Discurso no Senado Federal

ANALISE DO REGIME PRESIDENCIAL IMPERIALISTA, SEGUNDO S.EXA., COMANDADO PELO SENHOR FERNANDO HENRIQUE CARDOSO.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATUAÇÃO.:
  • ANALISE DO REGIME PRESIDENCIAL IMPERIALISTA, SEGUNDO S.EXA., COMANDADO PELO SENHOR FERNANDO HENRIQUE CARDOSO.
Aparteantes
Eduardo Suplicy.
Publicação
Publicação no DCN2 de 26/05/1995 - Página 8796
Assunto
Outros > PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATUAÇÃO.
Indexação
  • ANALISE, CRITICA, INCOERENCIA, IDEOLOGIA, OBRA LITERARIA, AUTORIA, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATIVIDADE POLITICA, GOVERNO, DEFESA, IMPERIALISMO.

O SR. LAURO CAMPOS (PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Excelentíssimo Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o pronunciamento que hoje faço não gostaria que contivesse o teor que apresenta.

Em 1975, estávamos no mesmo barco: eu, ameaçado de morte, sem nunca ter participado de qualquer movimento subversivo, tendo exercido durante toda a minha vida uma única exclusiva e transparente profissão: a de professor de dedicação exclusiva. Comecei a receber ameaças de morte e, realmente inerme, destreinado para este tipo de confronto, a minha pressão arterial foi a 20. Senti medo, não sabia de onde viria o golpe que me ameaçava. Um amigo comum sugeriu-me que eu fosse a São Paulo conversar com o Professor Fernando Henrique Cardoso. E no CEBRAP nos encontramos, uma semana após ter sido o próprio CEBRAP vítima de um atentado a bomba por aqueles que me ameaçavam.

Convidado por ele para almoçar, tive a oportunidade de aumentar a minha admiração para com o Sr. Fernando Henrique Cardoso.

Portanto, gostaria de ter seguido junto não apenas naqueles momentos da procela, mas nesses momentos da calmaria e da fartura do poder. No entanto, os nossos caminhos se separaram.

O que vou ler aqui é uma análise, sem mágoa e sem rancor, de um professor que continua sendo um estudante e que quer apreender e entender a personalidade de Fernando Henrique Cardoso.

Neste regime presidencial imperialista, é importante que conheçamos a figura que está no centro do poder dos Poderes, que é o Poder Executivo. Como não existe um plano neste País, como não existem diretivas impessoais que possam nos esclarecer a respeito do futuro, debrucei-me sobre o passado e tresli as obras de Fernando Henrique Cardoso.

O que hoje trago aqui é o resultado de anos de meditação revista em meses de repensamento.

"Mesmo as personagens superdotadas não podem abdicar das condições históricas e sociais que as produziram. Julgar-se filho de si mesmo, produto ímpar de sua "idéia", seria pular a cerca imprecisa da normalidade para o reino da insensatez narcísica.

A sociologia da linguagem tem demonstrado o papel estruturador da fala no processo de formação da personalidade. Como a linguagem é um fenômeno social, e ela e o trabalho são constituintes do homem, não há como negar a essência social do homem, ou seja, enredar-se na falácia do indivíduo, na ilusão do individualismo.

Como só alguns deuses e demiurgos se autoproduziram, e sua perfeição dispensou qualquer contribuição menor, parece não existir ofensa alguma em se pretender apontar alguns condicionantes culturais, sociais e históricos que estiveram presentes na formação intelectual de Fernando Henrique Cardoso. Fernando Henrique Cardoso teve a favor de sua formação pessoal a influência de uma plêiade de intelectuais que inaugurou, na recém-criada Faculdade de Sociologia da USP, uma atividade séria de ensino e pesquisa, com duas importantes novidades: o afastamento cada vez maior de influências externas, funcionalistas, anglo-americanas, abraçando um conteúdo cada vez mais nitidamente marxista; em segundo lugar, seguindo o exemplo de Florestan Fernandes, em sua notável investigação sobre a civilização dos Tupinambás, e dele e de Roger Bastide, sobre a escravidão no Sul do Brasil, Fernando Henrique Cardoso realizou uma pesquisa marxista, usando o método dialético, o conceito de totalidade, a crítica da ideologia, a busca do real-concreto, da essência sob a aparência etc., instrumentos e conceitos que possibilitaram que ele fizesse as determinações contidas em Capitalismo e Escravidão. A preocupação com o escravismo, no sul do País, encontra-se presente, também, na grande obra de Octávio Ianni, fiel, para sempre, ao objeto e ao método que elegeu. O trabalho exaustivo de Emília Viotti da Costa, em sua investigação sobre a escravidão brasileira, foi calçada em observações empíricas coletadas na região cafeeira do Sudeste. Uma de suas principais preocupações foi mostrar as vinculações entre a escravidão e a superestrutura política, monárquica. Esses trabalhos constituíram as matrizes de um extenso volume de teses e de pesquisas acadêmicas realizadas nas últimas décadas, no País.

Fernando Henrique Cardoso considerava-se um radical, no sentido que Marx atribuiu ao termo: "Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora, para o homem, a raiz é o próprio homem", conforme citação feita por Fernando Henrique Cardoso da Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito, de Hegel, em Capitalismo e Escravidão, pág. 9.

O jovem marxista Fernando Henrique Cardoso adota, de forma madura, o método dialético e o conceito de totalidade, que procura distinguir de "outras modalidades de interpretação sociológica que também lançam mão de procedimentos totalizadores". A totalidade compreendida dialeticamente, como unidade de diversos fenômenos, de momentos que interagem continuamente uns sobre os outros, ao contrário do conceito de totalidade presente entre os funcionalistas, preso à ideologia do equilíbrio, do ajustamento espontâneo entre as partes de uma totalidade social, é o adotado por Fernando Henrique Cardoso. Isto pode parecer muito teórico e desimportante para que se entenda a metamorfose por que passou o ilustre intelectual no processo que se inicia com Fernando Henrique Cardoso e que termina em FHC. Foi uma negação dialética que esteve presente em cada momento das metamorfoses de Fernando Henrique Cardoso em que as formas pretéritas, acanhadas e superadas de sua personalidade estavam sendo negadas, impulsionando-a para uma superação dialética, para sua realização mais plena, para a entificação e completude do ser Fernando Henrique, ou foi a negação não-dialética que conduziu suas metamorfoses e, por isto, significou um mera decadência e corrupção do ser social em estudo, do qual resultaria, apenas, FHC?

Em relação ao conceito fundamental de totalidade não pode haver dúvida de que houve uma brusca e violenta decadência, uma perda de nível, uma corrupção da capacidade cognitiva entre Fernando Henrique Cardoso - que não admitia sequer o conceito funcionalista de totalidade de Malinowsky e de Radicliffe Brown (pág. 13 de obra já citada) -, para adotar, como FHC, absorvido de seus assessores neoclássicos, o conceito ingênuo, mecânico, simplista da globalização walrasiana ou da generalização de comportamentos e fenômenos individuais e indeterminados para o nível global, como se a totalidade fosse o simples somatório de indivíduos abstratos, de fenômenos indeterminados e não passíveis de generalização, como percebeu, aliás, o próprio Keynes: "Importantes erros têm sido cometidos devido à extensão para o sistema como um todo de conclusões que seriam corretamente obtidas, mas apenas válidas para uma parte do sistema tomado em separado". (J.M.Keynes, General Theory, MacMilland, p. 45.) O empirismo abstrato que se encontra na produção ideológica de todos os pacoteiros, seres guiados por modelos simplificados de uma realidade adulterada, representada, foi criticado por Fernando Henrique Cardoso. "Eles elaboraram modelos que exprimem relações vazias de conteúdo significativo, para assim reter interpretativamente, como PADRÕES, quaisquer tipos de ação social concreta". Como "os economistas costumam afogar no poço dos coeteris paribus as variáveis incômodas que perturbariam as conclusões a que desejam chegar", como confessa o neoclássico modelista Alfred Marshall, FHC abandonou a busca do real concreto para lidar com abstrações e fetichismo esvoaçantes. É fácil imaginar que um simples equilíbrio orçamentário, por exemplo, tem o dom de equilibrar os preços no abismo da inflação zero ou próxima de zero, quando as relações financeiras e mercantis internacionais, incontroláveis, obrigam o Governo a dobrar, em menos de um ano apenas, a base monetária; é fácil e cômodo anular, por hipótese, o efeito inflacionário do aumento da carga tributária e do FSE e reduzir a massa salarial, congelando preços em URV, no pico, e salários, por uma média corroída por uma inflação de mais de 40% ao mês. É fácil lançar a culpa pela "ineficiência" do sistema nas empresas estatais, enquanto o capital privado se sustenta com empréstimos e doações dos BNDESs e das Caixas; as empresas falidas são estatizadas, fortalecidas em dispendiosas CTIs estatais e, depois, doadas aos grupos privados, que alimentam a "eficiência" privada com recursos roubados dos fundos dos trabalhadores: FGTS, FAT, etc. É fácil dizer que a fetichização "do equilíbrio orçamentário", transformado em tabu incontroverso, deve ser obtido por meio do arrocho salarial, da redução de vencimentos, de dispensa de funcionários, de aumento da taxa de desemprego que se elevará de seu nível atual de 13% à medida em que a redução de gastos do Governo e o "equilíbrio orçamentário" forem sendo alcançados; a reconstrução idealista, abstrata da sociedade e da economia brasileira, pressuposto lógico-teórico sobre o qual trabalham os pacoteiros, e a queda da discussão a níveis tão baixos quanto os prevalecentes ao tempo da ditadura militar, ajudam FHC em sua luta contra o espantalho da inflação no espaço do fetichismo ocupado pela inconsciência e pelo sorriso.

Quando forem cumpridos os planos monetaristas do FMI, se realizados "os ajustes internos e externos", o equilíbrio orçamentário reinará sobre uma sociedade ouriçada pelas contradições e conflitos econômico-sociais que se encrespam ignorados totalmente pelos modelistas que "eliminaram essas variáveis incômodas" em sua abstração.

O orçamento entrará em equilíbrio, quando a convulsão social tiver atingido nove graus na escala Richter. Fernando Henrique Cardoso sabia, pois leu o que Marx escreveu, que os preços, sendo a "forma dinheiro do valor de troca", deveriam ser tratados como a forma que interage com a realidade interna. A luta de classes usa a inflação como um instrumento na guerra distributiva da massa de mais-valia e de seu aumento.

FHC não apenas nega Fernando Henrique Cardoso. Ele se transformou no seu antípoda. O chamado "grupo do Capital", leitores aplicados da obra fundamental de Marx, no início dos anos 60, em São Paulo, sofreu as perseguições impostas pela ditadura militar ao pensamento pensante, crítico, brasileiro. Fernando Henrique Cardoso, filho de general, deve ter sofrido particularmente a dureza da repressão. Nem Abraham Kardner, com sua teoria da personalidade básica, sedimentada na infância, sobre a qual se superporia, conflitivamente, a personalidade adulta; nem Adler, com sua explicação que enfatiza os protestos de virilidade, de afirmação e a vontade de poder e de superação da figura paterna; nem todo o edipianismo de Freud explicam por que o mestre Florestan e todos os intelectuais que influíram na formação de Fernando Henrique, que passaram por traumas e frustrações parecidas, não "rodaram a baiana" de suas mais arraigadas posturas, não sofreram a metamorfose travestidora por que passou o Ministro Fernando Henrique. Incapazes de entendermos o fenômeno particular Fernando Henrique Cardoso, voltemos ao geral.

Ao contrário de sua equipe de economistas neoclássicos, patinadores da aparência, defensores supérstites de uma ideologia econômica que faliu antes que eles a compreendessem, Fernando Henrique Cardoso possui outra weltanschauung, uma ampla e sólida percepção que a sociologia do conhecimento, a crítica da gnosiologia, a superação da filosofia metafísica, as informações da antropologia e, principalmente, a riqueza das relações sociais em que entrou, "pois é a riqueza das relações sociais que produz a riqueza da consciência", como Marx determinou. Os seus assessores são indigentes seres sociais que só tiveram os medíocres professores de Vanderbilt ou do MIT para lhes deformar a consciência, produzindo os discípulos pacoteiros, os neonadas perdidos, os empiristas abstratos. Por isso, o comportamento recente de FHC é muito mais censurável e estarrecedor do que o de sua entourage: a inconsciência do caráter delituoso dos atos do Governo, dos pacotes, das medidas genocidas é excludente de criminalidade que beneficia os neoclássicos, os neonadas e agrava a culpa de FHC.

Quando FHC abandona a explicação dialética em proveito do empirismo abstrato dos economistas - que funde e confunde a manifestação aparente dos fenômenos com sua "essência interna e real, porém oculta" -, engrossa as fileiras dos idiotas da aparência. Durante milhões de anos a cabeça pacoteira, empírica, afirmou que o sol girava em torno da terra, que o movimento aparente equivale ao real, espelha-o, até que Ptolomeu e, depois, Galileu perceberam que o aparente era o real invertido, que o sistema era heliocêntrico. Combater a inflação no dinheiro, considerá-la um fenômeno meramente monetário e não perceber que a moeda capitalista é dominada pelo fetichismo das mercadorias, tratar a inflação como se fosse uma força externa à sociedade, um dragão contra o qual "todos devem se unir" é adotar as táticas fetichistas que Fernando Henrique Cardoso, ao contrário de FHC, determinava criticamente. A busca radical do homem atrás dos fenômenos é uma operação epistemológica que determina o caráter fetichista dos fenômenos capitalistas, fenômenos que adquirem vida própria, movimentos independentes das vontades e da ação dos produtores contra os quais eles se voltam. A forma mercadoria, a mais contraditória das formas assumidas pelo produto do trabalho dos homens, manifesta sua inquietude, a luta entre trabalhadores e capitalistas que subjaz em cada mercadoria, de diversas maneiras: na forma de superprodução que apodrece nos armazéns e silos, enquanto os produtores diretos passam fome; como capacidade instalada excessiva de um lado e trabalhadores desempregados de outro; como produção exportada em excesso, que produz enormes saldos de exportação e, portanto, uma enchente da base monetária (no mês de dezembro as receitas de exportação, feitas à custa da fome interna, quase afogaram as "autoridades monetárias" e levaram ao desespero os monetaristas, pois vender títulos da dívida pública, apenas, não era mais suficiente para enxugar a avalanche e, por isso, foi preciso esterilizar dinheiro na poupança, elevando os juros mensais a mais de 50%; uma sociedade dividida em classes sociais opostas - trabalhadores e não trabalhadores - objetiva, necessariamente, no total das mercadorias produzidas, as relações sociais de produção, as relações de exclusão dos trabalhadores dos meios de produção e das mercadorias de luxo que eles produziram; a reprodução das mercadorias como partes diferenciadas da totalidade do produto social capitalista só se dá na medida em que as relações de distribuição da renda nacional assegurem aos 10% mais ricos da população um nível de renda elevadíssimo.

Pretendo dar o restante das 42 páginas, até onde se estende este meu modesto trabalho, como lido.

O Sr. Eduardo Suplicy - É possível um breve aparte, muito breve Sr. Presidente, se o orador assim o permitir?

O SR. LAURO CAMPOS - Será um prazer, desde que a Mesa o permita?

O SR. PRESIDENTE (Ney Suassuna) - A Mesa concede mais dois minutos ao orador.

O Sr. Eduardo Suplicy - Senador Lauro Campos, quero cumprimentá-lo pelo trabalho de extraordinário fôlego intelectual que, tenho certeza, será lido pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, para que Sua Excelência faça uma reflexão sobre a sua própria história intelectual e política. V. Exª se dedicou à realização de um trabalho muito bem feito. Recordou fatos da vida pessoal do intelectual, do sociólogo, do cientista político tão respeitado por todos os brasileiros que nos anos 50, 60 e, sobretudo, nos anos 70 conseguiu reunir em torno de si no CEBRAP, como V. Exª assinalou, um conjunto de intelectuais da melhor estirpe. Professores que, como V. Exª, estavam com dificuldades, senão proibidos, de lecionar e pesquisar nas universidades brasileiras, encontram no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, sob a coordenação e a liderança de Fernando Henrique, um lugar para realizarem pesquisas sérias. V. Exª foi fundo na reflexão sobre a formação do pensamento de Fernando Henrique Cardoso e sobre suas ações do presente. As ponderações de V. Exª devem ser analisadas por todos os brasileiros. Avalio que será importante - o Senador Pedro Simon já fez esse pedido - todos nós termos a cópia dessa análise na íntegra. Vamos enviá-la ao Presidente Fernando Henrique Cardoso e àqueles seus assessores que, certamente, se beneficiarão da avaliação crítica que V. Exª tão acuradamente faz nesta tarde. Meus parabéns a V. Exª!

O SR. LAURO CAMPOS - Senador Eduardo Suplicy, agradeço a V. Exª e incorporo o seu aparte ao meu pronunciamento.

Aproveito o ensejo para recordar que, infelizmente, alguns desses assessores já me leram, pois muitos deles são meus ex-alunos.

Abandonando a leitura do texto e resumindo o que há de principal e de surpreendente para mim mesmo, gostaria de dizer-lhes a respeito da conclusão a que cheguei ao refazer, pela terceira ou quarta vez na vida, a leitura das obras de Fernando Henrique Cardoso.

A postura marxista e socialista de Fernando Henrique Cardoso, que chega a considerar em um de seus livros que os gastos da socialdemocracia no social constituem uma forma de queima do excedente capitalista, tese esta que Sua Excelência adota e incorpora de Sweezy e de Baran: assim como o capitalismo queima na guerra e no espaço, queima também no social o excedente.

Portanto, dentro dessa concepção, o excedente no capitalismo tem uma prioridade insignificante: apenas funciona quando o sistema necessita, para a sua reprodução, queimar o que ele não conseguiu destruir em outras atividades.

Desejo ressaltar que não compartilho dessa concepção pessimista, embora marxista, que se foi tecendo ao longo da formação de Fernando Henrique Cardoso. Para Sua Excelência, após citar Lênin e com ele concordar que o imperialismo seria a última etapa do capitalismo, não temos saída. Afirma também que a abolição da escravatura no Brasil ocorreu porque, sob a escravidão, o trabalhador não podia ser tão explorado quanto o seria sob o assalariamento, sob as relações capitalistas. Assevera que não temos saída e o que não tem remédio remediado está.

Ao invés de dar murro em faca de ponta e lutar contra a invasão que hoje presenciamos, por meio da reforma da Constituição e de outras imposições, o que, infelizmente, Fernando Henrique Cardoso fez foi segurar o cabo de um punhal. (Palmas)

 

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DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. LAURO CAMPOS EM SEU PRONUNCIAMENTO:

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A METAMORFOSE DE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO EM FHC:

FREUD APENAS NÃO EXPLICA

Mesmo as personagens superdotadas não podem abdicar das condições históricas e sociais que as produziram. Julgar-se filho de si mesmo, produto ímpar de sua "idéia", seria pular a cerca imprecisa da normalidade para o reino da insensatez narcísica. A sociologia da linguagem tem demonstrado o papel estruturador da fala no processo de formação da personalidade. Como a linguagem é um fenômeno social e ela e o trabalho são constituintes do homem, não há como negar a essência social do homem, ou seja, enredar-se na falácia do indivíduo, na ilusão do individualismo.

Como só alguns deuses e demiurgos se autoproduziram, e sua perfeição dispensou qualquer contribuição menor, parece não existir ofensa alguma em se pretender apontar alguns condicionantes culturais, sociais e históricos que estiveram presentes na formação intelectual de Fernando Henrique Cardoso.

Fernando Henrique Cardoso teve a favor de sua formação pessoal a influência de uma plêiade de intelectuais que inaugurou, na recém-criada Faculdade de Sociologia da USP, uma atividade séria de ensino e pesquisa com duas importantes novidades: o afastamento cada vez maior de influências externas, funcionalistas, anglo-americanas, abraçando um conteúdo cada vez mais nitidamente marxista; em segundo lugar, seguindo o exemplo de Florestan Fernandes em sua notável investigação sobre a civilização dos Tupinambá, e dele e de Roger Bastide sobre a escravidão no sul do Brasil, Fernando Henrique Cardoso realizou uma pesquisa marxista usando o método dialético, o conceito de totalidade, a crítica da ideologia, a busca do real-concreto, da essência sob a aparência etc., instrumentos e conceitos que possibilitaram que ele fizesse as determinações contidas em Capitalismo e Escravidão. A preocupação com o escravismo no sul do país se encontra presente, também, na grande obra de Octávio Ianni, fiel, para sempre, ao objeto e ao método que elegeu. O trabalho exaustivo de Emília Viotti da Costa, em sua investigação sobre a escravidão brasileira, foi calcada em observações empíricas coletadas na região cafeeira do sudeste. Uma de suas principais preocupações foi mostrar as vinculações entre a escravidão e a superestrutura política, monárquica. Esses trabalhos constituíram as matrizes de um extenso volume de teses e de pesquisas acadêmicas realizadas nas últimas décadas, no país.

Fernando Henrique Cardoso se considerava um radical, no sentido que Marx atribuiu ao termo: "Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora, para o homem, a raiz é o próprio homem", conforme citação feita por Fernando Henrique da "Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito", de Hegel, em "Capitalismo e Escravidão"1.

O jovem marxista Fernando Henrique Cardoso adota, de forma madura, o método dialético e o conceito de totalidade que ele procura distinguir de "outras modalidades de interpretação sociológica que também lançam mão de procedimentos totalizadores"2. A totalidade compreendida dialeticamente, como unidade de diversos fenômenos, de movimentos que interagem continuamente uns sobre os outros, ao contrário do conceito de totalidade presente entre os funcionalistas, preso à ideologia do equilíbrio, do ajustamento espontâneo entre as partes de uma totalidade social, é o conceito adotado por Fernando Henrique Cardoso. Isto pode parecer muito teórico e desimportante para que se entenda a metamorfose por que passou o ilustre intelectual no processo que se inicia com Fernando Henrique Cardoso e que termina em FHC. Foi uma negação dialética que esteve presente em cada momento das metamorfoses de Fernando Henrique, em que as formas pretéritas, acanhadas e superadas de sua personalidade estavam sendo negadas, impulsionando-a para uma superação dialética, para sua realização mais plena, para a entificação e completude do ser Fernando Henrique, ou foi a negação não-dialética que conduziu suas metamorfoses e, por isto, significou uma mera decadência e corrupção do ser social em estudo, do qual resultaria, apenas, FHC?

Em relação ao conceito fundamental de totalidade não pode haver dúvida de que houve uma brusca e violenta decadência, uma perda de nível, uma corrupção da capacidade cognitiva entre Fernando Henrique Cardoso - que não admitia sequer o conceito funcionalista de totalidade de Malinowski e de Radicliffe Brown3 -, para adotar, como FHC, absorvido de seus assessores neoclássicos, o conceito ingênuo, mecânico, simplista da globalização walrasiana ou da generalização de comportamentos e fenômenos individuais e indeterminados para o nível global, como se a totalidade fosse o simples somatório de indivíduos abstratos, de fenômenos indeterminados e não passíveis de generalização, como percebeu, aliás, o próprio Keynes: "Importantes erros têm sido cometidos devido à extensão para o sistema como um todo de conclusões que seriam corretamente obtidas, mas apenas válidas para uma parte do sistema tomado em separado"4. O empirismo abstrato que se encontra na produção ideológica de todos os pacoteiros, seres guiados por modelos simplificados de uma realidade adulterada, representada, foi criticado por Fernando Henrique Cardoso: "Eles elaboram modelos que exprimem relações vazias de conteúdo significativo, para assim reter interpretativamente, como PADRÕES, quaisquer tipos de ação social concreta"5. Como "os economistas costumam afogar no poço do coeteris paribus as variáveis incômodas que perturbariam as conclusões a que desejam chegar", como confessa o neoclássico modelista Alfred Marshall, FHC abandonou a busca do real concreto para lidar com abstrações e fetichismo esvoaçantes.

É fácil imaginar que um simples equilíbrio orçamentário, por exemplo, tem o dom de equilibrar os preços no abismo da inflação zero ou próxima de zero, quando as relações financeiras e mercantis internacionais, incontroláveis, obrigam o governo a dobrar, em menos de um ano apenas, a base monetária. É fácil e cômodo anular, por hipótese, o efeito inflacionário do aumento da carga tributária e do FSE e reduzir a massa salarial congelando preços em URV no pico e salários por uma média corroída por uma inflação de 40% ao mês. É fácil lançar a culpa pela "ineficiência" do sistema nas empresas estatais, enquanto o capital privado se sustenta com empréstimos e doações dos BNDES e das Caixas. As empresas falidas são estatizadas, fortalecidas em dispendiosas CTIs estatais e, depois, doadas aos grupos privados que alimentam a "eficiência" privada com recursos roubados dos fundos dos trabalhadores (FGTS, FAT etc.). É fácil dizer que a fetichização "do equilíbrio orçamentário", transformado em tabu incontroverso, deve ser obtido por meio de arrocho salarial, da redução de vencimentos, de dispensa de funcionários, de aumento da taxa de desemprego que se elevará de seu nível atual de 13% à medida em que a redução de gastos do governo e o "equilíbrio orçamentário" forem sendo alcançados.

A reconstrução idealista, abstrata, da sociedade e da economia brasileira, pressuposto lógico-teórico sobre o qual trabalham os pacoteiros, e a queda da discussão a níveis tão baixos quanto os prevalecentes ao tempo da ditadura militar ajudam FHC em sua luta contra o espantalho da inflação, no espaço do fetichismo ocupado pela inconsciência e pelo sorriso. Quando forem cumpridos os planos monetaristas do FMI, se realizados "os ajustes internos e externos", o equilíbrio orçamentário reinará sobre uma sociedade ouriçada pelas contradições e conflitos econômico-sociais que se encrespam, ignorados totalmente pelos modelistas que "eliminaram essas variáveis incômodas" em sua abstração. O Orçamento entrará em equilíbrio quando a convulsão social tiver atingido nove graus na escala Richter. Fernando Henrique Cardoso sabia, pois leu o que Marx escreveu, que os preços, sendo "a forma dinheiro do valor de troca", deveriam ser tratados como a forma que interage com a realidade interna. A luta de classes usa a inflação como um instrumento na guerra distributiva da massa de mais-valia e de seu aumento.

FHC não apenas nega Fernando Henrique Cardoso. Ele se transformou em seu antípoda. O chamado "grupo do Capital", leitores aplicados da obra fundamental de Marx, no início dos anos sessenta, em São Paulo, sofreu as perseguições impostas pela ditadura militar ao pensamento pensante, crítico, brasileiro. Fernando Henrique Cardoso, filho de general, deve ter sofrido particularmente a dureza da repressão. Nem Abraham Kardner, com sua teoria da personalidade básica, sedimentada na infância, sobre a qual se superporia conflitivamente a personalidade adulta; nem Adler, com sua explicação que enfatiza os protestos de virilidade, de afirmação, e a vontade de poder e de superação da figura paterna; nem todo edipianismo de Freud explicam porque o mestre Florestan e todos os intelectuais que influíram na formação de Fernando Henrique, que passaram por traumas e frustrações parecidas, não rodaram a baiana de suas mais arraigadas posturas, não sofreram a metamorfose travestidora por que passou o Ministro Fernando Henrique. Incapazes que somos de entender o fenômeno particular, Fernando Henrique Cardoso, voltemos ao geral.

Ao contrário de sua equipe de economistas neoclássicos, patinadores da aparência, defensores supérstites de uma ideologia econômica que faliu antes que eles a compreendessem, Fernando Henrique Cardoso possui outra weltanschauung, uma ampla e sólida percepção que a sociologia do conhecimento, a crítica da gnosiologia, a superação da filosofia metafísica, as informações da antropologia e, principalmente, a riqueza das relações sociais em que entrou, "pois é a riqueza das relações sociais que produz a riqueza da consciência", como Marx determinou. Os seus assessores são indigentes seres sociais que só tiveram os medíocres professores de Vanderbilt ou do MIT para lhes deformar a consciência, produzindo os discípulos pacoteiros, os "neonadas" perdidos, os empiristas abstratos. Por isso, o comportamento recente de FHC é muito mais censurável e estarrecedor do que o de sua entourage: a inconsciência do caráter delituoso dos atos do governo, dos pacotes, das medidas genocidas é excludente de criminalidade que beneficia os neoclássicos, os "neonadas" e agrava a culpa de FHC.

Quando FHC abandona a explicação dialética em proveito do empirismo abstrato dos economistas - que funde e confunde a manifestação aparente dos fenômenos com sua "essência interna e real, porém oculta" -, engrossa as fileiras dos idiotas da aparência. Durante milhões de anos a cabeça pacoteira, empírica, afirmou que o sol girava em torno da terra, que o movimento aparente equivale ao real, espelha-o, até que Ptolomeu e, depois, Galileu perceberam que o aparente era o real invertido, que o sistema era heliocêntrico. Combater a inflação no dinheiro, considerá-la um fenômeno meramente monetário e não perceber que a moeda capitalista é dominada pelo fetichismo das mercadorias, tratar a inflação como se ela fosse uma força externa à sociedade, uma força contra a qual "todos devem se unir", é adotar as práticas fetichistas que Fernando Henrique Cardoso, ao contrário de FHC, combatia criticamente.

A busca radical do homem atrás dos fenômenos é uma operação epistemológica que determina o caráter fetichista dos fenômenos capitalistas, fenômenos que adquirem vida própria, movimentos independentes das vontades e da ação dos produtores contra os quais eles se voltam. A forma mercadoria, a mais contraditória das formas assumidas pelo produto do trabalho dos homens, manifesta sua inquietude, a luta entre trabalhadores e capitalistas que subjaz em cada mercadoria, de diversas maneiras: na forma de superprodução que apodrece nos armazéns e silos, enquanto os produtores diretos passam fome; como capacidade instalada excessiva de um lado e trabalhadores desempregados de outro; como produção exportada em excesso, que produz enormes saldos de exportação e, portanto, uma enchente da base monetária (no mês de dezembro as receitas de exportação, feitas à custa da fome interna, quase afogaram as "autoridades monetárias" e levaram ao desespero os monetaristas: vender títulos da dívida pública, apenas, não era mais suficiente para enxugar a avalanche e, por isto, foi preciso esterilizar dinheiro na poupança, elevando os juros mensais a mais de 50%). Uma sociedade dividida em classes sociais opostas - trabalhadores e não trabalhadores - objetiva, necessariamente, no total das mercadorias produzidas, as relações sociais de produção, as relações de exclusão dos trabalhadores dos meios de produção e das mercadorias de luxo que eles produziram. A reprodução das mercadorias como partes diferenciadas da totalidade do produto social capitalista só se dá na medida em que as relações de distribuição da renda nacional assegurem aos 10% mais ricos da população um nível de renda elevadíssimo.

Fernando Henrique Cardoso sabia que "a mercadoria, que é o ponto de partida para a análise do capitalismo, é também o ponto de chegada"6. Como os Estados nacionais em liquidação e os governos em crise de legitimação não conseguem controlar as contradições do capitalismo - o desemprego crescente, a dívida pública próxima dos 90% da renda nacional (nos Estados Unidos, na Itália etc.), o déficit comercial dos Estados Unidos - que expressam suas relações de apropriação de riqueza real líquida do exterior e seus limites, a tendência será sempre a de, em nome do liberalismo, preparar os instrumentos mais fortes e despóticos de ação governamental; introduzir, mais uma vez, os ingredientes ditatoriais necessários para enfrentar as contradições acirradas. Mais uma vez, o neoliberalismo prepara o terreno para o totalitarismo político, a única forma que o liberalismo econômico jamais conheceu de administração de suas crises. Incapaz de garantir a reprodução ampliada do sistema, os liberais ressuscitam o mercado soterrado pelo capitalismo de Estado, pelos preços políticos, pelos preços determinados por guerras (como as do petróleo), por monopólios e oligopólios gerados pela acumulação capitalista, a fim de lavar as mãos dos governos perdidos e lançar a culpa da crise sobre a falta de mercado que o desenvolvimento capitalista soterrou: "a concorrência mata a concorrência", como sabia Fernando Henrique Cardoso antes de assumir a forma acanhada de FHC.

Os neoclássicos, "neonadas", todos monetaristas e idealistas, se mantêm, de acordo com Fernando Henrique Cardoso, no nível da aparência: "O ponto de partida imediato... transfigura-se na análise dialética, numa série de mediações pelas quais as determinações imediatas e simples (e por isto mesmo parciais, ABSTRATAS) alcançam inteligibilidade ao circunscreverem-se em constelações globais, concretas". Por isto, diz Fernando Henrique Cardoso, "o concreto foi definido em conhecida frase de Marx, como "a síntese de muitas determinações, a unidade do diverso"7.

Enquanto para Fernando Henrique Cardoso as relações sociais de produção - correspondentes a dado nível de desenvolvimento das forças produtivas - são os determinantes, em última instância, dos fenômenos superestruturais, jurídicos, políticos, etc., os "neonadas" não sabem o que é isto. Fernando Henrique Cardoso deve ter percebido que os níveis relativamente baixos da inflação brasileira, no século passado, tinham uma conexão íntima com a presença do trabalho escravo, que ele estudou tão bem. A inflação encarece a mercadoria escravo, faz elevar o custo de produção, dificulta a exportação de mercadorias mais caras, reduz a taxa de lucro. Sob o capitalismo, ao contrário, a inflação desvaloriza a força de trabalho, reduz a parcela do produto coletivo apropriado pelos trabalhadores assalariados, aumenta a parcela exportável do produto social, reduz o "custo primário", a folha de pagamentos e aumenta os lucros obtidos mediante a venda de todas as mercadorias, cujos preços sobem livre e liberalmente; todas, com exceção da força de trabalho.

Assim, é nas relações sociais de produção que se encontram as respostas para os fenômenos da realidade aparente, para a inflação, para a deflação, para as oscilações da Bolsa, para o desequilíbrio orçamentário etc. A crise e dissolução do sistema só pode ser determinada a partir do desenvolvimento das contradições que ele "traz (ia) em seu bojo...". "A escravidão", escrevia o então marxista, "fora o recurso escolhido para organizar a produção em grande escala visando o mercado e o lucro (formação do sistema capitalista), mas o desenvolvimento pleno do capitalismo (a exploração da mais-valia relativa) era, em si mesma, incompatível com a utilização de mão-de-obra escrava através da qual não é possível organizar técnica e socialmente a produção para obter a intensificação da exploração da mais-valia relativa"8. Seria importante determinar-se porque a inflação perdeu sua "funcionalidade", sua capacidade de dinamizar o sistema via redução de salários reais, exigindo taxas cada vez mais elevadas e menos funcionais, mais problemáticas, a fim de aumentar a massa de mais-valia. A abolição da abolição da escravidão deverá ser sugerida como um remédio de combate à inflação pelo próximo grupo de pacoteiros reacionários...

Fernando Henrique Cardoso sabia, conforme escreveu à página 16 de seu livro já citado, que "a mais-valia não se inscreve como um dado da realidade empírica, como o lucro". O lucro surge à superfície e parece governar as decisões e o comportamento dos capitalistas; a mais-valia permanece oculta, latente, e é ela que detém a chave das determinações fundamentais. "Só a partir daquele CONCEITO é possível entender o sistema capitalista como uma TOTALIDADE CONCRETA", afirmou Fernando Henrique Cardoso9, e, portanto, a própria inflação. FHC, ao abandonar o conceito fundamental de mais-valia, quebra os óculos do entendimento do sistema. Com a visão perturbada, ameaça dar uma "paulada na inflação", no coitado do índice de preços, que parece ter se encapetado e passado a governar o governo, fetichistamente.

Ao invés das contradições antigas, FHC passa a prometer uma "ESTABILIZAÇÃO EM MARCHA". Esquecido de que o arrocho salarial, necessário para aumentar a massa de mais-valia, atingiu seu limite traçado pela fome e miséria da massa, incapaz de lembrar-se de que, tal como ocorrera com o desenvolvimento do sistema escravista no sul, talvez a intensificação do processo de trabalho, a incorporação de novas técnicas que aumentariam a mais-valia relativa, e a taxa de inflação capaz de reduzir o salário real e assegurar a lucratividade de novos investimentos, tenham, também, encontrado seus limites, impondo a "desagregação da ordem escravocrata", no primeiro caso, e a crise e o caos da ordem capitalista, no segundo. FHC em seu artigo no Jornal do Brasil de 30/12/93 patina, sorridente, no nível da aparência: "A aprovação do ajuste fiscal está nas mãos do Congresso. É uma decisão fundamental para que o Brasil entre no ano de 1994 com a esperança de ter completamente saneadas as finanças públicas, com déficit zero no Orçamento da União, e, ao mesmo tempo, com possibilidade de iniciar com real sucesso o ataque direto à inflação. Assim vamos consolidar o crescimento sustentado (em que?, se perguntaria) e assegurar o caminho da estabilidade e da justiça social".

Se Fernando Henrique Cardoso não tivesse assumido a forma menor de FHC, ele não teria escrito tamanho despautério. Como uma simples redistribuição da massa de mais-valia, em benefício da parcela apropriada pelo governo na forma de impostos, poderia ampliar a própria massa de mais-valia produzida pela exausta economia? Como um governo, que se propõe a continuar sua retirada da esfera da produção, poderia transformar o acréscimo de sua quota-parte da massa de mais-valia em mais-capital, isto é, em investimentos produtivos adicionais, sem os quais não existirá "crescimento" econômico algum? Como investir numa estrutura dinamizada pelas mercadorias de luxo, que exige a presença de um mercado privilegiado, alimentado por altíssimas rendas disponíveis, e, ao mesmo tempo, falar-se que aqueles investimentos que reativarão o modelo perverso brasileiro, agora, "assegurarão o caminho da estabilidade e da justiça social"? FHC se esquece de que ele prega o retorno do "desenvolvimento e segurança", esta última agora apelidada estabilidade, cuja crítica lhe retirou a Cátedra e lhe abriu as portas do exílio, em 1969.

A social democracia brasileira é defensora de um modelo econômico excludente, anti-social, favorecedor do capital-constante, tecnicista, que exige a presença de um sistema político autocrático apto para assegurar a "estabilidade" diante de injustiças sociais crescentes. A ditadura política "auto-sustentaria" o desenvolvimento perverso, a reprodução do famigerado "milagre". FHC sabe que a porta dos investimentos auto-sustentados e não-inflacionários está fechada para as sociedades e os governos periféricos.

Para aqueles neoclássicos que não penetram além da aparência, cabeças geocêntricas, as crises econômicas são meras perturbações tópicas de um sistema que tende ao auto-equilíbrio. Como as partes e momentos da totalidade capitalista - produção coletiva e consumo global, oferta agregada e demanda efetiva, poupança e investimentos ( equilibrados, vejam só, pela taxa de juros), exportações e importações etc. - tendem a se auto-ajustarem, são conduzidas para o equilíbrio, não há crise no sistema. Qualquer perturbação é exógena, externa ao mecanismo de mercado. O governo, ao procurar elevar o volume de emprego, elevar o nível combalido da demanda efetiva (por causa de uma insuficiência do volume de investimentos ou de um estrangulamento do mercado provocado pela repartição perversa da renda), ou para suprir a incapacidade privada de realizar grandes investimentos (hidrelétricas, estradas, termonucleares, siderurgia, comunicação, saúde, educação etc.), se transforma no grande culpado pelas perturbações do sistema "auto-equilibrante".

Fernando Henrique Cardoso sabia que a forma mercadoria é altamente contraditória, que a acumulação e o desenvolvimento capitalista contêm sua negação, que os investimentos capitalistas dispensam trabalhadores, reduzem, portanto, a fonte de produção de mais-valia, o capital variável, e aumentam relativamente o componente físico, meramente técnico, as máquinas e equipamentos10. Exacerba, assim, a contradição entre capital constante em crescimento e o capital variável, o trabalho vivo, provocando a queda da taxa de lucro média e, portanto, uma crise de sobreacumulação. Se o problema, quando se trata de crise deste gênero, é o de acumulação excessiva (em relação à lucratividade do capital), a solução não pode ser a sugerida pelos "neonadas" desde 1982: o aumento de investimentos.

A capacidade ociosa do capital constante, do equipamento, de um lado, e o desemprego dos trabalhadores, do outro, mostram que o aumento da produção se tornou impossível dentro das relações capitalistas. A acumulação selvagem brasileira, alimentada pelos investimentos privados nacionais e estrangeiros, pelos investimentos estatais, provocou uma crise de sobreacumulação que dez anos de paralisação e de crescimento negativo ainda não puderam superar. Para tentar sustentar o insustentável, o governo burguês, despótico, desde o governo Geisel, vem agravando a crise de sobreacumulação, empurrando com estímulos, incentivos, doações, assalto ao Orçamento, desvios de fundos sociais, calotes e arrocho salarial, a acumulação problemática. O capital coisa, constante, absorve todas as energias coletivas, todas as preocupações do governo, e, fetichistamente, sucateia o homem, o trabalhador, exclui as crianças do acesso à comida, ao ensino, à saúde, ao lazer, canalizando tudo para o altar do fetiche, o capital "produtivo" centralizado em São Paulo.

A crise das finanças públicas, o desequilíbrio orçamentário, seria um fenômeno reflexo, conseqüência da crise de sobreacumulação que acabou exaurindo os recursos do governo e as energias vitais da sociedade. A crise de insuficiência de consumo, outra modalidade de crise que Fernando Henrique Cardoso aprendeu com Marx, é, no caso particular brasileiro, o resultado da pobreza crescente da massa. O capital transplantado do centro para a periferia, nos anos 50, trouxe as indústrias de luxo e instalou-as na pobreza periférica. Se o Brasil alcançasse um padrão distributivo da renda nacional semelhante ao do Japão, as indústrias de carros, de televisores, de faxes, de computadores, de fornos micro-ondas, de telefones celulares etc. teriam se mostrado inviáveis. No Japão, os 20% mais ricos da população recebem uma renda apenas quatro vezes maior do que os 20% mais pobres. Como a renda per capita no Japão é de 33 mil dólares por ano, aquela distribuição bastante igualitária da renda não impediu que um amplo mercado para os artigos de luxo fosse criado e ampliado até o nível atual. No Brasil, a pobreza e a miséria da massa da população tiveram de aumentar, a renda teve de concentrar-se a ponto de os 20% mais pobres receberem cerca de 32 vezes menos do que os 20% mais ricos, a fim de sustentar um mercado limitado, estreito para as mercadorias de luxo.

A pobreza periférica, espoliada externamente, mostrou-se incompatível com a expansão das indústrias de luxo que violentaram as sociedades hospedeiras. Enquanto os Estados Unidos produziram 5,3 milhões de carros em 1929, o Brasil, após trinta anos de indústria, só agora produziu 1 milhão de unidades para o mercado interno. A pobreza da massa, como dizia Marx e sabia Fernando Henrique Cardoso, "é a causa das verdadeiras crises capitalistas"11.

Aprofundada a crise diante da miopia neoclássica, que só tem olhos para o desequilíbrio orçamentário, a pobreza, que provoca a crise de subconsumo das mercadorias de consumo de massa, se transforma em agressividade social, meninos da Candelária, prostituição infantil, assalto etc. Sem ideologia, sem condução, sem sentido, sem estratégia, a massa da população se transforma em soldados esfarrapados de uma luta caótica, ensandecida. Enquanto isto, FHC e seus "neonadas" cuidam do equilíbrio orçamentário imposto pelo FMI e do combate fetichista à inflação, dando paulada no termômetro. Nem sequer a saída trilhada por Roberto Campos e Delfim Netto, após 64, a da dinamização concentradora de renda, voltada para o luxo de um lado e exclusão na outra ponta, pode ser reaberta ao governo periférico, ao capitalismo que deixa de ser difícil para ser impossível.

A falta de coerência de Fernando Henrique Cardoso é um fato singular, que se remeteria a Freud. Como portador particular de relações de classe, revela a estarrecedora falta de quadros, o caos e o beco sem saída em que se meteu a burguesia nacional, em especial a paulista, que se encontra no epicentro da convulsão, quando entrega seu destino ao banido, ao outrora execrado e inconfiável Fernando Henrique Cardoso. Assim, o imprevisível sociólogo, personaliza em suas metamorfoses e versatilidades a própria burguesia nacional, completamente desnorteada, órfã de líderes e destituída de propostas sérias de reconstrução de uma sociedade, que não seja a simples repetição do triste milagre delfiniano. FHC desiste de qualquer solução sistêmica, social. O seu remédio individual vai sendo aviado: o que não tem remédio, remediado está. FHC vai se convencendo de que a entrega total às forças imperialistas rebatizada de globalização mundial e de nova inserção no contexto internacional é a inexorável postura de seu governo.

Fernando Henrique Cardoso acompanhou as metamorfoses do objeto, o capitalismo, servindo-se de Lênine para determinar a nova fase do capitalismo

Fernando Henrique Cardoso compreendeu, como poucos, a economia de mercado. É que ele teve a fortuna de apreender o principal, ou seja, os determinantes que dão concreticidade à produção mercantil, capitalista, desenvolvida. Ele não se deixou entusiasmar pelo "Capitalismo Financeiro", notável obra de Rudolph Hilferding. Naquele livro, a unidade entre as três formas de existência do capital - o produtivo, o mercadoria e o capital-dinheiro -, se apresenta como o coroamento do desenvolvimento do capitalismo, sob o império do capital financeiro. Fernando Henrique Cardoso sabe que Marx, em "O Capital", já determinara corretamente esta tendência de o capital se concentrar, assumindo o mercado a forma monopolista, processo que viria acompanhado da centralização da propriedade capitalista. O capital financeiro seria o dominante e unificador das três formas de existência assumidas pelo valor.

Fernando Henrique Cardoso segue o caminho correto e passa das determinações de Marx, interrompidas com seu falecimento em 1883, para as de Lênine, tal como foram feitas em seu livro "Imperialismo, a Última Etapa do Capitalismo". O sociólogo brasileiro tem certeza de que a concentração e a centralização do capital empurram o mercado de sua forma simples e embrionária de existência, a concorrencial, para sua completude final: a monopolista. Como se pode acreditar que Fernando Henrique Cardoso tenha voltado a crer na atualidade da forma pretérita, superada, de um mercado concorrencial e auto-ajustável, neoclássico? Esta conclusão seria completamente equivocada diante do travejamento do pensamento Henriquiano que se caracteriza pela mais sólida e negativa visão prospectiva do desenvolvimento periférico em sua fase de acumulação imperialista. Como o nosso sociólogo, que tem consciência de que a ideologia neoclássica é a expressão no pensamento econômico burguês da ideologia iluminista, poderia afirmar que a sociedade se rege por leis mecânicas, racionais, que são naturais, sociais e eternas, visualizáveis em condições de perfeita liberdade social e que levariam, se fossem seguidas, à máxima eficiência e à mais justa distribuição do produto social entre os agentes atomizados que teriam participado, de forma cooperativa e harmônica, em sua alegre produção?

Esta representação panglossiana do mundo, que o mundo desmentiu, não é digna nem de Fernando Henrique Cardoso, nem mesmo de FHC. O método dialético, o acompanhamento do desenvolvimento das contradições e de sua globalização, o agravamento das relações internacionais movidas pelas necessidades do capitalismo cêntrico de conciliar o processo de exploração das matérias-primas periféricas e de realização de parte do "excedente cêntrico" de capital nas economias hospedeiras, fazem da obra de Fernando Henrique Cardoso o repertório mais crítico e negativo que a análise da acumulação dependente, o chamado desenvolvimento econômico periférico, jamais produziu na América.

O eminente sociólogo-Presidente, registrou que a "teoria do capitalismo na fase imperialista atinge seu tratamento mais significativo nos trabalhos de Lênine"12. Fernando Henrique Cardoso resume o processo de concentração de capital ao qual corresponde "um novo estágio do capitalismo" que "não pode ser considerado como um novo modo de organização econômica". Ambos os estágios - o concorrencial e o imperialista - têm como determinantes comuns "a acumulação de capital baseada na propriedade privada e na exploração capitalista da força de trabalho"13.

Fernando Henrique Cardoso concorda com Lênine também em que sob o imperialismo "O MERCADO COMPETITIVO É SUBSTITUÍDO NOS SEUS RAMOS BÁSICOS PELO MERCADO MONOPOLISTA", para concluir que: "Esta tendência realizou-se historicamente, levando não somente à formação de um estrato financeiro entre os empresários, mas também a uma marcada preeminência do sistema bancário no modo capitalista de produção", tendência que, na Presidência, FHC irá reforçar. "Além disto", prossegue o ilustre sociólogo paulista, "a fusão do CAPITAL INDUSTRIAL COM O CAPITAL FINANCEIRO, SOB O CONTROLE DESTE ÚLTIMO, tornou-se fator decisivo nas relações políticas e econômicas entre as classes capitalistas, com todas as conseqüências práticas que tal sistema de relações apresenta em termos da organização estatal, da política e das ideologias"14.

A doação das empresas estatais brasileiras, realizada sob a forma de pagamento da Dívida Pública Mobiliária Federal aos bancos, será a maneira pela qual FHC verá cumprir o prognóstico de Lênine, que ele esposou. As empresas estatais brasileiras constituem um reduto que não foi apropriado pelo capitalismo imperialista, resíduo que Fernando Henrique Cardoso deseja entregar à sanha dominadora do capital estrangeiro. Ele sempre esteve convencido de que o processo de globalização do capitalismo mundial, que antes chamava de imperialismo, segue o caminho inexorável da conquista e da incorporação de novos campos ao domínio do capitalismo cêntrico.

A sociologia de Fernando Henrique Cardoso é qualitativamente superior à daqueles que desprezaram as bases econômicas como determinantes dos fenômenos superestruturais (políticos, ideológicos, sociológicos), isto é, daqueles adeptos do positivismo que retiraram as bases econômicas e a própria economia do universo "sociológico" de análise. Ao contrário dos discípulos positivistas de Augusto Comte ou idealistas de Max Weber, Fernando Henrique Cardoso cravejou toda sua sociologia na economia e é isto que faz dele um dos maiores ECONOMISTAS brasileiros.

Quem conhece e reconhece a tendência que impulsiona a economia concorrencial, de mercado, a se transformar em monopolista e cartelizada, não pode acreditar nas virtudes, nem na real possibilidade de retorno da economia brasileira a uma forma anterior de existência, isto é, à fase neoclássica, iluminista e cerebrina de existência. Chamberlain e Joan Robinson, que deram um passo ortodoxo nos estudos formais da concorrência perfeita para as formas imperfeitas de mercado nos anos 20, acabaram, na confissão da última, afirmando que "não acreditava mais que ensinar a economia neoclássica era uma forma honesta de ganhar a vida".

Quando uma versão ideológica nova, necessária para revolucionar conservadoramente o capitalismo e romper suas contradições aprofundadas e manifestadas numa crise, surge, encontra pela frente os obstáculos representados pelas velhas trilhas mentais que dominam o pensamento vigente: mais do que a força conservadora presente nas velhas trilhas mentais, o poder conservador das estruturas materiais da produção, as bases de uma tecnologia voltada e impulsionada para o luxo, para a guerra e para o espaço, da distribuição e do consumo sociais; de verdadeiros enclaves de grandes espaços em que a agropecuária de grande escala se escoa por uma rede viária ligada aos mercados externos, sempre prioritários em relação ao interno; de uma superestrutura jurídica retrógrada, das formas monetária e creditícia, entre elas a do crédito público e da dívida pública que permitem que os bancos governem o governo e emagreçam os consumidos consumidores; das relações internacionais que transformam um país que vende mais do que compra, que exporta valores superiores aos de suas importações e que deveria ser credor do resto do mundo, em devedor permanente da banca mundial; da distribuição da renda, da técnica, do poder e da divisão do trabalho interno e internacional, estruturas estas que se apresentam com todo seu poder conservador.

Na fase inicial de nascimento de uma nova versão ideológica, a propagação da nova visão da sociedade, que carrega consigo um diagnóstico diferente dos velhos problemas e aponta para um conjunto de soluções embasadas em novas palavras, numa lógica diferente da anterior, encontram uma resistência importante à transformação da versão ideológica em processo de objetificação, de encarnação em prática.

À medida em que as novas instituições, as mudanças estruturais tomam corpo e se reificam, a produção reabsorve parte do desemprego por meio dos gastos bélicos e o Poder Executivo se hipertrofia, a luta teórica vai perdendo importância, vai se esmaecendo diante dos argumentos silenciosos já encrustrados na prática vitoriosa. Passa-se da fase de inovação ideológica, que destrói parte dos velhos obstáculos mentais e objetivos, para uma fase vitoriosa em que as novas estruturas passam a falar no lugar dos ideólogos que adotam o silêncio dos vitoriosos. AS COISAS PASSAM A FALAR A NOVA LINGUAGEM E AS PALAVRAS DAS COISAS ADQUIREM MAIOR PODER DO QUE A LINGUAGEM DOS IDEÓLOGOS VITORIOSOS. Aqueles professores reacionários que até pouco tempo rezavam o credo da versão ideológica cêntrica que entrou em crise, agora passam a professar a nova "ciência", cheia de novas e eternas inverdades.

O primeiro momento em que a produção ideológica da burguesia mostrou ser um auxiliar indispensável para organizar e mover as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII correspondeu àquele da luta e penosa marcha da ideologia clássica que respaldou, no mundo das idéias e no refazimento das concepções e instituições, a revolução da burguesia em direção ao poder, destruindo e superando o mercantilismo e o despotismo esclarecido, pois "the purpose of laissez-faire was destruct the king and the church"15, para usar a expressão sintética de Keynes.

Outra contribuição importante que a produção ideológica forneceu ao processo de afirmação da sociedade burguesa se deu quando o capitalismo se encontrava em crise aparentemente terminal, a partir de 1929. Com a ideologia keynesiana, que justificou o intervencionismo, o dirigismo e a queima institucionalizada do excedente de capital nos países capitalistas cêntricos, surge o despotismo moderno. Em menor escala, transplantada por Prebisch para a América Latina, sob o rótulo de ideologia do desenvolvimento, anti-populista e justificadora do transplante do capital cêntrico para a periferia, a ideologia keynesiana prestou sua contribuição à acumulação periférica onde justificou a presença do Estado despótico no pólo da acumulação dependente e todas as medidas cambiais, fiscais, salariais, creditícias e de preparação da infra-estrutura viária e energética adequadas para preparar as economias periféricas, hospedeiras, a fim de que melhor recebessem o hóspede ilustre, o capital sobreacumulado no centro e necessitado de ser transplantado. Em nome da necessidade de "romper o círculo vicioso da pobreza", à acumulação selvagem privada se somou a governamental e a transplantada.

Para Fernando Henrique Cardoso, as determinações de Lênine continuam corretas. Elas são mais atuais, quando apontam a tendência inexorável do capitalismo para se concentrar e centralizar sob a égide do capital financeiro, monopolista do que a ideologia neo-neoclássica que bucólica e saudosista acredita no autogoverno das forças do mercado concorrencial, ser cerebrino que Adam Smith sabia inexistir, a não ser como um modelo ideal.

Uma versão ideológica nova não pode ser portadora apenas do passado, não pode deixar de trazer consigo uma perspectiva de construção futura, de reativação do trabalho coletivo que a crise paralisou. É por isto que o retorno neoclássico, não contendo os ingredientes básicos de uma versão ideológica redinamizadora do capitalismo, nasce com cheiro de putrefação, possui um caráter retrógrado. Léfèbvre em seu trabalho sobre "O Existencialismo" refere-se ao escolaticismo de tais versões que são obrigadas a limitar o universo de análise e a maquiar suas idéias peremptas. Fernando Henrique Cardoso é muito inteligente e culto para engajar-se nesta triste e inglória jogada. Os neoclássicos propõem a desconstrução, a desregulamentação, a desprivatização, a desconstitucionalização, a destruição do Estado, o desemprego e o sucateamento de sua burocracia civil e militar, a volta ao ouro ou a uma forma monetária "neutra e forte", em que a moeda fosse um mero catalisador das trocas, à crença em relações internacionais auto-ajustáveis onde inexistisse o imperialismo e o neo-imperialismo que Fernando Henrique analisou de forma magistral. FHC não admite a ideologia neoclássica, natimorta. Ele é obrigado a incorporá-la na falta de algo melhor...

A ideologia neoclássica só pode ser a tábua de salvação apodrecida de que o capitalismo pretende lançar mão quando a cartelização e a monopolização do capital, em sua fase imperialista, não podem mais se valer das alavancas keynesianas de regulamentação e controle, diante da crise do próprio governo e de seus instrumentos despóticos de ação e de dominação. As crises das finanças públicas, da dívida pública, do crédito privado, do desemprego de 820 milhões de trabalhadores em escala mundial, da queda disfarçada da taxa de lucro, ainda sustentada pelos governos falidos ou pré-falimentares têm como causa real, porém oculta, a crise de sobreacumulação de capital, agora em escala mundial. Por isto, esta crise não pode ser redinamizada por uma acumulação adicional nem no departamento I, nem no II, nem tampouco, como aconteceu na recuperação dos anos trinta, no departamento III que tem nos governos capitalistas, agora em regime forçado de definhamento, seu comprador monopsônico. Os setores bélicos, espaciais, as empreiteiras de estradas, de hidrelétricas e de todas grandes obras públicas, as pesquisas que se articulam na esfera estatal, a burocracia civil e militar periféricas receberão o impacto direto da crise financeira do estado capitalista. Ela será mais grave nos Estados e Municípios que não detém sequer o poder emissor residual, esgotado, que a União retém como remédio heróico. Esta crise encerrará o artifício axial do keynesianismo que consistiu em tornar lucrativas as atividades destruidoras, inúteis e improdutivas voltadas para o governo Leviatã.

Quando o atual FHC troca a companhia de Lênine pelas de Baran e Sweezy, de Mandel etc., adota a concepção segundo a qual o capitalismo tem de necessariamente "queimar" o excedente. O social democrata FHC escreveu, naquela ocasião que a "queima do excedente" se faz por meio de gastos bélicos ou de despesas social-democratas com o social... Não se trata, portanto, de obedecer a uma prioridade por motivos humanitários, fraternos, mas de gastos no social como forma de queima necessária do excedente gerado pela a acumulação capitalista, na falta de melhor opção de queima. Repetindo o Presidente-intelectual: "Neste ponto, alguns autores consideraram o fortalecimento dos laços entre a expansão militar e o reforço do controle militar sobre a sociedade, através de uma economia de guerra, como o meio básico da realização do capital. Como segundo argumento, mas ainda como fator importante, OS GASTOS DO ESTADO COM O BEM-ESTAR SÃO FOCALIZADOS COMO SAÍDAS ALTERNATIVAS PARA A ACUMULAÇÃO DE CAPITAL"16.

A ressurreição da ideologia neoclássica, enterrada com a crise de 1929, é um dos sintomas de que esta é a crise final e completa do capitalismo: ela é o fim da linha do capitalismo keynesiano nos países capitalistas adiantados (ACC). Também na União Soviética e na periferia subdesenvolvida, a acumulação capitalista se deparou com um beco sem saída, a não ser a falsa solução do retorno ao passado. A crise da década de trinta, ao contrário do que previa a maior parte dos marxistas e dos sociais-democratas, ao invés de encontrar sua solução no socialismo, encontrou-a no recrudescimento da superestrutura político-ideológica do próprio capitalismo, o nazi-fascismo. De novo, facilitada pela crise do socialismo real no leste europeu, a ditadura do mercado livre poderá recorrer, como sempre, ao despotismo político, ao neonazismo.

Mas, se a "saída" da crise for esta, a solução autoritária terá pouca duração: o despotismo estatal moderno se apoiou no aumento da dívida pública, que sustentou os governos de Hitler, de Mussolini, de F. D. Roosevelt etc. A dívida pública é o sustentáculo indispensável para que a autonomização relativa da esfera política se verifique com toda estrutura militar, com todo aparato publicitário, com todos os instrumentos de cooptação e de sustentação do Estado forte, pobremente apoiado na dívida pública e no papel-moeda... Todavia, desta vez, a dívida pública e as emissões de papel-moeda não mais poderão fazer o papel dos ombros de Atlas do fascismo, pois ela não passa de uma viga podre que já não sustenta sequer seu próprio peso. A falta de possibilidade de superação verdadeira em direção ao socialismo internacional e democrático e os limites estreitos impostos pela dívida pública ao recrudescimento fascista do Estado constituem uma das características mais inéditas da atual crise econômica capitalista.

A fase de acumulação que agora se encerra, disto Fernando Henrique Cardoso tem consciência clara, foi sustentada pelo governo que, para isto, se manteve no pólo da acumulação, como aconteceu entre os subdesenvolvidos e na União Soviética. Quer o Estado fosse um auxiliar indireto do processo de acumulação, como ocorreu nos Estados Unidos e nos contextos social-democratas, de qualquer forma, o processo conduziu à monopolização "de tal modo que o mercado competitivo é substituído nos seus ramos básicos pelo mercado monopolista"17. E mais: quem concorda com Lênine, em seus avanços na estrada aberta por Marx, em que o processo de acumulação capitalista conduz "à formação de um estrato financeiro entre os empresários, mas também a uma marcante preeminência do sistema bancário no modo capitalista de produção", sabe que a privatização das empresas estatais acabará por substituir a tecnoburocracia que as dirige pelos banqueiros cada dia mais proprietários e gestores das três formas de existência do capital.

No Brasil, o governo de FHC prepara a doação das empresas estatais aos banqueiros nacionais e aos estrangeiros, empresas que seriam trocadas pela dívida pública mobiliária detida pelos bancos. Uma vez realizada a operação de mudança de mãos dos monopólios e liquidada a dívida pública, como sobreviveriam os bancos que têm no serviço da dívida pública sua principal fonte de lucro? No regime bancocrático brasileiro, a dívida pública ressurgiria como forma de alimentação direta dos lucros dos bancos que os repartem com os industriais e comerciantes, portadores dos papéis da imensa e cara dívida.

"Além disto", continua o leninista Fernando Henrique Cardoso, "a fusão do capital industrial com o capital financeiro, sob o controle deste último, tornou-se fator decisivo nas relações políticas e econômicas entre as classes capitalistas, com todas as conseqüências práticas que tal sistema de relações apresente em termos de organização estatal, da política e da ideologia"18.

O governo FHC cumpre a previsão de Marx e de Lênine e usa a doação das empresas estatais aos bancos a fim de consolidar o capitalismo financeiro periférico

FHC assume a Presidência e não pode deixar de perceber que as empresas estatais serão vendidas, não porque sejam mal administradas, ineficientes, ou para que seu governo social-democrata "queime" no social os recursos obtidos por meio da troca do patrimônio das estatais por títulos da dívida mobiliária, salvando, de início, os bancos privados. O capitalismo financeiro brasileiro, que resultará da doação de empresas estatais aos banqueiros nacionais e estrangeiros19, só garantirá sua sobrevivência na medida em que a dívida pública se recompuser e, com ela, a seiva de seu serviço midásico, alimento principal dos lucros dos bancos, sem os quais os bancos quebrariam, como já ocorreu na Venezuela. Os gastos da própria receita monetária adicional, extraordinária, obtida pelo governo como resultado da venda das empresas estatais, que fossem feitas "no social" ou em qualquer outro emprego, obrigariam, em nome do controle da inflação, a fim de "enxugar a BASE MONETÁRIA" alagada pelas despesas do governo estroina, neo-desenvolvimentista, vendedor daqueles ativos públicos, a que o Banco Central vendesse títulos da dívida pública, reiniciando o processo de endividamento do setor público... Sem as estatais, o governo teria trocado o patrimônio coletivo de hoje pelas dívidas renovadas de amanhã. Triste e pobre programa de desgoverno o herdado por FHC: o pessimismo emerge do real concreto e se apodera da consciência atormentada. O melhor é não ter consciência, não se deixar envolver pela angústia, esquecendo tudo.

A atual crise demonstrou que, apesar de terem vivido "mamando nas tetas do governo", como declarou Delfim Netto, até esgotar-lhe o úbere, os empresários brasileiros sempre foram incapazes de se manterem nos mercados sem o auxílio constante dos estímulos, incentivos, perdões de dívidas - por meio de correções monetárias dos débitos abaixo da taxa de inflação, doação de terrenos e plantas, taxas cambiais favorecidas e arrocho salarial permanente -, respaldado pela Justiça empresarial e governista do Trabalho. Como, em nome de uma maior eficiência da administração privada, entregar a direção das empresas estatais exemplarmente lucrativas aos empreiteiros e industriais brasileiros falidos, ou a caminho da insolvência apesar do amparo do BNDES?

Alguns sociais democratas que consideram que o governo, ao gastar na saúde, na educação, na cultura, está "queimando o excedente no social"20, dizem que desta vez as privatizações contemplarão os trabalhadores e a venda de ações será feita nos Correios, nos bancos, livre e democraticamente... Esta visão caolha e calhorda do processo não teria o respaldo da percepção dialética de Fernando Henrique Cardoso. Pulverizada nas mãos individuais de pequenos possuidores, cada ação significa apenas um empréstimo feito à grande empresa monopolista: está é uma verdade partilhada por Marx e por Keynes. As alterações quantitativas, a detenção de um grande número ou da maioria do capital acionário muda qualitativamente o significado da ação, confere poderes especiais à direção, lucro real e acesso ao caixa dois aos reais donos das sociedades anônimas. Da mesma forma que o aumento dos graus de temperatura da água acaba por transformá-la em vapor, com outras propriedades e obedecendo a outras leis que não à dos líquidos, assim também o aumento da quantidade apropriada de ações nas mãos de um só grupo, provoca sua metamorfose, a mudança de suas qualidades e poderes.

No Brasil, onde os bancos governam o governo, não se verificou a fusão das três formas de existência do capital a que se refere Fernando Henrique Cardoso. É que a taxa de juros se mostrou sempre tão elevada que, ao invés de investimentos nos setores industriais e no comercial, os Bancos, até recentemente, só investiam no próprio setor, Banco comprando Banco. Os mais de seiscentos estabelecimentos existentes nos anos sessenta se reduziram a cerca de duzentos, sendo que os seis maiores se apropriam de 90% do mercado financeiro.

A metamorfose de Fernando Henrique Cardoso em FHC só pode ser compreendida por meio da releitura crítica do sociólogo paulista. Ele adota de forma definitiva as determinações de Lênine que considera que o circuito e a reprodução ampliados do capital imperialista, em escala mundial, obedecem a alguns poucos e fundamentais motivos. "Convém esclarecer, para evitar equívocos, que a expansão capitalista internacional contemporânea, e o controle das economias dependentes que dela decorre, não dissolvem o caráter imperialista da dominação econômica"21. Para Fernando Henrique Cardoso, o capitalismo internacional arrasta consigo e universaliza as contradições fundamentais do sistema capitalista. A produção de um valor excedente que encontra nos "gastos militares outros meios que proporcionam novas válvulas de escape ao capital"22, e os investimentos diretos, nas economias dependentes, do capital produtivo excedente. "Se existe sob o capitalismo monopolista, um real problema de realização, a nova arma da dependência irá aumentar a necessidade de encontrar novos campos de aplicação para o capital acumulado nas economias centrais"23. Havendo ocupado entre 80 e 90% do campo produtivo brasileiro, os setores principais de produção - carros, duráveis, químico-farmacêutica, metais-mecânica, produtos de limpeza, artigos de beleza e higiene, alimentos, frigoríficos etc. - quanto mais acumula, mais necessidade tem o capital monopolista de ocupar novos campos.

Fernando Henrique Cardoso, ciente do poder inexorável das relações internacionais de dominação do capital monopolista, abre o espaço residual, o do subsolo, do petróleo, das telecomunicações, dos microrganismos, da engenharia genética, das fibras óticas, dos recursos da flora medicinal etc., para ajudar a ampliar o campo de ocupação do capital imperialista voraz e insaciável. Resta a FHC presidir a concordata, a divisão do butim, assumindo as rédeas fracas daquilo que ele chamou de anti-Nação.

Fernando Henrique Cardoso considera, como todo bom marxista, que existe uma contradição fundamental entre as condições de produção e as condições de realização do capital. Mas, muito particularmente, ao contrário de Rosa Luxemburg e outros que explicam as guerras de conquista como forma de ampliação de novos mercados, expressão daquela necessidade de realização do mercado de mercadorias, de produtos finais, o sociólogo brasileiro percebe, com razão, que a ampliação do espaço mundial para o capital produtivo constitui uma manifestação inequívoca daquela mesma contradição. "Se existe, sob o capitalismo monopolista, um real problema de realização de capital acumulado nas economias centrais"24. Isto significa que, o transplante de capital ocorrido para a periferia mundial e, em especial para o Brasil, na década de cinqüenta, é apenas a ponta do iceberg, um momento do processo contínuo de invasão do espaço hospedeiro pelo capital monopolista. Como o mercado nacional já foi completamente ocupado pelo capital transplantado anteriormente, em conseqüência do êxito da acumulação nos setores de produção de luxo, de duráveis, novos setores deverão ser abertos para dar vasão "ao capital excedente no centro mundial".

Fernando Henrique Cardoso considera que "o aumento de empréstimos e ajudas (loans and aid) é, como já foi dito, de importância crescente no imperialismo econômico"25. Assim, a dívida externa flui e cresce como respaldo para a ampliação do campo de dominação do capital imperialista e de suas necessidades de realização. O capital dinheiro de empréstimo, cêntrico, tanto quanto o capital produtivo e o capital mercadoria, apresentam a mesma pulsão internacionalizante e dominadora, de acordo com Fernando Henrique Cardoso. Seu governo deverá abrir mais o espaço econômico brasileiro à "colaboração concorrencial" da banca mundial, e ao "auxílio complementar" do capital produtivo à acumulação periférica, selvagem ataviada com o nome de desenvolvimento econômico-social...

A visão Henriquiana é a mais completa e mais fechada concepção do circuito internacional do capital e de sua necessidade de acumulação, jamais escrita por qualquer cientista social nas economias periféricas e hospedeiras das três formas de existência do capital. O pessimismo que emana dessa visão que Fernando Henrique Cardoso formula é aterrador. A concepção de um modelo hermético, sem janelas e sem portas de saída para a situação de miséria perifericamente produzida pelas relações imperialistas, só aponta para a salvação de uns poucos eleitos, os capitalistas brasileiros, sócios menores do grande capital transplantado, fornecedores de partes e peças para a grande indústria e para os montadores de computadores, telefones celulares etc. Não há como escapar de uma das três formas de existência do capital, proteger-se contra os efeitos espoliadores de algumas, remendar as manifestações de outras: as três partes do capital constituem uma unidade na diversidade das formas de existência do capital. Mas o capital-dinheiro, o capital-produtivo e o capital-mercadoria fazem parte do circuito do capital necessário para que ele recobre e abandone suas sucessivas formas de existência. E o produto final destas relações internacionais imperialistas não é o "fim do imperialismo". "Pelo contrário", afirma Fernando Henrique Cardoso, "a inferência mais adequada é a de que as relações entre países de capitalismo avançado e nações dependentes leva de preferência à 'marginalização' dessas últimas no sistema global de desenvolvimento econômico (como frisou Aníbal Pinto)"26.

As análises de Fernando Henrique Cardoso indicam sempre a vitória esmagadora das forças capitalistas centralmente dominantes sobre o resto da humanidade. A modernidade das relações imperialistas centradas nos Estados Unidos permite que os velhos instrumentos de dominação e de exploração sejam abandonados. "Na prática", afirma o pessimista Fernando Henrique Cardoso, "esta pluralidade de 'vias para o capitalismo' tem servido na América Latina, como a versão contemporânea da REALPOLITIK, não mais aquela do BIG STICK, que se tornou desnecessária porque atualmente se dispõe de bastões locais com controle remoto"27. Sempre se soube o nome dos brasileiros que se colocaram como testas de ferro, lobbistas e sócios menores, os "bastões locais com controle remoto" a que Fernando Henrique Cardoso se referiu. AGORA, MOVIDO PELA COMPLETA DESESPERANÇA DE QUE UMA VIA INDEPENDENTE SEJA ENCONTRADA PELA PERIFERIA, nosso Presidente-intelectual se junta a Roberto Campos, a Delfim Netto, a Roberto Simonsen, ao PFL, igualando-se a eles em seus objetivos e em sua servil mancipação aos interesses do velho imperialismo, neomaquiado. Como no pórtico do inferno de Dante, o capitalismo globalizante, modernoso, imperialista, teria inscrito em sua fronte: lasciai gli speranze o voi ch'entrai.

Aos trabalhadores brasileiros cujas organizações sindicais teriam um poder desprezível diante da organização e das técnicas de dominação e manipulação da opinião pública, resta um futuro de derrotas inglórias... Talvez a opção que eles poderão exercitar seja pouco mais do que a de engraxar sapatos em Nova Iorque ou na Praça da Sé...

Conseqüências políticas do capital-imperialismo sobre o poder periférico

"CAPITAL É PODER SOBRE COISAS E PESSOAS', PODERIA TER CARDOSO REPETIDO DE MARX PARA MELHOR SINTETIZAR AS CONSEQÜÊNCIAS POLÍTICAS QUE O CAPITAL TRANSPLANTADO passa a exercer sobre os países hospedeiros. Para o ilustre marxista paulista, "parte da 'burguesia nacional' (a principal em termos de poder econômico-agrária, comercial, industrial ou financeira) é a beneficiária direta, como participante minoritária, do interesse estrangeiro". O processo de envolvimento dos nativos nas novas relações de exploração "ainda vai além, e não somente parte da 'classe média' (intelectuais, burocracias estatais, forças armadas etc.) está envolvida no novos sistema, mas inclusive parte da classe trabalhadora. Os trabalhadores empregados no setor 'internacionalizado' pertecem estruturalmente a este grupo"28, como se alertasse a CGC e a CUT acerca de seu processo de cooptação e envolvimento pelo grande capital. AS CONSEQÜÊNCIAS POLÍTICAS DO PROCESSO DE DOMINAÇÃO IMPERIALISTA SOBRE O ESTADO PERIFÉRICO LEVAM À FORMAÇÃO DO ANTIESTADO PERIFÉRICO, DA ANTI-NAÇÃO, E A UM CONFLITO ENTRE A NAÇÃO E O ESTADO E SEU COMPONENTE OPOSTO EM EXPANSÃO". "Na medida em que progride O PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DAS NAÇÕES DEPENDENTES, TORNA-SE DIFÍCIL PERCEBER O PROCESSO POLÍTICO EM TERMOS DE UM CONFLITO ENTRE A NAÇÃO E A ANTI-NAÇÃO, SENDO ESTA ÚLTIMA CONCEBIDA COMO O PODER EXTERNO (INTERNACIONAL), DO IMPERIALISMO. A ANTI-NAÇÃO ESTARÁ DENTRO DA 'NAÇÃO' - POR ASSIM DIZER - NO SEIO DA POPULAÇÃO LOCAL E EM DIFERENTES ESTRATOS SOCIAIS"29.

Fernando Henrique Cardoso não põe fé na capacidade defensiva dos sindicatos e das organizações populares no enfrentamento com o "inimigo" que, como ele diz, se misturou mediante a cola dos interesses econômicos e políticos com os setores nativos da população. As relações de dominação se transformam em grilhões sólidos diante dos quais os esforços dos Tiradentes nativos se baterão em vão. Os Silvérios dos Reis vencerão sempre, parece advertir o pessimismo Henriquiano.

Com o transplante do capital cêntrico e suas alianças com a burguesia nacional, os limites à acumulação estão cravados tanto quanto sua dinâmica. As economias hospedeiras não podem tentar livrar-se de suas contradições por meio de recriação de relações externas que reproduzissem o imperialismo cêntrico e que teriam dado certo, lá. Além disto, "em termos do esquema marxista de reprodução de capital, isto significa que o setor I (produção dos meios de produção) - a parte estratégica do esquema reprodutivo - virtualmente pode não existir nas economias dependentes, ou quando existe, não se desenvolve plenamente"30. Assim, a dependência técnica em relação à matriz se reproduz e se transforma em necessidade técnica, mas as economias semi-integradas passam a sofrer de uma maior dificuldade de realização do que as características do centro, porque uma parte do valor total produzido deve realizar-se no departamento I onde os trabalhadores ali empregados e os capitalistas constituem um mercado para as mercadorias do setor II.

Fernando Henrique Cardoso detecta as grandes dificuldades que envolvem a acumulação periférica de capital na fase imperialista atual. Na periferia se constrói o capitalismo difícil, quase impossível, mas é esta a única alternativa que possui o trabalho coletivo nos trópicos espoliados. Sua obra não deixa esperanças de construção independente de uma sociedade industrial periférica voltada para o bem estar da grande massa da população. A estreita dinâmica da acumulação dependente, apelidada ideológica e falsamente de desenvolvimento, está determinada de fora, pelas multinacionais transplantadas ou associadas ao Estado por meio de "joint ventures enterprises"31. Resta aos "neonadas" mudar o nome das rosas: imperialismo passa a chamar-se globalização; abertura às relações técnicas imperialistas, modernização; soberania nacional adquire o apodo de velharia, desmantelamento do Estado, Max Weberização da administração. Mudam os nomes, mas a rosa é a rosa.

Ver-se-á, logo adiante, que o antiEstado periférico que é comandado DE FORA, PELO FMI, BANCO MUNDIAL E OUTRAS ORGANIZAÇÕES POSTAS A SERVIÇO DOS INTERESSES IMPERIALISTAS, dirige a Anti-Nação penetrada pelo capital e pelo poder imperialistas, perde todo o poder e o controle de suas variáveis econômicas estratégicas: não pode determinar o volume dos gastos públicos e nem o correspondente volume de emprego, porque o FMI e o Banco Mundial impõem a peia do equilíbrio orçamentário à ação dinamizadora do Estado; não pode determinar o volume de suas exportações, e, portanto, a quantidade de meios de consumo que comporá a oferta global interna, porque o FMI obriga a consecução de superávits de exportações, por mais inflacionários que eles sejam, a fim de pagar o serviço da dívida externa. Tal superávit comercial provoca a entrada de dólares e seu câmbio por moeda nacional, encharcando a base monetária que será reenxugada mediante mais arrocho salarial, demissão de funcionários, redução de gastos em consumo e elevação da taxa juros e da carga tributária sobre pessoas físicas. Os fundos obtidos mediante contribuições dos trabalhadores deduzidas de suas folhas de pagamento, o Fundo Social de Emergência, o FAT e tudo mais é saqueado pelo governo e pela burguesia impunes e queimado na fogueira social democrata do "excedente".

Abre-se um fosso cada dia maior entre o discurso grandiloqüente e a prática aviltada e aviltante. As palavras perdem credibilidade e o espaço político, o locus do diálogo e do verbo entram em total descredibilidade. As velhas formas de cooptação política adquirem modernidade, mas o evangelho é o velho: é dando que se recebe.

Sem saber até quando poderá contar com os novos cristãos, FHC propõe a desconstitucionalização a fim de poder mudar as regras pétreas da Constituição de 1988 por maioria simples e sabuja, dos políticos que não abandonaram o barco das âncoras perdidas. O "é dando que se recebe" continua sendo a lei e os profetas dos adeptos da religião cujo deus de outro se encontra no altar do Forte Knox.

A concepção da história que se formou na cabeça de Fernando Henrique Cardoso abandona a percepção dialética, inicial. Para ele, a abolição da escravidão resultou do fato de que aquelas relações de trabalho não permitiam uma exploração tão grande do escravo quanto as relações de assalariamento permitem. Foi para "aumentar a mais-valia relativa", para explorar mais intensamente o trabalhador brasileiro é que a escravidão teria sido "superada"32... EMANCIPADOS PARA UMA MAIS INTENSA, DURA E MODERNA ESCRAVIDÃO, OS TRABALHADORES BRASILEIROS não poderão, em horizonte temporal visível, ser senhores da história, prognostica FH Cardoso, já em processo avançado de metamorfose. Fernando Henrique Cardoso não pode esperar o futuro incerto e sofrido. Na Presidência, ele vai referir-se aos esquerdistas brasileiros que não percebem o tamanho dos obstáculos e a dificuldade da luta pela independência e pela dignidade social de "esquerda burra". A inteligente, adere à correnteza, e, ao invés de dar murro em ponta de faca, segura no cabo do punhal.

Vejamos, agora, se uma visão marxista da dívida pública, da dívida externa, da política salarial, das possibilidades reais de estabilização social em plena convulsão poderia injetar otimismo, nacionalismo, vontade de proteger as riquezas e as potencialidades econômicas e humanas do país.

O equilíbrio orçamentário numa sociedade desequilibrada

Se FHC não tivesse esquecido tudo que Fernando Henrique Cardoso aprendera, então a questão do equilíbrio orçamentário não estaria sendo tratada nos termos primários e autoritários como uma verdade indiscutível. Transformado em tabu, o fetichismo do déficit orçamentário zero passa a justificar tudo e qualquer coisa: os fins justificam os meios. O aumento da carga tributária, tal como ocorre com o imposto de renda sobre pessoas físicas, apenas, é a pedra de toque do governo FHC. Se tivesse sobrado alguma memória de Fernando Henrique Cardoso na cabeça menor de FHC, ele saberia que não é possível entender-se a questão do equilíbrio orçamentário sem referência à mais-valia, pois "só a partir daquele conceito é possível entender o sistema capitalista como uma TOTALIDADE CONCRETA"33. Porque não se pode determinar o papel, o funcionamento, a natureza das questões orçamentárias, partes da TOTALIDADE CONCRETA, sem levar em conta o conceito fundamental de mais-valia? É que, se o sistema não fosse produtor de mais-valia ("a produção de mercadorias cessa quando cessa a produção de mais-valia", conforme Marx), a reprodução do sistema estaria assegurada diante do equilíbrio orçamentário. É a mais-valia, valor extraído do trabalho vivo sem qualquer pagamento, que impõe a presença do desequilíbrio orçamentário permanente. Os monetaristas, os partidários do CURRENCY PRINCIPLE, os discípulos de Jean Baptiste Say, os Caballos periféricos consideram que a produção de produtos eleva a remuneração dos "fatores", cria renda disponível em quantidade e poder de compra exatamente iguais ao acréscimo da oferta de produtos. "A produção gera seu próprio mercado", donde decorre que não há limites à expansão do capitalismo, segundo eles. Não pode ocorrer um "general glut", um problema de realização, uma crise de insuficiência relativa de demanda. Se o governo se apropria de parte da renda disponível sob a forma de impostos, só não haverá problema de inflação ou de deflação se ele gastar um montante exatamente igual ao arrecadado.

O pressuposto deste raciocínio é que os produtos não têm mais-valia, que ela não existe, que o sistema não é capitalista, que a "taxa normal de lucro é zero", conforme afirmava Leon Walras, ilustre neoclássico e monetarista. Se cada mercadoria contém, além dos valores correspondentes aos salários (V) e dos valores correspondentes aos custos das matérias-primas e das máquinas desgastadas (C), uma parcela de valor (S) produzida sem pagamento, acima do preço de custo despendido pelos capitalistas, então o valor da mercadoria (C+V+S) é superior ao dos pagamentos efetivados "aos fatores". A produção não cria seu próprio mercado, ao contrário do que afirmam Say, monetaristas, caballistas e "neonadas". A deficiência de demanda efetiva, a contradição entre mercadoria e dinheiro, decorre da produção de mais-valia, valor que se transformará em lucro quando e se a mercadoria for vendida. Se a economia não fosse capitalista, se o lucro não fosse essencial à reprodução do sistema, então FHC teria razão em liquidar o déficit orçamentário: as rendas geradas na produção garantiriam as vendas (a realização), logo, a oferta e a demanda global se igualariam, em qualquer nível de emprego e produção. Mas ele e todos os monetaristas, "neonadas" e pacoteiros, deveriam, necessariamente, combater com o mesmo vigor o superávit na balança comercial, tão ou mais desequilibrante e inflacionário do que o déficit orçamentário. Deveriam liquidar, também, o serviço da dívida pública, que levou para os bolsos dos banqueiros 75% da receita da União em 1989.

No sistema capitalista, déficit zero corresponderá sempre a uma taxa de lucro próxima de zero. A redução dos gastos do governo agravará, certamente, a crise de realização e o caráter excludente e desumano da produção de mercadorias. Se os gastos do governo, causadores dos déficits orçamentários permanentes, fossem provocados por investimentos produtivos do governo, o que para os pacoteiros incrementaria a produtividade e a eficiência do Estado, o espaço e as oportunidades de investimentos privados e a "eficiência" privada seriam estrangulados. Por isto, Keynes aconselha o governo capitalista a "realizar despesas não apenas parcialmente dissipadoras, mas completamente dissipadoras" (wholly wasteful).

O sistema capitalista não se limita ao momento da produção, dos investimentos. Ele é uma totalidade em que os diversos momentos - a produção, a circulação, a distribuição e o consumo são mutuamente dependentes. O governo capitalista, para assegurar a reprodução do processo contraditório, deveria corrigir as contradições que surgem entre a produção e o consumo, entre a distribuição, a produção e o consumo, entre o consumo e a produção etc. É por isto que o governo capitalista não pode ser míope, reduzir as necessidades do sistema ao momento dos investimentos e da acumulação centrado em São Paulo. O sistema capitalista eleva ao máximo a extração da mais-valia relativa, aumenta a eficiência da produção, intensifica o processo de trabalho, desenvolve ao máximo as forças produtivas e, com elas, as contradições entre seus MOMENTOS. Por isto, se as forças produtivas crescessem a taxas incontidas, as contradições entre produção e consumo, entre o capital constante e o variável, entre mercadoria e dinheiro etc., levariam o capitalismo ao colapso.

Por isto, o sistema capitalista não pode, sob pena de entrar em crise, desenvolver as forças produtivas senão dentro de limites mais estreitos. O governo capitalista é obrigado a patrocinar a ineficiência, remunerá-la muito bem, fazer "despesas completamente dissipadoras", em guerra, em espaço, em funcionários públicos, em "pirâmides", para evitar que o sistema capitalista se destrua pelas forças que ele é capaz de produzir, mas que ele não pode comportar. Fernando Henrique Cardoso sabia disto. No entanto, FHC opta pelo irrealizável, pelo incompatível com o desenvolvimento sustentado que, paradoxalmente, diz ele ter como meta de seu governo: o desquilibrado equilíbrio orçamentário.

Fernando Henrique Cardoso diante do Imperialismo de Lênine e da destruição do excedente. A dialética esquecida por FHC como único método capaz de determinar as contradições nas relações econômicas internacionais

Se cada mercadoria contém, além dos valores correspondentes aos salários (V), pagos com a importância em dinheiro D1, e dos valores correspondentes aos custos das matérias-primas e máquinas desgastadas, pagas pelos capitalistas com a quantia em dinheiro D2, uma parcela de valor (S), produzida sem pagamento algum, então o poder de compra gerado na produção (D1+D2) não é suficiente para adquirir, para demandar o valor das mercadorias, C+V+S. "De onde vem o dinheiro?", a quantia D3, necessária para que o valor da produção, C+V+S, possa ser vendido. Não vem; a demanda gerada numa sociedade mercantil, capitalista, (D1+D2) é insuficiente para comprar o valor das mercadorias (C+V+S).

Ao longo de todo o tomo II do Capital, Marx repete esta indagação para demonstrar que a contradição entre mercadoria e dinheiro não encontra solução numa sociedade mercantil, desenvolvida, capitalista, produtora de mercadorias. "O objetivo do capitalista não é igualar sua oferta e sua demanda, mas o de tornar a desigualdade entre elas, o excesso de sua oferta sobre sua demanda o maior possível"34, maximizando o lucro. O capitalista é o ponto de partida do circuito, vende mercadorias e lança dinheiro em circulação, cria demanda (D1+D2) ao pagar C+V, mas a cria em volume inferior ao valor da oferta, (C+V+S). Falta a quantia D3, que não foi lançada em circulação, de vez que o valor S, a mais-valia, não foi paga. Do ponto de vista do circuito, Marx detecta a mesma contradição: os capitalistas investem a quantia D, em dinheiro, igual a D1+D2, e vendem as suas mercadorias por D+d'. De onde vem o acréscimo, o lucro, d', que não foi lançado no circuito? "De onde vem o dinheiro adicional necessário para realizar a mais-valia adicional agora contida na forma de mercadorias?", pergunta Marx, desafiadoramente35. Não vem, a não ser por acaso, responde Marx. Ele se refere expressamente, à página 481 do citado tomo II, aos investimentos em maturação, à construção de ferrovias, às obras públicas, como supridoras de parte de D3, geradoras de rendas adicionais, às quais não corresponde, ainda, nenhum acréscimo de produção e de oferta de mercadorias. "Durante este período (de maturação, esclareça-se), o dinheiro lançado pelos capitalistas em circulação serve para converter o valor-mercadoria, incluindo a mais-valia nela objetivada, em dinheiro. Este fator se torna muito importante num estágio avançado da produção capitalista no caso de empreendimentos de longo período de maturação, tais como os realizados por sociedades anônimas etc., por exemplo na construção de estradas de ferro, canais, docas, grandes edifícios públicos, construção naval, drenagem de terras em larga escala etc."36 São as obras keynesianas, cuja função Marx determinou no século passado...

Rosa Luxemburg pensa que as exportações permitiriam encontrar nos mercados externos, coloniais, ou em setores atrasados, agrícolas, o dinheiro (D3), que não foi lançado em circulação pelos capitalistas. Kalecki não chega sequer a perceber que os capitalistas são o ponto de partida da circulação de mercadorias e do dinheiro, sim, mas que as importâncias em dinheiro (D1+D2) pagas aos "fatores", o preço de custo, são inferiores ao valor das mercadorias (C+V+S), que deveriam ser vendidas não apenas por D1+D2, mas por D1+D2+D3. Se "os capitalistas ganhassem o que gastam", eles não seriam capitalistas. O problema é que eles têm de ganhar (D1+D2+D3) mais do que gastam (D1+D2), a fim de obterem lucro. "De onde vem o dinheiro?", continua Marx a perguntar, para realizar o valor total das mercadorias? Não vem, a não ser por acaso. Este acaso ocorre quando os investimentos em maturação, acima referidos, mais os gastos do governo em obras de maturação longa ou infinita (despesas bélicas, espaciais etc.), geradoras do déficit orçamentário, criarem uma renda disponível para o consumo numa quantia equivalente a D3. Assim, S poderia se realizar, assumir a forma dinheiro, ser comprada por D3.

Quando o governo periférico, ao contrário do norte-americano, do japonês, do cêntrico em geral, corta gastos, enxuga, reduz a demanda e o consumo coletivos, a crise de realização se aprofunda e o FMI bate palmas. A contradição entre mercadoria e dinheiro é que se manifesta sob a forma de déficit orçamentário necessário. Equilibrado o orçamento, a crise de insuficiência de demanda "efetiva" só não se manifestaria se grandes investimentos em maturação fossem feitos para lançar dinheiro em circulação, pagar os fatores, sem retirar dinheiro algum dela, pois as indústrias, de edifícios, navios, estradas de ferro etc., ainda não teriam receitas, é a mais-valia um dado essencial para a compreensão da totalidade capitalista e de seus componentes e momentos contraditórios, entre eles a dívida pública.

Como, a partir da crise de 1929, os governos de Roosevelt, de Hitler, de Mussolini etc. foram obrigados a incorrer em enormes despesas capazes de elevar o nível da combalida demanda efetiva, os fornecedores do governo, empreiteiras, indústrias bélicas e semelhantes, aproveitaram as benesses do consumidor soberano verdadeiro, o governo despótico-comprador. A moeda de ouro se transformou num empecilho para o aumento dos gastos do governo. O papel-moeda mostrou-se muito mais funcional, dinheiro facilmente produzido, sem os limites do sistema metálico. Ao incorrer em déficit orçamentário, o governo anticíclico emite papel-moeda para instilar D3, para cobrir o déficit. De início, parece que as emissões podem ser controladas de forma a permitir que o nível da demanda efetiva se desloque do nível de subemprego para o de "pleno emprego" keynesiano. As indústrias, empreiteiras e prestadoras de serviços ao governo acumulam capital rapidamente, não têm problemas de realização, de falta de mercado solvente. Elas se transformam no setor dinâmico da economia, capitaneada pelos setores bélicos. O governo não pode mais limitar seus gastos ao montante suficiente para elevar o nível de demanda efetiva assegurador do "pleno emprego", isto é, a quantia D3 capaz de permitir a venda do valor S, da mais-valia. Se o governo é obrigado a abandonar o antigo parâmetro keynesiano, teórico (limitar seu déficit orçamentário ao quantum necessário para que a economia atinja o "pleno emprego"), para elevá-lo ao nível capaz de assegurar a reprodução, a não-falência das indústrias e dos fornecedores do governo comprador. Se o governo equilibrar o orçamento, aquele setor entra em falência e esta se espalha por toda a economia. O nível de gastos do governo, capaz de garantir a reprodução ampliada dos setores que têm o governo como seu principal comprador, produz uma elevação do nível da demanda efetiva que corresponde a uma inflação crescente. A solução keynesiana, a suplementação de demanda efetiva, a injeção de D3, por meio do déficit orçamentário, se transforma em problema.

A tendência à deflação, presente nos Estados Unidos até 1937, se transforma em inflação ameaçadora. O governo, que pode emitir dinheiro, não tem porque tomar empréstimos. O papel-moeda deveria ter eliminado a dívida pública: o governo que pode criar dinheiro, não teria porque elevar a dívida pública, tomar dinheiro emprestado. Mas ao elevar seus gastos a um nível que garanta a reprodução de seus fornecedores, o governo cria uma crescente pressão inflacionária, sendo obrigado a retirar parte do poder de compra que ele teve de lançar em circulação. Ele é obrigado a vender títulos da dívida pública, "bonds", para evitar a pressão inflacionária que o nível de seus gastos, impostos pelos pagamentos a empreiteiras, fornecedores de armas etc., provocaria, fatalmente. A dívida pública passa a ser o contrapolo do dinheiro-estatal: se a dívida pública não esterilizar o excesso de D3, de dinheiro-estatal lançado acima do nível que asseguraria o "pleno emprego", a taxa de inflação se elevaria exponencialmente. A dívida pública tem de aumentar para esterilizar o dinheiro-estatal: se a dívida pública não aumenta, a inflação dispara, atinge a hiperinflação. Para tentar controlar a inflação decorrente da decuplicação dos gastos bélicos do governo federal dos Estados Unidos em 1939, a dívida pública se elevou a 120% do PIB norte-americano, em 1945. Se a dívida pública não tivesse se elevado àquele nível, para esterilizar parte do poder de compra gerado pelos gastos do governo, a inflação norte-americana teria atingido, sem dúvida, os três dígitos. Se o orçamento se equilibrasse, por meio de cortes de despesas, os Estados Unidos teriam perdido a segunda guerra mundial. Os monetaristas equilibram o orçamento, mas perdem as guerras contra os adversários externos, contra o desemprego, contra a fome etc. Hitler elevou a dívida pública a níveis himalaianos, dívida contra a qual o monetarista Dodge, usando os braços das forças de ocupação, deu o calote em 1948.

A mais-valia, como Fernando Henrique Cardoso escreveu, é conceito essencial para que se compreenda o déficit público. Se S, a mais-valia, foi produzida de graça, nada custou aos capitalistas, não houve qualquer pagamento correspondente àquele valor, o sistema não pode gerar um "débouché", um mercado, uma demanda final correspondente ao valor S. O déficit do governo federal, na falta de outras fontes geradoras de D3, deverá alcançar um montante igual ao de D3, instilar poder de compra suficiente para que S possa ser comprada por D3, suprindo a deficiência capitalista de demanda. As contradições internas entre mercadoria e dinheiro, que se refletem nas contas públicas, se somam às contradições presentes nas relações capitalistas internacionais. O governo emite para cobrir o déficit orçamentário, aumentando a dívida pública, o crédito público, o poder de compra adicionado pelo governo; a dívida das famílias se amplia para que rendas futuras, ainda não ganhas, sejam gastas agora, ampliando o mercado presente; a dívida externa, o crédito externo também crescem para aumentar D3, para ampliar as compras atuais. Toda a ampliação dos créditos: público, externo, de família e empresas reduz a capacidade de compra futura da coletividade no montante correspondente aos serviços daquelas dívidas...

Marx dizia que era justamente nas relações internacionais que as contradições do capitalismo se concentram e encontram na violência suas soluções. Sem cavalgar as contradições que impulsionam o comércio e as finanças internacionais, é impossível entender como tanto um superávit na balança comercial quanto um déficit da mesma provocam uma resposta única do governo capitalista: o aumento da dívida pública interna. Um superávit na balança comercial produz um efeito inflacionário visível e dual. O superávit na balança comercial desfalca a oferta interna de mercadorias, provocando uma pressão inflacionária por escassez de mercadorias; mas, ao elevar a renda dos exportadores, outra pressão inflacionária é criada, por excesso relativo de renda disponível. O governo, através do Banco Central, é obrigado a "lutar contra a inflação", que, no caso, significa vender títulos da dívida pública a fim de retirar o excesso de dinheiro provocado pela câmbio de dólares provenientes das receitas de exportação, por reais. Se os dólares que entram no sistema superavitário na balança comercial puderem ser depositados livremente em bancos nacionais, quanto maior sua permanência na forma de depósitos menor a pressão inflacionária que os superávits comerciais provocariam. Na medida em que a própria unidade monetária brasileira for o dólar, ninguém pode assegurar que o direito de abertura de depósitos bancários em dólar, no país, possa exercer o papel de substituto do aumento da dívida pública (venda de títulos), no enxugamento da base monetária. Logo, os superávits comerciais produzem, em última instância, um aumento da dívida pública interna. O país que hoje melhor evidencia esta relação interna é o Brasil.

Os países da OPEP, há vinte anos atrás, diziam que seu maior problema era o excesso de dólares recebidos da exportação do petróleo e que provocavam uma invencível pressão inflacionária e o aumento da dívida pública, da venda de títulos que se mostrava insuficiente para "enxugar a base monetária". Mas, se o superávit comercial tem este efeito perverso interno, o déficit na balança comercial, por caminhos e motivos diferentes, acaba obrigando governo a aumentar a dívida pública e o déficit orçamentário federal, como ocorre com os Estados Unidos desde 1971. Acontece que uma economia nacional, que importa um valor superior ao de suas exportações de mercadorias, deve, internamente, realizar não apenas os valores C+V, com as quantias em dinheiro automaticamente geradas - D1+D2, mas também o valor não pago S (que não gerou D3), e os valores importados a maior do que os exportados. O déficit na balança comercial obriga o país deficitário a realizar, a vender, em seu mercado interno o valor correspondente ao excesso das mercadorias importadas sobre o valor das exportações. O governo de uma economia nacional que apresenta um déficit em sua balança comercial é obrigado a criar um poder de compra que permita não apenas a venda de S, a realização da mais-valia, e, também, a compra interna das mercadorias cujo valor de importação supera o valor das exportações, isto é, o montante do déficit da balança comercial.

Será que o capitalismo brasileiro poderá viver sem o oxigênio do "déficit spending" enquanto a dívida pública dos Estados Unidos ultrapassa os 4,5 trilhões de dólares e o déficit orçamentário de 250 bilhões anuais? Não é claro que o déficit orçamentário do governo federal dos Estados Unidos tem por razão de ser a necessidade do sistema de elevar o nível da demanda efetiva, criar D3 em escala necessária para permitir que S, a mais-valia, seja realizada, vendida, juntamente com as mercadorias importadas em valor superior ao das exportações dos Estados Unidos?

Na mesma semana em que Fernando Henrique Cardoso mobilizava suas tropas pacoteiras, partidos e seguidores do fetichismo do "débito orçamentário zero", a avalanche real do dinheiro externo, especulativo, hot money, e a decorrente dos fantásticos saldos externos, fazia elevar a taxa de juros a mais de 50% ao mês. Esta avalanche carregou consigo o diretor Pinto do Banco Central e demonstrou que não adianta fingir que um problema não existe, "afogando-o no poço do coeteris paribus", para que ele deixe de convulsionar a realidade ideologicamente simplificada. Na mesma semana agitada, os latifundiários e os grandes fazendeiros conseguem fazer passar na câmara da decrepitude um perdão sobre a correção monetária das dívidas por eles contraídas junto ao Banco do Brasil, no montante de 97 bilhões de dólares. Do "fundo do poço do coeteris paribus", onde os neoclássicos afogam as variáveis incômodas, surgem perturbações insopitáveis capazes de transformar sonhos ideológicos de equilíbrios em pesadelos sanhudos.

Crise e dissolução do sistema como revelações de sua anatomia interna:

De Fernando Henrique Cardoso a FHC

Fernando Henrique Cardoso sabia que a crise e dissolução do sistema revelam sua anatomia interna, sua realidade dissimulada pelo auge e pelo vigor da versão ideológica equilibrista, positivista. "Retoma-se a discussão sobre o sistema escravocrata", escreveu Fernando Henrique Cardoso, "porque só na desagregação do sistema revelam-se de forma nítida as condições, fatores, processos e mecanismos que interferem no seu funcionamento: A VIOLÊNCIA COMO VÍNCULO BÁSICO DA RELAÇÃO ESCRAVISTA APARECE CLARAMENTE NA ANTIVIOLÊNCIA, TAMBÉM VIOLENTA, DO ESCRAVO QUE SE REBELA; E, POR OUTRO LADO, AS CONDIÇÕES DE FUNCIONAMENTO DO SISTEMA EVIDENCIAM-SE, PARA OS COEVOS, NOS MOMENTOS DE SUA DESAGREGAÇÃO, A IMPRATICABILIDADE DO CAPITALISMO EXPANDIR-SE ALÉM DE CERTOS LIMITES ATRAVÉS DA ESCRAVIDÃO DEMONSTRA-SE NO ESFORÇO INGENTE DE CRIAÇÃO DE FORMAS DE RETRIBUIÇÃO PECUNIÁRIA AOS ESCRAVOS NO PERÍODO DE DISSOLUÇÃO DO REGIME"37. Isto é, Fernando Henrique Cardoso afirma que a economia de mercado, capitalista, é capaz de explorar mais os trabalhadores do que a escravidão podia fazê-lo. FHC está perdendo a oportunidade, que esta crise apresenta, de determinar as formas assumidas pelas contradições internas e internacionais, de entender as crises capitalistas como um processo movido por contradições crescentes, cada vez mais completas tanto do ponto de vista da estrutura quanto das relações internacionais de mútua dependência, de polarização e de exclusão recíproca. Se FHC não tivesse se tornado prisioneiro do modelismo neoclássico e dos clichês mentais fabricados pelo FMI, talvez ele pudesse compreender criticamente o atual momento da crise completa do capitalismo.

Quando os estados periféricos, a começar pelo Panamá, seguido pela Argentina, pelo México e pelo Brasil, abrem mão de sua moeda nacional, da centralização tributária, reduzida ao "equilíbrio" orçamentário que torna os governos nacionais inermes, completamente incapazes de planejar seus gastos necessários, talvez Fernando Henrique Cardoso percebesse que ele está contribuindo para a dissolução dos estados nacionais que se formaram como conchas protetoras da acumulação capitalista. Sem a "dívida pública, o protecionismo, a exploração colonial", e poder-se-ia acrescentar, sem a moeda nacional, o exército permanente e centralizado, o poder de pesquisa, os estados nacionais jamais teriam surgido, pelo menos como os conhecemos hoje. As "alavancas da chamada acumulação primitiva - a dívida pública, o protecionismo, a exploração colonial", a moeda, o exército nacional e a acumulação estatal (a partir das companhias de navegação e das empresas régias e privilegiadas do tempo de Colbert) - estão sendo sucateadas na periferia e se concentrando nos Estados Unidos. Se aqueles elementos são constituintes e foram indispensáveis para a formação do capitalismo em todas as latitudes, o projeto neoliberal aplicado na periferia mundial pode estar conduzindo à dissolução dos Estados Nacionais, conforme a previsão de Marx. Mas esta destruição dos Estados Nacionais não virá como superação, mas como tragédia e barbárie ditadas pelos interesses do capitalismo cêntrico em crise. Na periferia se instala o anti-Estado nacional. Como a atual crise do capitalismo cêntrico é uma crise de sobreacumulação e de realização, de falta de mercado para a escala mundial de produção, o capital produtivo, que não emigrou para o espaço da CEI, não emigrará, senão em doses homeopáticas, para a periferia, cujo mercado foi destruído pela pobreza e pelos juros escorchantes das dívidas internas e externas.

Ao contrário do que "pensam" os "idiotas da objetividade" da FIESP, a invasão do subsolo pelo capital estrangeiro, a apropriação indébita de empresas estatais e as privatizações da saúde, da educação, da aposentadoria, que já começam a mostrar seus problemas e aplicar golpes em seus clientes e assegurados, ajudarão no processo de destruição do mercado interno: as despesas com saúde, educação, aposentadoria privada reduzem as rendas disponíveis para outros fins, agravando a crise de insuficiência de demanda, de realização. As empresas privadas não poderão ser indefinidamente sustentadas pelo BNDES, pelo assalto ao FGTS, pela expropriação do FAT etc. Falidas as empresas nacionais, seremos obrigados a importar as modernidades que provocam a crise de realização cêntrica, que sobram no Japão depois de terem invadido a Europa e os Estados Unidos. O NAFTA, ampliado para a América Latina (naftalina?), obrigará a periferia sucateada a voltar-se para as atividades extrativas, agropecuárias, primárias, de onde sairão os parcos recursos para a elite importar o luxo e a modernidade do centro.

A meio caminho do famigerado Cruzado I, João M. Cardoso de Mello, acompanhado de sua inseparável empáfia, veio à TV anunciar que, com a adoção dos empréstimos compulsórios e do FDE, "a dívida pública foi liquidada para sempre... podem comemorar", dizia o ilustre campineiro. Agora, FHC repete o mote sediço e afirma que sem o Fundo Social de Emergência o "plano" não dará certo. Mas, com esses recursos extras, com esta fatia maior da massa de mais-valia apropriada pelo governo que ele diz ser totalmente ineficiente, a danada da inflação será enterrada e os problemas sociais serão resolvidos. "Tudo pelo social", sempre emergencial...

Os pacoteiros que cercam FHC conseguiram eleger vinte e um governadores do PMDB, ao tempo de Sarney. Sua economia não é política, é "economics" politiqueira. Desejam repetir a mágica em proveito do PSDB, após o congelamento de preços no zênite, no teto, para onde o governo os espantou, e de salários no nadir, no piso, onde a correção defasada e a inflação de mais de 40% ao mês os fez cair. Como sabia Fernando Henrique Cardoso, a história só se repete como farsa. Desta vez, é a farsa do plano FHC 2, querendo repetir a farsa do Cruzado I. Triste história, "tristes trópicos"...

FHC se convenceu de que a avalanche da correnteza imperialista, "globalizante", é inexorável. Ao invés de lutar contra a correnteza, FHC se entrega a ela. Ao invés de dar murro em faca de ponta, FHC segura o cabo do punhal... "O que não tem remédio, remediado está" este é o lema oculto do governo, que só poderá ser lido e entendido por aqueles que tenham decifrado o hieroglífico FHC.


1 DIEL, p. 9.


2 Fernando H. Cardoso, op. cit., p. 10.


3 Idem, ibidem, p. 13.


4 J. M. Keynes, General Theory, MacMilland, p. 45.


5 Fernando H. Cardoso, op. cit., pp. 18-9.


6 Idem, ibidem, p. 17.


7 Idem, ibidem, p. 14.


8 Idem, ibidem, p. 25.


9 Idem, ibidem.


10 Idem, Modelo Político Brasileiro, DIEL, pp. 149-50.


11 K. Marx, El Capital, FCE, 1931, p. 1317.


12 Fernando H. Cardoso, O Modelo Político Brasileiro, p. 186.


13 Idem, ibidem, p. 187.


14 Idem, ibidem, p. 188.


15 "O objetivo do laissez-faire era destruir o Rei e a Igreja", In J. M. Keynes, Laissez-Faire and Communism.


16 Fernando H. Cardoso, O Modelo Político Brasileiro, p. 193. Grifo nosso.


17 Idem, ibidem, p. 187.


18 Idem, ibidem, pp. 187-8.


19 Lauro Campos, Estatização, Privatização e Crise, Unb, 1982.


20 Fernando H. Cardoso, op et locus antes citados.


21 Idem, Modelo Político Brasileiro, p. 192.


22 Idem, ibidem, p. 198.


23 Idem, ibidem.


24 Idem, ibidem.


25 Idem, ibidem, p. 199.


26 Idem, ibidem.


27 Idem, ibidem, p. 7.


28 Idem, ibidem, p. 200.


29 Idem, ibidem.


30 Idem, ibidem, p. 197.


31 Idem, ibidem, p. 194.


32 Idem, Capitalismo e Escravidão.


33 Idem, O Modelo Político Brasileiro, p. 25.


34 K. Marx, O Capital, vol. II, p. 121.


35 Idem, ibidem, p. 349.


36 Idem, ibidem, p. 481.


37 Fernado H. Caroso, Capitalismo e escravidão, p. 26.



Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 26/05/1995 - Página 8796