Discurso no Senado Federal

REPUDIO A CONDENAÇÃO E A EXECUÇÃO, PREVISTA PARA O DIA 17 PROXIMO, DO RADIALISTA E MILITANTE NEGRO NORTE-AMERICANO ABU-JAMAL.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS.:
  • REPUDIO A CONDENAÇÃO E A EXECUÇÃO, PREVISTA PARA O DIA 17 PROXIMO, DO RADIALISTA E MILITANTE NEGRO NORTE-AMERICANO ABU-JAMAL.
Aparteantes
Ronaldo Cunha Lima.
Publicação
Publicação no DCN2 de 08/08/1995 - Página 13530
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • PROTESTO, CONDENAÇÃO, AMEAÇA, CUMPRIMENTO, SENTENÇA JUDICIAL, PENA DE MORTE, MUMIA ABU JAMAL, PARTICIPANTE, GRUPO, DEFESA, DIREITOS, NEGRO, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA).
  • SOLICITAÇÃO, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, NELSON JOBIM, MINISTRO DE ESTADO, MINISTERIO DA JUSTIÇA (MJ), SENADOR, ASSINATURA, TELEGRAMA, GOVERNADOR, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), IMPEDIMENTO, EXECUÇÃO, PENA DE MORTE, MUMIA ABU JAMAL, PARTICIPANTE, GRUPO, DEFESA, DIREITOS, NEGRO.

A SRª BENEDITA DA SILVA (PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso, sem revisão do orador) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, acabo de chegar do Paraguai, onde participei, na Comissão do MERCOSUL, da elaboração do Regimento Interno. Espero ainda falar a respeito dessa reunião, não apenas como uma forma de prestação de conta do meu trabalho, mas para dar conhecimento à Casa sobre matéria relevante para o nosso País.

Ocupo esta tribuna com a única preocupação de trazer particularmente a minha voz a este Senado e, unindo-me a milhares de vozes que clamam por justiça em mais de 100 países espalhados pelo mundo, manifestar a minha incredulidade, manifestar todo o meu repúdio para com um ato inominável, um ato bárbaro de violência, um ato irrecuperável que está para ser perpetrado contra a vida de um ser humano, muito provavelmente inocente, já que o veredicto que recebeu - culpado - não ostenta um mínimo de provas sequer passíveis de serem consideradas sérias e imparciais.

A imprensa do mundo todo vem noticiando que o Governador do Estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos, determinou a execução do radialista e militante negro norte-americano Mumia Abu-Jamal para o dia 17 de agosto.

Apelo aos nobres Pares aqui presentes para que atentem para os fatos que configuram essa inacreditável história:

Radialista e militante negro norte-americano, conceituado e respeitado no meio jornalístico da Filadélfia, Mumia Abu-Jamal, 41 anos, foi condenado à morte pelo assassinato de um policial branco em 1981 na Filadélfia. O caso se arrasta há 13 anos e voltou a merecer destaque na imprensa internacional, porque o Governador da Pensilvânia marcou a data para a execução: 17 de agosto, via injeção letal.

De acordo com os autos de acusação, Wesley Cook - nome de nascimento de Jamal - teria atirado e matado um policial branco em dezembro de 1981. Quanto à real autoria do disparo, no entanto, existem numerosas controvérsias. O acusado afirma-se inocente, pois, segundo ele, na noite do crime encontrava-se trabalhando em seu táxi. Ao perceber que uma pessoa estava sendo espancada por policiais, parou para prestar socorro à vítima e acabou sendo atingido por um tiro, também. Os policiais que estavam presentes afirmam que o acusado aproximou-se e disparou contra o policial, matando-o. Esses policiais, envolvidos no espancamento narrado por Jamal, foram ouvidos como testemunhas de acusação.

Os erros do julgamento - que, conforme as notícias veiculadas no mundo todo, beirou à fraude - são clamorosos e denunciados por entidades de direitos humanos, notadamente a Anistia Internacional, e pela imprensa mundial. Reproduzo alguns deles:

1 - Nem a defesa nem os jurados tiveram acesso a um exame de balística mostrando que o policial foi morto por uma bala calibre 45. O revólver de Jamal, encontrado momentos depois do crime é de calibre 38;

Sei que nesta Casa temos representantes do interesse do nossos Estados, Senadores e Senadoras, doutores em lei e que haverão de acompanhar atentamente o que acabo de dizer.

2 - O tribunal deixou de ouvir o depoimento de uma mulher, testemunha ocular, que afirmou ter visto uma terceira pessoa sair correndo depois dos disparos, na noite do crime, inocentando o réu;

3 - Duas das testemunhas de acusação estavam envolvidas em crimes e há fortes suspeitas de que depuseram em troca de penas mais leves;

4 - A Filadélfia é composta por 40% de negros. Contudo, no júri, havia 10 brancos e 2 negros.

5 - O julgamento teve duração recorde: quatro horas;

6 - O réu não teve direito de apresentar sua versão dos fatos;

7 - O réu não teve direito de constituir um advogado de sua confiança;

8 - O advogado de defesa instituído pelo tribunal não possuía qualquer experiência em casos envolvendo pena de morte;

9 - O tribunal concedeu à Defesa meros U$150 dólares para investigações preliminares. Despesas em casos puníveis com a pena de morte podem chegar aos seis dígitos;

10 - Organizações mundiais como a Anistia Internacional acusam o júri de ter cometido vários erros de avaliação.

11 - Jamal alega inocência até hoje.

Além dessas questões, devo ressaltar, também, que o juiz Albert Sabo, autoridade que assinou a sentença de morte contra Jamal, anteriormente assinara outras trinta e uma sentenças capitais - mais do que qualquer outro juiz nos Estados Unidos. Dessas condenações, 29 foram contra negros e apenas duas contra brancos.

A partir dessa realidade, existem ou não motivos suficientes para que o julgamento seja anulado, bem como a sentença de morte, suspeitos de terem como fator determinante o racismo e a perseguição política? E justamente num país que fiscaliza e exige respeito aos direitos humanos por parte dos outros países!

Entidades americanas de direitos humanos denunciam a condenação de Jamal como sendo perseguição política, devido a sua história de militante negro no Partido radical Panteras Negras, nos anos 70, e seu trabalho como radialista, considerado "a voz dos sem vozes" onde denunciava o racismo e protestava contra organizações criminosas como a "Ku Klux Klan".

Em todo o mundo cresce a massa de ativistas e criminalistas trabalhando incessantemente para obter um novo julgamento. Somente um novo julgamento, imparcial e justo, com a garantia de ampla defesa do réu - o que seria uma extraordinária manifestação de respeito aos direitos humanos, à justiça e à cidadania - poderá esclarecer todos os fatos, ainda obscuros, que envolveram o crime cometido contra o policial, levando à condenação sumária o jornalista e militante negro Mumia Abu-Jamal.

Faço aqui um apelo dramático no sentido de que V. Exªs se manifestem, através de cartas ou telegramas, junto ao Governador do Estado da Pensilvânia, Sr. Thomas Ridge, para que esse pesadelo não se perpetue.

Igualmente apelo ao Presidente da República, Sr. Fernando Henrique Cardoso, cujo passado traz marcada, com a solidez de um marco de pedra, a luta pelos direitos humanos em um tempo de repressões; e ao Sr. Ministro da Justiça, Dr. Nelson Jobim, para que busquem, sem esmorecimento, sensibilizar aquela autoridade, no sentido de que seja evitado esse ato - vale frisar - irreversível que, provavelmente, iria aumentar a lista de erros judiciais americanos relacionados à pena de morte, dentre os quais o notório caso dos anarquistas Sacco e Vanzetti.

Não há nenhum sinal mais sórdido e contundente de violência do que a gerada pelo próprio Estado, a violência de um sistema que desenvolve requintes de crueldade quando, a despeito de ter o poder de perceber e transformar uma realidade, permanece omisso enquanto a verdade permanece sepultada.

Notem bem, Srs. Parlamentares, não se trata de uma irregularidade, de um simples erro jurídico; trata-se de um ato imoral, um ato de traição para com aquilo que de mais sagrado pode existir sobre a face da terra: o direito à vida.

O homem tem liberdade de escolher, como ser consciente que é: ou percorre o caminho da verdade, buscando evoluir como ser humano, ou permanece atrelado aos dogmas e preconceitos, iludindo-se que avança, quando, no máximo, desenvolve movimentos circulares que tem no seu epicentro o ponto de explosão.

Sabemos que existe uma lei básica da física que reza: a partir de uma ação, temos uma reação. Essa lei se aplica também às relações humanas. A opressão gera a revolta; o radicalismo, os excessos, a injustiça gera a violência. Que Deus ilumine os corações e as mentes daqueles que possuem autoridade capaz de reverter o rumo dessa triste história e impedir que o mal prevaleça.

Desejo transpor alguns palavras de um dos diretores da rádio da Filadélfia onde Jamal trabalhava: "Jamal é um jovem extraordinariamente talentoso e brilhante. Uma potência e força individual sem limites. Com inteligência e habilidade para ter se tornado o âncora da Rádio Pública Nacional".

Desejo transpor, igualmente, algumas palavras de Jamal no cárcere: "Sou da opinião de que todo presidiário negro, antes de mais nada, é um presidiário do sistema político, construído e mantido sobre a desvalorização dos negros".

A bravura e o destemor de Mumia Abu-Jamal, que mesmo sentenciado permanece lúcido e combativo, sensibiliza-me profundamente, na medida em que sua postura vem sedimentar em meu coração um pensamento belíssimo que li em algum lugar e que dizia:

      "O sentido do imediato deve ser superado pela firme noção de que a vida não se resume no usufruir do aqui e agora. O usufruir da vida é duração, cujo sentido corre paralelamente ao conceito de eternidade".

Srs. Senadores, sou contra a pena de morte, porque esta é um ato irreversível; portanto, o cidadão que é julgado e penalizado com a pena capital, seja ele inocente ou culpado, deve merecer e esgotar todas as argumentações e usar todos os instrumentos possíveis até chegar o momento do cumprimento da sentença. Por isso estou nesta tribuna e tenho certeza de que o Presidente do nosso País e o Ministro da Justiça não tardarão na atitude de pedir a busca de alternativas ainda não cogitadas para inocentá-lo ou condená-lo definitivamente.

Sei que ao fazê-lo o Brasil estará somando sua contribuição às manifestações mundiais de organizações de direito humanos e até mesmo organizações governamentais de âmbito mundial que pedem neste momento que se conceda a um homem, a um intelectual, a um trabalhador da comunicação, a esse jornalista, a oportunidade de se esgotarem, por meio de seu advogado, todos os instrumentos que possam se não livrá-lo dessa sentença pelo menos fazer com que ele chegue ao tribunal nessa pena máxima depois de esgotados todo seu tempo e oportunidade.

Digo isso com o sentimento de uma brasileira que tem participado e recebido solidariedade de todo o mundo. E por mais que possamos criticar o Brasil no que diz respeito a suas decisões, elas têm sido democráticas do ponto de vista da oportunidade de poder-se freqüentar um tribunal e de julgar nesse tribunal. No Brasil, o nosso Congresso - graças a Deus - não pôde até hoje aceitar essa pena máxima, porque ainda entendemos que os conflitos e as violências que aqui existem são conseqüências do aspecto social deste País e também da nossa cultura - religiosa ou não - de que todo homem nasce inocente, quanto ao entendimento e ao comportamento. Sabemos que a nossa trajetória de vida no seio de nossa sociedade é que nos faz mais ou menos violentos, cruéis, livres ou sentenciados à pena de morte.

Sem reconhecer esses aspectos, fica extremamente impossível trazer para o nosso Congresso um debate dessa natureza. Sabemos que há violência no nosso País e que há homens que merecem e estão verdadeiramente cumprindo suas sentenças, mas sabemos também que há erros que poderão, de certa forma, ser compensados, na medida em que buscarmos em nossos tribunais, esgotando os nossos recursos, se uma pessoa foi inocente ou culpada, e se foi inocente sabemos que não poderemos devolver o seu tempo de vida passado no cárcere, mas poderemos ainda resgatar a oportunidade de fazer com que ela seja um cidadão e que possa, com sua integração, trazer sua contribuição para um país onde houve uma falha.

No entanto, se há a pena de morte, não há uma oportunidade. Como brasileira e como mulher negra sei perfeitamente o que isso significa. Não somente eu, mas todo e qualquer jurista dos Estados Unidos que compreende essa questão dos direitos humanos sabe que a cor da pele pesa na hora da decisão.

Por isso, desejo que possamos nos manifestar, sem interferir nas decisões, como um apelo de um Senado que, por sua compreensão, não permitiu que até hoje este País tivesse uma pena de morte, que sabe que temos que ter medidas radicais e até mesmo rígidas quando a sociedade for violentada individual ou coletivamente por alguém. Queremos que haja entre nós o sentimento e a solidariedade de que a vida não nos pertence, de que a vida pertence a Deus e que a seu tempo é ceifada, que não seja pelas nossas mãos, com suas falhas.

Solicitamos, ainda, o apoio dos nobres Colegas ao telegrama que redigimos ao Governador, no sentido de que seja protelada a sentença e que se esgote todos os recursos para que ele possa ter uma oportunidade.

O Sr. Ronaldo Cunha Lima - Permite-me V. Exª um aparte?

A SRª BENEDITA DA SILVA - Ouço V. Exª com prazer.

O Sr. Ronaldo Cunha Lima - Sem entrar no mérito do processo diante dos detalhes que V. Exª traz, as circunstâncias que envolvem as provas analisadas, o tempo de duração do julgamento, aquilo que foi ou não avaliado pelo corpo de jurados, a sua composição, enfim, abstraindo tudo isso, devo manifestar a minha solidariedade à tese que V. Exª defende em relação à pena extrema, ou seja, a pena de morte. Nelson Hungria dizia que o maior bem é o bem da vida. Já houve quem acrescentasse que, na vida, o maior bem é o bem da honra. Todavia, os conceitos de pena, conceitos que têm variado ao longo do tempo, nos princípios latinos do punitur quia peccatum est, que significa "pune-se porque pecou"; na sua evolução, ou seja, "pune-se para que não peque"; e, mais tarde, na tese eclética da junção das duas - "pune-se porque pecou" e "pune-se para que não peque" -, a evolução da ciência penal jamais admitiu que essa pena chegasse ao extremo de não poder ser revista, reavaliada, reduzida ou redimensionada. Em última palavra, Senadora Benedita da Silva, a pena de morte é a morte da pena, já que não pode mais ser revista nem na sua dimensão nem na sua intensidade e até mesmo na própria vida de quem foi atingido. Se porventura pairasse uma dúvida, surgisse um erro, já seria irreparável, porque a condenação seria extrema, seria capital. Por isso, a consciência jurídica que nos desperta, que nos motiva na apreciação dos fatos jurídicos hoje, reforça-nos a consciência de que a tese que V. Exª defende é jurídica, legal e, do ponto de vista cristão, a melhor. E a ela me associo, felicitando-a por essa posição.

A SRª BENEDITA DA SILVA - Agradeço ao ilustre Senador e gostaria de dizer, emocionada, o que realmente tem me tocado, porque há alguns anos venho trabalhando nesta campanha, esperando que a oportunidade surgisse. Faltam apenas 10 dias para que o Sr. Mumia Abu-Jamal seja executado, pois está marcado para o dia 17. Por isso, mais uma vez, quero estender o meu sentimento, o meu apelo a esta Casa nas palavras do Senador Ronaldo Cunha Lima, e pedir a meus Pares que assinem o telegrama de solidariedade para um gesto que é única e simplesmente humano.

Muito obrigada.

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 08/08/1995 - Página 13530