Discurso no Senado Federal

DEFESA DO RETORNO DO SENADO FEDERAL AOS GRANDES DEBATES NACIONAIS. ANALISE DO POSICIONAMENTO POLITICO, IDEOLOGICO E ECONOMICO NO MUNDO. DEFICIENCIAS ADMINISTRATIVAS DO ESTADO BRASILEIRO.

Autor
Jefferson Peres (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/AM)
Nome completo: José Jefferson Carpinteiro Peres
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ESTADO DEMOCRATICO.:
  • DEFESA DO RETORNO DO SENADO FEDERAL AOS GRANDES DEBATES NACIONAIS. ANALISE DO POSICIONAMENTO POLITICO, IDEOLOGICO E ECONOMICO NO MUNDO. DEFICIENCIAS ADMINISTRATIVAS DO ESTADO BRASILEIRO.
Aparteantes
Bernardo Cabral, Casildo Maldaner.
Publicação
Publicação no DCN2 de 15/06/1995 - Página 10306
Assunto
Outros > ESTADO DEMOCRATICO.
Indexação
  • HISTORIA, ANALISE, LIBERALISMO, SOCIALISMO, CONCILIAÇÃO, SOCIALIZAÇÃO, DEMOCRACIA.
  • ANALISE, DIAGNOSTICO, CRISE, ESTADO, INCAPACIDADE, SETOR PUBLICO, OBTENÇÃO, RECURSOS FINANCEIROS, DIVIDA INTERNA, DIVIDA EXTERNA, DEFESA, PRIVATIZAÇÃO, EMPRESA PUBLICA, CRITICA, RESISTENCIA, SOCIALISMO, EXCESSO, LIBERALISMO, NECESSIDADE, CONCILIAÇÃO, SOCIALIZAÇÃO, DEMOCRACIA.

O SR. JEFFERSON PÉRES (PSDB-AM. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Em primeiro lugar, meus agradecimentos ao meu prezado amigo e companheiro da representação do Amazonas, Senador Bernardo Cabral, por um gesto muito próprio da sua maneira elegante de ser e de agir.

O Sr. Bernardo Cabral - V. Exª merece.

O SR. JEFFERSON PÉRES - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, pelos pronunciamentos que tenho ouvido desde que aqui cheguei, entendo que este Senado, na presente legislatura, voltará a desempenhar um dos seus papéis institucionais quase esquecidos, qual seja, o de fórum principal dos grandes debates nacionais.

Com a humildade dos recém-vindos, à qual se soma a de representante de uma província distante, não posso fugir ao imperativo de dar a minha contribuição, ainda minúscula, a essa discussão fecunda que haverá de aclarar, por certo, os caminhos do País no futuro próximo.

Por necessário, em qualquer confronto de idéias torna-se irrecusável, preambularmente, imprimir nitidez às definições conceituais, como pressupostos ideológicos à posição de cada um. E aqui parece inescapável definir-se quanto à tradicional divisão, velha de dois séculos, do campo político entre esquerda e direita. Fácil até pouco tempo, dada a clareza da linha divisória e o contraste cromático dos dois campos, tal definição torna-se a cada dia mais difícil, ante a transformação vertiginosa do mundo, que vai, pouco a pouco, apagando a linha e misturando as cores.

De minha parte, estou de um lado ou de outro, dependendo da ótica ou do critério de avaliação. Se por esquerdismo se entende a postura dogmática de idolatria da estatização e antagonismo ao capital estrangeiro, então, decididamente, eu não sou um homem de esquerda. Mas se o esquerdismo for definido por uma visão ética da coisa pública e, como quer Madame Danielle Mitterrand, um estado de permanente revolta contra todas as formas de injustiça, vale dizer a conjunção do compromisso ético com o anseio de justiça, então, definitivamente eu sou um homem de esquerda.

Feita esta declaração de princípio, não será despiciendo fazer uma ligeira digressão a respeito dos equívocos que estão na raiz da divisão maniqueísta que marcou o debate político no passado e que ainda resiste, embora atenuada, no mundo contemporâneo.

Creio que foi uma grande tragédia na história do Ocidente o desencontro das duas correntes de pensamento predominantes em seu processo evolutivo nos últimos 200 anos. Refiro-me ao liberalismo e ao socialismo, galhos do mesmo tronco, porque oriundos ambos do iluminismo europeu racionalista e humanista nascido no século XVIII. Um desencontro surpreendente, que levou duas idéias-força harmônicas e complementares a se tornarem tragicamente antagônicas e excludentes. Muitos se espantarão com esta afirmativa, porque condicionados mentalmente por dois séculos de incompreensões e conflitos que colocaram liberais e socialistas em campos diametralmente opostos.

Na verdade, nada há de espantoso no que digo. Se examinada a fundo a questão, veremos que a fusão do liberalismo com o socialismo constitui a síntese capaz de conciliar doutrinariamente os mais caros ideais da humanidade tanto no plano político quanto no econômico, como tentarei demonstrar a seguir.

Na esfera política, o valor básico perseguido pelo liberalismo é a liberdade. O socialismo busca, por sua vez, como valor fundamental a justiça. Ora, liberdade e justiça constituem aspirações supremas dos seres humanos. Seus defensores deveriam ser, portanto, soldados do mesmo exército, nunca adversários. Por que, então, se puseram em confronto? Por circunstâncias históricas que passo a resumir.

Os liberais clássicos defendiam uma democracia de elites, em nome da liberdade, sem perceber que a injustiça da exclusão social implicava de fato a ausência de liberdade real para a maioria.

Os socialistas, por seu turno, principalmente os de formação marxista, defendiam a ditadura do proletariado ou sua variante, a democracia popular, em nome da justiça, incapazes de perceber que o sacrifício da liberdade implicava uma profunda injustiça para muitos, senão para todos.

Foram necessários muita luta e muito sangue para que liberais e socialistas chegassem ao consenso atual, convencidos de que no plano estritamente político justiça e liberdade somente se tornam possíveis no marco das modernas democracias de massa, que conciliam as liberdades fundamentais com ampla e efetiva participação popular no processo político.

Já no plano econômico, o desencontro ocorrido entre liberais e socialistas se deveu ao equívoco que ambos cometeram a respeito das duas mais antigas e importantes instituições criadas de forma natural e espontânea pelo processo histórico. Falo do mercado e do Estado.

Os liberais clássicos defenderam equivocadamente que o Estado se limitasse às funções legiferantes e repressoras, deixando a economia às forças de mercado e as demais funções sociais à iniciativa privada.

A experiência histórica demonstrou, cabalmente, que tal sistema, se por um lado conduz a uma grande geração de riqueza, por outro leva a sua indesejável concentração, com muita desigualdade e marginalização social.

Os socialistas-marxistas, por sua vez, erraram gravemente ao pretender que o Estado substituísse o mercado, como condutor da economia.

Também a experiência histórica mostrou de forma incontestável que tal sistema, embora capaz de distribuir melhor a riqueza, por outro lado revelou-se ineficiente na sua geração, ineficiência que se torna crescente à medida que a economia adquire maior complexidade.

Parece evidente, hoje, que os países mais prósperos e mais equilibrados, com estabilidade política, dinamismo econômico e eqüidade social, são exatamente aqueles que souberam fazer a sintonia fina entre a ação das forças de mercado e a atuação dos entes governamentais. Em outras palavras, deram certo os países que perseguiram os ideais de liberdade e justiça usando como instrumentos, adequadamente, o mercado e o Estado.

Chame-se a isso de socialdemocracia ou que outro rótulo se prefira - a nomenclatura é irrelevante. Importa é que conseguiram, pragmaticamente, nas condições do mundo real, harmonizar os valores e as propostas do liberalismo e do socialismo.

Essa questão doutrinária tem valor não apenas teórico, mas também de ordem prática, vez que a confusão conceitual distorce a visão e impede enxergar, com clareza, a realidade do País. Sua exata percepção é essencial na medida em que permitirá compreender melhor os problemas que o Brasil enfrenta e, conseqüentemente, vislumbrar as soluções possíveis.

Tenho sustentado, em companhia de bons analistas, que a crise brasileira consiste, basicamente, na crise do Estado brasileiro. E esta, por sua vez, pode ser diagnosticada como sendo, em essência, de natureza fiscal. Em outras palavras, os grandes problemas do País decorrem direta ou indiretamente da crise financeira do Poder Público, incapacitado de gerar recursos para o custeio de suas funções primordiais.

Daí deriva uma série de males, a começar pela inflação a qual, como se sabe, tem como causa primária o desequilíbrio das contas públicas. Não preciso lembrar que inflação por si só já é um mal terrível, pelas indesejáveis conseqüências econômicas e sociais que acarreta.

Mas não se trata apenas da inflação. Além desse flagelo, a crise financeira provoca também a deterioração da máquina estatal, que vai perdendo sua capacidade de prestar serviço, satisfatoriamente, tanto em quantidade como em qualidade. Em conseqüência, vai-se tornando cada vez mais precária a presença do Estado em áreas como segurança, educação, saúde e previdência, vale dizer, atividades que devem ser atendidas obrigatoriamente pelo Poder Público e não deixadas à mercê do mercado, porque não podem ser tocadas em função do lucro.

Enquanto isso, simultaneamente, esse mesmo Estado, por intermédio de empresas de sua propriedade, participa fortemente do setor produtivo em atividades lucrativas por natureza e que podem, portanto, ser conduzidas com maior eficiência por empresas privadas.

Por outro lado, ao longo do tempo, a situação cronicamente deficitária forçou o Estado, sobretudo a União, a um crescente endividamento interno e externo que já supera os R$100 bilhões. Um formidável passivo que onera pesadamente os cofres públicos com sua amortização, com o ônus adicional, para toda a sociedade, da elevadíssima taxa de juros, que se mantêm alta devido à rolagem dessa dívida, em grande parte na forma de títulos de curtíssimo prazo.

Em resumo, temos no Brasil um Estado que não presta de maneira satisfatória os serviços a que está obrigado, alguns dos quais só ele, legalmente, pode prestar. E não os presta porque está virtualmente falido, com déficit brutal e uma dívida impagável.

Paradoxalmente, com disse, esse mesmo Estado possui um valioso patrimônio na forma de empresas que produzem bens que o Estado não precisa produzir, porque não existe para isso e porque outros podem fazê-lo melhor.

Numa situação como essa, compete aos governantes fazer o que qualquer chefe de família ou dono de empresa faria: vender o patrimônio dispensável, a fim de abater a dívida, recuperar a saúde financeira e dedicar-se às coisas que não pode deixar de fazer e que precisa fazer bem.

A esta altura, alguns estarão a se perguntar o que tudo isso tem a ver com a questão doutrinária ou ideológica. Muita coisa. Isso porque, como disse no começo, a ortodoxia distorce a visão e, conseqüentemente, impede a compreensão. Para os ideólogos preconceituosos, privatização é igual a liberalismo, e estatização se confunde com socialismo. Logo, a primeira é um mal a ser combatido e a segunda um bem a ser defendido. Trata-se, portanto, de um dogma impermeável à lógica e aos fatos.

O Sr. Bernardo Cabral - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. JEFFERSON PÉRES - Com muito prazer, ilustre Senador.

O Sr. Bernardo Cabral - Senador Jefferson Péres, é de se louvar que V. Exª faça sua estréia na tribuna abordando um assunto de tamanha densidade. Aliás, não é nenhuma novidade, porque neste mar proceloso dos embates entre liberais e socialistas, V. Exª navega com bastante facilidade, não só como um teórico da ciência política, mas como um homem voltado à ciência econômica. Eu estava ouvindo V. Exª, como sempre, com a atenção que me merece, e senti que a premissa que V. Exª aborda no começo está a fazer uma conclusão lógica quase ao final de seu discurso, quando lembra a chamada esquerda-direita, segundo uns, nascida na Assembléia Nacional francesa, quando os que se sentavam à esquerda eram do contra e os que se sentavam à direita eram favoráveis ao governo. Hoje, estas fronteiras ideológicas não mais existem: a esquerda representada pelo regime comunista capitaneado pela União Soviética e a direita, pelo regime capitalista dos Estados Unidos. Hoje, essas fronteiras ideológicas cederam lugar às fronteiras econômicas, e o país mais forte economicamente está avançando contra o que não tem essa força. O Japão é um exemplo disso, perdeu a guerra bélica para os Estados Unidos e está a ganhar a guerra econômica. No instante em que V. Exª, Senador Jefferson Péres, com toda propriedade, afirma que a crise financeira tem como razão a crise do Estado, V. Exª me lembra um trabalho feito por San Thiago Dantas, quando abordava, em uma conferência, a obra imortal de Cervantes - "Dom Quixote de La Mancha". Evidentemente, não quero compará-lo a um Cervantes e não quero dizer que V. Exª é um êmulo do San Thiago Dantas, mas V. Exª está a orgulhar a representação do Amazonas.

O SR. JEFFERSON PÉRES - Muito obrigado, Senador Bernardo Cabral, pelo seu aparte.

Quando V. Exª menciona San Thiago Dantas, aquela figura extraordinária de homem público e de intelectual, lembro a V. Exª que, já no crepúsculo do Governo João Goulart ou um ano antes, S. Exª teve a lucidez de indicar San Thiago para Primeiro-Ministro. S. Exª tinha inclusive um programa de linha socialdemocrática para o País. Mas, infelizmente, o radicalismo levou à rejeição o nome de San Thiago Dantas. Creio que, naquele momento, começava a derrocada do Governo João Goulart. (Pausa.)

O Sr. Casildo Maldaner - Senador Jefferson Péres, enquanto V. Exª localiza o restante do seu pronunciamento, V. Exª me concederia um aparte?

O SR. JEFFERSON PÉRES - Pois não, Senador. Peço-lhe apenas que seja breve, pois creio que o meu tempo está se esgotando.

O Sr. Casildo Maldaner - Serei breve. Em função das brilhantes palavras do Senador Bernardo Cabral, eu gostaria de um aparte até para cumprimentá-lo pela grande revelação que vem do Amazonas, pela contribuição que vem dar ao Brasil. Quando V. Exª começou o seu pronunciamento, disse: "se esquerdismo é defender o estatismo ou isso e aquilo, não me incluo nessa linha; mas, se esquerdismo é enxergar, é ver o social, o racional, é ver aquilo que é o melhor, então, estou alinhado". Por isso, quero cumprimentá-lo, até por que, depois de fazer um relato histórico, lindo, V. Exª culmina dando soluções aos problemas, falando da importância do Estado naquilo que é indispensável; daquilo que produz e o que não deve produzir ou do que não deve participar, entregando à iniciativa privada. V. Exª pretende a solução desses problemas. Nesse breve aparte, cumprimento-o pela grande revelação que vem do Amazonas para o Brasil inteiro.

O SR. JEFFERSON PÉRES - Muito obrigado, ilustre Senador Maldaner.

Concluindo, Sr. Presidente, trata-se, portanto, de um dogma impermeável à lógica e aos fatos. Eis por que as reformas encontram tanta resistência. É o pensamento dogmático aliado ao corporativismo que impede o diálogo civilizado, substituindo-o pelo monólogo passional, vociferante e cego à realidade.

Quando o debate amadurecer com emoção, cedendo lugar à razão, e a vociferação substituída pela argumentação, os liberais e os socialistas menos radicais e realmente dotados de espírito público poderão ver que suas teses, na aparência antagônicas, são perfeitamente conciliáveis com vistas à construção de um país mais justo e mais livre.

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 15/06/1995 - Página 10306