Discurso no Senado Federal

JUSTIFICANDO A PROPOSTA DE EMENDA A CONSTITUIÇÃO 47/95, DE INICIATIVA DE S.EXA., QUE INSTITUI A JUSTIÇA AGRARIA.

Autor
Romero Jucá (PFL - Partido da Frente Liberal/RR)
Nome completo: Romero Jucá Filho
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
JUDICIARIO.:
  • JUSTIFICANDO A PROPOSTA DE EMENDA A CONSTITUIÇÃO 47/95, DE INICIATIVA DE S.EXA., QUE INSTITUI A JUSTIÇA AGRARIA.
Aparteantes
Bernardo Cabral, Jefferson Peres.
Publicação
Publicação no DCN2 de 12/08/1995 - Página 13830
Assunto
Outros > JUDICIARIO.
Indexação
  • APRESENTAÇÃO, JUSTIFICAÇÃO, PROPOSTA, EMENDA CONSTITUCIONAL, CRIAÇÃO, REFORMULAÇÃO, LEGISLAÇÃO, CONCESSÃO, AUTONOMIA, DIREITO AGRARIO, JUSTIÇA AGRARIA, BRASIL, OBJETIVO, JULGAMENTO, PENDENCIA, PROCESSO JUDICIAL, ESPECIFICAÇÃO, ATIVIDADE RURAL, PAIS.
  • COMENTARIO, ATRASO, CRIAÇÃO, JUSTIÇA AGRARIA, BRASIL, COMPARAÇÃO, PAIS ESTRANGEIRO, EUROPA, AMERICA DO SUL.

O SR. ROMERO JUCÁ (PFL-RR. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a longa, persistente e sempre insolúvel questão agrária brasileira está a nos impor, sem que possamos postergá-la por mais tempo, uma decisão política corajosa, no sentido de serem corrigidos os rumos até agora adotados quanto ao seu equacionamento.

Tenho para mim que o pressuposto essencial para essa correção será a admissão de um enfoque mais realista da situação rural brasileira, dentro do qual não existe mais espaço para a continuidade das eternas discussões acadêmicas em torno do reconhecimento ou não da autonomia do direito agrário e que vem impedindo, por via de conseqüência, a criação de tribunais específicos para a instrução e julgamento das pendências ligadas à terra.

Na verdade, essas discussões, somadas às estéreis formulações em torno da necessária precedência da reforma agrária sobre o direito agrário e deste sobre a justiça agrária, circunscreveram-nos a um círculo vicioso em que não se vislumbra porto de chegada e de cujos resultados práticos extraímos apenas um enorme brilho para as conceituações doutrinárias e uma completa escuridão para os que vivem dentro do universo rural brasileiro.

Por isso mesmo, ainda que tardia, penso ser chegada a hora de invertermos os termos dessa equação não resolvida, instituindo-se, sem mais delongas, a aguardada justiça agrária do Brasil.

Com esse propósito, acabo de apresentar ao Senado uma proposta de emenda à Constituição que, por refletir um anseio da sociedade, espero venha a obter aprovação da Casa, com os aperfeiçoamentos que certamente a ela serão agregados pelos meus eminentes Pares.

Permito-me aqui lembrar que, se ainda é por alguns considerada controversa, a sua instituição é vista por uma grande maioria como inadiável, já que somente a especificidade de conhecimentos e uma estrutura própria da justiça agrária poderiam nos livrar do caos gerado nesse mundo jurídico de características especiais, em que a precariedade da prestação jurisdicional é uma constante ameaça ao Estado Democrático de Direito.

Ressalte-se que o Brasil já se encontra atrasado na implantação do sistema legal agrário. Muitos países, tanto da Europa como da América Latina, já adotam, há tempos, uma judicatura agrária especializada. Na Europa, podemos citar Suécia, Irlanda, Inglaterra, Gales, Escócia, Holanda, Alemanha, França, Itália, Suíça e Espanha. Na América Latina, são exemplos marcantes dessa judicatura o Peru, a Venezuela e o México, podendo ser citados também o Equador, Bolívia e Honduras.

Juizados de Terra e o Tribunal Agrário Superior, em segunda instância, são os órgãos da justiça agrária peruana. Os Juzgados de Tierras, Bosques y Aguas, em cada um dos municípios-sede de regiões administrativas agrárias, e um Juizado Superior Agrário, em Caracas, são os órgãos da Jurisdição Especial Agrária da Venezuela, criados pela Lei Orgânica de Tribunais e Procedimentos Agrários, de 20 de abril de 1976. As Comissões Agrárias Mistas, previstas na Lei Federal de Reforma Agrária, de 1971, no México, têm competência para as questões fundiárias e o que pertine à reforma agrária.

Então, se tantos países, menores territorialmente do que o Brasil, já tomaram, há tempos, medidas concretas de reconhecimento desse ramo autônomo do Direito, não há que se falar em ficção jurídica, ainda que naqueles os seus problemas peculiares possam ser diferentes dos nossos. Diferentes ou não, o certo é que em nosso País os litígios rurais proliferam dia a dia, gerando situações de violência e miséria que não encontram o anteparo e a resistência de uma judicatura especialmente preparada para enfrentá-los. Com isso, as questões de terra ficam perdidas no labirinto formado pela Justiça Federal, Comum e do Trabalho, morosas na prestação jurisdicional, sem perspectivas de escoimar-se dos seus tradicionais vícios, estruturalmente, favoráveis aos poderosos e tecnicamente incapacitadas para promover a reclamada justiça campesina, malgrado sejam os seus quadros compostos de elementos de inegável cultura jurídica.

Para que a terra cumpra com inteireza suas finalidades sociais e econômicas, funcionando como alicerce inconteste do progresso pátrio, é indispensável que se promova uma estrutura judicial de resposta rápida aos contenciosos a elas inerentes, sem o que as relações entre os agentes rurais, sejam eles empregados, patrões, parceiros, arrendatários, ocupantes ou posseiros, continuarão tensas, desagregadoras e suscetíveis de conflitos sociais tendentes a desembocar na indesejável violência que é rejeitada tanto pela nossa consciência jurídica como pela nossa consciência cristã.

Ainda ontem os principais jornais do País registraram - e aqui também no plenário do Senado foi registrado por mim, pela Senadora Marina Silva, pelo Senador Ademir Andrade e pelo Senador Pedro Simon - um lamentável conflito armado entre posseiros e policiais militares do Estado de Rondônia, onde para nossa vergonha e tristeza repetiu-se o episódio de várias mortes, de ambos os lados, inclusive de mulheres e crianças que teriam sido usadas como escudo. Infortunadamente, esse não é um fato incomum no nosso meio agrário e reflete apenas um problema social para o qual insistimos em adiar a aplicação do remédio mais eficaz.

O Sr. Bernardo Cabral - Permita-me V. Exª um aparte?

O SR. ROMERO JUCÁ - Ouço V. Exª com muito prazer.

O Sr. Bernardo Cabral - Senador Romero Jucá, V. Exª aborda um assunto que, desde à época em que o Brasil foi descoberto, se transformou em um lema terrível para o ser humano: a terra. O ser humano compreende todas as investidas que possam ser feitas contra ele, menos quando se toca na terra, no sentido de propriedade. Observe V. Exª que o conflito fundiário vem geralmente em torno dessa circunstância, que V. Exª destaca do problema jurídico e do social. Quem advogou nessa área, quem sabe penetrar os escaninhos difíceis das ações de reintegração de posse, dos mandados que os juízes acabam deferindo, às vezes de forma liminar, ou ao final na sentença, e a força policial é convocada para cumprir, tudo isso juntamente com o quadro dantesco das famílias que acabam sendo despejadas, porque consideradas invasoras, e aí, nobre Senador, vem o que lhe disse: a propriedade, a terra. Tudo isso, Senador Romero Jucá - por isso quero aplaudir o pronunciamento de V. Exª -, está incrustado em uma profunda injustiça social. Há uma imensidão de latifúndios pertencentes a tão poucas pessoas, e um sem-número delas vive à cata de um pedaço de terra, sem poder ser proprietários um dia. Aplaudo V. Exª, que aborda o assunto sem fazê-lo de forma demagógica, sem buscar os princípios contraditórios de quem tem razão. V. Exª está a pedir uma disciplina para a matéria, e é esse o caminho. De modo que, nobre Senador Romero Jucá, conte V. Exª com a minha solidariedade.

O SR. ROMERO JUCÁ - Nobre Senador Bernardo Cabral, agradeço-lhe, dizendo que me sinto honrado com o aparte de V. Exª, pela estatura política e jurídica que V. Exª tem nesta Casa e perante o País. Espero de V. Exª e dos demais Pares contribuições importantes para este projeto de emenda constitucional que apresentamos, porque, sem dúvida nenhuma, V. Exª corroborou com as nossas palavras, inclusive com mais brilhantismo - e eu as agrego ao meu discurso -, demonstrando que, sem dúvida nenhuma, esta é uma questão emergencial que o País tem que tratar com a responsabilidade que o Congresso Nacional deve ter. Agradeço as palavras de V. Exª.

O Sr. Jefferson Péres - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. ROMERO JUCÁ - Ouço, com prazer, o aparte de V. Exª, nobre Senador Jefferson Péres.

O Sr. Jefferson Péres - Ilustre Senador Romero Jucá, como disse a nobre Senadora Benedita da Silva há meia hora, a reforma agrária já nem tem conotação ideológica. É uma bandeira que pode ser desfraldada por qualquer partido liberal. Foi o Governo americano, quando ocupava o Japão após a Segunda Guerra Mundial, quem promoveu a reforma agrária nesse país. Países como a Coréia do Sul e Taiwan, que dão, hoje, lições de desenvolvimento ao resto do mundo, fizeram reformas agrárias promovendo a criação de uma classe média rural, disseminando a propriedade no campo. É incrível que um país como o Brasil, que vive - creio - há quatrocentos anos, conflitos de terra, com tamanha extensão territorial, ainda não tenha levado a fundo esse problema. E quando o fez, ilustre Senador Romero Jucá, foi de forma inteiramente desvirtuada. Muitas das desapropriações promovidas pelo INCRA, há dez anos, são algo que deveria cair no anedotário. Vi proprietários rurais no Amazonas, latifundiários, negociando para que o INCRA promovesse as desapropriações de terras absolutamente inaproveitadas, no interesse de receberem as TDA's - Títulos de Dívidas Agrárias - por terras que não valiam coisa nenhuma para virem negociar os títulos no mercado paralelo. Infelizmente as experiências de reforma agrária são caricatas no Brasil. O conflito ocorrido agora em Rondônia mostra que o problema realmente está a exigir do Governo Federal medidas mais efetivas. Muito obrigado.

O SR. ROMERO JUCÁ - Senador Jefferson Péres, agradeço-lhe o aparte. V. Exª, que é um político ligado às causas populares e que conhece bem a questão agrária, um político da nossa região, Senador pelo Estado do Amazonas, que tem trazido a esta Casa questões importantes para o País, quero, sem dúvida nenhuma, registrar a importância das colocações de V. Exª para o meu discurso e dizer que, realmente, a questão da reforma agrária é fundamental para o País e excede às questões ideológicas. Acredito que hoje deve ser uma luta de todos os políticos e de todas as entidades que têm condição e que têm visão social do País. Quero dizer mais: além do conflito de Rondônia, tivemos, ontem à noite, notícias de que havia ocorrido um conflito de grandes proporções no Estado do Pará. Isso nos foi comunicado pelo Senador Ademir Andrade. Não existe ainda registro sobre o número de mortes, mas a informação é de que também teria havido mortes por causa do conflito. O que, sem dúvida alguma, demonstra que temos que ter um instrumento urgente de julgamento dessas questões do campo. As questões agrárias, essas disputas agrárias, que começam com uma disputa e terminam em mortes, não podem se procrastinar nos tribunais não especializados. Sem dúvida alguma, as colocações de V. Exª engrandecem o nosso pronunciamento.

Voltando ao meu pronunciamento, Sr. Presidente, eu dizia da nossa vergonha e tristeza pelo episódio que houve em Rondônia e que resultou em várias mortes de ambos os lados. Solicito à Mesa que anexe ao meu pronunciamento documento que recebi do movimento dos sem-terra de Rondônia.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o problema é muito sério e somente uma vontade férrea de Governo e do Congresso Nacional poderá amenizá-lo a contento. Caso contrário, não haverá força que impeça a arregimentação desse pessoal sofrido para uma insurreição contra a ordem, já que a atual não contribui para reavivar a crença nos descrentes do Poder Público. E se desejamos uma nova ordem para o nosso universo agrário, uma ordem que realmente possa evitar os conflitos mais sangrentos, é imprescindível a introdução de uma estrutura judicial superiormente colocada em plano acima das injunções locais.

É tempo, assim, de sairmos desse estado de quase imobilidade contemplativa, da timidez na adoção de medidas legislativas mais profundas, do temor do desagrado às oligarquias dominantes. Os anos se passam, os problemas se agravam, as discussões se perduram, o País se atrasa, a sociedade reclama, o Governo não se empenha e o Congresso deixa de agir como deveria. Justiça se faça. Eminentes membros do Parlamento já o tentaram, sem sucesso. Na elaboração da Constituição de 1988, novas tentativas e novos fracassos. Até quando? - pergunto. Até quando pretenderá o Congresso Nacional permanecer de costas para os anseios pátrios de pacificação no campo?

Se tempos houve em que era admissível o conceito de transitoriedade dos seus problemas específicos, hoje essa conceituação está totalmente ultrapassada pela realidade fática, sobejamente demonstrada no decorrer de tantas décadas.

O que resta, então, é a mortalidade da repetitiva letra constitucional determinante do uso social da propriedade, mormente no que se refere à propriedade rural. Essa é a grande verdade, e a teimosia em não encará-la de frente distancia-nos do objetivo de nos tornarmos uma nação forte e independente, já que o pressuposto essencial do alcance dessa meta é a existência do divórcio entre a estrutura protecional oferecida pelo Estado e a realidade dinâmica produzida pelas forças sociais.

Por isso mesmo é inconcebível que permaneçamos na diluição provocada pela prestação jurisdicional de três justiças diferentes, nenhuma delas especializada, nenhuma delas estruturada para um atendimento eficaz, e todas elas, infelizmente, assoberbadas pelo acúmulo de feitos não relacionados à terra, que, por si só, produz para os nossos julgadores uma avalanche de processos difíceis, a demandar decisões embasadas na profundidade de conhecimentos que só são adquiridos no trato mais amiúde dessas questões.

Se as soluções até hoje dadas ao problema da justiça agrária não foram satisfatórias, tenhamos a coragem de inovar, de instituí-la na plenitude, deixando de lado os costumeiros remendos que, historicamente, só serviram de procrastinação a uma solução definitiva e duradoura, desejada pela sociedade mas desinteressante aos contumazes aproveitadores dos desassistidos.

Creio firmemente que a justiça agrária autônoma é viável, necessária e urgente, e que só através dela poderemos restaurar no nosso povo rural a confiança na tutela dos seus direitos e a esperança de um futuro em que a sua cidadania seja realmente respeitada.

O Brasil é um País de dimensões continentais com inúmeros problemas graves a resolver. A paz social e a produção de alimentos para o nosso povo passa pela solução e pela estrutura de uma reforma agrária responsável, inteligente e realista. Neste aspecto, a justiça agrária pode se transformar no instrumento de decisão que trará o campo brasileiro ao encontro do seu futuro.

Espero, portanto, que o Congresso brasileiro enfrente o desafio que tem se perpetrado nuto além do desejado.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 12/08/1995 - Página 13830