Discurso no Senado Federal

REFLEXÕES PROPOSTAS AO PLENARIO POR OCASIÃO DO TRANSCURSO DOS 50 ANOS DO LANÇAMENTO DAS BOMBAS ATOMICAS SOBRE HIROSHIMA E NAGASAKI NO JAPÃO.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS.:
  • REFLEXÕES PROPOSTAS AO PLENARIO POR OCASIÃO DO TRANSCURSO DOS 50 ANOS DO LANÇAMENTO DAS BOMBAS ATOMICAS SOBRE HIROSHIMA E NAGASAKI NO JAPÃO.
Aparteantes
Lauro Campos.
Publicação
Publicação no DCN2 de 08/08/1995 - Página 13545
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • ANALISE, CONCEITO, GUERRA, OPORTUNIDADE, ANIVERSARIO, LANÇAMENTO, BOMBA, PAIS ESTRANGEIRO, JAPÃO.

A SRª MARINA SILVA (PT-AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, minhas Senhoras e meus Senhores, o que me faz vir a esta tribuna é o acontecimento que ontem recebeu, por grande parte de homens e mulheres deste Planeta, atos de protesto, de repúdio e de reflexão: o episódio do lançamento da bomba atômica no Japão, mais precisamente nas cidades de Hiroxima e Nagasáqui. No dia 6 de agosto de 1945 e em seguida no dia 9 de agosto de 1945 foram lançados os cogumelos que vieram a destruir e a ceifar a vida de 210 mil pessoas.

Os cogumelos são conhecidos, na ciência, com o nome de lactus deliciosus. No caso do cogumelo da bomba atômica, poderíamos colocá-los na História denominando-os de "lactus tenebrosus", porque trouxeram o terror, a insegurança, o medo, destruindo a vida de milhares de pessoas e ceifando a alma e a esperança daquelas que mesmo com toda a tragédia conseguiram sobreviver.

Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, quero fazer esta reflexão somando a minha voz aos inúmeros protestos que ocorreram por este Brasil afora e neste Planeta. Este Planeta que poderia ser a nossa casa, o lugar seguro, o nosso abrigo, mas, infelizmente, não o é. E não o é porque embora Deus o tenha feito em forma de paraíso, como o Jardim do Éden, o homem, na sua ânsia de domar e dominar a natureza, esquecendo-se de domar a si mesmo, tornou este Planeta, em muitos momentos da História, ao invés do Éden ou do paraíso, no inferno. Em Hiroxima e em Nagasáqui, transformou-se aquilo que Deus, pela sua mão, havia feito como Jardim do Éden em um inferno, o qual passou a ameaçar a vida de milhares e milhares de pessoas.

Srª. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, neste pronunciamento, eu gostaria de fazer algumas indagações, as quais, com certeza, ficariam melhor na boca das crianças, porque estas não têm medo de fazer perguntas que possam parecer absurdas.

Por que os homens fazem guerra? Por que se lança mão de instrumentos perigosos e terrivelmente ameaçadores para se fazer a guerra? Talvez busquemos resposta, ou alguma "justificativa", ou alguma "causa nobre" para essas indagações nos mais diferentes períodos da História.

O que leva os homens a fazerem a guerra? Se perguntássemos isso aos gregos, com certeza, ouviríamos que os mesmos fizeram a guerra para levarem civilização aos bárbaros; se fizéssemos essa pergunta aos romanos, ouviríamos que os mesmos fizeram as guerras para expandir as magníficas vantagens do seu império para o resto do mundo; se essa pergunta fosse feita aos ideólogos das Cruzadas, ouviríamos que os mesmos fizeram as guerras para levar Deus aos pagãos; se perguntássemos aos que defenderam os ideais da Revolução Francesa por que fizeram guerra, eles diriam, contraditoriamente, que foi para implantar os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade.

Mas vamos para a contemporaneidade e perguntamos: por que, em 1945, se jogou aquela bomba em Hiroxima e Nagasáqui? Com certeza aqueles que fizeram a bomba e que decidiram essa operação diriam o seguinte: para evitar que mais vidas fossem ceifadas; porque, se não jogássemos a bomba - eles diriam -, iriam morrer 300 a 500 mil soldados americanos, sem falar de mais 800 mil do lado inimigo. Então, diriam que fizeram a guerra, também, por uma "causa justa" para evitar que mais vidas fossem ceifadas.

Srª Presidente, Srs. Senadores, e eu lamento - embora com a alegria de ter aqui nobres colegas - que ninguém tenha debatido essa questão. Eu gostaria de ter falado antes, porque a idéia da guerra, a psicologia da guerra, que está presente nas diferentes culturas da raça humana, precisa ser pensada não a partir das reflexões meramente políticas, não a partir das reflexões meramente econômicas e dos interesses que subjazem nas guerras, mas a partir de uma variável que às vezes temos medo de enfrentar: o choque entre o ser humano e a sua própria consciência.

O Sr. Lauro Campos - Senadora Marina Silva, V. Exª me concede um aparte?

A SRª MARINA SILVA - Concedo o aparte a V. Exª, nobre Senador Lauro Campos.

O Sr. Lauro Campos - Primeiro, nobre Senadora, gostaria de congratular-me com V. Exª por ter impedido que a nossa Casa passasse em silêncio sobre um fato de tão grande relevância quanto este que V. Exª aborda agora. Em segundo lugar, gostaria de trazer algumas colaborações à tese que V. Exª expõe. Num livro intitulado How we did it, como fizemos a bomba atômica, fica muito claro que o processo tecnológico-científico de hoje reúne uma série de pessoas inconscientes a respeito até mesmo do objetivo de sua ação dita científica. Ficou demonstrado nesse livro que, individualmente, as pessoas que colaboravam na feitura da bomba atômica não sabiam o que estavam fazendo. E foi só a partir de um determinado momento que alguém teve a luz, percebeu que aquele processo, que estava sendo encaminhado através de um trabalho coletivo, iria resultar na bomba atômica. Então, advertiram os cientistas o Ministro da Defesa dos Estados Unidos, ameaçando parar o trabalho. Falaram que ele devia convocar o Ministro da Defesa japonês para assistir no deserto americano à explosão atômica a fim de que este decidisse se o Japão se renderia ou não diante daquela experiência. Mas a cúpula norte-americana se recusou a fazer isso porque não poderiam perder a oportunidade de ver a ação de uma bomba atômica sobre uma coletividade humana. Escolheram, então, três cidades de grande densidade demográfica, a fim de poderem perceber, na prática, como a bomba atômica atuaria ceifando as vidas humanas. A perversidade, portanto, assume nessa nossa cultura o caráter de ciência. E, como V.Exª estava dizendo, tudo se desculpa, tudo é racionalizado, principalmente o massacre contra a coletividade inerme tal como aconteceu no Japão. Quando um sistema como o nosso, que se move pelo lucro, coloca esse lucro sustentado pelo Governo como estímulo para as indústrias da morte, para as indústrias tanáticas, para as indústrias bélicas que são as mais rentáveis do mundo, surgem dois pólos altamente perigosos: o do lucro estimulando a ação do mercado destruidor, do mercado da bomba, do mercado das armas, o mercado da guerra; e, por outro lado, o despertar dessa tendência destruidora, tanática que infelizmente subjaz na personalidade humana e que dela deveria ser extirpada ao invés de ser estimulada através desses condicionamentos econômicos e sociais. Muito obrigado.

A SRª MARINA SILVA - Agradeço o aparte de V. Exª, que só enriquece o meu pronunciamento.

Como V. Exª acabou de afirmar, havia a possibilidade de se mostrar ao Japão os danos que seriam causados àquelas pessoas, caso a bomba fosse lançada; poderia, assim, ter sido evitado - quem sabe - tão desastroso evento na história da humanidade. Mas os americanos a recusaram, para não perderem a oportunidade de verem os efeitos da bomba testados em pessoas, em seres humanos.

Eu dizia que a necessidade da guerra precisa ser entendida, além de todas essas variáveis que havia citado e também V. Exª, sob um aspecto que é o do homem em confronto consigo mesmo, com a sua consciência, porque, se pensarmos de forma racional, poderíamos ficar assustados em constatar que, para causas tão nobres, lança-se mão de mecanismos e meios tão terríveis.

Será que não nos tornamos iguais ao inimigo tão terrivelmente assustador, quando o combatemos, utilizando métodos que se assemelham àquilo que tanto ojerizamos nele? Com certeza, isso acontece no processo, quando se lança mão de armas que não são tão nobres quanto o fim que se persegue.

Perguntaria, Srª Presidente, Srs. Senadores, o que é necessário para se fazer uma guerra. Para fazê-la, se a analisarmos sob o ponto de vista da sua cultura e psicologia, precisa-se de dois elementos: o primeiro deles, que se tenha "uma causa justa"; o segundo, que se tenha um inimigo.

Dessa forma, Srª Presidente, Srs. Senadores, poderia dizer o seguinte: talvez seja necessário, na psicologia da guerra, que primeiro se tenha o inimigo. A "causa justa" inventa-se depois e lança-se mão de todos os argumentos para tornar nobre a uma população aquilo que, com certeza, se não fosse a propaganda enganosa, não aconteceria.

Cito um escritor que para mim, de forma brilhante, caracteriza a psicologia das batalhas. Em seu livro "Ao Encontro da Sombra", Sam Keen, no capítulo 41, "O criador de Inimigos", nos oferece uma poesia belíssima:

PARA CRIAR UM INIMIGO

Comece com uma tela em branco

e delineie, num contorno geral, as formas

de homens, mulheres e crianças.

Mergulhe fundo no poço inconsciente de

sua própria sombra reprimida

com um pincel largo e

salpique os estranhos com o matiz sinistro da sombra.

Trace sobre o rosto do inimigo

a avidez, o ódio e a negligência que você não ousa

assumir como seus.

Obscureça a doce individualidade de cada rosto.

Apague todos os traços de mil amores, esperanças

e medos que brincam pelo caleidoscópio de

cada coração finito.

Retorça o sorriso até que ele forme um arco

descendente de crueldade.

Arranque a carne dos ossos até que só reste

o esqueleto abstrato da morte.

Exagere as feições para que o homem se metamorfoseie

em besta, verme, inseto.

Preencha o fundo com figuras malignas

de antigos sonhos - diabos,

demônios e guerreiros do mal.

Quando a estátua do inimigo estiver completa

você será capaz de matar sem sentir culpa,

trucidar sem sentir vergonha.

A coisa que você destrói tornou-se apenas

um inimigo de Deus, um estorvo

à sagrada dialética da História.

É assim que esse brilhante escritor descreve como se constrói um inimigo: deformam-se as formas de alguém para transformá-lo num inimigo. Isso não acontece só no plano individual. Isso tem de ser passado para a coletividade. E como é que se passa isso para a coletividade? Se observássemos como os russos tratavam os americanos, iríamos identificar isso na sua cultura de guerra. Também identificamos isso na cultura de guerra dos americanos pelo modo como eles tratam os russos e os cubanos.

E como é que se denomina a justa causa e como é que se deforma ou se cria o inimigo?

Diz o poeta:

      "Nós somos inocentes; eles são culpados. Nós dizemos a verdade, informamos; eles mentem, usam propagandas. Nós apenas nos defendemos; eles são agressores. Nossos mísseis se dispõem a dissuadir; os deles se dispõem a incentivar a guerra, a atirar primeiro. Nós temos um departamento de defesa; eles têm um departamento de guerra."

Ou seja, a nossa causa é sempre justa, a nossa causa é sempre boa, mas a do inimigo é sempre perversa.

Até que ponto isso é verdadeiro? Até que ponto isso realmente está baseado em fatos concretos na História? Isso não ocorre só de potência para potência, de nação para nação; acontece nas microrrevoluções, nas microguerras que acontecem na vida de cada indivíduo.

Talvez eu esteja psicologizando demais a guerra, mas não acredito em ações de massas ensandecidas que não partam de algum ponto da individualidade do ser humano. Por mais que muitas vezes haja ações coletivas, sociais, em que colocamos a pecha de históricas ou culturais, elas são de indivíduos, de pessoas reais, concretas. As guerras ocorridas durante a trajetória da humanidade são atos de monstruosidade que, em nome de "causas justas", levam à miséria, ao medo, à morte, como aconteceu em Hiroshima e Nagasaki.

Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, quero concluir meu pronunciamento, para não deixar em branco esse dia que foi manchado de sangue, acreditando que, de alguma forma, possa somar a minha voz à de milhares e milhares de pessoas que ousam querer diminuir a psicologia da guerra, a ânsia de combater por idéias aparentemente boas, utilizando-se de métodos muito perversos.

Se pelo milagre da poesia é possível acreditar, como as palavras do poeta, que também há lírios no lodo, pela via crucis da dor, recuso-me a crer que possa haver paz na guerra.

Nesse caso, a radical frase bíblica que diz "ama o teu inimigo como a ti mesmo" nos serve de muito ensinamento, porque, se não amarmos o nosso inimigo, estaremos mostrando a nossa incapacidade de amarmos a nós mesmos. E o ódio por ele passa a ser, nada mais, nada menos, do que o reflexo do ódio que sentimos pela nossa natureza humana.

Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 08/08/1995 - Página 13545