do bom senso, temos aqui uma parcialidade aviltante por parte daqueles que analisaram, julgaram e redigiram os vetos.

Como é possível fundamentar esse veto, Sr. Presidente, sob a alegação de que tal status não seja concedido nem mesmo ao Advogado-Geral da União? Quanta asneira! No descuido de sua análise, o Executivo se esqueceu de que as prerrogativas de Ministro de Estado lhe foram concedidas pela Lei nº 8.682, de 14 de julho de 1993, em seu art. 1º, parágrafo único, ao estabelecer que:

      O cargo de Advogado-Geral da União confere ao seu titular todos os direitos, deveres e prerrogativas de Ministro de Estado, bem assim o tratamento a este dispensado.

Portanto, esse é mais um deslize irresponsável.

Sr. Presidente, por último, não satisfeito com os retalhos que fez nos artigos que introduzem a Lei Complementar, o Governo do ex-Presidente Itamar Franco resolveu por bem interferir também no domínio da fixação da remuneração dos Defensores Públicos da União. Ao vetar o § 1º do art. 39, que dispõe sobre a paridade dos vencimentos com as carreiras da Magistratura e do Ministério Público, desacata as diretrizes expressas na Constituição Federal.

A razão do veto inverte, na verdade, as funções dos Poderes Constituídos, pois veda ao Legislativo criar uma norma legal pelo fato do Judiciário ter dado uma interpretação diversa à isonomia de vencimentos entre as mencionadas carreiras jurídicas. Ora, desse modo, antes de criar a lei, o Poder Legislativo teria de consultar a jurisprudência. Que fique bem claro: o Judiciário interpreta a lei, mas quem a faz é o Legislativo.

Contra isso - Sr. Presidente -, cabe a nós a mais lúcida vigilância em torno do equilíbrio dos poderes. Pois, do meu ponto de vista, o que está em jogo na matéria não é apenas a rejeição ou não dos vetos apostos à Lei da Defensoria Pública, mas sim os princípios de independência e respeito mútuo às suas atribuições, que devem existir no Legislativo, Executivo e Judiciário.

Desejo ainda alertar para o fato de que se ratificarmos os vetos, corremos o sério risco de sermos os responsáveis pela desmoralização de nossa Carta Magna. Se transformarmos a Constituição Federal em letra morta ela perderia seu poder primário de fonte condutora e normatizadora das ações entre os cidadãos brasileiros em sociedade. E sabemos bem que, no atual momento político que vive o País, qualquer descaso com os princípios constitucionais poderia ocasionar conseqüências desastrosas para toda a sociedade.

Agora, o mais grave é que fica a impressão de que os governos trocam de compromissos políticos com a mesma tranqüilidade como trocam de roupa. A criação da Defensoria Pública da União na Carta de 1988 significava, naquela época pelo menos, uma conquista inestimável para o amadurecimento do processo democrático brasileiro. Quase sete anos se passaram, e o que podemos constatar é que foi embora junto com eles o interesse do Executivo em implementar o que manda o texto constitucional.

Assim sendo, Srs. Senadores, como é que poderemos acreditar nas reais intenções que movem o Executivo atual, quando este insiste em que sua plataforma de governo exige necessariamente reformas drásticas em nossa Constituição? Os vetos colocados na Lei Complementar da Defensoria Pública brasileira demonstram no papel a sua incoerência, o contraste que há entre a prática e o discurso do Governo Federal.

Antes de o Governo executar as mudanças que pretende, é muito mais urgente e coerente que dê prioridade à regulamentação das dezenas de dispositivos constitucionais que até hoje estão aguardando as leis complementares. Assim determina, basicamente, o bom senso, mas, infelizmente, não é o que tem prevalecido nos corredores palacianos. E, para tanto, cumpre resgatar o espírito supremo da Constituição de 1988, que inspirou, por exemplo, a existência da Defensoria Pública da União.

Esse, certamente, é o papel que nos cabe agora. Temos que rejeitar todos os vinte e cinco vetos impostos à Lei Complementar que foi proposta pelo Congresso Nacional. Manter na íntegra o projeto original significa, antes de tudo, respeitar os anseios de nossa tão sofrida sociedade, e atender ao espírito da Carta de 88. A bandeira da Defensoria Pública é, sem dúvida, um símbolo de resistência dos ideais de liberdade, igualdade e justiça em nosso País.

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 15/06/1995 - Página 10375